Entrevista de Nivaldo Soares de Souza
Entrevistado por Luiza Gallo e Cristiane Rodrigues Pellegrini Rossi
Rafard, 04/10/2022
Projeto: Todo Lugar tem uma História pra Contar – Rafard
Entrevista número: PCSH_HV1367
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome: Nivaldo Soares de Souza. Data de nascimento: dezenove de dezembro de 1946, 75 anos. Nasci em Rafard e moro em Rafard.
P/1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – A data de nascimento?
P/1 – O dia, como foi o dia? Se você nasceu de parteira, em hospital?
R – Naquele tempo, aqui em Rafard mesmo acho que era tudo na base de parteira. A prima dela, acho que é tia sua, Dona Natalina, que fez o nascimento praticamente acho que de toda a cidade de Rafard, na época. Não havia médico, ela que era a parteira da cidade. Todo mundo aqui da parte velha de Rafard nasceu da mão dela, Dona Natalina Pellegrini. É parente sua, né?
P/2 – Isso.
P/1 – Você nasceu na mão dela?
R – Na mão dela. No Sítio Sete Fogão. Não vai pensar que é fogões, é fogão mesmo. É o Sítio do Manduca, do Pompeu, zona rural de Rafard.
P/1 – E você sabe como o seu nome foi escolhido?
R – Não tenho ideia. Para a época o nome Nivaldo era acho que o único. Meu irmão também, Ozair, nunca mais vi uma pessoa com esse nome. Não sei onde que minha mãe foi achar esses nomes, Nivaldo e Ozair. Geralmente tem uma origem: pai, avô e bisavô, mas eu não lembro onde que ela foi achar esse nome.
P/1 – E qual é o nome da sua mãe?
R – O nome da minha mãe é Isabel Bisin de Souza e meu pai José Soares de Souza.
P/1 – E como você os descreveria, o jeitinho deles?
R – Minha mãe costureira, mulher humilde, do sítio. Meu pai operário da usina de Rafard. Aqui operário é aquele salário: um salário, dois salários, o suficiente para viver. Minha mãe, eu sinto muitas saudades dela, do colo dela, do amor que ela tinha para a gente. Meu pai, meu amigo, meu companheiro, está sempre junto. O que mais, não? Resumindo.
P/1 – Lembra de alguma história marcante com eles, na infância?
R – Sempre foi uma vida normal, vida de pobre, não tem muito o que falar, aquela vida tradicional da gente.
P/1 – Como era a sua rotina, nessa época do sítio?
R – Eu saí do sítio com quatro anos de idade, vim pra cidade. Meu pai, como eu já disse, era operário, no começo nós moramos em uma casa que chovia mais dentro do que fora, depois sempre mudamos várias vezes, até que o meu pai conseguiu construir a casinha dele e sempre aquela vida simples também.
P/1 – A sua família te contou a história dessa mudança do sítio para a cidade, se teve muita transformação?
R – Não, a saído do sítio pra cidade… normalmente as pessoas procuravam sair do sítio para a cidade, procurando uma vida melhor, porque no sítio tem aquelas intempéries de chuva, falta de chuva e muitos problemas. Meu pai tinha muitos problemas. Meu pai morava no sítio e frequentava a escola e eu lembro que ele falava que ele andava quilômetros e quilômetros a pé, descalço. Muitas vezes ia na escola e levava lanche, levava bolo estragado. A vida do meu pai, ‘pastou’ bastante. A minha mãe também já…os dois tinham sítio, mas eram pobres. Naquela época não tinha carro, caminhão, implementos agrícolas, trator, nada, era tudo na base da enxada, do primário mesmo. Era muito complicada a vida na época, principalmente financiamento. Hoje tem, na época não tinha, era tudo na ‘raça’.
P/1 – E seu pai te contou alguma história da usina, quando ele era operário, como era o dia a dia?
R – Não, ele contava muito da vida dele, de solteiro, de casado. Ele trabalhava na usina como eletricista, tocava na banda, naquela época tinham várias bandas aqui em Rafard, tinha banda nos Sete Fogões, tinha a banda de Itapeva, tinha a banda da cidade. Onde mais que tinha banda? Acho que só. Sete Fogões, Itapeva, Rafard. Eram bandas boas e hoje não tem mais nenhuma, tem só a banda dos escoteiros, Banda Allan Rolin Barbosa, mas na época as bandas eram um meio cultural mais divulgado que tinha na cidade e no sítio, na zona rural.
P/1 – E o senhor se lembra, tem alguma memória do sítio?
R – Eu saí do sítio com quatro anos, vagamente lembro de algumas festas, alguns bailes que faziam na frente, no terreiro da casa, lembro a turma providenciando o baile, mas depois chegava na hora do baile acho que eu ia dormir, com quatro anos, não via mais nada. Pouco lembro, quatro anos a gente não tem muita… nem direito não lembro do meu irmão, eu tinha um irmão, mas eu não me lembro dele.
P/2 – Era mais velho?
R – Era um ano mais velho que eu. Não lembro dele.
P/1 – E você conheceu os seus avós?
R – Conheci o pai do meu pai, o pai e a mãe, ultimamente eles moravam em São Bernardo do Campo, naquele bairro de Rudge Ramos. E depois a parte da minha mãe já era Bisin, já moravam aqui, nesse meu sítio aqui. Amadeu Bisin, Rosa Assalin Bisin. Família Assalin também é muito parente meu, uma família muito grande de Assalin e Bisin. Lembro muito bem deles e gostava muito deles, mais da minha nonna. A gente falava nonna, não era avó, pra mim era tudo nonna. As de São Paulo a gente se encontrava de vez em quando, almoçava de vez em quando, principalmente no fim do ano. E aqui na cidade já morava perto de mim, morava com a minha tia Lígia, que vocês entrevistaram.
P/1 – Você morou com ela?
R – Não cheguei a morar, morava perto. Duzentos metros.
P/1 – E recordação de alguma história com os seus avós, você tem? De alguma atividade que vocês faziam juntos ou algum almoço?
R – Eu lembro muito bem da minha avó, Rosa Assalin Bisin. Um dia acho que eu estava muito doente, eles resolveram me trazer pro médico e a minha nonna vinha de charrete e quando chegou aqui na escola Grellet, eles falaram: “O menino já morreu”. Daí me levaram no médico, eu não tinha morrido. Quando chegou aqui no Grellet, falaram: “O menino já morreu”. Daí a minha mãe estava junto, a minha avó, minha nonna e fomos até o médico e deu a medicação, eu recuperei e estou aqui até hoje. Eu lembro muito que ela que saía com a charrete pra fazer compras e eu a acompanhava sempre.
P/1 – E seu irmão, como era a sua relação com ele?
