P/1 - Sr. Edésio, eu gostaria de começar o nosso bate-papo perguntando para o senhor qual o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Eu nasci em Sorocaba, em sete de julho de 1918. Meu nome completo é Edésio Del Santoro.
P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - Pedro Del Santoro e Marina Orlandi Del Santoro.
P/1 - E seus pais são de onde? São do interior de São Paulo também?
R - Meu pai é de Tatuí e minha mãe é de São Paulo.
P/1 - São Paulo, capital? E como seus pais se conheceram? O senhor conhece essa história?
R - Conheço essa história, é uma história engraçada. Papai era mecânico da fábrica Santa Maria e passava diariamente… Na rua em que passava ele viu na janela a D. Marina. Como o pai da D. Marina tinha falecido e a mãe dela ido para a Itália, ela foi criada no colégio em São Paulo e estava nessa época em Sorocaba. Então houve um namoro de janela, [como] a gente falava antigamente, de olhar, de conversar rapidamente. A família italiana - de Nápoles, era italiana também - já conheceu o Pedro e fez o entrosamento para que casasse.
O papai achava interessante… Quando casou, ele contava isso [como] uma grande façanha. Minha casa tinha de tudo, inclusive máquina de costura e agulha. Ele contava isso assim, com uma vaidade!
P/1 - A origem da sua família é da Itália?
R - Os meus avós são italianos, os bisavós. Os pais de papai são italianos e no lado materno também. Do lado materno e paterno são italianos, nascidos na Itália, vieram da Itália. Os pais da minha mãe são da Itália, vieram para o Brasil; um faleceu, o irmão e a mãe voltaram para a Itália.
P/1 - De que região da Itália?
R - Mamãe, de Castel Gandolfo.
P/1 - É do centro da Itália, então, perto de Roma.
R - Perto de Roma.
P/1 - E o senhor sabe porque eles vieram para o Brasil?
R - Geralmente... Como a maioria das famílias italianas que vieram para o Brasil, como as japonesas, as alemãs e deu...
Continuar leituraP/1 - Sr. Edésio, eu gostaria de começar o nosso bate-papo perguntando para o senhor qual o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Eu nasci em Sorocaba, em sete de julho de 1918. Meu nome completo é Edésio Del Santoro.
P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - Pedro Del Santoro e Marina Orlandi Del Santoro.
P/1 - E seus pais são de onde? São do interior de São Paulo também?
R - Meu pai é de Tatuí e minha mãe é de São Paulo.
P/1 - São Paulo, capital? E como seus pais se conheceram? O senhor conhece essa história?
R - Conheço essa história, é uma história engraçada. Papai era mecânico da fábrica Santa Maria e passava diariamente… Na rua em que passava ele viu na janela a D. Marina. Como o pai da D. Marina tinha falecido e a mãe dela ido para a Itália, ela foi criada no colégio em São Paulo e estava nessa época em Sorocaba. Então houve um namoro de janela, [como] a gente falava antigamente, de olhar, de conversar rapidamente. A família italiana - de Nápoles, era italiana também - já conheceu o Pedro e fez o entrosamento para que casasse.
O papai achava interessante… Quando casou, ele contava isso [como] uma grande façanha. Minha casa tinha de tudo, inclusive máquina de costura e agulha. Ele contava isso assim, com uma vaidade!
P/1 - A origem da sua família é da Itália?
R - Os meus avós são italianos, os bisavós. Os pais de papai são italianos e no lado materno também. Do lado materno e paterno são italianos, nascidos na Itália, vieram da Itália. Os pais da minha mãe são da Itália, vieram para o Brasil; um faleceu, o irmão e a mãe voltaram para a Itália.
P/1 - De que região da Itália?
R - Mamãe, de Castel Gandolfo.
P/1 - É do centro da Itália, então, perto de Roma.
R - Perto de Roma.
P/1 - E o senhor sabe porque eles vieram para o Brasil?
R - Geralmente... Como a maioria das famílias italianas que vieram para o Brasil, como as japonesas, as alemãs e deu esse caldeamento de raças, quase todos vieram por questões econômicas. Vieram para tentar a vida.
P/1 - E eles vieram para Sorocaba mesmo?
R - A família veio... Os pais com os filhos vieram para Tatuí e depois é que eles se dispersaram: vieram para Sorocaba, outros vieram para São Paulo. Eram dez irmãos - oito homens e duas mulheres.
P/1 - E depois que seus pais se casaram, eles ficaram morando em Sorocaba?
R - Casaram, ficaram morando em Sorocaba, tiveram oito filhos e tinham uma preocupação muito grande... (choro)
P/1 - E o senhor era qual filho?
R - O quarto filho.
P/1 - Quantos homens e quantas mulheres?
R - Dois homens e seis mulheres. São cinco professores, duas estilistas - uma delas se destacou em Sorocaba no teatro amador, viveu intensamente e até hoje é lembrada - e uma pintora.
P/1 - Quais são as suas lembranças da infância do senhor lá em Sorocaba? Conta pra gente. Brincadeiras...
R - Minha infância foi fantástica porque a nossa casa tinha um quintal com cinquenta metros de comprimento, então [havia] árvores frutíferas: jabuticaba, manga, ameixa, goiaba, pitanga. Papai fez balanços para quatro pessoas, tinha gangorra, cordas penduradas nas árvores. Tivemos sempre animais dentro de casa: cachorro, gato, aves. Papai gostava muito de passarinho, então na minha infância também eu gostei imensamente, porque ele fez um viveiro no quintal de quatro metros quadrados. Tínhamos coleções de avinhado, patativa, cabloclinho, bigodinho, todas as aves canoras. Caçava, ele ensinava a fazer arapuca, laço, as crianças todas brincavam com estilingue, pião, pandorga, patinete, carrinhos de rolimã, carrinhos de madeira.
Cada criança fazia o seu com orientação dos pais; peões, os meus eram feitos de cabreúva, papai mandava tornear na Santa Maria. Tivemos um barco de pesca no Rio Sorocaba, um barco pequeno; foi feita uma cotização e um barquinho, então em casa ficava o varejão, ficavam os remos. A parte de esporte é interessante: joguei futebol, nadei. E quando eu entrei no ginásio, coisa que eu nunca tinha visto era jogo de basquete. Entrei e acho que essa transferência que normalmente nós fazemos de uma habilidade para outra… Depois de dois anos já era campeão ginasial. E depois de três anos já fui vice-campeão dos jogos abertos do interior. Aí nunca mais parei.
P/1 - Em basquete?
R - Em basquete. A cidade tinha bonde, os lugares de atração eram essa olaria do Sola que tinha esses cinquenta, sessenta pés de jabuticabeira, a estrada que vai para Votorantim, papai nos levava constantemente para apanhar aqueles figos da Índia.
Nós subíamos o Rio Sorocaba e íamos até a cachoeira de Votorantim para pescar; descíamos o Rio Sorocaba com o barco emborcado, nadando, parávamos ali no posto embaixo da ponte principal. O Rio Sorocaba era piscoso, não havia ainda muita contaminação. A única coisa no rio que nós, naquela época, já notávamos é que jogavam o lixo de Sorocaba perto da chácara do Caracante, um prédio bonito do lado esquerdo para quem vai a Votorantim. Ele criava porcos, então davam comida, os caminhões de lixo eram virados na beira do córrego e então os porcos se alimentavam ali. E o esgoto em Sorocaba era lançado in natura ali no lado do Santa Rosália e era proibido pescar, mas muita gente pescava. O peixe precisava ficar dentro d’água, senão apodrecia porque estava com as vísceras todas cheias de dejetos humanos. Era horrível!
Eu pratiquei muito futebol e tenho uma lembrança agradável do Paulista que era ali perto de casa. Tinha um time fantástico de futebol. Jogava todo sábado, todo domingo. O presidente do clube chamava-se Quatro Pau, era um mulato com um defeito físico numa perna, então geralmente ganhava. Ele vinha na frente com taça atrás para ir para a sede e o todo povo atrás.
Sorocaba tinha uma festa, tem ainda hoje uma festa muito interessante que é a ida e vinda da Nossa Senhora Aparecida de uma cidade vizinha chamada Aparecidinha. No primeiro dia do ano a imagem vem - são dez ou doze quilômetros, é trazida para Sorocaba. A população toda esperava de roupa nova, sapato e quando o povo [estava] embaixo da janela, era rangendo sapato, roupa de todo jeito, a pé; havia sete águas para a pessoa passar até chegar em Aparecida, terra, pó. E na ida a mesma coisa, a imagem de Nossa Senhora da Aparecida saía da cidade e ia até Aparecida; ficava seis meses lá e seis meses na cidade.
Um beato, João de Camargo, também era uma pessoa muito interessante que tinha por ali. O João de Camargo era um preto magro, magérrimo, andava sempre com uma túnica branca e um gorro na cabeça. Atendia centenas de pessoas, aconselhava, umas garrafas com água com mensagens da igreja dele e vinha... [Tinha] Imagens de santos e na frente tinha um pátio e onde eu vi diversas vezes a Congada: pessoas com túnica, calça branca, túnica vermelha, batucando. (choro)
Ele teve os olhos voltados... João Camargo teve os olhos voltados para a assistência social, mandou construiu dezenas, centenas de casas nas proximidades da igreja. E havia romarias permanentes lá.
P/1 - Ele era o quê?
