Projeto Pueri Domus - 40 anos
Entrevistado por Lenir Justo e Damaris do Carmo
Depoimento de Cleide do Amaral Terzi
São Paulo, 21 de agosto de 2006
Realização Museu da Pessoa
Código PUERI_HV009
Transcrito por Anabela Almeida Costa e Santos
Revisado por Letícia Maiumi Mendonça
P/1 – Professora Cleide, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Vamos começar com a senhora nos falando seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Cleide do Amaral Terzi. Nasci na cidade de São Paulo, em 30 de dezembro de 1945.
P/1 – E qual é a sua atividade atualmente no Pueri?
R – A minha atividade no Pueri é de assessora e consultora na área de educação, desenvolvendo um trabalho de formação com a diretoria de ensino e coordenação de ensino, e também com a equipe de coordenadores pedagógicos, educacionais, que atuam em todas as unidades do Pueri.
P/1 – O nome dos seus pais.
R – Orlando Pacheco do Amaral e Florisbela Miguel do Amaral.
P/1 – E qual a origem da sua família?
R – A minha família é de origem portuguesa. Meus avós paternos, portugueses, vieram pro Brasil na década de 1920. Se estabeleceram ali na região de Vila Pompéia, né, que foi sempre o lugar que eles permaneceram. E, então, meu pai nasceu ali naquela região também. E a minha infância também foi lá. E hoje, eu moro em Perdizes, que é muito próximo. Então, sempre nós estivemos nesta região. Minha mãe, portuguesa, né? Veio também na década de 1920. Mas, já veio com 7 anos de idade. E é de uma região que eu pude visitar em Portugal, que gosto muito, que é a região da Serra da Estrela, onde tem um delicioso queijo, famoso queijo da Serra da Estrela. Então, mamãe veio dessa, dessa região. Então a minha, tanto o lado paterno, como o materno, tem toda a origem lá em Portugal. Meus avós paternos, da ilha dos Açores, que eu também já pude visitar e ver as… Um pouco dessas heranças de vida aí. Então, está ligado a Portugal a minha...
Continuar leituraProjeto Pueri Domus - 40 anos
Entrevistado por Lenir Justo e Damaris do Carmo
Depoimento de Cleide do Amaral Terzi
São Paulo, 21 de agosto de 2006
Realização Museu da Pessoa
Código PUERI_HV009
Transcrito por Anabela Almeida Costa e Santos
Revisado por Letícia Maiumi Mendonça
P/1 – Professora Cleide, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Vamos começar com a senhora nos falando seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Cleide do Amaral Terzi. Nasci na cidade de São Paulo, em 30 de dezembro de 1945.
P/1 – E qual é a sua atividade atualmente no Pueri?
R – A minha atividade no Pueri é de assessora e consultora na área de educação, desenvolvendo um trabalho de formação com a diretoria de ensino e coordenação de ensino, e também com a equipe de coordenadores pedagógicos, educacionais, que atuam em todas as unidades do Pueri.
P/1 – O nome dos seus pais.
R – Orlando Pacheco do Amaral e Florisbela Miguel do Amaral.
P/1 – E qual a origem da sua família?
R – A minha família é de origem portuguesa. Meus avós paternos, portugueses, vieram pro Brasil na década de 1920. Se estabeleceram ali na região de Vila Pompéia, né, que foi sempre o lugar que eles permaneceram. E, então, meu pai nasceu ali naquela região também. E a minha infância também foi lá. E hoje, eu moro em Perdizes, que é muito próximo. Então, sempre nós estivemos nesta região. Minha mãe, portuguesa, né? Veio também na década de 1920. Mas, já veio com 7 anos de idade. E é de uma região que eu pude visitar em Portugal, que gosto muito, que é a região da Serra da Estrela, onde tem um delicioso queijo, famoso queijo da Serra da Estrela. Então, mamãe veio dessa, dessa região. Então a minha, tanto o lado paterno, como o materno, tem toda a origem lá em Portugal. Meus avós paternos, da ilha dos Açores, que eu também já pude visitar e ver as… Um pouco dessas heranças de vida aí. Então, está ligado a Portugal a minha história. Do lado do meu marido, está ligado com a Itália, mas do lado da minha (fica?) com Portugal.
P/1 – E quais eram as atividades que os seus pais exerciam?
R – Ah, o meu pai, ele estudou no Liceu Coração de Jesus e fez um curso técnico, e foi durante muitos anos, alfaiate. E participava, teve alguma atuações muito interessantes como alfaiate, dando aulas mesmo, depois, no próprio Liceu. E trabalhou para algumas lojas de modas, que no caso era a Marie Claire, né, a Vogue, a Casa Vogue, naquele tempo que se fazia, na década de 1930, 1940, quando as mulheres usavam os mantôs, os tailleurs. Então, ele foi um especialista nisso. Depois, se aborreceu, não quis mais atuar e ficou na área de comércio. Teve comércio, trabalhou nessa área até, até se aposentar, né. Mas, inicialmente, a profissão dele foi de alfaiate. E a minha mãe sempre esteve mais nos trabalhos de casa que, né, coordenando a casa. Mas ela desenvolveu também, quando solteira, aprendeu a pintar fotografias, né, tempo em que se pintavam, com um fotógrafo alemão. E ela e uma minha tia, irmã dela, elas trabalharam, então, fazendo pinturas de fotografias. Então, eu vi muitas vezes, na minha infância e início de adolescência, às vezes, as pessoas pediam. Então, ela tinha a prancheta dela e coloria fotografias. Eu mesma aprendi a colorir fotografias com ela. Que é uma coisa, assim, que pensando nos dias de hoje, né, já ficou pra história mesmo. Porque ninguém imaginaria alguém, né, pintando fotografias. E esse fotógrafo alemão, ele no período aí de Segunda Guerra Mundial, estava morando no Brasil, e desenvolveu algumas técnicas muito, muito interessantes nessa área de fotografia, e caminhava por regiões mais distantes do estado de São Paulo e de ou outros estados brasileiros, onde os… Então, aquelas fotos, né, da família, foto mesmo, também, do gado, né, de fazendeiros que queriam. E ele, então, trazia essas fotos e ele… E minha mãe acabou, algumas vezes, prestando serviço. Quer dizer, não era um, não era o serviço constante, não é que ela fosse funcionária. Quando casada, ela não trabalhou mais como funcionária. Às vezes, até ajudando o meu pai nessa atividade de comércio. Isso ela ajudou. Mas teve essa parte especial aí, de ser aquela que coloria as fotografias.
P/1 – Diferente, né?
R – É. Eu tenho, essa fotografia que eu tenho aí de um ano, que eu dei pra vocês, ela que pintou, entendeu?
P/2 – Aquela pequenininha ____.
R – Eu tenho outras lá em casa que ela que pintou.
P/1 – E na sua infância, a senhora lembra da casa onde a senhora morava? Como era?
R – Lembro, sim. Porque eu sempre, nessa região, como eu comentei com vocês, ali na Vila Pompéia, né, eu sempre estive, eu morei sempre junto de meus, próximo dos meus avós. Então, essa… De meus avós paternos. E então, era uma, é uma rua que na década de 1950 se podia brincar na rua, brincar de ciranda, brincar de pega-pega, não é? De esconde-esconde, de peteca, tudo isso que tinha. No quintal, então. Quintal era uma coisa muito prazerosa, tanto da minha casa, como dos meus avós. E a rua, né. Você tinha a chance de, a oportunidade de ter os amigos e brincar, ir na casa de um e do outro e brincar de casinha e… Então, acho que eu tive uma infância, assim, muito, muito gostosa, muito prazerosa. E muito cedo também, eu sou a filha mais velha, não é? Então, a neta mais velha, então a primeira neta, a primeira filha. Tinha essa coisa da, tinha esse lugar da responsabilidade também. Eu sempre fui muito dedicada à escola, fui boa aluna. Então, isso fazia com que, às vezes, na própria vizinhança, ali de Vila Pompéia, classe média, média, né, em que, às vezes, as mães acabavam pedindo: “Ah, você não podia estudar também com o meu filho?" Então, eu começando ou terminando o primário e começando o ginásio, eu estava já estudando com um garoto que era meu vizinho, para ensinar ele a prestar o exame de admissão. Que naquela ocasião, tinha o exame de admissão para o ginásio, antigo ginásio. Então, acho que isso foi me incluindo muito nessa ideia do magistério, de dar aulas; então, muito, muito pequena, era 11 anos, 12 anos, 13 anos, eu estava já fazendo. Ou nas aulas de catecismo. Então, já estava um pouco, comprei, me lembro que com o dinheirinho que eu ganhei dos meus avós, comprei uma certa “maquinazinha”, pequenininha, muito rústica, mas que eu passava os filminhos. Ainda com manivela, tal, em casa (risos), no quintal da minha casa. Então, eu acho que essa ação de professora, assim, esteve muito presente muito cedo, tal. E era muito legitimada e, né, na família, essa coisa de que queria estudar e que era bom estudar. Então, fui muito positivamente reforçada nessa ideia do valor do estudo, do valor da leitura, do valor da pesquisa, do valor, enfim, da escola. A escola passa a ter um significado muito forte para mim, embora eu tenha sido uma aluna que chorei pra ir na escola, né. Dei um pouco de trabalho para minha mãe, porque a escola era anunciada nesse período como uma escola, evidentemente que opressora, não é, que: “Ah, vai ter castigo e tal.” Então, eu tive, no primeiro ano primário, quando eu entrei, foi, assim, nos primeiros dias, eu chorava um pouquinho, entrava, tal. E aí, são essas imagens, são muito fortes da escola, né. A escola, ela tem um impacto muito forte, que quando você começa a trazer as lembranças, elas vêm forte no visceral, eu acho que vêm no estômago, assim, né. Vêm no estômago, no coração, as emoções do que que era a expectativa de aprender, do que que era essa conquista de aprender, de se alfabetizar, né, da cartilha, essa… Eu entrei nesta escola, era o Grupo Escolar Miss Browne, que depois eu fui estudar a história de Miss Browne, que teve uma participação muito importante na história da educação paulistana, né. Uma americana que vem divulgar o estudo das escolas novas, né, mas ou da perspectiva da Escola Nova. Mas esse momento da entrada na escola, né, era uma escola estadual recém-inaugurada, me lembro que houve festa na inauguração. O Ademar de Barros veio pra inauguração. Então, assim, aquela coisa de que você vai adentrar a escola, né? E isso me fez, muitas vezes, lembrar o trecho do Raul Pompeia, no livro O Ateneu, quando o garoto vai entrar, logo nas primeiras páginas d'O Ateneu, e vai ser apresentado, e aí o pai diz que: “Agora você vai conhecer o mundo.” Entrar na escola é conhecer o mundo e acho que é isso mesmo. Então, era envolto de muita expectativa, de muita ansiedade também, de muitos medos de como eu ia me sair na escola, tal. Mas, depois, isso passou rápido e logo me apaixonei pela escola, né. Então, essa… É tão interessante quando a gente recorda, e recorda isso com outros professores também, a história das escolas que eles puderam vivenciar. Em vários lugares do Brasil, que eu já participei, quando você pede às pessoas que elas retomem as suas histórias de escola, não é? Como aparecem fotos, os perfumes também, né. Dá pra lembrar da mala de couro, dá pra lembrar da lancheira, dá pra lembrar do cheiro do couro, não é? E do guardanapo, e do lanche. Era um tempo que a gente levava de lanche tomate, punha um salzinho, punha o ovo, um pouquinho diferente dos lanches atuais, que a mãe é que preparava. Então, tinha toda essa afetividade que estava envolto. Se tinha de um lado as preocupações e os medos por aprender, do outro lado tinha esse invólucro dos afetos.
P/1 – E onde ficava essa escola?
R – Ela existe até hoje, né. Ela fica ali na Padre Chico, na Rua Padre Chico, na Vila Pompéia. Eu estudei nessa escola, eu entrei no primeiro ano primário, né. Então, não fiz a educação infantil, não tive pré-escola. Minha mãe é que ia me ensinando, lá em casa. E a cartilha, era a cartilha Sodré, que é a cartilha da: “A pata nada, a pata pá, nada mais.” E tinha que… Mas os meus pais tiveram que mudar de bairro, nessa ocasião. Foi um período que eles tiveram, meu pai teve que atuar numa parte comercial em outro bairro. E eu fui morar no bairro da Liberdade. E isso foi uma estranheza muito grande pra mim, porque que estava muito inscrita naquele lugar, com meus avós. Aí fomos pra um lugar estranho, que não conhecíamos ninguém. Então, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu. E aí eu entrei numa outra escola estadual. Fui transferida pra outra escola estadual que é o Campos Sales, né. Ali junto a Liberdade, o bairro "do" Liberdade. Então foi um mundo de coisas muito diferentes daquelas que eu tinha vivido. Então durante dois anos e meio, a gente ficou nessa região de Liberdade. E aí, de uma professora tão, tão doce e tão, tão facilitadora, tão… Que eu comecei a apreciar, gostar muito. No primeiro ano primário, eu passei para uma bastante difícil, uma pessoa que, eu chego a relatar isso num memorial que eu escrevi, como ela tratava os alunos. Ela batia mesmo. E aí eu vi o mundo também sob… Porque na outra escola, éramos todas mais ou menos da mesma faixa etária, aquelas famílias classe média, tal. Eu vou pra um lugar que as diferenças sociais eram bem grandes e bem… Tinha uma diversidade. Então, eu vivia, eu vivi a heterogeneidade sob todos os aspectos, inclusive alunos que apanhavam. E aí eu fui descobrindo que quem apanhava, muitas vezes, eram aqueles que eram os mais pobres, eram os que passavam mais dificuldade. Eu acho que o mundo se apresentou bastante forte, nessa minha escola, quando eu fui para, de uma primeira série para outra primeira série, nessa transferência. Eu vi pessoas que muitas vezes, que, às vezes, coincidiam que eram os negros, eram os pobres, eram sempre os mais velhos e havia aqueles que tinham sido reprovados. Evidente que hoje eu tenho a interpretação daquele lugar, mas mesmo pensando na criança que habitou aquele tempo, era… Eu chegava, eu cheguei a conversar com meus pais, porque eu achava aquilo muito estranho, de alguém apanhar para aprender. E meu pai teve que ir até, se pronunciou na Secretaria de Educação do que vinha ocorrendo, porque as crianças apanhavam da professora, tal, né? Então, foi um tempo curto, tal. E aí, nós retornamos a Vila Pompeia. E quando eu acabei o primário na escola pública, eu retorno na quarta série, terceira série aliás, e vou para o Miss Browne de novo, a partir da quinta série, porque se você podia, né, prestar o exame de admissão, fazer quinta série. E aí eu passei pro Colégio do Sagrado Coração de Jesus, onde eu fiz todo o meu ginásio e fiz o curso Normal lá, e que foi uma escola muito especial, maravilhosa. Eu acho que todas as boas recordações da aluna que eu fui me constituindo, da educadora que eu fui aprendendo a ser, eu devo muito a essa escola. Então, acho que foi de uma forma integrada, sob todos os aspectos. Elas eram muito, eu acho que até bastante ousadas para aquele período. Então, eu vivi possibilidades de formação, muito mais do que só a aluna que aprendia, acho que vivia situações formadoras muito importantes, nesse período da minha escolaridade no colégio, né? Às vezes, as pessoas se referem aos colégios de freiras muito mais com aspecto da rigidez, tal. E, para mim, não foi isso, porque elas eram muito, muito abertas, muito… Nos proporcionavam muitas outras situações formadoras. Eu participei da JEC, que era um grupo de Juventude Estudantil Católica e isso me fazia contato com lideranças de várias escolas. Nós tínhamos encontros nacionais, encontros estaduais, encontros na cidade de São Paulo. E você circulava em fins de semana, nesses encontros, em várias escolas. Uma hora era no Des Oiseaux, outra hora era no próprio Sion, outras vezes, em outros colégios. Então, essa forma de você ter que lidar também fora da sua escola, na relação com outros estudantes. Eu acho que isso foi um excelente aprendizado. E o aprendizado mesmo, da profissão de professor. Acho que foi uma escola que soube colocar o ideal na educadora, ideal da professora, mas o compromisso, a responsabilidade pela atualização, pela pesquisa. Então, eu fui bastante reforçada nisso e aprendi muito nessa escola.