R – Meu irmão, Ozair Soares de Souza, faleceu no ano passado, no sábado. Minha mulher morreu no domingo, os dois. Ele era telegrafista, morava em Campinas, num apartamento atrás do Hospital Vera Cruz. Ele tinha uma quitinete. Quitinete que chama? Morava lá, mas eu falava para ele, ele já tinha uns trezentos mil no banco e eu falava para ele: “Venha para Rafard, venha morar em Rafard, com trezentos mil você compra três casas em Capivari e Rafard, você aluga as três e é mais um salário”. E ele morria de amor por Campinas e não quis saber de vir. Até que, no fim da vida dele, o filho dele, o Rodnei Ramos de Souza, o internou em um asilo em Piracicaba e um dia o colocaram no sol, para ‘tomar’ sol e a hora que foram guardá-lo, por causa que o sol estava forte, ele estava morto, já estava ‘passando para outra’. Ele tinha um ano a mais que eu. Ele não era muito chegado comigo, a gente era irmão, mas ele era telegrafista, eu era professor, o ramo dele era completamente diferente do meu, a gente não se cruzava muito. De vez em quando a gente se encontrava, em cerimônias, alguma festa.
P/1 – E na infância, como que era? Vocês eram mais próximos, ou não?
R – Não. A gente não era muito próximo. Ele tinha os amigos dele, eu tinha os meus.
P/1 – E como era sua casa de infância, você lembra?
R – Uma casa comum: sala, dois quartos, a cozinha, um terreno grande, onde geralmente a gente fazia um pomarzinho. O pomar, a horta. Uma casa simples, sem novidade.
P/1 – Você dormia com o seu irmão, dividia quarto?
R – Dormia junto com ele, mesmo quarto, ele tinha a cama dele e eu tinha a minha. O chão de tijolo, depois que vai aparecendo os vitrificados, paviflex.
P/1 – E seu pai era músico de uma banda. Ele era vocalista, ou ele tocava algum instrumento?
R – Era. Trombone, toda a família era de músico. Ele tocava trombone, tinha o meu tio que tocava clarinete, meu próprio irmão tocava o repique, sabe, na bateria, na banda? Ele era menino, mas já tocava na banda. Eu não. Eu fui escoteiro e no grupo de escoteiro a gente tinha uma fanfarra muito boa, aqui em Rafard, daí eu tocava a corneta, depois tiro de guerra. A gente fazia o Exército, eu já tocava o repique também.
P/1 – O que vocês ouviam? Era uma casa cheia de música. Você lembra que bandas você ouvia na infância?
R – Não, eles tocavam em bandas tradicionais, música popular, ensaiavam. Até é bom ler aquele livro, aquela parte de João de Melo. Você chegou a ler ou não?
P/2 – Não.
R – João de Melo era um maestro preto, de cor negra que a gente fala, mas era um maestro lavrador. Trabalhava o dia inteiro na roça e de noite ele ia lá, tocava as bandas de Sete Fogões, Itapeva, de Rafard e dava aula no Ginásio Comercial também. Tinha um dia por semana que ele vinha ao ginásio dar aula de dia e de noite. E de noite ele ia dormir na minha casa, lá com o meu pai, os dois eram muito ligados, mas ele era um ‘homem de cor’, humilde, simples, mas sabia música, tocava qualquer instrumento e fazia tudo de graça. No próprio Ginásio Comercial mesmo nunca ele cobrou. O meu pai queria que eu aprendesse música, fui lá, comecei, mas eu não quis saber de decorar a Bona. Você sabe o que é Bona?
P/1 – Não.
R – É a Bíblia dos músicos. A hora que você aprendeu a Bona, aprendeu a manejar todas aquelas notinhas musicais, você está apto pra tocar qualquer instrumento. Então quando você chegar na última página, você já é um músico perfeito. É a Bíblia do músico. Na época falava Bona, não sei se hoje é Bona ainda, mas você começava aprendendo a música: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, mas a hora que você dominou a Bona, você poderia tocar qualquer instrumento, porque a nota musical vale para todos os instrumentos.
P/2 – Sim.
P/1 – E as suas brincadeiras favoritas da infância?
R – Mais futebol. Sempre foi muito tranquilo. No grupo escolar eu dei muito trabalho para a professora. Primeiro ano tudo bem, o segundo ano eu repeti dois anos. Eu era muito malandro, eu judiei muito das professoras minhas, muito bagunceiro, ‘tomei bomba’ duas vezes. Eu só pensava em jogar bola e nadar, nunca estudei, quando estava no grupo. Comecei a estudar depois do ginásio e daí tinha que decorar.
P/1 – Você lembra de algum apronto na escola, de alguma história?
R – Eu brigava muito, batia nos outros, apanhava também. Eu fui muito malandro na escola. Por isso que depois que eu fiquei diretor, aprendi a entender os outros também. Assim como os outros estavam fazendo, eu também já fui.
P/1 – E onde que você nadava?
R – Aqui em Rafard a gente tinha o Rio Capivari e tinha as lagoas, ribeirão. A gente nadava, os amigos.
P/1 – Que delícia!
R – Delícia, você mergulhar num rio raso e batia a cabeça no fundo?
P/1 – (risos) Era raso?
R – A gente aventurava, muitas vezes você não sabia onde você estava pulando. O Rio Capivari era meio fundo, mas lagoa e ribeirão podiam ser rasos, podia dar uma mergulhada e não tinha aquela noção de ir com a mão na frente, você já ia de cabeça e já vi muita gente que teve problema de espinha e ficou torto depois, sem contar quem já morreu também.
P/1 – Já aconteceu?
R – É que se você bate a cabeça no fundo, você descontrola a coluna e pode ficar paraplégico.
P/1 – Tem alguma história, você lembra de alguma história no rio?
R – Não. Eu conheço só, porque eu dei aula [por] muito tempo, então eu tive muito aluno que passou por essa. Ismael Sanches foi um grande vereador de Capivari, andava de muleta por causa de mergulhar de cabeça, no raso. Naquele tempo não tinha piscina.
P/1 – Quando você era pequeno, você pensava no que você queria ser quando crescesse, com o que você gostaria de trabalhar?
R – Não. Na minha infância eu pensava muito em ser padre, mais por causa da influência da minha mãe. A minha mãe era muito católica, então eu, com os meus dez anos, já era coroinha. Eu fui coroinha, fui sacristão, fui catequista, fui seminarista, fiquei três anos no seminário, até que eu saí. Saí não, falaram que eu não tinha vocação, me dispensaram, porque na época o seminário estava passando por dificuldades econômicas e eu não pagava o seminário. O meu pai era operário, como que ia pagar o seminário, pagar estudo, pagar comida, alojamento. Talvez foi uma desculpa, que como não pagava, então mandaram muita gente embora, pra economizar. Daí eu tinha quanto,quatorze anos? Tudo bem, eu peguei a minha mala e fui embora.