R - Ele era um negro. Contam que caiu, bebia, caiu, teve um sonho; nesse sonho falaram que ele devia construir essa igreja e dar assistência espiritual às pessoas que o procurassem e ele o fez durante muitos anos. Quando morreu o enterro dele foi o maior enterro visto em Sorocaba; atualmente no cemitério, no [dia de] Finados, a tumba dele fica coberta de flores e velas.
Sorocaba tinha dois clubes sociais, três aliás: era o Recreativo, o Sorocaba Clube e o Dopo Lavoro - Círculo Italiano. E a sociedade praticamente frequentava os mesmos clubes. Um detalhe interessante é que as minhas irmãs eram muito bonitas e na década de 30 elas tinham uma amiga negra; frequentavam os clubes e andavam sempre junto com a negra. A turma ficava admirada daquele relacionamento, mas isso acho que nós recebemos… Aprendemos a conviver porque os dois vizinhos nossos, do lado direito e do esquerdo, eram negros. [Eram] De uma educação extremada - eu ficava admirado porque um deles, que era sem instrução nenhuma, tocava bandolim que era uma beleza. Hoje os netos deles, dois ou três são professores da USP, bisnetos, [uma] coisa fantástica.
Sorocaba tinha quatro indústrias: a Scarpa, que era dos pais desse Scarpinha que aparece na televisão constantemente, a Santo Antônio, Estamparia Santa Maria e a Votorantim. E era chamada na década de 30 de “Manchester Paulista”, o que vem demonstrar o fantástico desenvolvimento do país hoje. Sorocaba tinha um milhão e meio de pés de laranja, era o maior centro citricultor do país. Geralmente a cidade era dividida pelo [Rio] Sorocaba, do lado direito veio uma imigração espanhola muito grande. Havia uma terra vermelha sem asfalto, era uma coisa horrível. As crianças daquele lado da cidade quase todas tinham dordolho, inflamação da vista.
P/1 - A casa que vocês moravam, como era? Descreva ela um pouquinho pra gente.
R - A casa que nós morávamos - que atualmente ainda é nossa, a minha irmã mora nela - é um casarão antigo, paredes de taipa e pau a pique. A parede é feita de madeiras verticais arramadas com cipó e depois rebocadas, tem paredes assim ainda lá. Tem cinquenta metros de fundo.
P/1 - É uma casa grande?
R - É uma casa enorme.
P/1 - Quantos quartos tem?
R - Tem cinco quartos. A sala tem doze metros de largura e a cozinha… Era um casarão. E nós, ali, era uma alegria.
Anualmente mamãe fazia oito ou dez caixetas de marmelada, goiabada e nós é que auxiliávamos a fazer. Comprava o marmelo, era cozido, limpos primeiro, tirada a semente, tirado um pedacinho da flor e o cabinho. Depois dava uma fervura, passava na peneira de palha, separava; aquela massa grossa fazia goiabada cascão e a massa fina caía num tacho de cobre enorme em cima de uma trempe. Nós mexíamos aquilo com açúcar até dar o ponto. Nós guardávamos aquelas caixetas e atravessava o ano, punha no sol, enchia de abelha, guardava e conservava naturalmente. E havia aquela crença que quando algum vizinho, alguma pessoa estava doente para morrer e ficava aquele morre não morre, ia buscar um pedaço de goiabada para colocar no pulso da pessoa.
A rua era de terra. Era um costume de quando morria uma pessoa lavar [o cadáver] e jogar na rua a água e o sabonete. Papai tinha um terno de baeta preto, chapéu coco; [em] todo enterro aqueles senhores todos vinham com aquela roupa preta, de gravata, camisa branca, chapéu de coco acompanhando o féretro. Era tétrico.
P/1 - E o seu pai trabalhava com o quê?
R - Papai era chefe da oficina mecânica. Essa Santa Maria tinha quatro homens, cinco homens que tomavam conta praticamente. Era o papai, José (Marsote?), o Américo, o Paulinho, o Martins que trabalhava na secretaria e o administrador. A família da fábrica, a dona, era de Tatuí também. A Almerinda, que era a senhora do dono, quando fazia um doce chamava papai para dar e ele ficava satisfeito, ficava alegre. Esses homens que trabalharam na fábrica [por] mais de 30 anos ficaram decepcionados com o dono porque ele vendeu a fábrica sem que... Ninguém foi avisado, venderam a fábrica e não disseram nem “muito obrigado” para aqueles homens que tinham trabalhado tantos anos cuidando daquilo com todo carinho. Foi uma decepção tremenda. Eles não esperavam receber nada, mas ao menos um agradecimento.
P/1 - E a escola que o senhor estudou? Que escola era?
R - Eu fiz no Grupo Escolar, aliás todos os nossos irmãos frequentaram o Senador Vergueiro. Era um prédio grande, do tamanho de dois andares, mas feito de taipa. Salas enormes, o pé-direito enorme e as professoras eram elegantíssimas: iam para a escola todas de salto alto, bem vestidas, bem arrumadas, mas sempre acessíveis, muito educadas.
Terminado o ginásio, a minha irmã - a mais velha, professora - me chamou e disse: “Agora você tem que decidir, tem [que] resolver.” Eu falei: “Então eu vou para o ginásio.” Aí papai foi procurar o Professor Enéas para que eu me preparasse para entrar no ginásio. Havia um livro enorme, grande que tinha toda a matéria de História, Geografia, Ciências e Português; estava tudo naquele livro, você tinha que estudar aquele livro para prestar exame de admissão.
Esse Professor Enéas foi um professor muito conhecido em Sorocaba. Foi a primeira pessoa que eu conheci que dava aula para pessoas que tinham dificuldades, excepcionais, que tinham dificuldade de falar, de ouvir. Era um homem de grande ideal, foi a primeira pessoa que eu vi mexendo com pessoas portadoras de defeitos da fala, do ouvido.
A nossa entrada no ginásio também foi interessante porque os professores também eram bons, um nível de ensino bom. Dois professores me deixaram... Até hoje eu fico admirado. Um é o Renato Fleury, que era de Psicologia e Pedagogia. Era um escritor, jornalista, de cavanhaque; parecia um filósofo, muito interessante, muito bom. O José (Reginato?), professor de História, também era fantástico. Era um homem simpático, andava sempre bem vestido. Ele chegava para dar aulas e falava que não era desenhista, mas ele fazia os mapas do que ia explicar, por exemplo, o norte da África, Itália, a Grécia - até hoje eu lembro quando fala do Peloponeso. Falava do norte da África, Cartago, como se chama? As cruzadas, ele fazia uma de cada cor, de onde saía, onde chegava, por onde passava. Eu lembro até hoje disso, era fantástico.
A professora de português, a Dona Francisca, tinha um método também que eu acho uma coisa incrível. Naquela época, como é que ela fazia? A criança começa primeiro a falar, razão pela qual o professor deve estimular a fala da criança na pré-escola, no primeiro ano, no segundo. Fazê-lo falar porque se falar bem ele vai escrever bem, se falar errado ele vai escrever errado. Então o que a Dona Francisca falava? Chamava os alunos, já enumerava e todo final de aula um aluno ia à frente para falar sobre qualquer coisa, por exemplo, recitar uma poesia, falar sobre futebol, do que quisesse, mas tinha que ir lá na frente. Os demais alunos tomavam nota dos erros. Eu tinha um colega que era muito engraçado, ele chegou lá na frente muito sério e falou assim: “O pobre sapo.” E começou a declamar uma poesia: “Eu sou um pobre sapo que vive a vida inteira debaixo de uma pedra, no rio, na beira”, quando ele terminou a turma toda caiu na risada. Fez o rodízio na classe e quando chegou a vez dele ele foi, obediente, na frente: “Eu sou o pobre sapo.” Aí ninguém aguentou mais.
Essa professora fazia isso regularmente. Para insistir para que os alunos lessem, para que mexessem com poesia, lessem jornais… Impressionante, eu não sei [de] onde ela foi tirar essa ideia. Eu, por exemplo, li todos os livros dela. Eu li até “Os Sertões” de Euclides da Cunha.
Um professor de física era dentista e como não havia professor ele dava aula. Estudava, decorava e levava um caderninho com tudo o que ia falar na aula e deixava em cima da mesa. Um dia tocaram o telefone e ele foi atender, um colega da sala foi e rasgou a folha que ele estava lendo. O professor voltou muito fleumático, mas não falou sobre o assunto. Fechou, conversou sobre outro assunto, mas não deu mais aula. Outra vez, o professor de latim estava dando aula e um colega levou um pão de meio metro, jogou na parede. Aí chamou o diretor: “Foi o senhor?” Perguntando um por um para ver quem tinha atirado aquele pão. Um aluno perguntou: “Mas será que não jogaram pela janela?” Aí o Sr. Miguelzinho: “Está brincando! Esse pão não entra nem pela porta.” (risos)
Os alunos do normal… A nossa classe era no andar superior, então o professor entrava na classe e nós combinávamos com as crianças do curso primário: “Hoje nós vamos colocar a mão lá embaixo, é [pra] pular lá em cima. [Se] fizermos ‘assim’ (faz gesto) com a mão não é para parar, é para fazer mais barulho.”