P/1 – Nessas escolas que a senhora estudou, nas primeiras, as classes eram mistas?
R – Mistas.
P/1 – Mistas.
R – Mistas. Já tive a oportunidade de viver a classe mista, desde o início.
P/1 – E quais eram, assim, os materiais que eram usados?
R – A não ser o colégio, o colégio era feminino, né. Hoje, ele não é mais. Mas ele era feminino, quando eu entrei no Coração de Jesus, sempre. Toda a minha escolaridade, ginásio, normal, aí escola feminina.
P/1 – E materiais que se usava naquela época, quais eram?
R – Na escola primária, acho que sim, tinha todo o ritual dos cadernos, né. O caderno de caligrafia, o caderno de linguagem, né. Aquele caderno pálido, que a gente lembra do traçado de linhas muito tênues. Que se tinha o ritual de encapar os cadernos da família, porque aquele caderno tinha que durar o ano todo e tinha que ser muito bem cuidado. Não podia ter orelhas nas folhas. Então, era todo esse ritual, que estava na família, que estava na escola também. A exigência era dos dois lados, né? E o livro, na realidade, era a cartilha, e depois tinha a festa para receber o primeiro livro, que eu me lembro quando recebi o primeiro livro, que era o Livro de Leituras, se dava, era com muita pompa e circunstância, esse ritual de receber o primeiro livro de leitura, né, nas redações, vocês que têm tantos depoimentos sabem o quanto isso aparece nas histórias das pessoas que estiveram na década de 1950, início de 1960, que eram livros, quer dizer, eram, hoje a gente chamaria de um flip chart, mas que na realidade eram quadros de redação, né? E aí a professora virava aquele quadro de redação e, naquele quadro, então, você tinha que inventar uma narrativa, uma história, né. E, quando a gente conversa com outras pessoas, a gente vê o quanto que essas gravuras que nos, elas eram comuns a várias escolas públicas. Há pouco tempo, eu pude ver num museu de referência, aqui, do professor, o memorial da escola. E esses quadros, então, é um… Ainda eu lembro dessas imagens. Quanto tempo a gente se detinha, observando aquelas imagens para criar as histórias, né, então, era bem esse ritual. De primeira até quarta série, você não tinha muito mais material do que os cadernos, uma pasta, que era a pasta chamada pasta única, onde a gente arquivava algumas atividades. Já era um sucesso ter a pasta única, com, perfurada, que você punha as provas, tal. Mas o material mais, estava mais nos livros mesmo. O livro de leitura, o livro de atividades, tal. Acho que aí, no ginásio, vinham já os livros específicos, das disciplinas, tais como livro de Matemática. E eu já estudei no livro do Osvaldo Sangiorgi, Aroldo de Azevedo, né, José da Silva, que era o livro de História. E que eu acho que formaram, hoje eu falo que formaram um download muito pesado, porque para você fazer, você hoje, não é? Assim, retomar essa história e falar assim: “Olha, isso eu estou deletando, do que eu quero deletar.” Acho que hoje os jovens têm muita facilidade pra deletar e a gente tem uma memória pesada aí, não é? E o José Silva, Haroldo de Campos, tal. Então, nesse período do ginásio, esses autores foram sempre muito presentes na escola. Evidentemente que depois no ginásio, numa escola que era particular, você já tinha o recurso de… Minha professora de Geografia já usava slides, o que era grande, né, inovação, na época. E utilizava bem os mapas, então aquele ritual de trazer mapa para classe era alguma coisa, assim, muito, muito forte, assim, muito, que chamava muito a atenção, né. Que é muito diferente do que tudo que se tem hoje, no sentido de informação e de recursos que uma escola possa estar usando, né.
P/1 – Mimeógrafo, tinha?
R – Mimeógrafo, sim, né, no ginásio, no meu normal. Que era um mimeógrafo a álcool, não é? E que, para meu espanto, eu diria para espanto e tristeza, de outro lado, eu tenho alguns projetos de escola pública, vejo que ainda, na cidade de São Paulo, na Zona Sul, perto do Jardim ngela ou no próprio Jardim ngela, a gente tem escolas que ainda não têm condições de fazer uma avaliação, um exercício para os alunos a não ser utilizando ainda o mimeógrafo a álcool, né. Então, eu falo de tristeza por todos os recursos que a gente possa ter e de uma agilidade nisso, e de uma precariedade, ao mesmo tempo, tão forte. Considerando uma cidade como São Paulo. Não estamos falando de outras regiões. Estamos falando desse lugar aqui, mesmo.
P/1 – E uniforme? Usava uniforme, naquela época?
R – Uniforme. Uniforme: saia pregueada. Meu pai fez, sempre fez as minhas saias, né, de forma, como perfeccionista, assim, que as pregas tinham que estar impecáveis, né. E isso tanto na escola pública, como na escola religiosa que eu estudei. Momentos com a gravata, não é? Gravata que tinha também certas marcas, que diziam se você estava na primeira série, se você estava no primeiro ano primário, segundo, terceiro. No colégio, aí outros dois uniformes, porque tinha uniforme de gala. E aí era blusa, a camisa de manga comprida mesma de seda, né, de seda pura, com a gravata e com boina e com luvas, né? Então, nas cerimônias, a gente tinha que, no final do ano, na festa religiosa, mais, de maior participação de toda a comunidade escolar, tal, isso pressupunha esse uniforme de gala, meias de seda branca, não é? Então, essa composição de saia pregueada com alças e essas alças mais largas na base, aqui depois, afinando, né. E a camisa e a malha azul, também. Um certo blazerzinho azul, né. Então, tudo isso compunha a roupa de gala. Mas eu me lembro, assim, o dia de vestir a roupa de gala era: nossa! Ainda sinto o movimento da blusa de seda, (risos) ainda. Então, assim, você ia com muito orgulho, né, caminhava, ia a pé da minha casa na Rua Tucuna até a Coronel Melo de Oliveira, onde fica o colégio até hoje. E, então, esse trajeto, a gente ia encontrando com as amigas, tocando a campainha na casa de uma e chamando: “Vamos para o colégio.” Então, íamos juntas, então, era (com?), né. Você desfilava se achando, assim, o máximo, com aquela roupa de gala, com direito a boina, tal. E uniforme de Educação Física, que aí era um terror. Era uma saia também, um pouquinho mais curta. Mas quando a gente fala curta, ainda é um pouquinho, é comprida, né. E com um calção, que chamava calção mesmo, com elástico, que vinha quase na altura do joelho, tal, para prática da Educação Física, né. Então, tinha o uniforme especial de Educação Física para esses…
P/1 – … E o recreio, naquele tempo, como era?
R – O recreio, ah… Assim, eu vou falar um pouquinho da escola pública e da escola particular. Do que eu lembro da escola pública, me soava, assim, tão forte, porque tinham as crianças da caixa, as chamadas crianças da caixa. Então, essas crianças saíam para comer a merenda que era oferecida, porque ela não era oferecida para todos. Ou seja, se você tinha mais condições, você levava o seu próprio lanche. Mas chegava uma certa, né, cozinheira, da escola e falava: “Agora, as crianças da caixa vão sair.” E quando anunciavam aquela comida, por exemplo, as crianças perguntavam: “O que é que é?” Ou ela falava. Não me lembro se as crianças tinham tanta condição, assim, de ficar perguntando, mas me lembro que se anunciava: “Ah, hoje é feijão com macarrão aqui.” Aquilo era uma coisa muito estranha. Era uma coisa que eu não tinha vontade nenhuma de comer, nunca comi aquela merenda. Então, por outro lado, tinha dias que era canjica, né, tem sagu. Então, você tinha esse anúncio da merenda, mas eu levava a merenda. E tinha, a hora do lanche era a hora da corrida pelo pátio, né, das brincadeiras, mais meninas com meninas, meninos com meninos, mas eram… E o sinal, que era forte, que interrompia toda essa algazarra e nos levava para dentro, outra vez, daquela… Que nem era, acho que a seriedade, a escola precisa ter, mas era uma sisudez, né? Assim muito pesado, assim, em geral tinha isso. Claro que dependia das professoras. Eu tive vários tipos de professoras. No colégio, bem diferente isso, né. Também era de meninas, então a gente fazia os nossos grupos de conversa, jogávamos queimada. Era muito gostoso, no recreio, a gente jogar queimada. E tinha uma senhora, Dona Augusta, no nosso colégio, que fazia uma cocada especial, tinha Dan Top pra poder comprar no recreio. Então, a gente levava um lanche e, em determinados dias da semana, você tinha o direito de, né, ou o pai ou a mãe guardavam um dinheirinho para você comprar uma cocada especial ou o Dan Top. Então, a sensação era o Dan Top. Comer um Dan Top era o máximo, assim, né. E, como essas religiosas são missionárias do Sagrado Coração de Jesus, elas, em outubro, elas tinham o mês das missões. E esses recreios, né. Isso, eu estou me lembrando com 10 anos, que eu entrei na escola, passei da escola pública pra essa escola particular, você tinha que arrecadar algumas prendas, não é? E no recreio, você, com os próprios bancos que se utilizava na Educação Física, né, você arrumava, era uma iniciativa dos alunos. Eles arrumavam esses bancos e a gente mesmo fazia pesca, trocava livrinhos, trocava brinquedos, tal. Então, era um momento muito gostoso, desse período das festas. E você tinha uma participação, você se sentia aluno da escola, fazendo. E não era só que alguém fizesse pra você, mas você estava ali, arrumando as prendas e fazendo, quer dizer, a gente mesmo que criava, muito novinha ainda, ainda criava essas, o que trazia de prenda. Às vezes umas, não me lembro se nós comprávamos. Eu sei que tinha troca de prendas. Então, era um, era um período, né, da escola, que marcava. A gente ficava aguardando o próximo ano para arrecadar prendas. Isso até o final, quando eu estive no normal, essa, a festa junina da escola era uma festa bastante tradicional no bairro, não é? Principalmente na adolescência e na juventude, que a gente queria encontrar com os rapazes, com, né, os outros jovens, tal, porque aí eles podiam ir à festa junina. E a festa, então, tinha toda uma tradição, né, que era não só interna na escola, mas que se expandia no entorno da escola, né. Então, eu tenho, aí, as boas recordações dessas festas. Que depois, como aluna… Eu fui aluna e depois fui professora nessa mesma escola. Então, eu passei imediatamente da condição de normalista, né, de professora para de aluna, para condição de professora.
P/1 – E como era a relação entre os alunos e os professores?
P/2 – Quando a senhora era aluna.
P/1 – Quando a senhora era estudante.
R – Como aluna. Sim, vou falar como aluna. Eu acho que, assim, de muito distanciamento. Estava muito delimitado o lugar de professor e o lugar de aluno, né. As escolas tinham, né, aquela plataforma, onde se colocava a mesa do professor, que estava numa outra altura em relação a dos alunos. Então, era o lugar do poder mesmo. Ir a lousa era uma atividade de muita responsabilidade, de muita exposição. Porque quando você ia a lousa e acertava, tudo bem, mas você ir a lousa e errar, isso era, era lugar de muito constrangimento. E dependendo do professor, como o professor lidava com essa situação. Quando eu me referi àquela professora de primeiro ano, uma alfabetizadora, que chamava pra cantar o alfabeto. Então, ela ficava, né: “Na, ne, ni, no, nu, nu, no, ni, ne, na.” Tinha que falar que falar para frente, para trás, na lousa, com aquela régua, né, batendo na lousa. E então, aquele que errava estava muito exposto, não é? Estava muito… E mergulhado em medos também, em castigos etc. Aqueles que, evidentemente, que acertavam, também tinham a valorização dos outros. Mas, em geral, esse lugar do professor era o lugar de muito poder. Eu acho que, assim, você nunca tem todos os professores igualmente, né, mais rígidos ou não. Há professores que sempre tiveram o bom senso e uma beleza da busca, com aquele formato de professor, que era próprio daquela época, mas que tinham seu lugar da afetividade, da relação. Então, eu tive muito isso, dessa aproximação com professores. Professores que estimulavam: “Ah, nós podíamos conhecer à tarde, fazemos uma visita.” Então, às vezes, criavam oportunidades para gente estar próximos. Ou próximas, porque éramos alunas com as professoras. E as professoras não eram, apesar de ser uma escola religiosa, as professoras, na sua grande maioria, não eram religiosas, não é? E elas tinham, por parte das próprias religiosas, muitas oportunidades e muitos incentivos para que elas proporcionassem aos alunos outras atividades. Então, com isso, dava pra você estar próximo desse professor, dele sair da cátedra, né. Ele descia da cátedra e podia ter uma relação e algum vínculo. Então, eu guardo vínculos também afetivos, desses tempos, com algumas professoras. Uma delas, com a professora de Matemática que eu ainda a visito, não é? E acho que é uma professora que, eu cheguei a dizer há pouco tempo para ela, o quanto ela estimulou momentos, né, de solidariedade na classe, né. Com tudo que era, porque a gente falar em Matemática, não é? E a professora de Matemática, ela foi minha professora em todo curso ginasial e depois também no curso normal. E ela sabia chamar a aluna ao lado e muitas vezes me chamava e dizia: “Olha, se você está sabendo bem esse exercício, você não gostaria de ensinar? Tal colega sua está com dificuldade.” Então, ela fazia isso de uma forma tão respeitosa, não é? Chamava a colega, falava, depois nos chamava juntas: “Olha, eu estou falando com vocês e se vocês quiserem, ela quer te ajudar, você também está precisando de ajuda.” Então, ela oportunizava, né, momentos de colaboração, de partilha de conhecimentos que, em geral, os professores estavam mais restritos a: “Eu ensinei, você aprendeu, se não aprendeu, paciência, anota e…” Mas, ela teve gestos, eu acho que foram gestos que a gente aprende além da Matemática, né? O professor ensina uma atitude, ensina valores do que é que é contribuir com a aprendizado do outro. E isso, eu aprendi muito com ela, com certeza. Não só com ela, mas com ela muito, né.
P/1 – E havia outras atividades na escola, assim, coral, fanfarra?
R – … Sim, coral…
P/1 – … Jornal?