P/1 – Lá você aprontava também, novinho?
R – Não. Lá, geralmente eu era um dos mais grandões da classe, já era mais velho que os outros, então a turma tinha certo respeito, mas nunca dei problema, não. Nunca dei motivo.
P/1 – E seus amigos da escola, teve alguém muito marcante pro senhor?
R – Olha, a grande maioria dos meus amigos já faleceram. Praticamente a minha turma mesmo, acho que uns 80%, 90% já estão aqui no cemitério. Eu tenho meia dúzia de amigos, poucos amigos, a maioria já partiu.
P/1 – Mas na época, o senhor lembra de alguma história, com alguém?
R – Não. A gente fazia muita coisa, mas não lembro bem, não.
P/1 – E professora, alguma muito marcante?
R – Professora eu me lembro muito, que eu gostava de uma professora do prézinho, eu não lembro o nome dela, eu tinha dúvida. Floriza, Flora? Eu não lembro se era Fedrighi ou não. Até eu fiquei na minha escola aqui, onde eu estudei, peguei os livros da época para descobrir o nome dela, que fiquei substituindo um tempo, peguei os livros daquela antiguidade, eu não via Flora, eu via Floriza.
P/2 – É Floriza.
R – Floriza. Nunca mais eu vi essa mulher e na frente morava Floriza Fedrighi, ela era professora também, mas eu não ligava as duas, eu não sabia bem, mas não falava o sobrenome dela. O que marca muito a gente é professora do primeiro ano, onde você foi alfabetizado. Então, no primeiro ano é a professora que a gente mais marca. A professora que alfabetizou a gente, eu lembro dela, Dona Maria Marins Miali Peixoto Marinhos. Ela era viúva, gordinha, tinha acho que os seus sessenta anos, sempre de preto. Naquele tempo era comum, as viúvas ficavam sempre de preto, tiravam um preto e colocavam outro preto, sempre de preto e a vida inteira dela, que eu lembro dela, sempre de preto. Ela foi enterrada aqui e depois de um certo tempo a levaram embora, não tem mais a sepultura dela aqui, a levaram, eu não sei para onde ela foi, a ossada, só.
P/1 – Como que você ia para a escola? A pé, de carro?
R – Eu ia a pé, aqui tudo é perto, morava quanto? Acho que a uns quinhentos metros da escola. Ia a pé, eu e meu irmão, e geralmente a gente ia na escola cedo e a gente vendia verdura também, antes de chegar na escola. Meu pai fazia uma cesta grande de alface e de vagem e antes de ir na escola a gente vendia tudo e depois entrava na escola.
P/1 – Vendiam tudo?
R – É, naquele tempo a gente tinha uniforme, camisa, calça e sapato. Naquela época a gente quase não usava sapato, era alpargata. Hoje não existe mais alpargata. A gente falava “pargata”, lembra? Não sei se você chegou a usar “pargata”.
P/2 – Usei.
R – É uma lona e o piso é de fibra. Era o mais barato que tinha também, muitos naquela época iam descalços, a turma do sítio, mais a turma do sítio aqui de Saltinho, Santa Rita, Cascavel, vinham tudo a pé, com chuva ou sem chuva, amassando barro e a gente cruzava com eles, que iam chegando. Era um tempo de ‘pastar’. Não é como hoje, que o ônibus recolhe a turma da zona rural, traz para cá, tudo facilitado. Na época era complicado.
P/1 – E a juventude, que recordações você tem dessa época, já ficando um pouco maior?
R – A juventude eu já estava fazendo a escola normal. Eu fiz a Escola Técnica de Comércio de Capivari, era o ginásio e depois eu dei aula dezoito anos lá. Depois eu fiz a escola normal, que é de professor primário, mais três anos e depois a faculdade. Eu fiz três faculdades. Eu fiz História na PUC e também mestrado na PUC; depois eu fiz Estudos Sociais em Tatuí, na Faficile; depois eu fiz Pedagogia com Administração, em Franca, aqueles complementos que a gente faz, deu três faculdades e não pergunte o salário com que a gente aposenta hoje, porque eu tenho vergonha. O meu filho é professor no Senac, estilismo industrial, lá em Pindamonhangaba. Ele, com três anos de serviço ganha mais que eu, que tenho trinta de serviço, sem contar as três faculdades. A nossa educação é ‘supervalorizada’, né? Pagam uma ‘beleza’ de salário para o pessoal. O municipal eu não sei, está muito boa? Você não pode falar mal do prefeito, esqueça.
P/1 – (risos) Voltando um pouquinho, eu queria saber do seu grupo de escoteiros. Como foi isso?
R – O grupo de escoteiros começou aqui na Escola Grellet. O diretor da época chamava Adail Rodrigues Alves, ele começou um grupo de escoteiro e formou... praticamente não era bem escoteiro, era mais uma fanfarra de música mesmo e quem tomava conta era um cabo do exército, Allan Rolin Barbosa e ele fazia tudo de graça também, era uma fanfarra muito grande e nós visitamos muitas cidades: Rafard, Capivari, Piracicaba, Elias Fausto, muitas cidades. Porto Feliz. A gente viajava tocando as nossas músicas, ensaiava uma vez por semana na frente da casa dele, depois saía para dar a volta pela cidade. Tinha homens... homens não, era a juventude e tinha infância também, meninos e meninas faziam parte. Tinha o grupo de escoteiros que tocava e tinha o pessoal que marchava, atrás. Dava mais de cem pessoas.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Comecei com dez anos, mais uns três anos de escoteiro. Nessa época eu tocava corneta e no livro eu falo bem sobre isso aí. Se tiver a oportunidade de ver depois...
P/1 – Quero. Lembra de alguma história lá, ou não? Algum dia.
R – Não. A gente almoçava em todo lugar que a gente ia. Inclusive eu esqueci de falar de Laranjal Paulista, que era a terra do diretor da escola, Odair Rodrigues Alves. Eu lembro de uma vez que nós fomos almoçar em Porto Feliz e eu nunca tinha visto beterraba no almoço, eu fiquei encantado com a beterraba e enchi o prato de beterraba, depois eu comi um pouco e larguei tudo lá. A gente ia de caminhão e enchia o caminhão de gente e quando ia para Elias Fausto, mesmo, daí a gente foi de trem, pegava o trem e ia para Elias Fausto e Porto Feliz de caminhão, sempre na base do improviso, mas tudo dava certo.
P/1 – Tem alguma pergunta, Cris?
P/2 – Até agora acho que não. Estou acompanhando aqui.