Professor não podia dar aula, mas os professores até que eram bons, esforçados. O professor de ciências também ficou célebre em Sorocaba porque estava dando aula lendo um livro de história e descrevia uma cabana de índio. Ele leu tudo e depois embaixo: “Eis uma cabana de índio.” Aí a turma caiu na risada. Esse professor também foi vítima de uma coisa que ficou célebre na cidade. Iam inaugurar o Recreativo com um baile a rigor, ninguém entrava no clube a não ser a rigor mesmo. Ele era muito sociável e a mulher estava grávida, foi tirar o filho e acabou morrendo, foi um desastre. E tinha um camarada em Sorocaba muito engraçado porque ele foi entrar no clube com um terno comum e o porteiro falou assim: “O senhor não pode entrar assim, hoje é a rigor.” “Mas como? Entrou agora um fantasiado de gafanhoto.” De casaca. (risos)
O médico de Sorocaba, muito conhecido também, tomava conta da Santa Casa, mas era idealista. Formado na Itália, o médico, o engenheiro, naquela época todos eram formados fora do Brasil, não havia escolas no Brasil. A pessoa ia conversar com ele: “Doutor, eu preciso fazer uma operação, fulano de tal disse que eu preciso fazer uma operação, mas que vai cobrar tanto.” “Vai na Santa Casa para fazer de graça.” Não havia médico em Sorocaba que conseguia controlar ao entrar na Santa Casa porque ele era terrível. O tio de Antônio José também foi um médico célebre em Sorocaba, Dr. Alberto. Ele abriu um consultório do outro lado da ponte, perto da fábrica Santa Maria. Dava consulta, dava remédios, tinha um grande amor pelas pessoas. Foi eleito prefeito, deputado, por essa parte assistencial que ele fazia - não com esse objetivo, ele não tinha objetivo político, mas exercer a profissão de médico como médico mesmo. Depois entrou na política e foi eleito prefeito, eleito deputado pela assistência, pelo trabalho que ele fazia com as pessoas menos favorecidas.
Outra coisa interessante em Sorocaba: Sorocaba foi sede dos Jogos Abertos do Interior em 1937, então o Abreu Aranha fez uma revista dizendo tudo que a cidade tinha na indústria e no comércio. E ele convocava as senhoras da sociedade, até a sua madrinha Dirce, para recepcionar as pessoas que vinham para os jogos abertos. Não havia ginásio, então disputamos uma final no campo do Bandeirantes, de tijolos, só que depois de iniciado o jogo, na hora que Sorocaba estava igualando com o marcador com Uberlândia, caiu uma tempestade e suspenderam o jogo. E alegaram naquela ocasião que quem tinha provocado aquela chuva foi um fotógrafo, porque para tirar fotografia na época havia uma haste que chamavam de uns dez centímetros de largura e uns trinta de comprimento com um cabo. A pessoa colocava material inflamável em cima e punha fogo, quando dava aquela explosão tirava a fotografia. Deu uma explosão tão grande, virou aquele ferro, entortou, entupiu o campo de fumaça; choveu, queriam matar o sujeito. (risos)
Outra coisa interessante: tinha um camarada na cidade com os irmãos todos dançarinos. Os clubes eram chiquérrimos e muito sociáveis. Um deles, já com bastante idade. arranjou uma namorada e foi à casa da família pedir a mão da menina. Aí o pai pensou que fosse uma tia: “Ah, Fulano de tal está aqui para pegar a sua mão.” “Não é essa.” Ele pensou que fosse uma tia da mãe da pessoa. O homem não, porque ele já tinha idade. O outro então, aquele foi demais. Ele dançava muito na cidade, mas já tinha idade e tinha problemas, já tinha passado da idade dele de sexo. Dizem que ele enfiava um pãozinho no bolso para dançar e ficava encostando na turma, a turma rachava de dar risada, mal sabendo que ele arrumava namorada e andava com aquele pãozinho no bolso. (risos)
Um outro senhor, esse era senhor da sociedade, foi num prostíbulo, levou um tombo, quebrou o pé. Levaram para Santa Casa e disseram: “Foi na porta do clube.” (risos) E tinha um professor, um casal de professores que causava espécie ali perto da matriz. Ele arrumava empregadas e a empregada ganhava bem, mas mantinha relação com os filhos dele e todo [mundo] achava… Puxa, em pleno 34 e 35 faziam isso, veja bem. Agora uma coisa que me calou profundamente. Na mesa, em casa, numa refeição papai falou assim: “Vocês viram o que é educação? Viram o que é respeito? O filho do Fulano de tal engravidou a empregada que é mulata e o juiz dele fez ele casar com a menina.” Puxa! Aquilo me fez arrepiar o cabelo.
Quando nós viemos para São Paulo fomos morar na rua ao lado do Mappin. Na [Rua] Sete de Abril não, é posteriormente, antes ali, na Rua...
P/1 - Xavier de Toledo?
R - Não é.
P/1 - Conselheiro Crispiniano?
R - Conselheiro Crispiniano. Era uma pensão, pagava uns cem reais por mês; tinha café com leite, chuveiro, telefone, almoço, jantar e domingo era ajantarado. E nós morávamos ali, tínhamos que levantar cinco horas da manhã para pegarmos o bonde. Íamos à Água Branca porque a Escola de Educação Física não tinha sede e nem a USP tinha sede ainda, os cursos eram na Maria Antônia, a Faculdade São Francisco e a Educação Física tinha sido criada, então as aulas eram lá na Água Branca, aulas teóricas e as aulas práticas. Nós íamos lá no Clube Espéria, na Ponte Pequena ou então na sede do [Clube] Pinheiros, então tínhamos que levantar [às] cinco horas da manhã.
Para suportar a jornada eu fazia uma mistura de aveia, maisena, arrosina, fécula de batata, gema de ovo e mel. Eu fazia um mingau desses, eu e mais dois colegas tomávamos e íamos para a escola. Quando era onze horas da manhã a turma estava morta de fome e nós, tranquilamente, correndo porque aquilo era uma superalimentação.
P/1 - O senhor veio em que ano para São Paulo? Para estudar?
R - Eu vim para São Paulo em 40.
P/1 - Como era São Paulo nessa época?
R - São Paulo nessa época era muito interessante porque o centro da cidade [era] tranquilo. Nós morávamos na Conselheiro Crispiniano então à noite, às dez horas, parávamos de estudar, atravessávamos e íamos [para a Avenida] São João, num bar que existe até hoje, o Juca Pato, tomar… Comprávamos um pote de... Como que chama? Coalhada, enchíamos de açúcar com canela, comíamos aquilo e ficávamos satisfeitos. Cinemas bonitos, teatros, havia um... Mas tranquilo, havia um dancing ali perto da Avenida São João que a pessoa dançava e uma mulher ficava batendo, picotando o cartão para você dançar um pouco, ia pagando e você ficava dançando.
Ali no Largo do Paiçandu, Rua Aurora, Rua Timbira, aquela área toda era o basfond da cidade de São Paulo. Depois tiraram dali e passaram para [Rua] José Paulino, espalhou-se pela cidade, hoje não tem mais uma zona fixa para prostituição. Há trinta, vinte anos atrás fomos para a Europa e passamos na Holanda; as senhoras que estavam no ônibus ficaram admiradas de ver aquelas mulheres seminuas naquelas vitrines expostas na Holanda. Eu falei: “Puxa, isso aí tinha em São Paulo. Ali do lado da Igreja na Avenida São João tinha aquelas casas, aquelas portas altas e as mulheres ficavam ali, seminuas, andando.” Tinha mulheres de todo jeito, muitas pessoas da Europa, polonesas. Coisas que hoje, há vinte anos, quando eu fui para a Europa, causaram espécime nas mulheres, na década de 30 era o que havia em São Paulo, no centro de São Paulo. Havia tranquilidade.
Um detalhe: o papai fazia obrigatoriamente nós tomarmos no mês de junho, no mês de frio, óleo de fígado de bacalhau. Tinha que ser comprado na Farmácia Veado de Ouro, na Rua Direita, senão ele não queria.
Cinema, teatro, os clubes… Não havia ginásio em São Paulo para esportes. O único ginásio existente era a Atlética na Ponte Grande, feito de madeira, para duas, três mil pessoas. Quando os americanos vieram a São Paulo, a primeira vez que os americanos jogaram em São Paulo, os Globetrotters, foi no Atlética. E Sorocaba fez a preliminar. O técnico americano falava espanhol, então o [Horácio] Baby Barioni, que foi o criador dos Jogos Abertos do Interior, contava umas coisas engraçadas, por isso que muitas vezes não levava a sério e até hoje brincam ainda com ele. Ele era cronista e foi jogador de basquete; criou os Jogos Abertos do Interior em 1936 em Monte Alto, com três modalidades: basquete, pedestrianismo e ciclismo.
Hoje em dia ninguém fala na restauração dos Jogos Olímpicos da Grécia sem falar em Pierre de Coubertin, no entretanto a maioria dos cronistas não sabe que o Baby Barioni criou os Jogos Abertos do Interior em 36. E uma professora, Senhora Dô Lopez, José Lopez Romero, foi que criou os Jogos Regionais e a primeira vez que foi realizado no Vale do Paraíba. Ninguém lembra dessas coisas.
E o Baby Barioni, ele tinha coisas interessantíssimas que ele contava e dava risada. Ele chamava os americanos e combinavam com uma mulher de uma casa que tivesse mulheres bonitas e falava assim: “Vocês cobram vinte dólares dos americanos. Só que depois vocês me dão cinco.” (risos)
O Rio Tietê é uma coisa interessante, eu vi muita travessia em São Paulo a nado. A água do rio era clara, com velocidade. Ali perto do Espéria, do Tietê havia todos aqueles clubes… Eram náuticos, então havia um movimento muito grande de barcos. Na travessia de São Paulo o camarada saía na Penha e parava na Ponte Grande. A água era límpida, clara, era uma beleza.