R – Fanfarra, não. Jornal, também sim, né? Eu cheguei a escrever alguns artigos. Eu fui, como fui de JEC, então escrevia para um jornal da JEC, né. Essas oportunidades que eu comentei para vocês, talvez por uma situação muito especial também que eu vivi essa oportunidade de ser desses grupos de JEC, grupos de jovens, tal. E isso me trouxe muitos momentos de saída e de vivências fora da escola. A escola proporcionou, sim, saídas. Não como se faz, evidentemente, saídas como se fazem hoje, mas tive estudos do meio, alguns já no curso normal, não é? Com a professora de Psicologia, de Didática. Então, uma escola que estava atenta a isso, né, então, essas atividades. E o grêmio também, né. Eu acho que o grêmio tinha uma… Nossa, fazia a campanha do grêmio, tinha a votação do grêmio, ser da chapa, não é? E isso era uma vivência muito, muito forte. Acho que a professora de História, de Geografia, eram professoras que estimulavam também essa participação, né. E as próprias diretoras religiosas também, eram muito, muito favoráveis e permitiam esse movimento. Claro que o grêmio, né, ele não era o grêmio, talvez, com essa visão política que se teve depois. Mas era uma participação, pelo menos, naquele coletivo da escola, né, do que é que a gente poderia melhorar no recreio, se punha música. Eu me lembro que as primeiras música do Elvis Presley cantando, eu escutei no recreio da minha escola, né. Porque estava no primeiro ano ginasial, era Elvis Presley. Então, tinha essa, o grêmio é que estava trabalhando para isso. Então, tinha esses lados também da juventude, daquilo que a juventude aprecia. Me lembro quando o Neil Sedaka veio ao Brasil, era uma atração, tinha um fã-clube do Neil Sedaka na escola. Depois, os festivais de música (brasileira?), festivais de música em São Paulo. Então, esse, aí eu já estava no normal. Então, esses momentos externos da juventude que podem chegar até a escola. E que a escola, de alguma maneira, não ficava indiferente também, né. Principalmente pelo, acho que a atuação do grêmio era muito presente, sim.
(Pausa)
P/1 – Havia, nessas escolas que você estudou, Cleide, biblioteca? Como eram?
R – Na escola pública, eu não tenho a lembrança da biblioteca. Eu tenho a lembrança de que existiam serviços da merenda, o serviço de um dentista, de um, né, que ficava ali dentro da escola, com gabinete dentário, né, e o médico, também. Mas não me lembro da biblioteca. Acho que a escola pública não me entregou essa imagem de biblioteca. Mas, na escola das irmãs, das religiosas, aí sim. E ela foi uma grande paixão para mim. Poder ir a biblioteca e ficar sócia da biblioteca. Pagava uns centavos lá, não sei, não me lembro quanto, pagava um pouquinho. E ter acesso aos livros e poder levar para casa. Isso, assim, foi de uma beleza para mim, assim, me alimentou tanto. Então, uma religiosa muito idosa, que tomava conta, né. E que tinha um cuidado com aquelas estantes. Parece que os livros ficavam intocáveis. Mas que quando você tinha desejo e ela se aproximava e você falava, então, ela se mostrava muito solícita de fazer aquela entrega. Então, levar um livro e ficar com ele uma semana. E isso, a biblioteca do colégio me incentivou muito também, e os professores, principalmente dois professores, a professora de História e a professora de Geografia, que foram minhas professoras no ginásio e depois no normal, me incentivaram muito para ir para biblioteca municipal. Então, fiquei sócia da biblioteca municipal, tanto a central, né, como a biblioteca da Lapa. Então, pegava um ônibus com as minhas colegas e uma ia incentivando a outra, então os trabalhos… Olha, a gente fazia as pesquisas na biblioteca do colégio e, em outros momentos, íamos para as bibliotecas municipais. Então, muitas vezes, eu fiquei sócia da biblioteca municipal e tinha essa oportunidade de também, de trazer os livros para casa. Então, isso foi me constituindo como uma leitora também. Foi muito importante ter a biblioteca escolar, sim, né.
P/1 – E fatos marcantes, assim, nessa sua época de escola?
R – Então, os fatos marcantes, né, da relação maior com o mundo, com a sociedade, eu acho que eles vinham quando era muito criança, ainda com 6 anos, 7 anos, 8 anos, por esses relatos dos adultos, que faziam menção ao período da Segunda Guerra Mundial. Então, descreviam as filas, as dificuldades, o racionamento de alimentos, do pão. Então, várias vezes eu vi meus pais, meus avós, meus tios fazendo referência aos pracinhas, né, a esse contexto da Segunda Guerra Mundial. E as revistas, né, traziam muitas imagens, depois da própria Hiroshima também. Então, você estava num universo infantil, mas permeado por essas conversas dos adultos, trazendo esses cenários de guerra, né. Embora eu tenha nascido após, aí o término da Segunda Guerra Mundial. Mas um fato que eu tenho recordações bem fortes foi da morte de Getúlio Vargas, né. Então, meu pai comprando a revista Cruzeiro, que era a revista que se comprava na época, e os jornais. Meu pai foi sempre um bom leitor dos jornais. Eu acho que isso, a família também te reforça, te inspira para o ato da leitura. E então, me lembro do papai comentando sobre a morte do Getúlio, o que se escutava no rádio, né, sobre a morte. E aí vinham os adultos, né, com aquelas falas, assim: “Estamos preocupados, porque é um estado de sítio.” Isso no ano de 1954, quando Getúlio morreu, em agosto de 1954. E aí, para minha, né, para o meu lugar de menina, na época, não combinava uma preocupação de estado de sítio, com aquela imagem, a representação de sítio. Porque eu tinha, eu ia ao sítio do meu tio. Então, para mim sítio, era o lugar, né, de brincadeira, o lugar de correria, o lugar de estar entre árvores, de ver animais, enfim, o lugar de coisas gostosas, de gostosuras da infância. Então, ficava, assim, uma palavra que eu não conseguia atribuir a ela um sentido mais de preocupação, tal, que parecia que circulava no mundo dos adultos. Então, a palavra sítio, ela ficou num momento, assim, como um estranho pra mim. Um lugar de, parece tão bom e, ao mesmo tempo, parece que não é tão bom assim para os adultos. Eu ainda, em muitos momentos, não é, da minha vida de adulta, eu fui recordando isso com os meus pais, e o meu pai comentando, mesmo, as perguntas que eu fazia nessa época em torno da palavra sítio, não é, que tinha o gosto de coisas boas da infância,das guloseimas, de todas as coisas boas e que não pareciam ser do… Não era bem isso que os adultos estavam anunciando como um outro sentido para palavra sítio.
P/1 – Indo já para sua juventude, tinha um grupo de amigos, como era?
R – Sim. Deixa só fazer um comentário desse período também. Era muito interessante como, a presença do rádio, né. Às seis horas da tarde, quer dizer, minha mãe, uma pessoa católica, religiosa, então escutava a hora da Ave Maria, tal. E depois tinha um programa de rádio, que há pouco tempo até estive estudando um pouco sobre isso, que era do Nhô Totico. E este senhor, não é, fazia nesse programa de rádio, a figura de uma professora e de alunos, não é? Só que naquele tempo eu não sabia que ele era sozinho. Ele é que fazia, né, todas as alterações de voz. E ele montava uma sala de aula. Então, ele fazia a voz da professora, a voz do aluno japonês, a voz do italiano, do português. Enfim, ele mostrava, de certa maneira, aquilo que existiria numa escola pública, que era a presença, né, de pessoas do Nordeste, pessoas de São Paulo e pessoas descendentes de outros imigrantes. E isso me atraía muito. Eu me lembro que nesse ritual, que era o término da tarde, início, quase antes do período do jantar, e a minha ___ ligava o rádio e aí eu escuta esse programa. Então, tinha todo um imaginário infantil, não é? E também se aprendiam valores, porque ele sempre estava discutindo uma questão da História do Brasil, uma questão de valores sociais, tal. Os livros didáticos da época nos entregavam um Brasil que tudo era glória, né. Era assim, né, o verde das nossas matas, o azul do céu e… Então, era essa visão meio idílica, né, de um país que tudo era maravilhoso, não é, e os heróis nacionais. Evidentemente que nunca nos contavam, eu chego a falar num meu, um texto que eu escrevi, que se falava dos bandeirantes numa exaltação, né, a figura do… Nossa, eu, quando estava no terceiro ano primário, pensar no Anhanguera, no Borba Gato, eram figuras ilustres, grandes heróis, que só mais tarde eu vim, né, ponderar toda essa história, porque aquilo que se omitia para nós, das histórias dos negros, das histórias dos índios, do que se escravizava de índios nessa caminhada das entradas e das bandeiras. Então, esta reconstrução histórica que ao longo do tempo a gente teve que ir fazendo. O próprio descobrimento do Brasil, a perspectiva que nos entregavam do descobrimento, né, a figura do índio. E que ao longo tanto da aluna, da pesquisadora e, depois, da professora e formadora de educadores, como que eu fui tendo que reconstruir todos esses conceitos que estavam, né, naquela infância, tão marcados. Aquele desenho da oca parecendo que geometricamente cada casinha estava montada, meio… Quando eu fui visitar uma tribo de índios no Mato Grosso do Sul, o quanto que voltava, na minha imagem, aquela representação tão carimbada do livro, né. Porque as grandes referências estavam no livro da escola. E o quanto a gente falou: “Se eu não tomar cuidado, vou querer aquele desenho de novo.” Quando eu ainda me dei conta de que, né, uma casa de um índio para outro podiam ter quilômetros de distância e tal. Então. essas representações, muitas vezes, equivocadas e de valores tão distorcidos também, que a escola foi produzindo. Isso não tira o valor da escola, mas era a escola daquele tempo e era a melhor escola que se podia ter naquele tempo. A gente tem que ver que ela foi a melhor possível daquela época, que hoje não tem mais sentido, hoje são outras questões. Tão sérias ou tão graves, ou tão boas também, que a gente vive nos contextos escolares, né. Então, a escola trazia esse valor. E outra imagem era de cantores, né, como… Cantando Criança Feliz, né, que era bem essa imagem da infância, da criança, que o mundo era bom, as coisas eram maravilhosas, né. E que eu já fui pôr um pouco de questionamento em 1961, quando eu, pela televisão, vi a inauguração de Brasília. Parece que aquilo me trouxe mais forte a imagem de que era um país de muitos contrastes, né. Então, eu fui… Acho que essa ideia de Brasil (em mim?), de mundo, né. Como é que fui retomando essas… Que a gente vai reconstruindo, não só eu, como também as outras pessoas, né. Não é que a gente vai fazendo o mundo nos habitar, e como a gente vai também projetando que lugar que a gente quer ocupar no mundo, né? E aí tem, claro, que tem as marcas da família, tem as marcas do próprio social e, com certeza, nesse social tem as marcas da escola. Aí você me perguntava dos colegas. Na minha juventude, diria assim, na adolescência, o fato de eu estar num colégio feminino, eu estava muito rodeada de colegas, que algumas delas até hoje tenho contato, bastante contato, né. Tem uma delas que os filhos são amigos dos meus filhos, então a gente está muito próximo. Nós estivemos todo o ginásio juntas e o curso normal. Então, tenho muito contato. E às vezes, até contato profissional. Já tive, hoje, cursos que eu fui dar e que estavam presentes algumas pessoas que tinham sido minhas professoras e outras que tinham sido minhas colegas de classe. Então, já tive várias oportunidades de conviver outra vez. Então, o grupo, muito forte, que tinha o grupo do estudo, né, era uma escola que você sempre podia ir no período contrário àquele período que você frequentava as aulas, estava aberto para pesquisa. E isso foi sempre muito saudável, quer dizer, o ir ao colégio, ele era envolto em muito prazer, né, que você podia ir lá, você podia preparar suas tarefas e tal. Meu curso normal foi feito praticamente em período integral. O período da manhã, a gente, ninguém obrigava, mas você acabava, junto com as colegas, definindo: “Que tal a gente vir trabalhar, para fazer essa atividade, preparar a aula?” Então, acho que era com muita frequência que eu ia no período da manhã e à tarde também, frequentava as aulas. Então, as colegas com quem depois eu ia às festas, né, mas festas sempre bastante contidas, porque meu pai não era um facilitador, não é. Então, tinha muito horário para chegar. E chegar era bem cedo, não é? Mas era possível se ir em alguns bailinhos e… Mas não era uma coisa tão tranquila assim, porque meu pai era bastante rígido, então… E tinham essas saídas que você, que eu tinha oportunidade, né, as minhas colegas também, que era através de JEC, de participar de outros encontros. Então, nesses encontros tinham muito, né, muita cantoria, muito violão sendo tocado, tinha essa coisa de estar juntos no canto. Acho que o cantar juntos é uma coisa muito presente, de que os jovens se reuniam para tocar violão e cantar, né. Mas os bailinhos na casa de um e de outro, os convites para esses bailinhos. E sempre tem aquela colega que a mãe facilita muito. Então, tinha uma colega, a Cecília, que a mãe todo fim de semana, se quisesse, podia ter bailinho na casa dela. E os pais, aí, permitiam. Então, foi uma das oportunidades dos bailinhos.
P/1 – E fora essa atividade que tinha do grupo de jovens, tinha alguma outra atividade, assim, com a comunidade, na área social?