R – E veja bem que o nome do instrutor do grupo de escoteiros, Allan Rolin Barbosa, hoje ele é o nome de uma principal rua aqui do bairro Popular, foi muito bem lembrado, porque ele foi uma pessoa que se dedicou praticamente a vida dele toda, que ele era pintor também, desenhista e escoteiro. Ele fazia tudo de graça, sem cobrar nada, ajudando a cidade. Allan Rolin Barbosa. A mulher dele era Zuna Barbosa e a filha dele, Dina Sandra, estão os três enterrados juntos, aí.
P/2 – A Dina Sandra era filha dele?
R – Era.
P/1 – E na juventude, um pouquinho mais velho, como vocês se divertiam, o que vocês gostavam de fazer?
R – Na época a gente fazia a praça, que a gente falava. Aqui em Rafard tinha, à noite, o pessoal se reunia na rua, na frente do cinema e até antes do cinema todo mundo… os homens ficavam do lado esquerdo e do lado direito e as mulheres circulavam no meio e os homens ficavam olhando as mulheres e as mulheres olhando os homens e daí você paquerava, entrava em contato, tirava para namorar, até casar depois. E depois aconteceu que o cinema, quando chegava oito horas, todo mundo ia para o cinema ou então, um pouco antes desciam na estação do trem, que o trem passava também, era uma beleza, o trem das oito. Quando o trem passava e começava o cinema, acabava a praça. Depois acontece que reformou o cinema e a Sorocabana acabou também, aqui em Rafard, acabou tudo. O que aconteceu com a juventude? A juventude foi tudo para Capivari. Quando chegava sete horas saíam três ônibus daqui com a juventude e iam tudo para Capivari e os moços e as moças se encontravam lá, no Jardim de Capivari, uma praça maravilhosa que nós temos, em Capivari. Ali acontecia que os moços de Rafard muitas vezes namoravam as moças de Capivari, as moças de Capivari cruzavam muita gente de Rafard. Essa aí também, a diretora, é casada com um moço de Capivari. É a proximidade de Rafard e a cidade muito unida, as duas, você vê que estão emendadas pela Avenida Annicchino, pela Avenida Pio XII, pela estrada velha, por onde se vai estão unidas as duas cidades. Havia muita rivalidade, na época, as duas cidades e Rafard era Vila de Capivari. A própria Tarsila do Amaral nasceu em Rafard, aqui em São Bernardo, em uma fazenda, mas acontece que na época Rafard era vila e a vila pertencia pra Capivari. Então Tarsila nasceu em que cidade? Capivari, mas no distrito de Rafard e as duas cidades levam o nome dela, as duas cidades se orgulham de ter a Tarsila como aquela artista.
P/1 – E você teve alguma paquera nessa época? Namoro.
R – Nessa época a gente costumava fazer a praça fora também e eu era o único que tinha carro, aquele carrinho podre, Fusquinha podre, arrebentado já e normalmente a gente ia para Porto Feliz, para Tietê, para Laranjal e ia ‘fazer a praça’. Ia lá, a gente arrumava uma namorada, ficava um tempo, namorava. Geralmente… eu cheguei até a arrumar uma namorada que fazia a escola Normal. Algumas vezes não dava certo e partia para outra, mas antes, quando era professor, você tinha muita oportunidade para namorar. O professor dá aula para trinta meninas, era muito fácil. A gente teve várias namoradas. No fim, inclusive, eu casei com uma aluna minha, mais velha que eu... mais velha, praticamente um mês mais velha do que eu e eu casei com ela, mas já tinha 27 anos.
P/2 – E deu aula para ela no Normal?
R – Não, ela foi da Escola Técnica de Comércio. Na época nós tínhamos, em Capivari, a Escola Padre Fabiano. Era a única que funcionava durante o dia e a escola técnica funcionava à noite, era única, também, que funcionava à noite. E o ginásio comercial meu funcionava à tarde e à noite e na época havia o famoso curso de admissão. Você fazia o grupo escolar, saía do quarto ano e, para você entrar na primeira série, você tinha que passar por um exame de admissão e aí era meio difícil, porque entrava matemática, português, história e geografia, você tinha que fazer um curso preparatório para poder entrar no primeiro ano, no primeiro ginasial e Capivari, na época, se não me engano, abria só duas classes de primeira série, então ficava muita gente de fora e essa turma que ficava de fora vinha para o ginásio comercial de Rafard, vinha aqui, estudava um ano e, quando tinha vaga em Capivari, daí voltava para Capivari. Alguns ficavam. Inclusive de Mumbuca, teve muita gente que veio de Mumbuca estudar aqui, porque não tinha vaga na Escola Padre Fabiano e o ginásio comercial era uma opção, tanto de dia, como de noite, porque de noite só tinha uma escola em Capivari, que era a escola técnica. Hoje tem uma escola em cada bairro, tem umas dez escolas em Capivari, se não tiver mais e, na época, de noite só tinha a escola técnica. Ou estudava nela, ou não estudava. E geralmente, quem estudava nela era o pessoal que trabalhava durante o dia e estudava durante a noite.
P/1 – Nivaldo, qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Primeiro trabalho eu era menino, eu entregava jornal na cidade, eu entregava O Progresso. Tinha um jornal em Rafard chamado O Progresso e no começo, o meu primeiro emprego foi entregar jornal. Colocava tudo aquele monte de jornal na bicicleta. Um dia eu lembro que choveu e as estradas de Rafard eram tudo de terra, eu lembro que eu caí com a bicicleta, com tudo aquele monte de jornal e depois a turma reclamava pro editor: “Ei, eu não recebi jornal”. Também, o que ia fazer com um monte de jornal cheio de barro? Eu ia entregar pra pessoa? Esse foi o primeiro emprego meu, depois eu fui para o seminário e fiquei três anos estudando em Piracicaba e São Paulo, depois voltei para Rafard, trabalhando no Ginásio Comercial. Fui escriturário, fui secretário, fui diretor e professor nesses dez anos de funcionamento do Ginásio Comercial e eu colocava sempre junto comigo meus amigos, o pessoal que era da minha turma: Dante, Zé Antônio Quagliato, Getúlio, Rivail. Procurava sempre apoiar quem? Meus amigos.
P/1 – Você se lembra do seu primeiro dia, como professor?