P/1 - O senhor se lembra da inauguração do Pacaembu?
R - Lembro. O Pacaembu foi construído e eu desfilei na inauguração do Pacaembu com a delegação de Taubaté. Houve um campeonato colegial e cada professor preparava numa equipe de 25 alunos. Teve demonstração coletiva que nós fomos aprender em São Paulo para cada professor ensinar para os seus alunos. Cada equipe fazia uma demonstração também que era meio… Era difícil cada escola fazer uma diferente, mas havia jogo de basquete, de vôlei, de atletismo.
Os alunos ficavam alojados no próprio Pacaembu. E o jogo inaugural foi um jogo do Corínthians com a Portuguesa de Desportos. Como os professores ficavam com os alunos, cada um ficava responsável pelos seus alunos, mas era difícil isso. Em Taubaté tinha um camarada com um cabelo muito bonito, alto, para cima. Eu não sei quem de manhã levantou e cortou o cabelo dele todo, tirou o topete dele. Quando ele passou a mão e não encontrou o cabelo, ele queria matar todo mundo. (risos) Um outro aluno, esse muito engraçado, um camarada, um aluno de Campinas, (Vedovelli?)... No Pacaembu tem a estátua de Davi natural, só com uma folhinha de uva, então os alunos de Campinas ficaram embaixo do Davi, esse camarada subiu e segurava, punha a mão por baixo do Davi e segurava na genitália do Davi e a turma cantava: “Quanta terra para mijar, ora pro nobis.” (risos) Pegaram o camarada e mandaram embora à força para Campinas. Esse mesmo rapaz foi fazer o Exército em Agulhas Negras e acabou morrendo lá num desastre.
Esses campeonatos colegiais foram fantásticos, foi de um efeito, uma coisa louca a formação de atletas. Hoje há ainda no estado vários campeonatos regionais de esporte, fazem campeonato de colegiais e isso é importantíssimo para a formação de novos atletas, é muito bom.
P/1 - Na época em que o senhor era estudante de educação física o senhor participava ativamente de qual esporte? Basquete?
R - Quando eu entrei para a Escola de Educação Física, além da parte teórica havia uma parte prática; você corria, nadava, para poder ingressar na escola. Eu já era, já tinha sido campeão, já tinha sido vice-campeão dos Jogos Abertos de 36, 37 e 38 em Sorocaba. E havia sido campeão no interior em 1940, foi o primeiro título que Sorocaba ganhou de basquete do interior patrocinado pela Federação Paulista. Quando eu entrei na escola, além de jogar basquete, correr e jogar futebol, eu participava de todos as competições. Eu fui eleito presidente do Centro Acadêmico Rui Barbosa da escola. Participei de duas olimpíadas universitárias, fui campeão brasileiro universitário de lance livre e vice-campeão brasileiro de basquete. Eu representava a escola junto à Federação Paulista de Esporte. Essa olimpíada eu participei em São Paulo e depois na outra olimpíada eu participei no Rio de Janeiro também, uma equipe enorme de São Paulo.
Os estudantes faziam cada brincadeira terrível, chegaram a jogar uma cama, um colchão lá do quinto andar na rua, coisas que podiam ter efeitos desastrosos. Em São Paulo, uma coisa que me chamava a atenção e que eu dava muita risada era um desfile da Faculdade de Direito que eles faziam anualmente e ainda fazem até hoje, [a] peruada. Era muito engraçado. As críticas que eles faziam: Prestes Maia estava alargando as avenidas, então eles, em cima de um caminhão, fizeram uma miniatura do Martinelli e uma fecha assim: “Seu dia chegará!” Uma vez, os estudantes faziam muita algazarra ali na praça ao lado da faculdade, correria - briga não, coisas políticas. Então um homem subindo a Rua Direita [viu] aquela correria: “São os estudantes?” “Não, é um elefante.” De fato, era um elefante. O elefante ficou bravo porque soltaram uma bomba perto dele e se desesperou e quebrou vidro de loja. Foi um desespero tremendo, bem na praça em frente à Faculdade de Direito. “São os estudantes?” “Não, não é um elefante.” (risos)
Havia uma competição engraçadíssima, era da Faculdade Politécnica Paulista. Os jogos [eram] dentro do Pacaembu, do ginásio. Chegaram a levar corvo e soltavam o corvo dentro do ginásio. Era uma algazarra até pegar o corvo e tirar do ginásio; o jogo era suspenso. Isso já não existe mais.
P/1 - E o senhor se formou quando na faculdade?
R - Eu saí em 41. Um fato interessante é o seguinte: quando saí da faculdade eu já tinha um lugar para trabalhar em Uberlândia, em Minas e outro em Ponta Grossa porque eu fui lá jogar. O camarada [disse]: “Você está fazendo faculdade? [Quando estiver se] Formando, se você quiser vir para cá, não tem problema nenhum.” Eu estava certo em ir para uma cidade dessa porque eu queria trabalhar. Mas eu nem tinha recebido o diploma [e] em dezembro um professor de Taubaté chamado Aluísio Queiróz Telles, que era um velocista [que] veio para São Paulo para trabalhar na USP e [era] lá de Taubaté pediu: “Vê se vocês arrumam um esportista praticante para vir no seu lugar.” Aí me nomearam em dezembro; eu nem tinha recebido o diploma ainda e já tinha sido nomeado. Eu fiquei no auge, pensei que fosse receber dezembro ou então janeiro por trabalhar. Havia aquelas bancas examinadoras: antigamente você fazia as provas, se você não atingia um determinado limite ia para exame oral. Exame oral tinha uma banca, geralmente o presidente era professor de Educação Física, Trabalhos Manuais, Música, Economia e os outros dois professores da matéria, História. Então você podia dar nota, o professor presidente dava a nota, somavam-se as duas e dava a média. Ele podia salvar o aluno, podia dar a nota que ele quisesse, ele tinha liberdade para isso. Eu pensei que fosse trabalhar e ganhar, mas o diretor mandou que eu voltasse; me deu a posse, mas só me deu o exercício em fevereiro. Eu fiquei decepcionado.
P/1 - Mas e aí, como foi lá em Taubaté?
R - Eu cheguei em Taubaté e os alunos faziam ginástica no Esporte Clube Taubaté. Fui ao clube Taubaté Country Club e falei com a diretoria, falei: “Olha, eu jogo basquete.“ Eles já me conheciam. “Eu me prontifico sem ganhar nada [a] treinar as equipes masculinas, femininas, trabalhar de graça.” Eles: “Você caiu do céu.” E sem ter o dinheiro porque o ordenado do professor era tão grande na ocasião que você podia fazer isso, [se] dar ao luxo de trabalhar de graça.
Então comecei a trabalhar: treinava infantil, juvenil, as meninas, treinava a turma masculina. Fomos vice-campeões em Sorocaba em 43 numa final contra Sorocaba. Foi terrível jogar contra a minha terra, fazer o quê? Mas no ano seguinte, em 44, Taubaté pleiteou os jogos, organizou os jogos e nós ganhamos 44 em Taubaté, 45 no Rio e 46 em Santos. Vários alunos que começaram comigo na quinta série entraram, dois anos depois já estavam dentro da equipe principal do clube. Em Taubaté jogávamos praticamente todo sábado, em clubes de São Paulo, do interior, de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro. Até o Botafogo treinado pelo Canela, hexacampeão carioca, foi jogar em Taubaté. No início do jogo os jogadores quiseram nos ofender chamando de caipiras, no fim acabamos ganhando o jogo deles. Eles ficaram doidos porque foi uma surpresa para eles, hexacampeão carioca jogar no interior e perder. O Canela ficou doido, era técnico da seleção brasileira, foi campeão do mundo.
Trouxemos uma turma uma vez do Rio de Janeiro, do Tijuca Tênis Clube, e os rapazes, o dono da Fazenda Maria Estela, que era dona da fábrica de juta, jogava também. Ele levou a equipe do Tijuca e de Taubaté para fazer um churrasco na Fazenda Maria Estela, que atualmente pertence ao município de Tremembé. Os rapazes nunca tinham andado a cavalo: “Vamos andar a cavalo.” Saíram a cavalo andando e fazia uma curva para voltar, só que quando o cavalo ia vindo, eles pensavam que o cavalo vinha para cá, o cavalo entrava à esquerda e todo mundo caía.
Outra coisa que hoje eu penso: o que será que [se] fazia com aquilo? Os frades trapistas compraram um terreno e fizeram um mosteiro dos frades trapistas em Tremembé. Havia uma grande plantação de papoula, a flor da papoula era uma coisinha pretinha que dá o ópio. Lá tiravam a fibra dos pés da papoula, que era industrializada na Juta, mas ninguém pensava em maldade nenhuma com a flor da papoula, com o ópio. Era uma fazenda fantástica com a igreja, uma coisa linda. Como essa ordem não prosperou, voltou para a França e vendeu para a Juta. A Juta fez campo de aviação, tinha campo de futebol, campo de basquete, conservou aqueles corredores onde os frades meditavam, a capela.