R – Sim, na área social, ia comentar isso. No meu curso normal, desde o primeiro ano, nós tivemos uma professora de Biologia, uma religiosa. Ela morava em Bauru, chamava Irmã Amélia Guaraciaba. Ela morava em Bauru, no colégio das freiras em Bauru. Mas ela se transferiu para São Paulo, porque ela estava fazendo o mestrado em Biologia e a pesquisa dela é na área de Nutrição. E essa pesquisa era da área de Nutrição, mas alimentos dos japoneses, como.. O arroz como componente da alimentação dos japoneses. Até porque Bauru tinha uma comunidade de agricultores, em uma comunidade grande de japoneses. Então, o foco da pesquisa dela era esse. E ela veio ser nossa professora de Biologia. E foi uma felicidade tê-la, porque hoje a escola fala em desenvolver projetos. E eu posso dizer que essa professora desenvolveu projetos conosco que tinham uma dimensão muito maior que o livro didático ou que os conteúdos da Biologia. Como era uma biologia educacional, ela tinha vários momentos que ela estava interligada com o desenvolvimento da criança, todo o panorama das questões da saúde, né, da infância e também dos problemas das doenças infantis e verminoses, tal. Então, ela fez um projeto ligado à igreja, ali em Vila Pompeia, que também tinha um projeto social bastante arrojado. Com algumas assistentes sociais que tinham vindo da Itália e que estavam fazendo um projeto integrado da comunidade religiosa com a comunidade de moradores, né, principalmente os moradores já em regiões que a gente chamaria de favela, sim. Então, esta nossa professora se integrou a esse projeto social e nós éramos responsáveis, cada duas alunas éramos responsáveis por uma família. Tinha gente que falava: “A nossa família.” E isso, tinha uma orientação dela, mas você ia para as famílias… A minha família, ela não morava numa favela, ela morava ali na Rua Iberê, que é uma rua das Perdizes, mas tinha uma condição de higiene, de habitação, pior do que as pessoas da favela, eu diria. Porque eram pessoas que tinham vindo, uma família que tinha vindo do Paraná. Então, tinha o casal, eram seis filhos e morava também uma das pessoas, uma das avós. Mas era um estado de precariedade. A casa é… Era uma casa deles, não é? Não era de madeira, nada disso. Mas era habitada por pombas, então vocês imaginam os problemas que existiam. Então, era falta de higiene, de cuidados com aquelas crianças, tal. E por contato dessa assistente social, né, tanto eu como uma outra minha colega, Ana Ruth, nós duas passamos a ser responsáveis por essa família, que a gente chamava, então, “a nossa família.” Então, você fazia todo o estudo com a assistente social, dos aspectos que nós estávamos estudando em Biologia, na parte da Biologia Social e da Biologia mais com, né, preventiva. E aí, fazíamos reuniões com, ora no colégio mesmo. A irmã tinha arrumado uma sala para nós nos reunirmos com as mães. A gente preparava os cursos para as mães. E ora, nós estávamos dentro da família e nós é que, por exemplo, nós duas é que inscrevemos a família no posto de puericultura. Então, íamos com a mãe e carregando as crianças, no ônibus, levar no posto de puericultura e acompanhar todos os exames, né, para ver se as crianças estavam com verminose, com outras doenças, tal. Então, durante três anos, a gente acompanha isso no projeto. No início, os pais reagiram, porque os pais não queriam que suas filhinhas ____ fossem naqueles lugares. E eu me lembro da reunião, porque era uma época que os pais não eram chamados para ir em reuniões na escola, não é, se entregava… A não ser excepcionalmente. Mas o conjunto de pais ir numa reunião, ele só ia para festividades, né, formatura, alguma outra festa da escola. E eu me lembro que essa professora convocou os pais e aí ela disse o quanto ela não abriria mão, o quanto ela sabia que isso era formação mesmo, não é? E que ela era responsável e estava sabendo o que é que estava acontecendo, mostrou o trabalho da assistente social. E os pais, era um período também que os pais, quando viam a escola responder, eles se aquietavam, porque a escola também tinha lugar muito posicionado, né, a escola tinha um poder legítimo, ela estava, eu diria, mais legitimada na comunidade. A escola, então tem a voz da escola, é forte, mas os pais no início reagiram, sim. Mas ela permaneceu. E essa freira, quer dizer, num dos córregos que corria atrás de uma das favelas… Porque nós éramos responsáveis por uma família, mas nós discutíamos, nós tínhamos sessões de discussão dos casos. Então, o que é que está surgindo na sua família, na outra, como é que nós vamos atuar. E, por esses exames, nós descobrimos um foco de schistosoma no córrego. Então, aí como tomar as providências? Então, fomos junto pra Secretaria da Saúde para exatamente para eles virem. Aí a gente acompanhou todo esse processo de como a secretaria foi atuando naquela região. Então, cal que era jogado para, enfim, todos os recursos que se tinham para exterminar, porque era muito sério, porque as crianças estavam acusando, né, a presença do schistosoma. Então, eu acho, eu estudei schistosoma via uma realidade, e com essa ideia de que a educação teria que ser transformadora, que você tinha um compromisso. O educador que ia além da biologia, além das páginas dos livros, né. Então, foi uma escola que me deu essa dimensão da participação social. Mas, em especial, essa professora de Biologia, que retornando no terceiro ano do magistério, no segundo semestre, ela retorna para Bauru e nós a convidamos para paraninfa. No início, as alunas tinham muito horror por causa das exigências dela: os registros e essa família que você tinha. Nós íamos aos sábados, aos domingos. E depois, nós ficamos tão ligados com essas famílias, que acabou o curso normal e a gente ainda continuava indo nas famílias, né. Tinha uma colega que, durante muito tempo, eu visitei com ela a família que ela fazia o trabalho. E nesse momento, esta freira, né, ainda era freira, depois ela deixou o hábito, ela nos convida para ir para Bauru e fez uma programação. Então, nós a convidamos para ser paraninfa, que ela foi nossa paraninfa, e ela conseguiu com um… Enfim, com uma pessoa, um empresário lá de Bauru, ela conseguiu que nós tivéssemos um, todas nós, uma passagem no trem, de ida e volta, para Bauru. E as freiras lá conseguiram toda a casa para nós ficarmos hospedadas. E como as alunas de lá, do curso normal, também nós íamos almoçar ou jantar sempre na casa de uma das alunas. E aí foi muito interessante, porque ela tinha muito contato com a faculdade de Odontologia. Então, a gente visitou a faculdade de Odontologia, visitamos um templo budista, como eram as ofertas, não é? E justamente pela aproximação que ela tinha com a comunidade japonesa, não é? E fomos a TV Cultura de Bauru explicar como nós tínhamos trabalhado no projeto. Você imagina o que é isso. Normalista daquele tempo, (risos) 1965, não é? Então, bastante arrojado para época.
P/1 – Avançado, né?
R – É, avançado. Tanto que se você vir meu álbum de formatura, nenhuma das freiras, elas se mantiveram religiosas. Saíram todas depois do Concílio Vaticano II, aí elas saíram. Mas realmente foi bem diferenciado. Eu tive o privilégio de participar dessas atividades.
P/2 – Professora, essa atividade extracurricular, quais foram os pontos positivos de desenvolvimento humano, mesmo?
R – Acho que assim, hoje, eu não chamaria de atividade extracurricular. Eu acho que ela é curricular, sim, né, porque tinha uma intenção, tinha uma intencionalidade, até diria uma intencionalidade na formação do aluno do ponto de vista da Biologia, né. Mas do ponto de vista de uma formação humana mais ampla, né. E eu acho que não só isso isoladamente, só esse projeto de ideologia, mas eu acho que o projeto da escola, não é? Ele nos fazia muito, muito participantes em vários momentos dessa ideia da generosidade, não de uma generosidade piegas. Mas de você estar presente com o outro, com o outro que está mais próximo, com o outro no sentido mais amplo. Eu me lembro de um missionário vietnamita que veio trazer todo o relato do Vietnã e o quanto isso foi forte naquele momento. Então, olha, você está aqui, mas você tem uma dimensão de inclusão no mundo muito mais abrangente. E aí na formação do educador, né. Como educadora, fui educada com essa ideia de que o educador não podia se ausentar, né, dos seus contextos culturais, dos contextos sociais e da sua responsabilidade nos coletivos, mesmo. Então, acho que essas atividades, que me proporcionaram na minha escolaridade, foram alimentadoras daquilo que eu acredito hoje. Por mais que eu possa ter tido tantas outras diferenças e dimensões. Não sou mais aquela mesma jovem, nem posso ser, felizmente, né. E espero não ser amanhã, também, igualzinha ao que eu sou hoje. Eu sou, como diria, a mais nova versão de mim mesma. Então, vendo essa história para trás, né, eu posso dizer que ela semeou muitos aspectos desse compromisso de que eu não posso ser a professora ausente, né, do que acontece no entorno e do compromisso que é tanto com a história da humanidade, que isso está muito presente nos meus estudos, enfim, nos meus momentos de formação, como também do social mesmo, da responsabilidade pelo coletivo, né. Então, acho aí foi um fortalecimento desses valores. Se eu tinha valores desse tipo, honestidade, não é? E dedicação, na minha família. Do outro lado, a escola, ela sustentou e fortaleceu valores do social e do cultural.
P/1 – Cleide, você já nos contou, assim, que desde pequenininha já começou meio que a dar aula. Mas como foi, assim, seguir a carreira? Havia alguma expectativa na sua família de que seguisse alguma carreira ou era mesmo a de professora? Como você optou por isso?
R – Não. Acho que foi, assim, se identificando na minha pessoa, né, muito jovem, muito criança no início, depois foi se ampliando isso, a ideia do magistério, não é? E a minha escolha já direcionava, porque eu não fui fazer o curso clássico ou científico, que na época tinha o clássico e o científico. Eu já, o colégio não tinha o curso clássico e científico. Talvez hoje até fizesse o clássico, era um curso que também me atraía muito. Mas como eu estava, eu gostava muito da escola, eu acho que esse gostar da escola também me falava: “Se tem o magistério, também vou ficar.” Não é que eu não quisesse o curso de magistério, mas teve também esse componente. E aí, era meio automático, não é? Fez o magistério e vai se dedicar a profissão de professora. E a minha família via com muito orgulho essa ideia de ter a filha professora, a neta professora, não é? Isso era muito bem vindo. E aí, eu passo, eu saio do colégio, já sou imediatamente colocada como uma professora de alunos de quarta série, que não foi muito fácil. Porque tão jovem e, de repente, estou com meninas de 10 anos, né, 11 anos, como professora. E trazendo uma bagagem, um entusiasmo, né, daquele que inaugura as salas e que quer pôr em prática aquilo que viu na didática, que viu na Psicologia, que viu na Sociologia. Então, era uma entusiasta, porque tive excelentes professores. Minha professora de Didática foi uma professora que trouxe muito a presença da universidade, porque ela estava acabando o curso de Pedagogia, e trouxe muito essa presença da universidade junto conosco, no nosso curso de magistério. Então, as ideias de escola nova, de fazer outros trabalhos, de fazer uma ruptura com aquela escola tão tradicional estavam muito presentes na minha formação e nos meus desejos e entusiasmos, que faziam da aluna, que tinha sido, imediatamente a professora do quarto ano primário, com tantas meninas em volta. Então, comecei a fazer estudo do meio e levava no Parque da Água Branca, levava ao cinema, discutíamos, fazia trabalho em grupo, então já uma grande diferença da minha escola, né. E era com isso que eu queria me comprometer, porque acreditava nisso. A escola tinha sido formadora desse ideal de que os alunos tinham direito a participação, a serem sujeitos da aprendizagem. Por mais que ainda isso fosse alguma coisa tão acanhada, ainda, mas tinha esse entusiasmo de não ter a distância, não estava mais em cátedra. Eu não era a professora da cátedra, estava próximo das meninas, não é? E isso teve, eu acho que uma… Evidentemente que tinha os contrastes também. Porque tinha umas professoras mais idosas que me diziam o seguinte: “Logo você desiste disso.” “Isso é entusiasmo de quem começa. Você vai ver, não é bem assim.” Então, de um lado, eu tinha tudo isso e de um lado eu tinha, né, o espelho das outras me dizendo que era por pouco tempo. Eu acho que isso se confirmou por outros caminhos, não foi por pouco tempo, nem era por pouco tempo. É redimensionado, mas é pro tempo da vida inteira. Então, acho que foram momentos muito fortes de pôr em questão aquilo que se tinha estudado e aquilo que se estava praticando. Então…
P/1 – … E a faculdade? Você falou que trouxeram, assim, a faculdade, você foi fazer depois?
R – Porque esses professores do magistério, ou eles estavam recém-formados, eu me lembro de duas delas, uma religiosa e a colega dela, que era também minha professora, que eles tinham recentemente acabado o Sedes Sapiens. Então, tive a professora de Filosofia que tinha sido do Sedes, a professora de Psicologia, a professora de História da Educação, a professora de Didática. Então, você vê a influência do Sedes nesse curso de magistério. E hoje, vendo a história do Sedes, a história da Madre Cristina, você sabe que era um lugar diferenciado de estudo da Pedagogia também. Então, eu tive essa visão tanto humanista, como também de uma escola nova, por conta de professoras jovens que muito recentemente estavam, ou estavam acabando o curso no Sedes, ou tinham recentemente saído da universidade. Então, acho que isso também foi um momento muito especial, não é? Ao lado de um país que começava uma repressão, né, 1964, eu estava no magistério, normal, então vi a minha professora de História dizendo: “Quero que vocês analisem este telegrama que o presidente dos Estados Unidos está mandando ao Brasil, parabenizando pela Revolução.” Então, tive uma professora que trazia esse lado de fora pra dentro da classe, né. E aliás, era uma professora que nos punha mesmo para leitura e para pesquisa, de uma forma bastante diferenciada para os padrões daquela época.
P/1 – Então, e aí…
R – … JEC foi perseguida, assim, ela não podia, em 1965, não podia ir nas reuniões do centro, né, no centro de São Paulo, para as reuniões de JEC, porque era um movimento estudantil, então você tinha que… E eu peguei todo o início da universidade. Imediatamente eu fui, eu saí do curso normal e fui pra Universidade de São Paulo. Então, aí o mundo se pôs em reviravoltas para mim. Porque daquele contexto, por mais que ele fosse já muito participativo, ele estava circunscrito a, né, um bairro, a uma escola, os amigos, as freiras. E depois, a USP [Universidade de São Paulo], eu acho que aí, a USP era colocar tudo do mundo de repente, né. E a Sociologia, os professores eram bastante radicais e eles se punham muito fortemente nisso. E um contraste muito grande, né. Que aquilo que se tinha no cenário, que era um cenário de muita repressão, né, e os ideais e os textos. E eu fui já pra Cidade Universitária. E aí, na Cidade Universitária, eu diria primeiro que estava instalado o medo, porque você nunca sabia se você ia permanecer na aula, se iam invadir a USP, como eu participei de momentos que a USP foi invadida. Então, você tinha que caminhar até o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, até que eles entregassem seu documento, que você estava liberada. E os movimentos na classe também, né. Aí Pueri está junto já com isso também, porque a Maria Lúcia Andrade, Camargo Andrade, que fundou junto, Beth, que criou o Pueri, ela era minha colega de classe. Ela era bem mais velha do que nós. Ela já era de uma outra geração, mas tinha prestado vestibular e estava na nossa classe. Então, e aí, por isso até que depois eu venho para o Pueri, porque, pela proximidade. Porque nós fazíamos parte do mesmo grupo de estudos, tal, na USP, né. Então, aí eram os momentos difíceis daqueles anos de repressão, mesmo. Tive colegas, tive uma colega que morreu nessa repressão, tive colegas presos, não é? Então, um período que você era chamado a participar pelos colegas, mas o quanto você também estava impedida dessa participação, né, o quanto a gente, quem tinha votado e achando que era democracia. E, de repente, não era mais nada disso. Então, quantos anos depois a gente ficou pra exercer esse direito ao voto. Então, foram anos evidentemente que difíceis, né. Então, tinha o sabor de estar na USP, de ser estudante da USP, da classe, tal. Mas, tinha uma Cidade Universitária que também nos dispersava muito, porque, às vezes, você tinha aula num lugar, no outro. A Psicologia era no Departamento de Psicologia. A Biologia era na Biologia. E isso, evidentemente que, naquela época, a gente dizia: “É proposital.” Por que? Porque se você formasse um núcleo da classe, a classe tinha muito mais força. Então, se dispersavam mais esses alunos. Então, você vivia tudo isso: o externo, o interno, o que podia falar, o que não podia, né? Era um momento de muita… Que agora a gente vê isso retratado nos filmes, nos documentários, mas que viveu mais próximo estando na USP. Nas assembléias, nos chamados para a União Nacional dos Estudantes. Então, como que era isso. Quem ia e quem não ia, quem fugia e quem estava preso, isso era o assunto. Com quem você falava essas coisas, com quem você não podia falar, né? Eram momentos que, não só para nós, né, não só para mim, mas pra todos aqueles que puderam viver esse período.
P/1 – Mas e o curso em si foi bom?
R – Curso de Pedagogia?
P/1 – É.
R – Foi, foi bom, sim. Eu penso que principalmente nas bases da Sociologia. Eu acho que a Sociologia e a Filosofia foram muito, eu acho que deram muita consistência, né, ao… Até hoje, aquilo que eu busco como bibliografia, como referenciais, quer dizer, por mais que isso possa ter se ampliado e precisa se ampliar, não é? Mas,a USP eu diria principalmente nos cursos de Sociologia e Filosofia. A Didática também, mas eu tinha tido um excelente curso de magistério. Então, a Didática, acho que até ela poderia ter avançado mais do que foi. E aí, existiam questões na USP entre a Didática e a Filosofia. Quem era do Colégio de Aplicação, quem não era. Então, existiam também divisões dentro da própria USP em relação a Didática e a Psicologia. Mas eu penso que em relação aos fundamentos da Sociologia e da Filosofia foram muito bons, foram com bastante profundidade. Às vezes, se teve, eu acho que foi um luxo, um privilégio, um luxo ao mesmo tempo, uma escola pública que eu tive um curso de Spinoza, sobre Spinoza, lendo Spinoza, discutindo com o professor e eram quatro alunas na classe, né, a gente diria: um absurdo para uma escola pública. Mas, enfim, teve essas oportunidades. E é por isso que eu estou falando da Sociologia. A Sociologia nos pôs muito na pesquisa, pesquisa de campo, não é? E tinham as facilidades de estar no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que estava instalado no próprio prédio da Pedagogia. Então, você podia também buscar os recursos audiovisuais, fazer pesquisa. Mas acho que sim. A universidade teve muito sentido para mim, porque ela estava imediatamente colada, conectada com o trabalho. Eu atuava como professora e eu estava no curso. Então, esse trânsito entre aquilo que eu estava vivendo e aquilo que eu estava estudando e querendo aprofundar tinha uma boa base do curso de magistério, não é? Tanto que eu não fiz cursinho e passei direto. E entrei na Pontifícia Universidade Católica e na USP, fiz opção depois pra USP, mas… E foi o último vestibular que teve vestibular oral, né. Então, você tinha a prova de História, prova, e depois tinha Português, Redação. E tinha também o vestibular oral de História, vestibular oral de Francês, não é? Então, você passava pelas bancas, tal. E então foi uma boa base.