R – Eu estava fazendo escola Normal e no primeiro ano de escola Normal de professor eu já dava aula, em 1966. Normalmente, quando a gente começa a carreira, a gente leva a carreira muito a sério, muito ‘linha dura’, sempre fui de ‘linha dura’, arrumei muita encrenca com isso também. Se você levasse mais no ‘banho-maria’, muita coisa se perdoava, mas sempre fui um professor de ‘linha dura’. Eu trabalhei com a Cristiane um tempo, na zona rural, depois eu vim pra cidade e fiquei na Escola Aurélio Sotto um ano, 2000, na época do prefeito Doutor Marco Antônio Nogueira. Eu trabalhei contra o Doutor Nogueira aqui em Rafard, depois ele foi o prefeito e me convidou para trabalhar com ele, exemplo de um grande homem, Doutor Nogueira. Trabalhei contra ele e depois ele me convidou para ficar diretor de escola, ao contrário do prefeito anterior, que eu também tinha trabalhado para ele e depois ‘me colocou na rua’. Trabalhei pra ele, fiz o programa de governo para ele, fiz a campanha na zona rural para ele. O primeiro dia que ele entrou, me colocou para fora. Foi a última escola, a Escola Aurélio Sotto. Daí eu entrei na prefeitura, como diretor administrativo, você era professora na época.
P/2 – Esse foi o último? Que o senhor, daí, parou?
R – É.
P/1 – Mas nesse primeiro dia, no começo de carreira, você estava falando que o negócio era mais sério. Você lembra da sensação, se você estava com ‘frio na barriga’ de entrar em uma sala, com alunos? Teve esse momento, ou não?
R – Não, eu nunca tive dificuldade.
P/2 – Que idade tinham os alunos?
R – A Escola Técnica de Comércio era tudo juventude, dezoito anos, era muito variado, tinha aluno novo, aluno médio, aluno velho, maior que eu, mais velho do que eu, mas eu nunca tive dificuldade.
P/1 – Nesses anos todos dando aula, teve algum aluno muito marcante para o senhor?
R – Geralmente o aluno marcante é o aluno ‘tranqueira’. O aluno bom a gente acaba esquecendo, passa despercebido, mas a gente lembra sempre bem. A gente lembra muito bem daqueles alunos que deram problema. A escola técnica sempre tinha algum aluno. Aqui no Jeni Apprilante não teve muito problema, nem no Aurélio Sotto, era meio difícil, mas sempre tinha, ‘todo mato tem bicho’, não tem? Sempre tem alguém que marca. Eu lembro muito bem e tenho amizade com eles hoje, eles encontram comigo: “Ei, ‘seu’ Nivaldo, professor”. Eles não esquecem. A gente lembra muito bem dos alunos e das alunas, a gente se cruza por aí, em Rafard e Capivari, no comércio, supermercado, a gente está sempre cruzando com os ex-alunos, pessoal do tiro de guerra, pessoal da política. Eu fui até vereador também, no segundo mandato eu já fui vereador aqui, eram nove vereadores, os oito já ‘subiram’. Se pegar a listagem de vereador, o único vivo sou eu.
P/2 – Daquele mandato.
R – É, o segundo mandato, foi do governo de Angelim Honora. Só ficou eu, por enquanto.
P/1 – E que estilo de professor você era, rígido?
R – Eu era rígido, eu ‘judiei’ muito da molecada. Ela foi aluna minha, eu ‘judiava’ muito da criançada. Eu normalmente pegava o livro, o programa de história, geralmente e, pra facilitar pro aluno, eu repartia o programa todo em perguntas, para não decorar aquele monte de coisa, então eu facilitava, ‘quebrava’ o conteúdo todo em perguntas, para ser mais fácil pra entender, mas eu insistia. Eu lembro que eu fazia assim: quando chegava no meio do ano eu dava uma prova que entrava metade do livro e depois, no fim do ano, entrava a outra metade do livro. Eu ‘judiava’ bem da turma, fazia a turma estudar, ‘judiei’ bastante deles e muitos deles ainda falam: “Oh, tempo bom! No seu tempo a gente aprendia”. Hoje você entra no primeiro ano, você entra na quinta série e não tem mais aquele exame de admissão. O exame de admissão ‘filtrava’ muita gente. Você saía do quarto ano, daí você tinha que fazer um curso de admissão pra poder entrar no ginásio, para poder entrar na quinta série, tinha que fazer um curso. Existia um curso só para preparar e muito assim era concorrido. Capivari havia duas classes somente, no Padre Fabiano, para a quinta série. A grande maioria ficava fora.
P/2 – Hoje não pode mais.
R – Hoje entra direto, a ‘porteira’ abriu. Hoje entra pessoa inteligente, os menos providos de inteligência, entram.
P/1 – O senhor dava aula de todas as matérias, ou era só de História?
R – Não. Eu tinha História, Estudos Sociais, porque depois de um certo tempo acabou História e entrou Estudos Sociais. Eu acabei de fazer faculdade de História, acabou História, aí eu fui obrigado a fazer Estudos Sociais, porque História transformou-se em Estudos Sociais.
P/2 – E agora voltou.
R – E agora voltou História outra vez, mas História tinha só no colegial. Eu dava História, Estudos Sociais, tinha Educação Moral e Cívica e Organização Política. Eu tinha registro em Geografia também, mas nunca dei aula de Geografia.
P/1 – Se você puder contar um pouquinho para a gente sobre o Ginásio Comercial novamente, fundação, que você estava explicando e repetir aquela resposta, sabe?
P/1 – O Ginásio começou em 1963 e terminou em 1972. Terminou por quê? Porque justamente no ano 1970 foi criado o Ginásio Estadual de Rafard, no mesmo horário e gratuito. Não tem concorrência. No mesmo horário e gratuito, praticamente acabou, ninguém mais ia estudar no Ginásio Comercial, ia estudar no Ginásio Estadual. Eu dei aula também no Ginásio Estadual, quando começou, no primeiro ano, 1970. Ginásio Estadual de Rafard funcionava na Escola Grellet. Eu comecei dando aula lá também. Eu, Maria Fidalma, professores de Campinas e de Capivari e o Ginásio Comercial funcionou até 1972. Eu fui, ali, escriturário, fui secretário, fui professor e fui diretor.
P/1 – No ginásio Comercial?
R – É, até 1972, quando eu fechei a escola.
P/2 – Onde funcionava?
R – O Ginásio Comercial funcionava atrás da igreja, onde é a secretaria da igreja católica. Como chama ali? Eu esqueço…
P/2 – O Ágape.
R – O Ágape. Ali é a secretaria da igreja católica, tem salas para reuniões, eles reformaram o prédio. Até a ideia minha, da época, era construir uma escola nova, porque do lado havia um terreno grande, então eu tinha feito uma planta, com seis classes. Cheguei a construir uma classe, comecei a segunda classe e daí veio o aparecimento do Ginásio Estadual, acabou, ficou, daí derrubaram tudo, acabou o Ginásio Comercial. Tem muitos alunos da época, hoje estão todos com sessenta anos, setenta anos. Os alunos tinham a mesma idade que a minha, praticamente, porque eu comecei a dar aula com dezoito anos e hoje já está todo mundo casado, com neto e bisneto, muitos já morreram, muitos são médicos, dentistas, administradores. Formou muita gente, era a elite cultural da época o Ginásio Comercial, só tinha esse, porque a única escola que tinha era o Grupo Escolar Luis Grellet, que tinha do primeiro até o quarto ano primário e depois o Ginásio Comercial continuava a quinta série até o oitava, mas na época era Ginásio, da primeira série até a quarta, dez anos.