Taubaté tinha uma rua famosa, a Rua das Palmeiras, [com] palmeiras seculares. Tinha uma igreja das Irmãs da Adoração Perpétua; ninguém via o rosto das irmãs, elas estavam sempre de costas, com a luz acesa, de porta aberta e sempre rezando. Me convidaram para ir para Taubaté, uma psicóloga que mora em São Paulo e uns professores da escola, para nós irmos a Pindamonhangaba ver a materialização do Padre Zabeu, o ectoplasma; dizem que era visto, todos eles ficavam admirados da materialização do homem, ficava um ectoplasma em volta da pessoa, branco. Eu nunca tive curiosidade de ir.
Participei, colaborei para a conclusão da Igreja Santa Terezinha e o inspetor da escola era um padre, então ele falou: “Professor Edésio, por que o senhor não compra uma casa na Companhia Predial Taubaté? Custa quarenta reais. Você é solteiro, você aluga a casa e o aluguel paga.” Mas eu não tinha muito interesse nisso, não comprei. Eu mandava colaboração pros pais e não quis.
Taubaté tem um clube fantástico chamado Taubaté Country Clube, do qual sou sócio benemérito e recebi um cronômetro de ouro, uma medalha de ouro deles pelo tricampeonato. Respirava-se basquete na cidade; como eu não recebia nada do clube, o Artur Ogrado, dono da Juta, para ser agradável me ofereceu dar aulas num parque infantil. Eu fui ao parque infantil, fiz um levantamento das crianças e ele falou: “Você me dá a relação do material que precisa.” Eu falei: “A primeira coisa que eu quero é um saco de puxa e uma caixa de sabão Minerva para lavar os meus alunos.” Então entrava com os alunos no toalete, punha os alunos lá dentro, debaixo do chuveiro, metia bucha e sabão Minerva e avisava: “Se aparecer sujo aqui outra vez, vou passar bucha nos olhos.” Nunca mais, ficavam limpos, mandava cortar o cabelo.
Uma coisa interessante que eu havia estudado na Escola de Educação Física [é que] a inteligência está inteiramente relacionada com a alimentação, desde a vida fetal. Se a mãe é subnutrida o nível intelectual da pessoa é menor e esse nível influi na prática esportiva porque o esporte… Você vê a quantidade de gente praticando esporte, então você percebe que o camarada tem cabeça, tem inteligência para fazer as coisas. No basquete, por exemplo, tem coisas pré-traçadas, você tem que traçar, mostrar na lousa aquilo que você vai fazer, treinar na quadra marcação homem a homem, marcação por zona, campo inteiro, meio campo, fixo embaixo. Tudo é traçado, inclusive as jogadas que você vai fazer contra o adversário, o contra-ataque, como você vai fazer uma coisa e outra, o corta-luz. Eu tive oportunidade de ver isso com essas crianças dessa vila operária que eu trabalhava, eles não tinham cabeça para fazer nada! Futebol eles jogam, onze contra onze, passavam, mas basquete, por exemplo, tinham uma dificuldade tremenda; eu levava alunos bons da escola para treinar junto com eles, pra ver se eles conseguiam aprender.
Todo sábado as crianças cortavam o cabelo, todos eles iguais, limpos, direitinho. Um ônibus ia à colônia, pegava as crianças e levava ao Country Clube pra ver eu jogar - eu não, o time jogar. Quando as crianças entravam, eles falavam: “Chegou a torcida organizada do Edésio.” Era muito engraçado, cinquenta meninos e meninas. Depois o ônibus levava pra casa, mas mesmo assim não consegui formar alunos. Nesse trabalho eu fazia uma mistura de aveia, maisena, arrozina, fécula de batata, cálcio assimilado e dava para os meninos. Eles adoravam, não queriam saber de comida, só queriam saber disso. E tinha um menininho lá com o rosto todo… Magérrimo, falaram que era tuberculoso, não era não. Eu falei com a mãe: “Você vem aqui, traz esse menininho às oito, às dez, meio-dia, às quatorze horas, às dezesseis, às dezoito, de duas em duas horas a senhora traz o menino aqui para comer.” Depois de seis meses ele estava integrado no meio da turma, era fome. Até hoje essa pré-escola, esse jardim de infância tem o meu nome.
P/1 - Sr. Edésio, o senhor dava aula em escola pública em Taubaté?
R - Fui nomeado professor do Instituto de Educação Monteiro Lobato. As aulas eram dadas fora da escola e a parte esportiva [era] eu quem treinava, masculino e feminino. Disputamos o campeonato colegial em São Paulo, fomos vice-campeões de basquete, vice-campeões em voleibol, bons resultados em atletismo. E eu gostava de... Quando eu dava aula, de vez em quando eu levava todos os alunos num período, levava num campo de futebol. Então eu dava todos os individuais dos esportes, quer dizer, basquete, individual de basquete, giro, progressão, voleibol, corrida, salto, arremesso. Punha alguns alunos na frente dos duzentos e tantos alunos, fazia todos os individuais, depois pegava um aluno que já jogava basquete e ficava com os meninos na quadra de basquete, voleibol, corrida, salto, lançamento.
Era interessantíssimo porque os alunos que treinavam no Country Clube - o clube fez um ginásio - aqueles que se evidenciavam… Na minha opinião professor não cria ninguém, o aluno recebe, é uma coisa inata, como a pessoa recebe a capacidade para ser músico, para ser pintor, para ser jornalista, médico. Ele já nasce capacitado a ser aquilo, se você não nasce para aquilo ninguém vai pôr isso em você, se você não desenvolve isso vai morrer. Então o que é que acontece? Eu treinei supremo alguns milhares de alunos nesse período em que estive lá. Alguns progrediram, passaram a despontar. Quem progredia era do infantil, [do] juvenil passava para o time principal; o Country Clube, que era um clube finíssimo, dava uma credencial para ele frequentar a sede, então era um estímulo para a turma crescer. Eu treinava, dava os fundamentos de todos os esportes; aqueles que tinham condições desenvolviam.
Eu levei, por exemplo, um nadador fantástico, um campeão, Salvador Garcia, de Sorocaba, para mostrar para os alunos detalhes da natação. Consegui levar para Taubaté o Bento de Assis, que era um negro, o pai era professor da Faculdade de Direito e ele era velocista. Corria cem metros, duzentos metros, correu 4 x 100 na Olimpíada. Consegui levá-lo para Taubaté para participar com junto com os estudantes e as outras pessoas da cidade, então ele correu, lançou, pulou para mostrar, para servir de exemplo, de estilo aos alunos.
P/1 - Depois de Taubaté o senhor foi para São José dos Campos?
R - Eu estava muito bem em Taubaté e nunca tinha cogitado de ser diretor de escola. Eu só fui convidado para treinar as equipes de São José dos Campos. E eu manifestei desejo também de ir porque as moças em São José dos Campos tinham boa estatura, faltava só treinar.
Eu fazia um sacrifício tremendo. Eles iam me pagar, eu pegava um trem leiteiro, que era um trem que existia na Central que passava na cidade e recolhia os latões. Era mal iluminado, a passagem barata, então ia até São José, pegava uma condução, subia. Na época não tinha um campo direito, então no quintal da Associação Esportiva São José, que tem uma praça de esporte… Hoje eles têm piscina, clube de campo e tem a sede ainda. mas no quintal da sede, com lâmpadas penduradas lateralmente na altura do muro, eu chegava, dava o treinamento. Depois pegava um carro, descia na estação Central e pegava o noturno, que ia para o Rio às onze horas da noite. Pegava o noturno e descia em Taubaté. Eu fiz isso durante um certo tempo.
Nesse ínterim um dia apareceu minha nomeação para diretor do ginásio estadual de Jacareí. Eu fiquei meio preocupado. Fui saber o que houve, mesmo na escola ficaram admirados: “Mas você nunca falou nada.” Aí eu vim a São Paulo para tomar posse, para saber. Quando eu cheguei no Departamento de Educação o professor Andrônico de Melo, que era o chefe do serviço, falou assim: “Professor, eu prefiro ter como diretor de escolas professores de educação física, talvez pelo relacionamento, pela maneira de conversar com a turma.” Ele tinha preferência. “Eu posso nomear você para uma outra cidade, mas se eu fosse não aceitaria Jacareí porque é uma questão política. Era ginásio, criaram uma escola normal, puseram todos os professores, todos os funcionários e não puseram o cargo de diretor. Aí o secretário veio assinar e disse: “Essa escola não tem diretor?” Eu disse: “Não, tinha um professor respondendo pelo expediente, não tem.” Aí, professor Edésio, fizeram a sua nomeação.”
Eu não aceitei. Quando surgiu, ele falou: “São José dos Campos interessa?” “Interessa.” Fui para São José dos Campos. Quando eu cheguei em São José dos Campos eu lia o regimento interno das escolas. Como professor eu lia, mas nunca vi no ginásio de Sorocaba, ou mesmo na Faculdade de Educação Física, em Taubaté… Eu vi pouca atividade cultural para os alunos, pouca coisa. Eu vi uma conferência do vice-governador do estado na minha escola, na USP, sem fim algum. Isso não é atividade cultural, então quando assumi a direção eu falei: “Agora eu vou botar em prática aquilo que eu quero. A escola vai ser um centro de irradiação cultural.” Eu não falei isso pra ninguém porque a turma da gente que tem cidade estava duvidando. Todo mundo que me conhecia de Cruzeiro, Mogi, mas como jogador, praticando esportes. Eu levava equipe infantil, juvenil, nós éramos campeões, todo mundo conhecia.