(Pausa)
P/1 – Quais os métodos, Cleide, que eram ensinados na faculdade?
R – Bom, o estudo da…
R – … Os métodos de ensino, quero avisar.
R – Os métodos de ensino mais divulgados eram aqueles inspirados no estudo da Escola Nova, não é? Então, desde Dewey, a gente estudou muito Dewey. E depois, Claparède, Montessori, _____. Não vi referências na USP em relação a Freinet, nesse período, nesse período não se falava muito. Se falava mais desses Decroly e Claparède, Montessori, todos esses que estavam inscritos no movimento de escola nova. E a Didática junto com a Filosofia, principalmente, se discutia muito já o Piaget. Então, os estudos dos estágios de desenvolvimento e as implicações desse estudo dos estágios de desenvolvimento na discussão da metodologia de trabalho. Então, isso já estava presente, mas a Psicologia, o curso de Psicologia mesmo, ele trazia uma abordagem diferente da abordagem da Didática, né. Enquanto a Didática estava discutindo, e a própria Filosofia estava discutindo o Piaget e discutindo a inclusão desta criança com uma outra perspectiva, com o estudo das estruturas cognitivas, a Psicologia estava discutindo o behaviorismo. Então, era toda comportamentalista. Era o ratinho, as experiências de laboratório. Então, na Psicologia, a gente estava inscrita numa abordagem muito mais behaviorista, não é? Enquanto que a Didática e a Filosofia nos traziam os autores mais ligados à escola nova, não é, e a todo esse movimento, quer dizer, o estudo dos pioneiros da escola nova, a gente viu em muitos detalhes, com muita profundidade, quer dizer, trabalhos de Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, isso foram constituindo também a perspectiva do estudo da história da educação brasileira. E isso estava muito presente, né. E do outro lado, a divulgação dos autores com método de projetos, centros de interesse, método de descoberta. Então, essa ideia do sujeito, do aluno sujeito de sua própria aprendizagem, né, do aluno próximo das descobertas, de quanto o professor tinha que ser aquele que tinha que dar atenção e ver essa criança numa perspectiva de que ele podia aprender, ele só não estava na frente dando as lições, transmitindo, não é? Que ele podia transmitir, mas que sempre com uma escuta primeiro, e respeitosa, dessa criança, que essa criança fazia parte desse centro da classe. Então, mudar essa forma de conceber a classe como o lugar do professor tão distante e tão ausente. Então, a gente discutia muito os quadros: como que é o professor da escola tradicional, como é que ele usa o espaço, como que é a posição dele de professor, qual a concepção de criança, qual a concepção de metodologia, qual a concepção dos recursos. Me lembro de vários quadros em que se discutia esses posicionamentos, que tinha que ter uma ruptura da escola tradicional para chamada escola nova. Então, todo ideário da escola nova foi aquele que permeou mesmo o estudo da Pedagogia e que também, se antes já tinham me influenciado no magistério, ele ganhou agora mais profundidade, né. E aí, também, a leitura de outros autores, né.
P/1 – E quais autores você acha?
R – Na Sociologia eu tive Max Weber, estudei Edgar Morin nas primeiras, quer dizer, quando eu falo isso, você fala: “Nossa, estudou Edgar Morin.” Pensa que o Edgar Morin está só atuando há pouco tempo, mas a gente teve na Sociologia, nós tivemos Edgar Morin. Eu tive sociologia das massas, estudei Durkheim, Max Weber, Morin, não é? Com discussões com o brilhante pesquisador da USP, não é, que nos pôs próximo da sociologia das religiões, da sociologia do que que eram métodos de controle de massas mesmo. Já despontando a questão das mídias e a sociologia das massas. Então, era um estudo bastante arrojado para época. Por isso que davam essas dessintonias, quer dizer, um cenário de tanta repressão e, ao mesmo tempo, você estava discutindo temas que eram temas mais abrangentes. E estudando também o movimento, eu me lembro que toda a repercussão do movimento francês, né, que estava acontecendo, que estava acontecendo com os jovens na França. E a Sociologia como que ia se, já comentar. Então, artigos discutindo, na Sociologia, o movimento da juventude na França em 1968. Quer dizer, estava lá na faculdade nesse tempo. Então, tive gente muito capaz e muito, né, que fez essa imersão desses estudos da Sociologia, né. Eu estudei, por exemplo, a cidade de Cunha, né. Lembro de um pesquisador que veio ao Brasil, fez o estudo de Cunha na década de 1940, do que significou a construção da Dutra, não é, alterando a vida dos jovens na cidadezinha de Cunha, que estava inscrita no Vale do Paraíba, e que os jovens ficavam ali, trabalhando nas fazendas, né, na zona rural. Principalmente porque era uma região de gado, uma região de produção de leite, né. E depois, o que significa essa ruptura, porque com a construção da estrada, os jovens, então, querem sair e se deslocar para o Rio de Janeiro, né. Então, esse estudo sociológico que a gente fez, primeiro com leitura, e depois fomos a Cunha para estar fazendo entrevistas com os moradores. Então, por isso que eu digo que o estudo da Sociologia foi muito forte, foi muito presente. E foi muito, nos proporcionou também momentos diferenciados. E outra parte muito, muito boa na USP, que eu acho que foi muito proveitosa e bastante diferenciada também, foi o estudo de orientação educacional. O curso de Pedagogia, eu peguei o curso de Pedagogia, no início com um formato, depois eu pego a mudança, né. Nós pegamos a mudança da legislação e com a reforma universitária, o curso de Pedagogia passa a se alterar com as habilitações, que se chamou. E aí tem, não vamos entrar em tantos detalhes, mas tem toda reforma da educação brasileira, toda a importação, né, a reforma que foi importada dos Estados Unidos, né. Então, em 1970, 1971, você estava pegando essa reforma e, nessa reforma… Então, eu peguei no final da faculdade, eu peguei algumas matérias de adaptação já para universidade, que ia passar de 1971 para 1972. Porque o curso de Pedagogia na USP, no noturno, ele é de cinco anos, né, é uma faculdade de cinco anos. Então, um dia você tinha período integral na USP, ficava à tarde e à noite.
P/2 – Eu queria perguntar, aproveitando, o movimento na França nessa década, final de 1960, como que era a influência nos estudantes da USP?
R – Esses professores de Sociologia, eles proporcionaram muitos debates sobre esse panorama da… Então, você imagina: jovens escutando que jovens estavam sendo arrojados em outros lugares. Isso, não é, fazia crescer mais ainda o desejo de movimento, apesar de ter algo completamente oposto, porque estava ali. Os militares estavam ali presentes também, não é? Mas, a gente teve oportunidades de discutir artigos que esses professores traziam de revistas da época, não é? Fazendo, mesmo, encontros de debate. Você era muitas vezes convidado para esses… Quando, evidentemente, foi possível, depois de 1968, aí as coisas ficaram mais difíceis ainda. Mas no início era possível, sim. No início, com esse estranhamento, como eu disse pra vocês, da aluna, né, da mulher, moça, que sai de um colégio, que vem para esse contexto. Então, são todas essas adaptações, não é? Mas esses professores nos proporcionaram esses momentos de debate. Então, você tinha esse, de forma mais localizada, pela Sociologia, o que significava a repercussão. Apesar de estar muito próximo. Acho que uma análise vai ser muito mais bem feita anos depois, né, mas porque a gente estava muito próximo do acontecimento. Mas traziam sim esse debate. Então, a gente teve ______, Max Weber, tal, era o que circula mais nessas discussões dos professores, Parsons. Eram os grandes, as grandes referências do estudo da Sociologia, na época. Marx também, mas depois um Marx mais contido também por conta da repressão.
P/1 – E aí a senhora conheceu a Maria Lúcia?
P/2 – No ingresso do Pueri.
P/1 – E entrou no Pueri, como foi?
R – Então, era professora, como eu disse a vocês, uma professora da escola onde eu tinha estudado, entrou na USP. E na USP, eu passo a ser colega de classe, né, da Maria Lúcia. E Maria Lúcia, no ano de 1966, estava, quer dizer, nós entramos e, logo em seguida, elas estavam montando a escola, né, em novembro de 66 que a escola passou a ser fundada. Então, mesmo não trabalhando aqui, no início, porque Maria Lúcia e um grupo de, éramos mais quatro jovens, como Maria Lúcia tinha uma diferença bem maior de idade em relação a nós, ela era uma grande referência para nós. Porque ela tinha uma condição profissional e financeira muito diferente de jovens. Que ela tinha já uma autonomia, ela já tinha trabalhado em escola, tinha sido diretora de escola, estava montando uma escola. Ela tinha ido estudar Montessori durante dois anos. Ela ficou na Itália estudando, se especializando no estudo de Montessori. Tanto que aqui na escola tem na biblioteca do Pueri um acervo de estudo de toda a metodologia montessoriana, que é um material bastante diferenciado, que só a escola que existia e que tinha esse material, uma escola mais no Rio de Janeiro. Então, ela trazia para nossa classe e para o nosso grupo, né, ela era uma pessoa mais velha, com uma referência, que a gente, né, queria de certa forma estar próxima dela, aprender com ela. Então, a gente, eu aprendi muito com elas. Com a Maria Lúcia, eu estudei todo o sistema montessoriano, li a proposta da gramática montessoriana, li estudos da matemática, da psico aritmética montessoriana, os princípios. Então, eu tinha estudado no curso normal e por coincidências, essas da vida, quando eu estava no terceiro ano normal, a Maria Lúcia já trabalhava na Casa da Infância. A Casa da Infância era o Instituto Montessori, que formava os professores para serem montessorianos, não é? Então, ela entra na USP, mas ela já tem toda essa bagagem, né, profissional, e toda essa trajetória na área de educação. E quando eu estava no terceiro normal, uma das religiosas foi estudar Montessori e trouxe a Maria Lúcia para fazer uma apresentação na minha classe. Então, para minha surpresa, aquela que fez a apresentação, seis meses depois eu estou na classe dela na USP, né. E aí nós ficamos muito próximas. porque ela tinha carro, ela dava carona. Tudo isso que a gente não tinha, né. Então, ela tinha uma condição muito diferenciada, não é? Então, ela era uma entusiasta da educação e, com isso, ela ensinou a todas nós. E nós nos mantivemos com um grupo da USP do primeiro ano até o último ano, a gente esteve juntas. E até hoje, a gente se reúne com outras pessoas que também foram desse período, né, e que estudaram mais próximo. Então, a gente fazia as pesquisas junto, a gente fazia os trabalhos de grupo. Então, eu tive uma vivência próxima. É esta vivência que ela vai vendo relatos de como eu trazia o meu relato de professora, não é? Pelos nossos estudos, pelos nossos contatos. E aí ela falava: “Não, quando tiver…” Porque a escola começa com as classes de educação infantil. Pueri começa com as classes de educação infantil, na Avenida Brasil, né, no 598 lá da Brasil, com Beth e ela, né, e com esta perspectiva de uma escola nova, né. Depois a gente pode pôr um pouco esse cenário da época também. E com muita vontade de transitar num caminho da educação que fosse muito, muito diferente, né, daquilo que era proposto pela escola chamada escola tradicional, não é? Então, com esses ideais começa o Pueri, né, e com Maria Lúcia, que tinha uma bagagem de fundamentos, de estudo sobre a escola montessoriana, junto com Beth, que tinha também, tinha muito da ousadia, né, da determinação e da organização. E ali se formou a escola. E nessa formação da escola, passado algum tempo, então, que em 1969, quando tinha a primeira série pela primeira vez, e a segunda série em 1969, é que elas… Maria Lúcia, em especial, porque eu tinha mais contato com Maria Lúcia nesse momento, mas depois fiquei próxima de Beth muitos anos. E aí Maria Lúcia me convida para vir, para ser coordenadora. Função essa que não se sabia bem, ainda como é que era essa função, entendeu? Era um tatear, assim. Alguém que ia trabalhar com os professores. Era isso que se dizia na época. Então, ela… Mas a condição era o seguinte: uma professora para entrar no Pueri, ela tinha que fazer obrigatoriamente esse curso de formação. Como Maria Lúcia era a professora, ela era aluna da USP, era diretora do Pueri, quando o Pueri tinha começado, não é? E ela dava aula também na Casa da Infância determinados dias, porque ela ensinava as professoras que queriam aprender esse método, né, o Montessori, na alfabetização. Então, ela trabalhava toda a didática da alfabetização, dentro do sistema montessoriano. E nesse período, então, que eu venho para escola. Mas veja, eu vou atuar com professoras, todas que tinham dois anos de formação montessoriana e eu não tinha. Por mais que eu tivesse estudado no meu curso normal, estudo de Montessori já estava dentro da faculdade. Mas, na USP, eu não estava estudando isso, né, então, Maria Lúcia me disse: “Olha, você, eu acho que tem tudo para ser essa coordenadora. Aos pouquinhos você vai começar comigo, mas uma condição é estar estudando sobre Montessori.” Então, eu ia aos fins de semana para casa dela e estudava, né. Com uma perspectiva que é uma marca do Pueri, que eu acho maravilhosa, que é assim: nunca a gente vai congelar e ficar num mundo cego em torno desse método. Então, tinha todo valor da Montessori, tinha toda a divulgação. A escola era montessoriana, sim, não é? Mas, já despontava na Maria Lúcia, assim, no Ensino Fundamental: “Eu quero pôr coisas, eu quero pôr certos estudos, quero colocar outras questões para Montessori para que a gente não se feche pra isso.” Acho que foi o grande, um dos grandes, a escola tem vários aspectos muito positivos de toda essa trajetória. Aspectos que eu chamaria de maravilhosos. E um deles é esta condição de querer pôr em crítica, submeter à análise, aquilo que se está fazendo. Eu acho que essa é uma marca do Pueri para todos esses tempos, com modulações das mais diversas, com diversas pessoas. E aí, com a presença muito forte, eu diria, da liderança da Beth, porque já em 1981, Maria Lúcia falece. E bem antes de 1981, Maria Lúcia já está fora da escola por conta de problemas de doença, né, na passagem,na mudança da Avenida Brasil… Porque o prédio na Avenida Brasil começa numa casa, depois isso tem, a se ampliar, se amplia, se vai para uma outra casa. Então, fica com três casas. No final da Avenida Brasil, o Pueri estava com três casas. Em final, os últimos, dezembro, né, eu diria para vocês: 26 de dezembro de 1973, se fez a mudança de todas aquelas casas da Brasil para essa unidade aqui da Verbo Divino, né. Então, Maria Lúcia já estava ausente já, há algum tempo. Em 1971 para 1972, Maria Lúcia já foi ficando ausente. E ela sabia da escola, a Beth colocava, mas ela não estava atuando diretamente por problemas de saúde, né. Mas aquele ideário, aquilo que vinha nascendo com ela permanecia, mas ele vai também se recompondo e isso é o movimento da escola, né. Então, uma escola que teve sempre este desejo muito presente, que até hoje faz parte da cultura da escola, que aquilo que é projetado, aquilo que está sendo realizado, ele não deve ficar como algo que é engessado, como algo cristalizado. Mas que de tempos em tempos se faça uma análise, se faça um estudo, se redimensione essas formulações ou esses projetos, também.