P/1 – E como foi se tornar diretor?
P/2 – Dessa escola, do ginásio.
R – Eu fui subindo, comecei como escriturário, depois fiquei secretário. O Padre Renato incentiva muito as pessoas. Daí eu fiz faculdade. Primeiro eu fiz escola Normal, de três anos, depois que eu fiz faculdade. Na época a gente sonhava muito em ficar efetivo. Eu lembro, na época, os professores tinham carro. Lembro do ‘seu’ Nilton, que tinha o Aero Willys dele. As professoras todas vinham dar aula de carro. Que beleza ser professor efetivo concursado e garantido! Daí eu entrei na faculdade em Campinas, viajar todo dia e pegar ônibus das seis horas, voltava meio-dia, depois descansava de tarde e dava aula de noite, para pagar a faculdade.
P/1 – Que recordações você tem, da faculdade?
R – A minha turma de História, mesmo, em Campinas, era uma turma muito unida. Naquele tempo o vestibular funcionava, só entrava quem passava. Eu lembro que História tinha cinquenta vagas e passou acho que vinte, entrou vinte só e a faculdade não completava, ficava vinte só. Hoje passa vinte, daí eles completam com o número de vagas que tem, completando até preencher. Se desistisse alguém, chamava o próximo, da lista de espera. Até naquela época era complicado. Era uma turma muito unida, tinha vinte alunos, vinte e cinco, cinco homens e vinte mulheres, era uma turma muito unida. Uma turma já morreu também, como acontece sempre. Eu tenho contato com algumas pessoas ainda. Quando chega no fim do ano, dezembro, eu telefono para algumas pessoas, mas todas elas com a mesma idade minha, setenta e daí para frente.
P/1 – E, Nivaldo, quais são os desafios, pensando assim, em trabalhar com a educação?
R – Desafio que você vai encontrar pessoa de toda espécie: aluno bom, aluno educado, aluno ruim, burro, mal-educado. E a culpa disso sabe o que é? Da nova geração de pais. Eu lembro no meu tempo de infância, se você começava a falar alguma coisa que não devia, seu pai olhava pra você e você já calava a boca. O que acontece hoje? Hoje os filhos pouco obedecem aos pais. A gente vê muito na escola professor batendo em aluno, aluno batendo em professor, que tem hora que você perde a paciência, quando o aluno fala uma coisa que não deve para você e você é obrigado a ‘engolir’, você tem que ter muito controle e muita paciência para poder manter um relacionamento com o pessoal. A criança xinga o professor, a mãe fala: “Ai, que beleza, ela xingou a professora”. Um tempo eles perguntavam para o filho: “O que você aprontou na escola hoje?” Agora os pais perguntam para os alunos: “O que o professor aprontou para você?” E era muito comum, principalmente no meu tempo, encontrar mãe na porta da escola, querendo brigar com a professora, discutir com a professora, porque falou talvez alguma coisa ‘fora do eixo’ pra criança e a mãe ficar revoltada, principalmente quando se trata de racismo, de droga, aluno mal-educado, que você tem que ter muito controle para aguentar.
P/1 – E os maiores aprendizados de trabalhar nessa área?
R – Os métodos eu falei pra você, já. O método meu eu sempre adotei livro ou então alguma vez eu ditava, conforme a matéria, para eles e sempre dava depois e dividia o conteúdo em muitas perguntas e eles respondiam, colocavam na lousa e corrigiam, depois na prova caía aquelas questões. Eu dava cinquenta e tirava cinco e geralmente, quando chegava no meio do ano, eu fazia uma prova entrando todo o conteúdo do semestre, depois no segundo semestre era a mesma coisa, a turma aprendia alguma coisa e era muito útil depois, para o vestibular, exame de História, vestibular entra História, entra Educação Moral e Cívica, entra Organização Política, entra Geografia e mais as outras depois: Matemática, Português, Química, Física. Mas eles tiveram muita oportunidade, serviu para alguma coisa.
P/1 – E no campo político, tem algo que você gostaria de destacar, dos seus trabalhos?
R – Eu fui candidato a vereador quando eu era professor no Ginásio Comercial de Rafard, acho que isso que me ajudou muito. Eu fui vereador e naquela época eram nove candidatos e continua com nove ainda e fui vereador na segunda legislatura e, como eu já disse, só resta eu daquela turma, todos já ‘partiram para o céu’, espero, né? Mas eu trabalhei muito com os outros prefeitos, depois, na época do prefeito Braz Felix, Heitor Turolla, Doutor Marco Antônio Nogueira, Bolacha. O seu tio, Rubens Pellegrini. Doutor Vicente. Eu trabalhava na educação, no Mobral, trabalhei tempo com Mobral, no tempo em que meus professores iam dar aula na zona rural, de carro, com lampião, de noite. E professores improvisados também, porque ninguém queria dar aula no Mobral, ninguém queria dar aula de noite, dar aula com o lampião e eu pegava os meus amigos. Carlos Albertini era funcionário da prefeitura, mas ele tinha carro, então ele que levava a turma para a zona rural. Rivail Chiarini era professor, hoje é dentista. Luis Pilotto também. Eles iam entregando os professores na zona rural, com chuva, com sol, de noite e dando aula com lampião a gás. Ganhavam um salarinho, né? Acho que era uma gratificação, na época.
P/1 – Não chegou a dar aula no Mobral?
R – Não, eu era coordenador do Mobral. Na parte política eu trabalhei, fundei vários partidos. Comecei pelo PMDB, Partido Verde, PSDB, PL. A gente formava vários partidos, para unir. Nem sempre dava certo, como você vê agora, o número de partidos não quer dizer que vai ganhar, eles olham muito a pessoa. Não é porque você é professora, um médico, um dentista, que você vai ser eleito. No fim o povo vota em uma pessoa que não tem estudo nenhum, não tem qualificação nenhuma. A última campanha minha eu lembro que eu tive quarenta votos e um maconheiro teve 140 votos, daí parei. Geralmente, para você ser eleito, você tem que estar muito em contato com o povo. Não é porque você é médica, dentista ou professor, que o povo vai falar: “Olha, ele é professor, eu vou votar nele; ele é médico; dentista, eu vou votar nele”. Eles não pensam assim. Eles pensam na utilidade que a pessoa tem. É muito comum eleger a pessoa que trabalha com a ambulância, por exemplo, porque ele atende os chamados, interna, carrega, leva, ajuda todas as pessoas e na hora de votar eles vão lembrar daquele sujeito da ambulância, não vão pensar no professor, no médico, no dentista. Eles vão votar em quem eles devem obrigação, quem deu uma cesta básica para ele, quem ajudou, emprestou dinheiro para ele. Enfim, onde ele está ligado. Não olha a capacidade da pessoa, como o exemplo que eu dei para você. Eu era diretor de escola no Aurélio Sotto, eu era assistente de diretor de Cristina e fui candidato a vereador. Trabalhava com as mães dos alunos e com os pais, eu tive quarenta votos e um maconheiro teve 140, daí eu parei e falei: “Tchau, mesmo”. Quando o povo pensar, quando que o povo vai pensar? Quando Deus ajudar.