Foi cogitado até meu nome para deputado estadual quando fizeram a redemocratização do país. Eu estava jogando no campo quando chegaram: “Olha, você foi escolhido pelo diretório daqui.” Eu falei: “Não, pelo amor de Deus!” Todos os diretórios do Vale do Paraíba me apoiavam, mas eu não quis, não estava preparado. Eu não tinha estrutura para aquilo, mas o dono da fábrica de juta, o Artur Odrago, falava: “Traga uma fotografia sua aqui, os dados biográficos e o resto deixa comigo.” Eu não aceitei.
Na escola eu peguei o regimento interno e lá tinha um negocinho assim: cada escola deve ter um órgão de cooperação escolar que deve reunir alunos, professores e pais de alunos. Desse artigo eu e dois professores fizemos um regimentozinho simples: o que era o órgão de cooperação escolar, qual era a finalidade, que era colaborar com o estado para conservar o prédio, dar assistência a aluno que precisasse de material e manter intercâmbio cultural. Aí nos unimos, fizemos uma assembléia com os pais, dizendo o que nós tínhamos que fazer e os pais apoiaram imediatamente.
Então começou a funcionar assim, com um espanto porque na década de 40 um professor, um diretor aqui de São Paulo, não sei como ele quis fazer funcionar o órgão e a Secretaria disse pra ele que não podia fazer o negócio do jeito que queria. Ele teimou e foi punido porque eles queriam receber a mensalidade do órgão na matrícula, então o aluno ficava meio constrangido. Eu nunca fiz isso, eu deixava fazer matrícula todo mundo, posteriormente reunia os pais, conversava e entregava um talão de depósito do banco do estado na Caixa Econômica Estadual. Quem quisesse colaborar colaborava.
Imediatamente eu procurei granjear a simpatia dos professores, eu já era conhecido praticamente de todos e com a colaboração da prefeitura fizemos imediatamente uma quadra de basquete no quintal da escola: isolada, iluminada, com uma arquibancadazinha. Eu trazia a sociedade para jogar na escola. O senhor Henrique Mudat era representante da Ford, e conversando com ele [me] perguntou sobre a biblioteca: “Vou precisar de uma sala.” Ele mandou construir uma sala para a biblioteca. Eu fiz salas ambientes para trabalhos manuais masculino e feminino, laboratório, melhorei o laboratório. Eu tinha um bom relacionamento na Secretaria, então o Departamento de Educação dava um vale. Eu ia numa casa comercial que existe até hoje, Franz Sturm, comprar material para o laboratório, só que muitas vezes ele dava o vale e [quando] você chegava lá não tinha material. Você tinha que levar outras coisas que não tinham tanta importância, mas ia mobilizando a escola.
Concomitantemente, independente do centro de cultura que tem na cidade que eu não conhecia, não sabia o que fazia, eu comecei a levar para escola intelectuais. Levei de São Paulo o Laerte Ramos de Carvalho, que era chefe do Departamento de Educação, a Sra. Dona Gilda, a senhora dele; Quirino de Andrade, que é da parte de administração; Azis Simão, que é um professor da USP, cego; Dona Virgínia Bicudo, que era uma psicóloga analista; a Dona Noemi Silveira Rudolfer, que na ocasião era uma das maiores autoridades em psicologia no estado de São Paulo; levei o Willy Aureli, um sertanista. Na ocasião havia caído um avião possante no Amazonas. O Adhemar de Barros era interventor e ele deu entrevista falando que ia descer, então esse sertanista falou que era absurdo, era impossível esse pessoal descer porque ele conhecia toda aquela região e mostrou que seria uma temeridade fazer isso. Quando esse Willy Aureli deu o currículo dele, ele tinha descoberto rios, descoberto um monte de coisas. O professor de português falou assim: “Poxa, esse camarada é mais importante do que Cabral. Cabral descobriu o Brasil e esse camarada descobriu tudo isso.” Ah, meu Deus do Céu!
Eu era solteiro na escola, então na hora do café os professores solteiros iam na diretoria conversar comigo. Muitos falavam: “Eu simpatizo com fulana de tal”, o outro [dizia]: “Eu simpatizo com fulana, mas ela na sala dos professores fala que não sabe fazer nem café, não é possível!”
Um professor da cidade, Ferri, doou um terreno ao lado da estrada de ferro antiga de São José dos Campos, onde estava se formando uma favela. Ele deu um terreno para se construir um prédio novo e concomitantemente deu um lote para cada professor. Eu não quis aceitar o meu porque achei que a construção da escola num terreno doado não estava agradando a sociedade. Era meio longe, havia esse problema antigo da estrada e podia até ter uma conotação de que estava comprando, inclusive a minha palavra, e eu não quis. Mas os professores que receberam os lotes… Eram tão desvalorizados que eles entravam na sala dos professores e vendiam os lotes por cem reais: “Você quer ficar com o meu?” Tudo junto, se a pessoa tivesse dinheiro comprava todos.
A cidade de São José dos Campos era alegre, tinha dois clubes interessantes: a Associação Esportiva que era do futebol e Esporte Clube de Futebol. Clubes bem organizados, fortes, levaram até de Sorocaba, diversos jogadores de nome de Sorocaba: o Bingo, o Caveira, o Caveirinha, Nilton Saci, era um grupo fantástico. Tinha bailes toda a semana e na Rua Quinze [de Novembro] era o footing, subida e descida no interior. Quando havia praças, geralmente as mulheres andavam à direita e os homens à esquerda. Em Sorocaba era assim: a turma andava na praça central no lado externo da praça porque o lado externo da praça era da sociedade e o lado interno da praça, na calçada, era a turma mais simples. Em São José dos Campos era a Rua Quinze, as idas e vindas. A Associação fazia baile, o Esporte fazia baile, a turma frequentava os dois.
Um delegado de polícia muito conhecido, o Manecão, sem dentes, barbudo, dente quebrado, chapéu de aba larga, era diretor do clube. Ele combinava com os jogadores: quando falar para vocês ‘calma minha gente, calma’ e levantar a aba do chapéu era para eles chutarem até a alma do adversário. (risos) O diretor visitante ao lado, ele levantava: “Calma, minha gente, calma”, a turma sabia que era para meter o pau. Ai, meu Deus do céu.
Tinha uns tipos populares engraçadíssimos. Tinha um camarada chamado Fausto Pinotti… Nós todos da cidade descíamos para Caraguatatuba para praia, para passear. Uma vez nós estávamos lá na praia - eles morriam de dar risada porque eu levava meu calção no bolso, na década de 40. Uma sunguinha que a sua tia fazia, a Dirce fazia para mim, que era toda justa. Eu levava aquilo no bolso, eles morriam de dar risada. Um dia nós estávamos lá na praia e o Fausto Pinotti arranjou uma menina tão bonita que eu não sei como ela foi se enfeitar com ele, porque ele não era um sujeito bonito, dançava bem mas era simplesinho. Ela se enfeitiçou por ele. E ele lá na praia, brincando com a menina e todos nós ali invejando aquela satisfação dele. De repente ele saiu correndo e todo mundo ficou admirado: “O que houve?” e a menina admirada: “O que houve com o Fausto?” Ele sumiu. Nós não achamos o Fausto. No dia seguinte ele voltou. Quando ele estava brincando na praia caiu a dentadura dele, então ele saiu correndo, pegou ônibus, foi para São José, fez outra dentadura e voltou no dia seguinte. (risos) A turma rachava de dar risada: “Puxa, essa foi demais!” E um outro camarada muito engraçado lá também, o Zebu, que era inspetor de alunos. Eu tinha três inspetores de alunos gagos na escola. Um dia eles levaram na minha sala para eu conversar com um aluno, filho do Trunkel, que era gago também. Eu disse e botei a mão na cabeça: “Pelo amor de Deus, não é possível, quatro gagos. Peraí, vamos devagar, ficam vocês aqui fora.” Eu falei com um, o Moacir, depois falei com outro, falei com três inspetores de alunos gagos para depois falar com o aluno gago também para não haver… Porque não ia resolver no meio de quatro gagos.
Uma outra coisa que me chocou profundamente, não sei como eu pude resolver esse problema: tinha um aluno na escola chamado João, muito engraçado, filho de um senhor, de um fazendeiro, mas muito simples, sem instrução. Ele levava cobra na escola, segurava cobra, levava sapo para assustar alunas, era muito engraçado, muito alegre. No ano seguinte ele apareceu muito irascível, logo no primeiro mês de aula começou a brigar com professor, com aluno. Eu o chamei na diretoria. Eu era solteiro, tinha pouca idade: “João, vamos conversar. O que é que está acontecendo com você? Conversa comigo aqui, vamos ver o que eu posso resolver. Como é que vai seu pai, sua mãe?” Ele começou a chorar e disse assim: “Professor, eu peguei a minha mãe com outro homem.” Aí eu falei: “João, nós não podemos julgar nossos pais.” Eu não sei como eu achei essa frase na minha boca. “Nós não podemos julgar nossos pais. Se você tomar qualquer atitude vai ser uma desgraça. Vamos fazer o seguinte: vamos chamar o Padre Afortunato que é professor de francês. Vou contar para ele, ele vai chamar a sua mãe, conversar com ela, ele vai resolver o assunto. Não se envolva nisso que vai dar uma dor de cabeça grande.” E assim foi feito e foi resolvido. Mas o pai desse menino era um senhor simples e quando eu chamava na escola por qualquer coisa ele ia de bota, com a bota que ele saía da mangueira, no meio do esterco de animal, ele ia conversar comigo, era simples. E a mãe dele, quando chamei fiquei admirado. Meu Deus do céu, como é que pode acontecer uma coisa dessas? Essa mulher não passava nessa porta, tinha um metro de largura, baixa, em todo caso o amor é cego.