P/1 – E a sua trajetória no Pueri? Foi coordenadora…
R – … Eu acho que, assim, primeiro, no Pueri, eu aprendi a ser coordenadora. Foi aqui que eu entendi, que eu sei até hoje, que eu posso trabalhar com outros coordenadores do que é que é ser uma coordenação, não é? Eu vivi aqui os desafios de uma escola pequena. Evidentemente, no início, pequena, mas que cresceu muito rapidamente. De uma escola que tinha presente, dentro dela, esse dinamismo e essa vivência de que aqui a gente pode, com seriedade, criar propostas de trabalho, não é? E que estas propostas, evidentemente, que podem estar alimentadas pelos autores. Autores não só daqueles que a gente lia, mas daqueles que a gente poderia conviver na universidade. Muitas vezes a escola chamou especialistas, chamou professores da universidade para estarem aqui presentes e com eles discutir, não é? Olha o que nós estamos realizando. O que é que outras teorias podem nos dizer? Então, foi sempre uma escola aberta a esta circulação da informação, da comunicação, não é? E foi a grande educadora. Foi uma instituição que foi uma grande educadora pra mim. Eu sei ser coordenadora por conta do Pueri, não é? Ao mesmo tempo, com os vínculos afetivos muito fortes. Porque aqui eu entrei uma jovem, né, namorando com o meu marido, que depois fui noiva, que depois casei, estava no Pueri, que depois tive meus primeiros filhos gêmeos aqui, não é? E que tive a minha filha aqui. Então, essa trajetória que foi sempre colocando muito próximo a minha vida pessoal com a vida profissional, numa bela mistura, que eu gosto muito. Tanto que hoje eu sou assessora, já há muitos anos. Há vinte anos que faço um trabalho de assessoria, trabalho com várias escolas. Mas sei que o lugar que o Pueri ocupa na minha história de vida e o afeto que eu tenho. Tive anos mais próximo, anos mais distante. Mas isso nunca me fez perder, né, os significados que o Pueri tem. Já vi vários momentos dessa história. E, por isso, quando Fernanda, Roberta, né, me convidaram para estar aqui nesse depoimento, eu falei que era uma honra estar aqui, porque é misturado de muita emoção mesmo, de muito afeto e de muitos significados do trabalho, de muito, né, de fundamentos do trabalho, das perspectivas que eu pude criar. Quando eu fui para a pós, né, o mestrado, eu fui com o mestrado daquilo que eu tinha vivido aqui na escola. Quando, em 1981, eu vou para o mestrado, eu vou com questões relativas ao papel da coordenação, da formação de professores, qual é, afinal o que é esse coordenador numa escola. Mas fui com esse repertório, porque tinha vivido as oportunidades que o Pueri tinha me oferecido, com certeza.
P/2 – Professora, eu queria fazer uma pergunta, essa sua trajetória como coordenadora, como é que ela se deu, passando pelo método montessoriano, depois esse método que vocês chamam método próprio e depois o construtivismo?
R – Bom, quando você está falando aí de método próprio, eu não sei bem. Essa terminologia, não sei o quanto que foi isso de método próprio. Veja um pouquinho. Quando eu saí do Pueri, em 1979, final de 1979, que eu já tinha tido uma trajetória de dez anos na escola, a escola já poderia dizer que ela não era uma escola montessoriana pura, como a gente costuma dizer, tá? Por outro lado, acho que vale a pena a gente abordar algumas situações. Não dá pra falar do Pueri separado dos cenários da educação desse período. Toda, seja a década de, principalmente a segunda metade da década de 1960 e depois a década de 1970, surgiram muitas escolas particulares na cidade de São Paulo. Eu não vou falar de outros lugares, eu vou me ater mais à cidade de São Paulo.
P/2 – Dá licença um pouquinho.
(Interrupção)
P/1 – Professora, como que esse método montessoriano, ele vai se modificando no decorrer do tempo?
R – Então, como eu comentei há pouco, a escola sempre teve essa perspectiva de não se fechar no método. Ela não queria ficar como defensora de um método. Embora todas as raízes fossem nos fundamentos montessorianos, ela achava que aqui deveria se tornar um centro de pesquisa, que essas pesquisas aliadas a outras contribuições, de outros educadores, pudesse ir redimensionando e traduzindo uma prática do Pueri e que o Pueri fosse dizendo que: “Essa é a minha metodologia. É dentro desse percurso.” Não perdendo de vista e não recusando que tinha uma história montessoriana que o fez nascer, não é? Mas que as pesquisas avançam também. Então, que ele não, ele nunca desejou ficar, né, só amarrado no método montessori. Eu acho que esse é o grande ponto saudável da escola. Ele não fez disso uma camisa de força, que dá: “Mas nós temos que ser montessorianos, querendo ou não.” Não. O que é que do Montessori, dos princípios montessorianos, a gente quer continuar fazendo pactos, porque acreditamos na concepção de criança, numa concepção de criança que tem o direito à descoberta, nessa atenção que o adulto tem que dar, que a criança deve chegar aos seus caminhos de resposta. Então isso permanece. Agora, os recursos que vão ser utilizados, a formatação dos conteúdos, os acertos curriculares, mesmo o desenho curricular, ele estava inscrito nesta realidade para esta clientela, não é? E pra uma escola que precisava sempre dar uma atenção ao seu tempo e às influências, e àquilo que surgiam de novas teorias também, da área de Educação. Então, acho que como eu disse, assim, saudavelmente, né, a escola não ficou à mercê de uma determinação do método. O que, aliás, seria uma grande contradição com a própria Montessori, não é? Se a gente for fazer o estudo da Montessori, acho que seria uma contradição se a escola ficasse enraizada nisso, determinada por isso e alheia a qualquer uma das outras influências. A Montessori teve, evidentemente, que contribuições de uma psicologia, mas de uma psicologia que é muito diferente, né, na década de 1970, 1980 ou nos nossos dias, daquilo que ela pôde projetar como pesquisadora e como estudiosa que foi. Então, a escola teria que buscar outros fundamentos da Sociologia, hoje eu diria da Antropologia e da Psicologia, para fundamentar o currículo. Então, é isso que vai fazendo nascer um, que eu diria, uma metodologia muito própria do Pueri, não é? No Pueri é assim, no Pueri só. Mas que se a gente for pegar as raízes nos princípios, alguns deles tinham que permanecer, que eram princípios que não eram mais da Montessori, eram princípios da escola. E um dos grandes pontos fortes da escola é esta concepção, né, de que o sujeito que aprende é um sujeito com direitos a ter essa inserção nas aprendizagens significativas. E nesta inserção, o professor não é aquele só que descreve o conhecimento, que dá o conhecimento pronto, mas que dá as oportunidades nesta mediação, nessa interlocução que dá as oportunidades para os alunos, né, e também, depois, próprio professor e para as equipes de trabalho, que elas possam ir evoluindo nessa construção. É aí que vai sendo uma passagem daquilo que foi Montessori para um que a gente chama de metodologia tão própria do Pueri, mas que fundada nesses princípios, não é? E que vai se reconstruindo, se reconstituindo e vendo, ao longo dessa história, assim, que princípios que permanecem, não é? De responsabilidade, do sentido crítico do pensamento, da ideia da participação no próprio aprendizado, que vem lá na raiz da Escola Nova, que esse aluno que tenha condição de sair do seu lugar. Mas que não é só sair do lugar fisicamente, mas é sair do lugar também nos pensamentos e nas informações. E que vai alojando uma, já uma perspectiva muito favorável para aquilo que mais tarde se divulga mais fortemente nas escolas, que são as ideias do construtivismo. Mas o Pueri estava muito próximo, é uma questão de trabalhar com esse nome ou não, mas estava próximo, porque vinha estudando Piaget. Evidentemente que, depois, no construtivismo, nessas ideias, vai se aprofundar mais nas ideias do Vygotsky. Eu não posso falar de particularidades de todos esses períodos porque, como eu disse, já em 1979, estava saindo da escola. Mas por vários desses momentos, porque nunca estive tão distante da história da escola, por vários desses momentos, participei aqui do quanto a escola, né, fazia essas suas pausas avaliativas, suas análises. E aí com uma força muito grande da liderança da mantenedora, da Beth, né, e a Beth sempre pondo em dúvidas aquilo que se fazia e com um desejo de uma escola que sempre estivesse pensando mais à frente. É uma escola que tem uma característica de estar à frente do seu tempo, não é? Ela nasce com essa ideia da Escola Nova, mas como ela não se engessa nesse, né, de que é o rigor do método que a gente vai levar à frente e nada mais. Mas ela põe sempre com esse exercício analítico, crítico e que faz despontar, então, outras experiências, outras propostas, outras dimensões, que marcam, né, cada período do Pueri. O período que ele está hoje, evidentemente, que é muito alimentado por todo esse movimento histórico, de que ele tem sempre que se abrir, ver aquilo que se passa com outros institutos, com outras escolas, com outras teorias, né. E é dentro desse bojo, desse movimento, dessa dinâmica da escola, por exemplo, que nasce a Escolas Associadas, não é? Por que? Porque era uma escola que tinha como perspectiva que ela deveria sair dos muros, não é? Que ela deveria estar compartilhando e discutindo com outros, não é? E esse é o germe para fazer nascer a Escolas Associadas, aí na década de 1990. Então…
P/1 – … Quais os desafios que a senhora enfrentou mais, assim, no Pueri? Os principais desafios.
R – Desafios. No início, eu não sabendo ainda bem o que era ser coordenadora. E todas as professoras, com exceção de uma delas, que nunca tinha pisado em sala de aula, eram professoras, também, se inaugurando, não é? De um lado, foi um desafio. E de um lado foi um grande possibilitador, porque aí as pessoas queriam construir. Era a primeira vez que tinha aquela terceira série. Imagina, quando teve a primeira vez a segunda série. Então, tudo por inventar, não é? E com a possibilidade de, porque a escola estava aberta. Então, você ficava horas, a gente produzindo material, não é? Foi sempre a escola, justamente pelas raízes montessorianas, que teve uma qualidade de investigação e de pesquisa nos materiais, que ela se diferenciou de todas as outras escolas que tiveram trabalho com essa perspectiva montessoriana. Porque ela fez, por conta aí de Maria Lúcia, né, pesquisa de recursos materiais. E a gente teve aqui um pai de aluno que fazia, especialmente, os materiais para o Pueri. Então, você inventava quebra-cabeça, materiais de Matemática ou de salas ambientes de matemáticas, onde os alunos iam, eles poderiam sair com licenças, né, uma plaquinha que ele está em sala ambiente, ele ia para sala ambiente. Ele podia deixar o trabalho de sala e circular na sala ambiente, ali ele fazia exploração de conceitos, de conteúdos que não necessariamente eram aqueles que estavam inscritos no período da classe dele, da série dele. Ele podia avançar para qualquer conteúdo, desde que aquele fosse o desejo, interesse dele. E tinha uma professora, uma delas trabalha até hoje no Pueri, que é a Glair, né, que é a professora de Matemática e que foi professora desse período. Então, no desafio, éramos todas novas, não é? Mas de outro lado, com essa disponibilidade para fazer acontecer, para essa história se inaugurar no ensino fundamental. Então, teve, né, já tinha tido a primeira série. Mas tinha ainda tudo por acontecer. É assim que a escola cria as primeiras viagens, né. A primeira viagem a Minas Gerais aconteceu em 1970. Em 1971, nós fomos com as crianças, a primeira turma foi a Bahia, né. Então, passamos treze dias viajando com as crianças. Então, isso para época era… Realmente, só o Pueri inventou isso, porque era uma responsabilidade. Hoje, outras escolas fazem, já há alguns anos, outras escolas fazem. Mas, na época, não era comum que isso acontecesse, né. Então, os desafios, eu acho que eram esse do começar, né, do criar. Do outro lado, as próprias mudanças que vão ocorrendo porque a escola cresceu. Ela muda de… Quando ela muda no finalzinho de 1973, né, quando termina o ano letivo de 1973 e ela faz a mudança para Verbo Divino, né. É difícil, hoje, com tudo que existe em volta aqui da Verbo Divino, imaginar o que que era isso em 1974, quando começaram as aulas em 1974. Então, só pra vocês terem ideia, as professoras para se deslocarem para cá, uma perua ficava todo o ano de 1974, uma ficou à disposição das professoras, para trazerem as professoras da Avenida Brasil para cá. As professoras iam até a Brasil, como se lá fosse ainda a escola. E de lá elas eram trazidas pra cá. Muitas delas que não tinham carro. Então, foi toda uma adaptação em volta, a gente não tinha, se você estava aqui, era aqui que você comia numa, nem era lanchonete, era uma cantina da escola, uma pequena cantina. Então, eu não saía fora, almoçava, né. E não só eu. Mas todos aqueles que ficavam período integral. Então, tinha os desafios da mudança, do quanto essa mudança, ela trazia os alunos que já eram… Por exemplo, Avenida Brasil para cá, olha a distância, né. E ao mesmo tempo, dessa expectativa do quanto a escola ia continuar formando as classes, se projetando. Ela já tinha começado a quinta série, quando mudou para cá. Ela já tinha tido a primeira quinta série. Então, ela chegou aqui com a sexta série. Pela primeira vez, em 1974, a sexta série. Mas, veja, tudo por continuar a fazer, né. E aí a escola vai ficando mais complexa. Complexa nas relações, né, a complexidade do próprio trabalho, as exigências. E ela cresceu muito, porque ela vem com os alunos e dobra. Então, em 1975, ela já tinha um pouco mais de mil alunos, né. Para uma escola que, em 1966, começou com 16 alunos, não é? Então, era um crescimento. E aí vem, né, as outras, aumenta o número de funcionários, a equipe de coordenação vai também se alterando, quem era a coordenadora de maternal e de infantil, de infantil e pré. Então…
(Troca de fita)
R – Então, é muito interessante ver o Pueri, mas um Pueri também não separado da história da educação paulistana, nesse período. Porque várias outras escolas surgiram, né, nesse mesmo período ou nessa mesma década. Ou até depois, na década de 1970. Tudo escolas que estão aniversariando 35 anos, já fizeram 40, vão fazer 40 anos no próximo ano. E aí se você revisita essas histórias, você vê a iniciativa das mulheres. A sua grande maioria, foram mulheres que começaram as escolas. E isso está muito interligado a toda uma mudança, a toda uma transformação social, não é? Dessa mulher podendo ir para o trabalho, não é? Dessa mulher que sai, que já, muitas delas, eram professoras, não é? E muitas vezes, trabalhavam no curso de magistério, como professoras ou como professoras de crianças de educação infantil. A grande maioria tinham sido professoras de educação infantil e de ensino fundamental. Mas, agora, despontam para si a condição de serem as donas das suas escolas e começam a criar essas escolas. E onde vão buscar as inspirações? Na Escola Nova, não é? Então, você vê as placas das escolas se referindo ao Decroly, ou se referindo, muitas delas, a própria Montessori. Algumas chamando de Montessori-Lubienska, não é, que não ocorreu no Pueri. O Pueri sempre foi uma escola montessoriana, não é? Escolas religiosas também, que começam a introduzir na educação infantil. Então, começa sempre com essa perspectiva da educação infantil. Mas de uma educação infantil que rapidamente cresce e que, portanto, se torna ensino fundamental, que depois também vai crescer, muitas delas depois formam também o ensino fundamental de quinta a oitava, né, que a gente chama fundamental dois. E o próprio ensino médio. Então, se a gente vai, não é, ler a história, as histórias dessas escolas desse período está muito ligado a essa conjuntura social que a própria mulher professora, né, ganha um passo de ousadia, encorajamento, e passa a querer ter, não é mais aquela escola tradicional que eu trabalho, que eu tive a experiência, mas eu quero fazer da minha experiência, a condição de ter uma escola, não é? Não é bem esse o caso de Beth, mas era o caso da Maria Lúcia, não é? Mas tinha toda a ousadia e todo o espírito empreendedor da Beth, que faz, né. Eu tenho três meninas, são meninas pequenas, mas quero estar numa atuação profissional. Então, esse desejo da atuação profissional da mulher não pode estar separado do desejo das mulheres que se tornaram mantenedoras das escolas particulares desse período, que eu acho que a gente tem que ter muito respeito pela história dessas mulheres, porque elas começaram fazendo de tudo na escola. Elas estavam no portão, elas atendiam os pais, se tinha que ir lá para o mimeógrafo, elas iam, não é? Elas arregaçavam as mangas e estavam para o que der e vir, e estavam presentes. E com o outro lado mesmo, né, de quererem estudar. Então, acho que muitas dessas mulheres que ou estão ainda na escola, ou já se desligaram, se aposentaram, deixaram para geração dos filhos ou de outras pessoas, eu acho que elas têm um lugar muito especial dentro da história da educação, chamaria da educação paulistana, em especial. Do outro lado, né, uma mudança que as outras mulheres também, não é, se põem no trabalho, ficam mais determinadas para esse alcance do lugar da mulher na profissão. Então, a gente vê um mesclar da Escola Nova, mas um mesclar de mudanças profundas na sociedade, né. Se de um lado a gente tem o cenário político mais contido, né, mais da ditadura. Mas, de outro lado, você tem um movimento todo de libertação, não é, sob todos os aspectos da sexualidade, da profissão da mulher, da mulher se pôr no caminho do trabalho. E aí a escola tem, então, essa criança que entra mais cedo para escola, porque as mulheres vão entrar no mundo do trabalho, não é. Então, não dá pra separar toda essa história forte do Pueri com essa história, com essa inscrição, com essa conexão com uma história maior que era a história do mundo e a própria história da cidade de São Paulo, né, as mudanças que vão ocorrendo. Os pais passam a ler Pais e Filhos, a revista Pais e Filhos, têm muitos desejos da Psicologia, querem falar muito com os psicólogos, a escola tem psicólogos nesse período. A Psicologia era uma força, não é? A psicóloga ficava aqui em período integral, trabalhava junto com a coordenação. Eu mesma trabalhei ao lado de psicólogos, não é? Então, os pais eram atendidos pela coordenadora, mas tinha o serviço da psicologia. Por que? Porque até então, as famílias que tinham tido nos seus pais e nos seus avós, o que eu diria, uma localização de um bom senso, que você sabia quando você dizia não, quando você dizia sim, como é que era educar uma criança, de repente, parece que isso, né, se transformou tanto, houve um, ruiu isto e ele precisava buscar de outras pessoas para entender como a criança tinha sido educada. Então: “Pode falar palavrão? Não pode falar palavrão? Como é que a gente atua? Pode dar castigo, dar palmada?” Então, os temas que apareciam e circulavam, já fortes, no social, principalmente para essa classe média-alta e alta, que eram as grandes questões da criança, da infância, das relações família e criança, não é, se sobrepõem e circulam também para dentro da escola. E daí, essa busca que os pais têm já da figura do educador, mas, em especial, do psicólogo. Então, a escola passa a ter esse serviço de psicologia desde o início, aí o Pueri começou. Depois, essas funções também se modificam e hoje ela se dá de uma outra maneira.