P/1 – E, Nivaldo, como você conheceu sua esposa, como foi o casamento?
R – Então, foi na Escola Técnica de Comércio de Capivari. Ela era uma aluna comum, igual as outras, nunca pensei em namorá-la, mas no fim teve a festa de Santa Cruz, acabou a aula. Um dia, sexta-feira acabou a aula: “Vamos na festa”. Todo mundo saiu e foi na festa, de noite, dez e meia todo mundo foi para a festa e, lá na festa, eu e mais dois amigos ficamos juntos, conversando e as mocinhas, minhas alunas estavam no canto, lá também. Daí inventei de mandar um ‘correio elegante’ para ela, sabe o que é ‘correio elegante’? Aquele bilhetinho que a gente mandava com uma poesia pequeninha. Mandei para ela, até lembro os dizeres: “Se eu mandar um correio você vai gostar ou vai me mandar ‘andar’?” Peguei um aluno meu e falei: “Leve lá para ela”. O aluno meu, ‘puxa-saco’, grudado comigo, tinha ‘correio elegante’, nem eu tinha ‘correio elegante’, mas ele tinha e tinha caneta, então eu improvisei, ele levou e ela respondeu: “Vou gostar, pode mandar”. Daí começou a ler e trocamos uns quatro ‘correios elegantes’, porque já era tarde, ela falou: “Vou embora”. Depois eu falei: “Amanhã é sábado, tem baile, você não vai no baile?” “Não, não vou no baile”. Ela era pobre também, acho que nem roupa para ir no baile ela tinha. “Não vou ao baile". E era o último dia da festa, e daí? Daí eu estudava na PUC, em Campinas e ela tinha uma amiga que estudava comigo, só que eu fazia história e a amiga dela fazia um curso preparatório para concurso do Banco do Brasil e eu cruzava com ela e coincidiu de eu sentar junto com ela, daí eu a manipulei e essa amiga dela era vizinha dela, combinamos de se encontrar na praça, no próximo sábado, se encontramos, começamos e ficamos juntos quase cinquenta anos, morreu o ano passado.
P/1 – E esses cinquenta anos, como foi?
R – Foi muito bom, um namoro muito bonito, muito gostoso, maravilhoso. O namoro foi tão bonito que nós decidimos casar, namoramos um ano e meio, depois nós ficamos casados mais 46 e meio, dá 48 anos de casamento e depois ela inventou de arrumar um câncer e ‘partiu para outra’. Foi rápido o fim dela, ela ficou com câncer um mês, um mês e meio, a internei, ficou uma semana internada, ficou em coma e desligou, o coração dela deu a última ‘badalada’: pum e não voltou mais. Rezo muito por ela, para que ela esteja bem e quem muito me ajuda nisso é o espiritismo, que é uma religião que conforta muito as pessoas, que dá muita esperança de consolo e de conforto, que normalmente, principalmente as religiões evangélicas falam, encerram a vida, morreu, acabou, enterrou, fica enterrado ali, esperando o juízo final. O espiritismo não fala assim. O espiritismo já fala: você ‘partiu para outra’, saiu da Terra hoje e hoje você já está na vida espiritual e lá você já vai se encontrar com seus amigos, seus parentes e todas as pessoas que você amou na Terra, estão tudo esperando você, lá e você vai começar uma nova vida, lá ‘em cima’. Se você lê aquele livro, Doce Lar...
P/2 – Nosso Lar.
R – É um livro muito bonito, que orienta sobre como é a vida lá ‘em cima’. A vida não para, você vai continuar estudando e trabalhando na sua profissão ou em outra função, mas você vai ser útil, não vai ficar enterrada na Terra. Você vai continuar trabalhando e ajudando, sendo uma pessoa útil.
P/1 – Como foi se tornar pai?
R – Eu tive três filhos. O meu primeiro filho nasceu no segundo ano. Minha esposa começou a estudar, fazia Assistência Social em Piracicaba, mas como o meu filho dava muito trabalho durante a noite, ela parou de estudar. Eu tive um filho, o Randal, tanto o Randal, como o segundo filho, o Gabriel, os dois fizeram Direito, mas o segundo filho ficou doente com treze anos, ele teve um problema de saúde, dermatomiosite, que enfraquece o corpo da pessoa, perde o controle muscular, mas mesmo assim ele fez Direito, em Itu e o filho mais velho estudou junto com ele, os dois fizeram Direito, estudaram cinco anos, parece, em Itu, com dificuldade. Por sinal o ônibus era uma beleza, parava em casa e vinha e recolhia os alunos, pegava os meninos, levava os dois, deixava em casa. Os dois ficaram advogados, passaram na OAB, trabalharam. O mais velho, o Randal, trabalhou na usina aqui, no setor de controle de cana, o teor de sacarose. Depois ele entrou na polícia e ficou um tempo como investigador de polícia, entrou na Caixa Federal, tudo por concurso. Depois entrou na Justiça, escriturário de cartório eleitoral e agora ele está como oficial de justiça. E o segundo meu, o Gabriel, morreu com 33 anos, de câncer. O problema que ele tinha foi resolvido, solucionado e resolveu, ficou no controle, mas depois ele pegou um câncer também, de intestino. Estava superfeliz, porque estava no controle, aí apareceu o câncer, foi rápido também, quinze dias ele morreu. E o terceiro invocou que queria ser estilista industrial e foi estudar lá em Blumenau e ficou cinco anos lá, pagando. O dinheiro que eu ganhava na prefeitura eu dava para ele, pagava alojamento, a faculdade, a comida, ficou cinco anos lá e formou-se em Estilismo Industrial e foi embora para São Paulo, trabalhou tempo lá na Submarino, aquela empresa, não sei se existe ainda a Submarino, pela internet, que faz compra. Ficou um tempo lá, depois ficou dois anos desempregado, entregando currículo para baixo e para cima. Até que um amigo dele indicou lá em Pindamonhangaba, tinha uma vaga e ele fez muitos concursos, mas esses concursos você passa na primeira fase, passa na segunda, passa na terceira, na quarta fase você é reprovado, a concorrência é muito grande. Até que um amigo dele indicou Pindamonhangaba e foi embora para lá e lá já faz acho que três anos que ele está como professor de Estilismo Industrial Senac Pindamonhangaba. Você conhece Pindamonhangaba, né? Via Dutra, perto de Aparecida, perto de Campos do Jordão, perto da praia, está distante ali uma hora. Campos do Jordão é uma cidade maravilhosa, é um paraíso. Aparecida. A praia nem se fala! Ele está lá, já faz acho que três anos que ele está lá e ele mora em um condomínio do lado da escola, ele não atravessa nem a rua para ir na escola, ele sai do condomínio e já entra na escola, ele está muito bem lá, mas professor você sabe, ganha pouco, está sempre na ‘pendura’.