Em São José dos Campos aconteceu outra coisa interessante: fizemos uma vez uma palestra sobre os Lusíadas. O prefeito era um advogado e ele foi à escola, no salão nobre, para fazer a palestra, então ele foi com uma bota bonita. Aí o professor de português falou assim: “Esse aí veio falar sobre os Lusíadas, ele veio à caráter, de bota.”
Uma professora da escola, ótima, fez umas cinco, seis provas de segunda época, pegou as provas e veio para São Paulo. Passados uns dois dias ela foi para São José: “Professor, o senhor não sabe o que aconteceu! Eu perdi as provas!” Naquela época a responsabilidade dos professores, a postura do professor era uma coisa fantástica. Aquilo ia ter uma repercussão tremenda na escola. Aí eu falei: “Professora, quer resolver o assunto? Faça assim, vai na secretaria, pega a nota que cada aluno precisava, preencha a papeleta com a nota que cada um precisava, assina e deixa na minha mão e até logo. É a melhor forma. Se a senhora for chamar os alunos para fazer outra prova é uma desmoralização.” Assim foi feito e foi resolvido.
Um outro professor da escola também, seriíssimo, corrigiu uma prova de exame de admissão e não somou a parte final. Depois de passada a nota ele achava que seria um desdobro, mas como nós tínhamos que fazer exame de segunda época em fevereiro não teve problema, o aluno fez segunda época e passou.
Eu tinha um professor humilde, mas muito culto, especialista em linguística. Eu estava na diretoria com ele, o prefeito telefonou: “Professor, meus dois filhos gêmeos vão fazer exame de admissão. Vê o que o senhor pode fazer.” Eu falei: “Sr. Velloso, eles estão se preparando?” ”Estão.” “Então pode ficar tranquilo, justiça vai ser feita.” Qual não foi a nossa surpresa quando o professor corrigiu as provas e falou: “Professor, os dois foram reprovados. E agora? O senhor não falou para ele que justiça era feita?” Ai, meu Deus do céu, o senhor ficou tão temeroso. Aí se prepararam os alunos, fizeram exame e entraram.
Um caso interessante para mostrar como a comunidade pode fazer, e a maioria das escolas durante anos espera que o estado faça, a prefeitura faça, ninguém quer fazer nada. Passaram no exame de admissão um número de alunos relativamente grande para atender todos porque era a única escola do lugar; não havia ginásio particular, era [preciso] construir duas salas de aula. Então vamos resolver, vamos fazer a sala. Eu, o juiz de direito, o Domingos Macedo de Custódio, uma comissão. O Trunkel deu o material, a prefeitura a mão-de-obra; como ali tem muito pecuarista, [de] São José dos Campos até Monteiro Lobato é só pecuarista, eu e o Custódio pegamos um automóvel e fomos em todas as fazendas. Você entrava, conversava com o fazendeiro, ele colocava assim na lista: três reses, duas reses; até Monteiro Lobato recolhemos não sei quantos bezerros, fizemos um leilão e concluímos as salas. Quando em janeiro e fevereiro as classes estavam prontas, demos os nomes das salas do juiz de direito da comarca que era o presidente da comissão, Dr. Ricardo Couto. Mandei fazer um placa de metal em São Paulo, aí precisava... Eu jogava, treinava todo sábado, ficava muito corrido; o aeroclube colocou um avião teco-teco, eu subi - pelo amor de Deus, o instrumento de bordo era a estrada de rodagem, a [via] Dutra que é uma reta. O aviãozinho vinha em cima daquilo e desceu no Campo de Marte. Aí peguei a placa, desci em São José dos Campos na hora. Que barbaridade, o homem não tinha nenhum instrumento, o único instrumento era a reta da Central do Brasil. E ficou inaugurado.
Estavam construindo a Central do Brasil - a Central não, a retificação da Central, que era para os trens saírem de São Paulo e chegarem em São José dos Campos. Aquelas caçambinhas que se usavam antigamente, cinquenta caçambas - era uma carrocinha pequeninha com um burrinho, jogava terra em cima e o burrinho ficava lá embaixo, pegava e jogava, aquilo era uma coisa. Fizeram uma concorrência, parece que internacional, e o pior [é] que o terreno ali no Vale do Paraíba é um terreno turfoso, ele afunda quando põe peso em cima, então colocaram estacas de eucalipto de trinta metros. Calculem: a estaca entrava no chão, batiam até encontrar resistência para em cima disso ser feito o aterro. Vieram umas máquinas fantásticas: (tornaprumo?), escavadeiras, caminhões, então acabaram com aqueles muros, aquela coisa de antanho e fizeram o serviço imediatamente. Na Dutra a mesma coisa: era terra, então você saía de Taubaté e vinha para São Paulo de [ônibus da empresa] Pássaro Marron para uma reunião na Secretaria e tinha que trazer numa malinha uma camisa limpa; chegava em São Paulo, ficava no hotel, lavava o rosto, tomava banho e trocava a camisa para ir para a reunião porque senão você chegava sujo de terra. E um trecho da estrada ali perto de São José e Jacareí tinha umas vertentes de água, então quando chovia tinha um trator lá para puxar automóvel para cima e para baixo. Era incrível! Depois da Dutra não, foi asfaltada e melhorou profundamente, mas antes...
Se Monteiro Lobato fosse vivo, acho que não diria que as cidades do Vale do Paraíba são cidades mortas como ele disse no livro. Na ocasião que escreveu esse livro talvez não houvesse conhecimento sobre a tecnologia moderna de produção agrícola, de produção de alimentos porque hoje já se sabe que a terra é somente um suporte. Israel está dando um exemplo porque eles produzem laranjas e vendem pra Europa; produzem tudo, eles tabulam o gado, fazem tudo no deserto. E o Vale do Paraíba é a mesma coisa. Então quando deu o ciclo do café, entrou a pecuária porque não havia mais mão-de-obra para manter os cafezais e não havia adubação então os cafezais envelheceram e não produziam. Entrou a pecuária porque com a pecuária você tem menor número de pessoas, um homem só toma conta de dezenas, centenas de animais. Mas as cidades não eram cidades mortas, não.
De fato, de Mogi até Cruzeiro, as cidades velhas, o parque central, geralmente são cidades que cresceram ao léu, as periferias bonitas, com exceção de São José dos Campos que esse camarada, o Coronel João Cursino, pré-traçou a cidade que é bonita, ruas largas traçadas que ele fez porque era sem solução nenhuma. O Washington Luís, consta que ele foi visitar São José e da janela ele falou: “Ô, coronel, a atmosfera está carregada. Vai chover.” Aí o coronel disse: “O senhor precisa ver ano passado cada atmosferão que deu.” Ele estava se referindo a um pé de jaca na frente. (risos) Outra vez o senhor coronel ia andando na rua e acho que um animal tinha feito um volume enorme de dejetos na calçada, ele falou assim: “Puxa, isso aqui parece um parto.”
P/1 - E o senhor namorava lá alguém? Tinha algumas namoradinhas?
R - Mesmo em Taubaté, em São José eu procurava ficar equidistante de todo mundo. Eu dançava com todo mundo. Chamei a fulana, eu não queria saber, ela pensava que fosse noivo em Sorocaba, eu não tinha nada. Eu queria ficar equidistante porque eu treinava as meninas, jogava com as meninas. Agora em São José dos Campos, depois que eu fiquei lá, de 47 até... Em 50 eu saí; uns três anos antes eu achei interessante uma menina que jogava basquete, que era minha aluna na escola, a minha esposa Arilce. Ela namorava um rapaz conhecido, mas eu conversei com ela, deu certo. Fui e casei com ela em Taquaritinga. Deu tudo bem: três filhos, nove netos, está tudo em ordem.
Mas um outro fato interessante ali na... Eu trabalhava em São José dos Campos como diretor, o segundo RI de Caçapava. Os oficiais mandavam um jipe me buscar para treinar os oficiais que iam disputar o campeonato das Forças Armadas, então eu ia lá treinar os oficiais e voltava. E um fato engraçado: nós fomos inaugurar um ginásio de esporte na Escola Militar de Agulhas Negras. Passados alguns anos, quem estava lá na escola como aluno? Era o Coronel Erasmo Dias, que foi secretário de segurança de São Paulo. Ele foi meu professor em Santos, a mulher foi minha professora e as cinco filhas dele foram minhas alunas. Eu o conheci lá como aluno da escola de cadetes quando fomos inaugurar o ginásio.
[Em] São José dos Campos, nesse fim da década de 40, a prefeitura doou um terreno para a Aeronáutica e a Aeronáutica comprou um outro pedaço da chácara dos alemães. A construção do Centro Técnico da Aeronáutica não foi construído ao léu; aquilo foi construído porque a rarefação do ar naquela área, o clima e as condições meteorológicas são ideais, então fizeram o Centro Técnico exatamente por isso, é um projeto do Niemeyer. Os professores tinham tempo integral, moravam nos apartamentos, atendiam os alunos, os alunos recebiam aulas antecipadas; se tinham dúvidas batiam na porta, o professor atendia. Tinha vários professores de inglês para dar aula para os alunos. Tinha vários professores de Física e Matemática; uns pesquisavam, outros davam aula, faziam rodízio. O reitor era americano, usava aquela beca.