P/1 – Depois dessa fase da coordenação, você saiu do Pueri e depois voltou como consultora. Conta um pouquinho essa fase de consultora.
R – Então, eu saí do Pueri, né. Como eu disse a vocês, com uma história bastante fortalecida por todos esses laços, os laços profissionais e os laços pessoais, né. Com uma bagagem e um respeito muito grande por essa história vivida aqui e aprendida aqui também, né. Mas achava que eu tinha que circular por outros, por outros caminhos também. Punha em discussão já a função da coordenação: “Será que a coordenação tem que… É só de fundamental um? Como é que é a coordenação de quinta a oitava?” Então, essas discussões, eu sentia que eu precisava voltar para academia e discutir com outros teóricos, não é? Do que é que era ser este educador dentro da escola. E isso é que me fez sair do Pueri. Eu fui para uma outra experiência, mas de periferia, né. Uma escola, embora particular, mas uma escola de periferia. Mas entrei imediatamente, depois de um ano, entrei no mestrado. E, exatamente, eu queria dialogar, fazer dialogar o que eu tinha vivido com os referenciais e os subsídios teóricos. E passado algum tempo, né, eu tentei um, alguns momentos que vim especial na escola, eu tentei fazer assim. A festa dos 15 anos. Então, vinha, conversava com Beth, via alguma coisa, mas não estava atuando. Em 1980 e… Me parece que 1985, 1986, aí sim. Beth me chamou, porque ela estava querendo discutir um pouco o curso de História. Naquela ocasião, ela assim: “Como é que está sendo ensinada a História?” Por isso que eu digo que é uma escola que sempre submeteu aquilo que fazia a uma apreciação e a uma análise, fez disso interlocução com vários profissionais, durante toda essa história para redimensionar seu próprio trabalho. Isso eu acho de um valor muito grande, porque ela sempre soube oxigenar a própria escola, né, com outras perspectivas. E Beth, né, nesse sentido, bastante crítica, muitas vezes, das próprias coisas que ocorriam na escola, falava: “Eu acho que os alunos de quinta a oitava estão estudando uma História que eu acho que a gente poderia estar pensando numa outra perspectiva de História. Será que eles não estão ficando demais no estudo da Grécia, no estudo de Roma? Como é que fica a história brasileira e a história do mundo e a história atual, _____. Eu queria que você analisasse isso. Eu estou convidando um professor para ser coordenador de História e eu estou querendo que você veja.” Então, começamos um trabalho de, naquela ocasião, de análise de História, do ensino de História no Pueri. E aquilo que se foi projetando junto com reuniões com professores de História, fui vendo que nem sempre você teria um livro que desse conta dessa perspectiva. Então, usar livros didáticos, mas o Pueri também estaria produzindo internamente textos de apoio para os alunos, justamente visando uma nova abordagem. Esse textos, eles passam a ter um impacto, né, começou com quinta, depois começou com ____, gradativamente. E aí se tem a ideia de que essa mudança não deveria estar inscrita somente no lugar da História, mas contribuir com as outras ciências. E aí o Pueri forma o Departamento de Planejamento. E nesse Departamento de Planejamento, eu prestava um serviço de assessoria, em alguns momentos, para discutir com esses professores, que eram coordenadores de área, não é? A gente discutir os pressupostos do ensino das Ciências da Natureza, Ciências Sociais, enfim. O que é que ensina Matemática, o que ensina na educação infantil, primeira a quarta, quinta a oitava, ensino médio. Então, era um grupo de coordenadores, né. E eu comecei essa assessoria primeiro sozinha, depois em parceria com o professor Carlos Luís Gonçalves, que é hoje, inclusive diretor de uma das unidades do Pueri, que é a unidade de Aldeia da Serra, né, mas que a gente fez nessa ocasião. Houve um término disso. Depois, eu fiquei fora. Aí volta com convite. E aí, era um convite assim: esse material que foi sendo produzido no Pueri, que ideias que eu daria para que esse material saísse para fora do Pueri, que fosse vendido para fora, né, fosse comercializado fora. E aí quando eles me pediram que: “Olha, você escreve um projeto pensando que é uma perspectiva de a gente levar essas ideias que são inovadoras para outras escolas.” E eu escrevi o Projeto Ideias e Recursos, que deu o nascimento de Escolas Associadas, né, que era a ideia de que não se venderia apenas o material, mas o material, ele trazia como pressuposto, a ideia da formação, não é? E que o Pueri, que foi gestor, muito tempo, da formação dos seus próprios estagiários e dos seus próprios professores, podiam validar agora outras iniciativas de formação de profissionais de outras escolas. Então, o material era um bom pretexto para que se tivessem, a gente tivesse formando profissionais da escola. Não só os professores, mas os próprios coordenadores, os diretores. Enfim, os profissionais da escola. E foi assim que eu comecei a prestar assessoria, né, por esse projeto que é Escolas Associadas, que até hoje eu trabalho. Claro que eu já estive muito mais assiduamente presente, mas felizmente, né, como assessora, eu também tenho que, para o bom resultado do trabalho, tem que ir saindo. Então, eu venho. Semana passada mesmo, eu estive em Escolas Associadas, mas agora eu venho em tempos mais espaçados com os assessores. Então, eu trabalho com a assessoria que visita as escolas. Então, em vários momentos fui circulando em projetos. Nesse período de Escolas Associadas, há alguns momentos, pois há um momento muito especial, que vocês já devem ter tido também outros depoimentos, que é o momento da criação de um projeto arrojado, inovador que põe o Pueri, como eu disse lá atrás, à frente do seu tempo, que foi o projeto do Domus Alfa, né. Então, eu vim para alguns momentos de interlocução. Embora tivesse uma outra assessoria pedagógica, mas a gente fazia esta afinação daquilo que estava acontecendo em Escolas Associadas com o movimento do próprio Pueri, não é? E depois tem alterações desses projetos, porque aí tem determinações que vão além da assessoria, que são as determinações da instituição mantenedora. Então, durante anos, eu fico dentro, tem outros momentos que eu volto. Agora, eu estou numa assessoria que é com o grupo de coordenação, né, de ensino e a coordenação pedagógica educacional. E, em momentos, com a diretoria, com o Aurélio na diretoria de ensino. Então, são momentos bem localizados. Eu venho aqui quinzenalmente, como é o dia de hoje, né. À tarde, eu tenho um encontro com os coordenadores de todas as unidades, desde educação infantil até ensino médio. Por que? Porque o Pueri vai confirmando, né, aquilo que falei há pouco, vai confirmando essa história de retornar lá, aos seus fundamentos, pegando agora o seu projeto político-pedagógico, vendo quanto esse projeto político-pedagógico tem que avançar, o quanto isso precisa se… Às vezes, a escola vai esquecendo, né, vai perdendo nuances que antes ela defendeu. E isso é muito comum acontecer na escola, que ela precisa fortalecer, que ela precisa consolidar, ou que ela quer inscrever de uma outra maneira de fazer iniciativas que agora têm uma visão diferente daquilo que foi, nem poderia ser a mesma escola 40 anos atrás. Isso vai constituindo a identidade. Eu acho que a metamorfose é que constitui a identidade, né, do que ela foi, do que ela é e sempre da ideia que ela quer se projetar e crescer, como um compromisso que ela tem com a coletividade interna e com a comunidade de pais, né. O que revela a seriedade, a determinação e a responsabilidade social da escola, né. A escola é uma instituição que tem uma responsabilidade pública. Ela pode ser privada, mas ela é uma escola pública também. Ela tem uma responsabilidade pública. Então, este momento, a gente está na coordenação exatamente retomando conceitos da coordenação, papel da coordenação, significado de aprendizagem, não é? Como que a escola está assimilando, porque ela tem sempre pontos a serem revistos, pontos para serem avançados e pontos para serem, talvez, recriados ou introduzidos. Coisas que não existem, mas que a escola pode fazer acontecer, né.
P/1 – Nesse período, juntando tudo, qual a senhora considera que foi a sua maior realização no Pueri?
R – Maior realização no Pueri, acho que são, são várias, viu? São várias. Eu acho que como coordenação, com certeza, não é, até hoje, quando eu estou aqui no Pueri, existem vários professores que trabalharam comigo e que são coordenadores aqui. Então, vê-los, não é, em outras atuações e ter a retomada dos significados desta história, me dão muita alegria, muito prazer. E por isso que eu falo sempre que eu não posso, eu não posso desatarraxar ou desatar essa história da história profissional. Não posso e não quero, não é? Do outro lado, acho que assim, experiência com esses coordenadores de área, eu tenho certeza que eu só vivi no Pueri, eu não viveria naquela intensidade e com aquele investimento que a escola fez, como eu vivi no Pueri, e a mesma coisa próximo. Não fazendo o projeto diretamente, mas momentos que eu pude viver do Projeto de Domus Alfa, mas esse trabalho com os coordenadores de área, em especial, foram momentos muito, muito fortes de você fazer, contracenar uma visão mais interdisciplinar, que, às vezes, a escola fala, mas que nem sempre ela consegue estabelecer. E com uma visão da escola de que era isso que ela queria e que tinha um investimento não só pessoal e profissional, mas um investimento financeiro da escola. Então, é esta, isto que eu coloquei como uma grande marca, né, do Pueri, que faz da sua própria prática, né, um recurso de pôr em questão. E, pondo em questão, fazer criar um novo projeto, né. E acho que, assim, o projeto de Escolas Associadas foi uma saída maravilhosa que o Pueri teve, muito interessante para aquele momento da história do Pueri e da história da escola particular, eu diria, em São Paulo, né. Que fez divulgar ideais educadores, propostas educacionais, reflexões, momentos de formação, situações culturais. E fazer disso uma circulação de ideais e de informações e de recursos que, de fato, saíram desses muros. E hoje, estão presentes, não só em escolas do estado de São Paulo, mas em várias escolas do Brasil, não é? Então, isso sim. Isso me deu e continua me dando um retorno profissional, né, de muita sustentação e de muita implicação, não é? De como você tem, através de uma escola, a possibilidade de estar com uma diversidade de que… Tanto que eu fui a São Luís, mas poderia estar em outra escola de uma região Sul do Brasil ou do Centro-Oeste, não é? E que faz, traduzindo uma alegria profunda, que é a alegria que o Pueri teve, desde o início com as suas mantenedoras, que um dia isto daqui vai estar pra fora dos portões, não é? E acho que é essa concretização e ter participado em vários momentos desta construção é profundamente gratificante, né.
P/1 – O que você considera que mais mudou na educação, desde a sua infância até agora?
R – Acho que um é o lugar que o professor destina ao aluno, não é? Eu acho que aquele lugar da distância, não é, se o professor quiser manter, ele está completamente fora do seu tempo, né. Então, acho que isso mudou bastante. O outro, a educação escolar, ela estava mais circunscrita, né, no papel do diretor e do professor. E isso se alterou bastante, porque hoje, nesses tempos todos, outros profissionais podem contribuir dentro da escola. Então, a interlocução, as interfaces com outros profissionais, acho que elas são necessárias. Eu acredito muito nessas interfaces com profissionais até que são de outras áreas do conhecimento, não só aqueles que trabalham na escola, não é? E também a mudança da utilização, evidentemente, que dos recursos, não é? Hoje, aquilo que a gente ia, no meu tempo, eu fui à escola para obter a informação, né. Hoje, ninguém precisa mais ir à escola para isso. Ele vai para ter o lugar do coletivo, para dar sentido para essas informações, que ele acessa das formas as mais variadas. E esse é um papel que a escola ainda está assustada com isso, não é? Não é tão fácil, são mudanças velozes e profundas, né, de cenários. E a escola ainda está sofrendo esses impactos, quando eu falo a escola é o Pueri e a instituição escolar, né, está sofrendo esses impactos. Nesses impactos também estão dentro os educadores, porque a escola que eu tive e a escola que eu estou tendo e a escola que eu preciso ter, né. Então, desenhar esse novo papel social para escola, né, de uma escola que os alunos precisam ir à escola? Precisam, sim. Porque eles precisam se ver no coletivo, porque aí que eles vão dar sentido para um coletivo de cidadania, para um coletivo maior, não é, que eles participam já. Eles não vão participar amanhã, eles já são cidadãos hoje. Porque a escola tinha muito essa ideia: a gente ensina e um dia eles, né, as crianças crescem, vão ser adultos e cidadãos. Não. Aqui eles são cidadãos e, então, estes desafios estão muito presentes na escola atual, né. Com que valores, né, as alterações não só da informação, dos meios de comunicação e as próprias mudanças bastante profundas no contexto das famílias, não é? E a escola tem que fazer adequações e reconstruções desse papel. Ela não pode ter o papel igual ela tinha na década de 1950, 1960, não é?