P/1 – Nivaldo, como é o seu dia a dia, atualmente? Como é a sua rotina, o que você faz hoje?
R – Minha rotina, estou aposentado como professor e como diretor de escola, eu não faço mais nada. A única coisa que eu faço é frequentar a religião católica, espírita, eu não faço mais nada.
P/2 – Cuida da chácara.
R – A chácara eu passei para o meu filho Randal, ele que cuida da chácara. Eu cuido do meu cachorro, só. Dois cachorros, que são os meus companheiros, só.
P/1 – E quais são os seus sonhos?
R – Depois de 75 anos de idade você não tem mais sonho. Quando você está útil na vida, você pensa em comprar uma chacrinha, uma casa na praia, um carro novo, mas depois que você atinge uma certa idade, você não vislumbra mais nada, principalmente quando você perdeu um filho de 33 anos, perdeu a mulher e está sozinho no mundo. Você não objetiva mais nada, não tem mais objetivo. Tudo que eu tinha que fazer, eu já fiz. Frequentar a religião e ser útil o máximo que a gente pode fazer. Caridade é o que o espiritismo prega, a base do espiritismo é a caridade. Não adianta você rezar o dia inteiro e depois, quando aparece alguém pedindo esmola, você dá uma desculpinha para ele: “Volte outro dia”. A fé sem obra é nula. Não adianta você rezar o dia inteiro e não fazer nada de útil. A obra vale muito mais que a fé. Então a gente procura ser útil o máximo que pode. Talvez, quem sabe, esse livro tenha uma utilidade e venha completar o livro do Pedrinho Rocha, que é o único livro que nós temos de Rafard, Amor, Doce Amor, que é do Pedro Silveira Rocha. Esse livro tem algumas outras coisas a mais.
P/1 – Conta para a gente, um pouquinho.
R – Esse livro fala praticamente sobre a geração sessenta e setenta. Eu escrevi quando eu estava na prefeitura. Eu escrevi, está na brochura, foi feito um livro para o jornal de Rafard, o jornal O Semanário imprimiu um livro só, mas como era época de campanha política, o objetivo do livro era entregar esse livro para os alunos, professores, para o povo em geral, sem objetivar lucro, ninguém pensou em lucro, mas esse livro ficou perdido e voltou na minha mão depois de quinze anos, já tinha passado o prazo. Esse livro fala sobre a geração sessenta, setenta. Eu não vou falar o índice dele, porque é muito comprido, mas eu procurei evitar o que Pedro Rocha já tinha falado, para não ficar na rotina, procurei aumentar outros artigos e a parte mais importante é a educação, a educação da época ano sessenta e setenta e fala tudo sobre os professores, alunos, conta um pouco da história de Rafard, desta época. Tentei imprimir, mas não deu certo. Agora nós temos, eu não sei se O Semanário imprime ou se a Editora N imprime também, ela imprime e se houver interesse da prefeitura de publicar esse livro, ela pode usar. O conteúdo do livro é meu, as fotografias, eu deixei muitas fotografias com o colega que ia imprimir, no fim ele morreu também e ficou a obra inacabada. As fotografias ficaram todas com a mulher dele, muitas fotografias que não foram colocadas no livro. Eu não sei, se houver interesse de procurar a mulher dele, não sei se ela guardou as fotografias, pra que que ela ia guardar também? Mas, enfim, o que tem aqui é o suficiente para imprimir o livro. Eu continuo como autor do conteúdo, a prefeitura, se quiser imprimir, pode, a Secretaria da Educação, você, o prefeito, o vice, que é mais interessado, que mais conhece, que mais conviveu com Rafard aqui, quiser imprimir o livro e fazer uma distribuição gratuita para aluno, para toda a educação e para o povo em geral, gratuito, está de ‘portas abertas’, fiquem à vontade e façam o que vocês quiserem com a brochura. Eu não tenho nenhum interesse financeiro. O que você fizer está bem-feito, valeu?
P/2 – Ótimo, obrigada.
P/1 – Nivaldo, a gente está caminhando para o fim e eu queria saber se você gostaria de acrescentar algo que eu não tenha te perguntado, contar de alguma passagem que não foi falada, você que manda.
R – Não, eu só quero desejar muita saúde, muita felicidade, uma vida longa para toda nossa cidade, pessoal da educação, da saúde e que Deus proteja sempre todos nós com muita saúde, muita felicidade e uma vida longa, muito útil, longe das drogas e muito perto da educação pai e filho, filho e pai, a família unida. Pronto?
P/1 – As duas últimas, prometo. Queria saber qual é a sua primeira lembrança da vida?
R – Lembrança da vida: trabalho pela educação, procurar sempre ser útil, ajudar as pessoas, encaminhar para uma profissão, para vencer na vida. Outra: casamento, manter uma família unida, feliz. Que mais? E duradoura, sempre baseada na religião, qualquer religião, que todos tenham uma religião, não importa essa ou aquela, porque são todos caminhos diferentes, mas que conduzem para o mesmo lugar. É importante, que maravilha se todos tivessem uma religião, se todos tivessem um Deus para tomar como exemplo, para ser útil e não passar despercebido, como uma pedra, no mundo.
P/1 – Por fim, queria te perguntar como foi para você passar essa manhã com a gente, relembrar um pouco de alguns momentos da sua vida.
R – O salário depois você me deposita, mas é um momento agradável, que a gente relembra, como no juízo final: depois que você vai morrer, depois que você morrer, daí vai passar um filme da sua vida e você vai analisar toda a sua vida, de útil e de inútil, tudo aquilo que você fez, relembrar tudo aquilo de bom, de ruim, bonito, de mal, os amigos seus, os parentes e as pessoas que você amou muito na Terra. Como dizia Santo Agostinho: “Eu vou para Deus, mas eu jamais esquecerei aqueles que na Terra eu amei”.
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