P/1 – Você falou em família, como você vê a relação dos pais com a escola?
R – A escola, às vezes, se queixa da família e a família se queixa da escola, não é? Justamente por conta dessas mudanças que têm assustado todo mundo, né, mudanças que estão na família, mudanças que estão na escola. E situações sociais que nós estamos vivendo que também de muita gravidade, de muita violência e de muito temores, né. Então, esses cenários que não estão desligados que é o cenário da escola e o cenário da família e um cenário, ou seja, mundial ou nacional, né, ou da cidade de São Paulo, em especial, tão próximos, e que fazem dos dias de hoje, dias tão complexos. A escola com a família lida hoje numa questão da complexidade, não é, que a escola precisa ser formadora também da família, né. Ela também participa na educação dessa família, mas ainda ela tem que arrumar canais melhores de comunicação com a família. Ou a família com a escola e a escola com a família. E, às vezes, o trânsito dessa comunicação, nem sempre é tão fácil, tão rápido, assim, não é? Evidentemente que se você vê no Pueri, vê em outras escolas, né, muitas delas, justamente por esta responsabilidade, estão hoje mais atentas a este lugar de interlocução com o contexto familiar. Mas isso, como está envolto numa complexidade que é a própria complexidade da realidade, não é alguma coisa que se tenha uma receita e dá certo, não é? Em alguma coisa que se tem uma alternativa e ela por si só vai ser mágica e salvadora. Mas são caminhos que nós temos que estar nos grupos de professores, nos grupos de orientação, na direção, entre pares de educadores e com as famílias, estarmos discutindo para gente ver se descobre alguns caminhos um pouco melhores do que aquilo que a gente está vivendo. Eu acho que se a gente achava que estava na barbárie, eu acho que a gente já está, né. E evidentemente que há que se ter um trabalho de que o conhecimento tem que estar a serviço dessa humanização e que a gente possa sempre ter a esperança da transformação. Acho que não dá para ser educador sem o lugar da esperança transformadora. Mas que ela é exigente, muito exigente, que a gente precisa ter muita coragem de enfrentar também as nossas mazelas, né, os nossos limites. Porque, às vezes, a escola se sentia que tudo ela podia, ela não pode mais, né. E ter a generosidade e a compreensão que a gente tem que formar muitos pares, porque muitos pares juntos, certamente, nos ajudam a pensar outras saídas. É isso que eu acredito.
P/1 – O que você acha que a educação brasileira mais precisa hoje?
R – Ela precisa de mais gente que acredite nela, né. Eu acho que a ideia de uma educação nacional, ela tem ficado à mercê de… Ou de modismos, né, ou de outros interesses. E a vontade política de uma educação que avance mesmo, infelizmente, a gente sente que alguns têm, mas muitos não têm, né. Então, essa determinação para que a escola tenha, e aí falando da escola pública e do outro lado, que respinga também na escola particular, né, eu acho que ainda há um lugar de muita desconsideração e de muito desrespeito ao valor da educação. E um país que não tem isso como sua prioridade, evidentemente que sofreu, vem sofrendo e sofrerá ainda mais, não é, dos descaminhos dessa desconsideração e desse desrespeito. Eu acho que cada um, no seu lugar, tem que, como educador, estar sempre lutando mesmo, do que é que a gente pode estar fazendo melhor. Porque por menor que possa ser, tem desdobramentos, né. A gente tem sempre que acreditar que aquilo que a gente faz numa sala de aula, tem 32 pessoas ou tem 25 pessoas ou tem 22 alunos que, de alguma maneira, né, levarão outras perspectivas. A gente tem que apostar nisso. Acho que é uma aposta ainda, infelizmente, muito precária, né, e que compõe toda essa nossa história desde a colonização, né, com idas e voltas, mas que eu acho que não nos faz pessimistas. Eu nunca gostaria de… O educador, eu acho que não pode ser um pessimista. Não poder ser um ufanista também, não é? Nem um aventureiro, não é? Mas acho que a gente tem que ter a nossa competência, o nosso estudo, a nossa responsabilidade, a serviço de um lugar queira que essa educação melhore e que seja de outra perspectiva, com certeza. Seja aqui, na escola pública, na escola particular, na… Enfim, escola no sentido mais amplo.
P/1 – E dentro desse contexto, como você vê a formação dos professores?
R – A formação dos professores, ela não está separada desse descaso, né. E por outro lado, traz uma questão muito séria que é exatamente, por conta dessas alterações tão, tão profundas, de cenários, da própria sociedade, da realidade, dado as questões culturais, da introdução todinha dessa revolução da informação, da sociedade do conhecimento, faz esse professor estar num dilema, sempre muito grande, entre aquilo que ele estudou e que falaram assim: “Olha, ser professor, você vai ensinar.” E, de repente, ele começa a ver que que ele está numa, que não contaram para ele que ele também é um aprendiz, né. E que ele para ensinar, ele aprende. E ele aprende com os alunos, os alunos aprendem com ele. Mas ele é o profissional mais experiente que tem uma responsabilidade e que, portanto, precisa lidar com a sua formação, com a sua autoformação. Escolas Associadas, eu acho que é um grande exemplo de iniciativa para que se faça da própria vivência e da própria escola, uma oportunidade formadora. A formação tem que acontecer em serviço, tá? Quando o coordenador é coordenador, é em serviço que ele vai atuando sobre o professor. Esse professor, que muitas vezes tem uma formação precária, né, e que ele não está pronto, ele precisa continuar sua formação na escola. E por isso que a gente fala de formação contínua e de formação permanente, não é? E que ele tem que atuar nos dois lados. O quanto a escola interfere, contribui com processos de formação e quanto ele, por suas próprias iniciativas, eu chamaria pelas suas próprias pernas, se decide conscientemente, intencionalmente de buscar uma formação com outros. Isso ainda é, às vezes, pequeno dentro da escola. Às vezes, ainda há uma dinâmica da escola que o profissional espere que a iniciativa formadora seja só um movimento da escola. Mas eu acho que é um movimento que você vê despontar muitos… Eu trabalho num espaço onde muitos professores me procuram, coordenadores, que ninguém pediu para eles irem lá, mas que eles vão e dizem pra mim: “Olha, eu vim aqui, porque eu quero continuar estudando, porque eu quero discutir com outros coordenadores, porque eu quero ouvir outros coordenadores ou porque eu quero ver a prática de outros professores.” Então, eu acredito nesses espaços formadores, não é? Onde existam as buscas tanto institucionais como as buscas pessoais, como aquele sujeito que na autonomia da sua aprendizagem, se ele quer acreditar na autonomia da aprendizagem do aluno, ele também tem que certificar e legitimar essa própria autonomia da sua formação.
P/1 – Que função você acha que a escola deve ter hoje? E que aluno que a escola deve formar?
R – Eu acho que a escola tem várias funções sociais. Eu diria que uma delas é fazer dos espaços das aulas, das mediações, das intervenções, quando eu falo aula, não só dentro daquela sala, as oportunidades, que são oportunidades formadoras. O professor é o formador do aluno. O coordenador é o formador dos professores. A escola é uma comunidade de aprendizagem. Quando ela se põe esta condição, onde uns aprendem com os outros, não é? A função da escola é exatamente dinamizar, mobilizar essas pessoas para ações de aprendizagem, né. E para fazer isso, e pra essa aprendizagem não ser só mecânica, mas ter um lugar da aprendizagem mais significativa, o quanto as perguntas, a pesquisa, as problematizações, precisam fazer lugar nas aprendizagens. Seja na aprendizagem de adulto com adulto, ou na aprendizagem de adultos com os alunos, crianças ou jovens. E, então, a problematização do conhecimento é uma questão para metodologia da escola para ela criar, né, por quê? Porque não basta os alunos fazerem cópias, os alunos serem meros ______, né, aqueles que descrevem o conhecimento, depois se apresentam no dia da prova e reproduzem, não é? Mas aqueles que interpretam. E esta interpretação do conhecimento, ela tem que ser desencadeada por situações de questionamento, por situações de hipótese, por situações de perguntas. Então, os alunos vêm à escola para interpretar o conhecimento, muito mais do que só obter o conhecimento. Não estou dizendo que com isso a escola não tem o lugar de transmissão, mas é um lugar de transmissão muito diferente do que ela teve no passado, né. E este lugar de interpretação, não é uma interpretação só individual. É uma interpretação que ele tem que dar sentido e aprender a conviver nos coletivos. Então, a convivência dos coletivos, mas uma convivência que põe o conhecimento para ser discutido, reelaborado, reinterpretado desses coletivos. E o quanto o sujeito vai ganhando, também, perspectivas da função social que ele tem no coletivo maior. Quer dizer, aquilo que eu faço com o conhecimento da Física, da Química, da Biologia, como me põe junto da história da humanidade, que a escola eu acho que tem uma responsabilidade por esse respeito pela história da humanidade, pelo saber constituído, né, ao longo dessa história. Que foi e que continua sendo construído, né, e também pelos lugares da cultura. A escola, se ela se põe junto dos alunos, como os alunos construtores de objetos da cultura, que relêem, né, objetos da cultura, que reinterpretam e que podem criar objetos da cultura. Então, essa inserção antropológica da visão histórica e social do homem, ao mesmo tempo a visão cultural de que a escola tem uma responsabilidade com a ciência, né, com o conhecimento constituído pelas ciências. Mas, ao mesmo tempo, ela tem uma grande responsabilidade também pela observação da beleza, pela estética, que está uma estética que eu não poria só nas artes. Mas que circula numa integração muito próxima entre, de aproximação, né, entre as artes e a ciência, e que a escola, acho que tem, ela tem um dever, ela tem uma responsabilidade de fazer os alunos bons apreciadores e bons divulgadores e bons intérpretes dessa circulação, que antes ficava, às vezes, mais inscrita na ciência, que separava a ciência da vida, que punha a ciência separada das artes. E que hoje a gente está falando no multi, um mundo mais multifacetado, não é? De uma realidade mais, de muitas facetas. E que essas facetas têm que conversar. E conversarem umas com as outras, e com os próprios alunos, e com os os professores e com a escola.
(Interrupção)
P/1 – O que você acha do Pueri Domus, Cleide, estar comemorando os 40 anos por meio desse projeto, né, que está usando a memória, contando através da memória de quem trabalhou no Pueri, de quem trabalha no Pueri?
R – É, eu acho que é uma coerência do Pueri com a sua própria história, né, uma escola que, em vários momentos, por mais que os profissionais não estivessem mais aqui, trabalhando no cotidiano, estando presentes, mas que estavam presentes através dessa história. E soube buscar esses profissionais e eu acho que a instituição sempre foi muito afetuosa, muito companheira e presente com estas pessoas. Então, acho que esse movimento, ele tem muito a ver com a própria história do Pueri, né. Não é uma invenção dos dias de hoje o Pueri estar buscando esse resgate da memória. Do outro lado, eu acho que conhecendo o trabalho de vocês, do Museu da Pessoa, né, eu fiquei muito interessada, assim, em estar mais próxima de vocês por conta desses depoimentos. E muita curiosidade por ver esse material a ser publicado também, não é? Então… Que é um outro lado da produção, porque a cada pessoa, certamente, como eu que estou aqui, retomar esses objetos da memória, né, trazer recortes dessas lembranças, materializar em alguns relatos, é sempre envolto de muita emoção, né, é impossível você pegar memória separado dos afetos, dos sentimentos, né, das emoções. Por outro lado, a memória nos instala muito no passado. Ela tem essa captura, assim, que quer pôr lá no passado, né. A gente faz isso, ouço para discutir, né, o passado. Até porque aquele passado que a gente contou aqui é a minha interpretação hoje daquele passado, né, porque aquele passado não existe mais. Ele é só o meio jeito hoje de contar aquilo que eu vivi. Então, eu acho que cada um que pôde estar aqui, não é, está tendo uma oportunidade de revisitar a sua própria história tendo como pretexto a história do Pueri. Então, o Pueri está nos dando isso de presente, né. E do outro lado, quando essa história estiver documentada de uma outra maneira, não é, estendida a uma coletividade muito maior, eu acho que sempre a história, a narrativa de uns, sempre será pretexto para que outros queiram narrar as suas próprias histórias. Então, acho que fazer 40 anos e comemorar dessa maneira é certificar assim: olha, as pessoas têm histórias, né, as instituições têm histórias, e esse memorial, que é essa memória coletiva, que a gente precisa ter muito mais consideração. Então, acho que a narração de cada um sempre é uma boa chamada, é um cutucão para que outras pessoas falem: “E eu nessa história? Como é que eu contaria, como é que eu vou contar?” Internamente, a gente conta as histórias e outras vezes a gente não conta só internamente, mas tem essa oportunidade de contracenar com outras pessoas, de estar próximos. Então, acho que é a melhor maneira que uma escola possa contar, né, do seu trabalho. E, ao contar o seu trabalho, ela se fortifica, ela dá sentido ao seu presente e ela alimenta os seus projetos futuros. Eu acho que é por aí. Acho que os 40 anos significam isso: uma história vivida que é interpretada. E que, interpretada, possa fazer com que os educadores da escola, né, que estão atuando hoje e aqueles que são pais, que são alunos, que são professores da escola, formadores da escola, possam se sentir fazendo parte, não é? Eu acho que a memória coletiva nos faz fazer parte. Quer dizer, eu me implico com essa história. Eu não estou indiferente a essa história. Estou junto com essa história e me sinto fazendo parte. Então, fazer parte é a melhor coisa que possa ter para alguém, não é? Eu faço parte desse tempo, mas faço parte dessa história também, né, uma história que é individual e que, ao mesmo tempo, é uma história coletiva.
P/1 – O que você achou de ter participado dessa entrevista?
R – Gostei bastante. Gostei da direção que vocês deram para as perguntas e vocês me deixaram muito, muito à vontade. Em nenhum momento eu me senti cerceada por vocês, que vocês estavam preocupadas, que vocês tinham aí no roteiro. Pelo contrário, ______ o quanto eu falei demais de coisas que eu não deveria falar, né. Mas eu fiquei muito tranquila, muito à vontade do que eu estava contando para vocês, como se estivesse numa sala e vocês… Conhecendo vocês hoje e ao mesmo tempo contando facetas desse meu lado pessoal e do meu lado profissional. Então, me senti muito bem. Gostaria de agradecer, porque não é tão fácil assim conduzir entrevistas. Principalmente quando a gente está buscando o material de memória que são, né, coisas profundas. Eu acho que, gosto muito de relembrar Iberê Camargo, né, quando ele diz que quando você vai lidar com a matéria prima da memória é como se fosse, se você estivesse provocando bolhas que subissem, né. E quando sobem as bolhas, eles diz que alguns, não é, como ele, pintam, né, fazem as bolhas. E os educadores acho que fazem as bolhas virarem um trabalho dentro da educação, da escola, né. Então, fazer as bolhas subirem e a gente querer contar as bolhas e que é que a gente fez com essas bolhas ao longo da vida, eu acho que precisa ter muita habilidade, muita competência para isso e vocês souberam fazer. Eu me senti muito bem, muito tranquila, tá?
P/1 – Então, em nome do Pueri Domus e em nome do Museu da Pessoa, nós agradecemos a sua entrevista.
R – Eu é que agradeço essa oportunidade.
P/1– Muito obrigada.
R – Obrigada, viu?
--- FIM DA ENTREVISTA ---
Dúvidas
Fica
Com
Brasileira
Em mim
Recolher