Quando o CTA foi montado tinha professor até da Índia, eram todos professores estrangeiros. Os alunos tinham liberdade desde o início. A escola ficava, não sei, a alguns quilômetros da cidade. O aluno não era preso, ele podia sair. Tinha aluno que jogava bem basquete, futebol, alguns alunos que gostavam de frequentar a sociedade, não passavam de ano. A nota mínima era sete, o aluno não tinha nada - se não passasse de ano era desligado da escola em qualquer ano que estivesse. O aluno ia para uma universidade, não podia ficar lá, mas também o sujeito se não passasse ali deveria ser morto porque tinha biblioteca gigantesca, praça de esporte, comida do bom e do melhor, médicos, dentista, faziam o serviço do CPOR, NPOR, oficiais da reserva, ganhavam, quer dizer, tinham tudo do que era do bom e do melhor, professores excepcionais. Também o nível de ensino [era] altíssimo, tem aluno que saiu do ITA que projetou sistema de telefone de Paris. Tem cientistas espalhados no Brasil inteiro que saíram de lá. O exame é dificílimo, é mais difícil que a Politécnica em São Paulo. Queriam até, eu acho um absurdo isso aí, o Ministério da Educação, o Ministério da Aeronáutica estão querendo deixar cotas para os estados do Norte. Acho um absurdo porque vai entrar num instituto desse alunos que não têm condições, não têm bagagem, não têm cultura, não têm estrutura para aguentar um curso daqueles. Tem que ser um exame de nível nacional para entrar quem tem mais cabeça, para entrar a elite do país, como a USP faz, como a Politécnica, como as escolas fazem. Tem que haver essa diferenciação, tem que ser uma coisa que dê oportunidade para quem tem cabeça.
Eu tive a felicidade de ser diretor até 74 num período em São José dos Campos em que a escola era injusta. Tinha que fazer exame de admissão, quem tinha condições econômicas ia se preparar no particular e quem não tinha fazia o mesmo exame, então entrava quem tinha condições econômicas. Eu comecei em São José dos Campos com um curso preparatório gratuito, ou seja, porque notei essa disparidade de oportunidades. No Centro Técnico da Aeronáutica eu participei de uma coisa fantástica lá à noite, [o] entrosamento do ensino do colegial com a faculdade; veio então um reitor da Universidade do Rio de Janeiro, D. Cândido Martim, que era reitor da PUC, Fundação Getúlio Vargas, professores responsáveis pelo ensino no Exército, na Marinha, na Aeronáutica. Foi um congresso fantástico. Eles notaram a primeira coisa, a quantidade de matéria - física, química, história, geografia - exigida no curso colegial era muito grande, não podia ser desenvolvida só em três anos. Eles queriam que reduzissem isso ao mínimo necessário, aos fundamentos necessários e na época já estavam aparecendo os cursinhos. Nesse congresso, eles garantiram para Dona Maria Lúcia, que era diretora do ensino secundário do Ministério da Educação, que não haveria cursinho porque eles iam reduzir química, física, matemática, biologia dos vestibulares. Essas matérias dando em três anos daria capacidade para o aluno prestar exame de admissão. Se essa coisa fosse cumprida… Havia na oportunidade uma escola em cada cidade, quer dizer, São José do Campos tinha o Colégio João Cursino, Caçapava tinha um, Jacareí, Mogi, Guaratinguetá, cada cidade tinha um ginásio, colegial ou curso normal. Sorocaba tinha um, não tinha na periferia; vinha fazer normal em Sorocaba, por exemplo, Itu, ia estudar em Sorocaba porque não tinha, tinha o colégio das irmãs de Itu que é célebre até hoje, mas era só para mulher. Mas infelizmente o que aconteceu? Houve uma expansão grande para atender à sociedade, o estado criou escolas em tudo quanto é lugar, mas não houve concomitantemente a formação de professor para todos, então o nível de ensino caiu. Ainda hoje encontro professores, alunos, pais de alunos [que dizem]: “Ah, professor, a sua escola!” Eu falei: “Não era a minha escola”, mas o corpo docente que era da USP, professores universitários. Não era só da USP; da PUC, professores formados com diploma de faculdade.
Quando peguei o ginásio de São José dos Campos só tinha esse professor, o professor que ensinava História. [Ele] Tinha sido pastor protestante [e] era especialista em Linguística; os demais, todos eram normalistas que eram bons professores, eram coisas fantásticas. Mas quando aparecerem os professores de São Paulo: química, física, matemática, saiu um aluno do colegial, um, porque eles não tinham nível para _____. Foi uma pena que não houvesse uma reciclagem, o estado não tinha essa preocupação de pôr professores reciclados que estão atualizados. Então o que aconteceu? Houve o rebaixamento do ensino. A classe mais prejudicada é a pobre porque o aluno que não tem condição escolar frequenta o ginásio do estado. Ele não vai sair com condições de fazer exame na faculdade, não tem dinheiro para fazer cursinho, ele vai nas piores. Se ele tivesse... [Se] física, química, biologia, português fossem bem dados ele saía e entrava na faculdade como antigamente era assim, o aluno saía do colegial e entrava na faculdade direto, não tinha cursinho.
P/1 - O senhor ficou até quando lá?
R - Eu entrei em 47, saí em 52.
P/1 - E o senhor foi para onde em 52?
R - Depois de 52 eu entrei em remoção e fui para o Instituto de Educação de Bauru, Ernesto Monte, também era uma cidade... Eu não conhecia Bauru, é uma cidade fantástica. Era uma fileirinha e reunia ali três estradas de ferro: a Paulista, a Sorocabana e a Noroeste. Fiquei admirado porque eu perguntava: “Você tem indústria?” Não tem nada, a renda que eles pagavam nessas três estradas é que movimentava a cidade. A cidade na ocasião - eu fui para lá em 52 - já tinha uma casa chamada Jurumeca [em] que você comprava desde um barco até uma agulha. Era uma espécie de um shopping que é ponta de linha, então Bauru centralizava. As pessoas que trabalhavam naquela área toda ficavam lá, tinha uma rede hoteleira grande, uma faculdade - um homem riquíssimo lá doou um terreno e um senhor construiu uma faculdade de Direito emprestando dinheiro. Construiu uma faculdade de Direito fantástica, as poltronas do salão nobre dele eram estofadas, os alunos respeitavam, não tinha um sinal nas carteiras, nada. Até que uma vez um aluno falou para ele: “Ah, essa escola não tem a tradição da São Francisco porque tem uma carteira lá riscada pelo Rui Barbosa”, com o nome dele. O diretor: “Ah, Rui Barbosa é um sem educação.” Ninguém mexia em nada. Uma faculdade fantástica. Tinha uma de Educação Física, até dei o meu nome para ser professor também e depois não tive tempo. Depois as irmãs criaram faculdades também, você vai ver depois em detalhe aí, essa atividade...
Quando eu fui para lá, a primeira coisa que eu fiz foi o órgão de cooperação escolar, não tinha. Eu falei: “Essa vai ser a primeira coisa.” Instalamos um órgão de cooperação escolar e passamos a fazer as coisas que eu achava que tinham que ser feitas no prédio: uma praça de esportes - tinha terreno, foi feita uma terraplanagem - fiz uma pista, três quadras de basquete iluminadas, caixa de salto para lançamento, cantina, arrumei a cantina, a mulher lavava xícara com água. “Pelo amor de Deus, isso não vai funcionar mais assim aqui não!” Biblioteca, o muro de fecho da escola - a escola tinha um muro aberto. O estado orçou em 145 mil reais naquela ocasião, a Associação de Pais e Mestres fez 40 reais, compramos o material e mandamos um camarada fazer o muro. Tinhas salas ociosas. E eu não falei nada com ninguém o que eu ia fazer porque lá em Bauru tinha um problema religioso muito acentuado, católicos e espíritas são dominantes e eles não se dão muito bem. Fiz uma vez um concurso de Miss Mirim com o órgão de cooperação escolar e uma associação espírita. O bispo queria por toda força que não fosse realizada, mas eu fiz ver que a escola não poderia ser sectária. Havia salas ociosas e o estado não podia dar as carteiras, então o dono do jornal, Nicola Avallone Jr., perguntou pra mim: “O senhor quer as carteiras? Eu arrumo.” “Quero.” Ele fez uma campanha na cidade, acho que em um mês ele mandou fazer um carpinteiro fazer as carteiras. Recebemos as carteiras e pudemos receber mais alunos no período noturno. O General Marinho Lutz, que eu conheci, mandou tirar todas as tampas das carteiras das classes para lixar, envernizar e pôr no lugar, cortinas, embelezamos a escola. Na parte cultural levamos para lá o Malba Tahan - Júlio César de Mello e Souza, ele ficou uma semana no hotel. Ele não dava autógrafos para ninguém, queria que o pessoal comprasse o livro, ele autografava. As palestras dele [eram] fantásticas, ele deu aula sobre a arte de contar história. Ele colocava as normalistas na escola, no salão e falava, depois tirava, as normalistas ficavam atrás e punha as crianças lá na frente e falava, as reações que ele falou que as crianças iam ter, fantástico! Ficou lá uma semana dando palestras sobre a arte de contar histórias, matemática moderna. Foi um sucesso absoluto!
Fizemos dezenas de seminários para atualização de professor primário. O mais procurado era português, história, matemática, artes industriais, canto orfeônico. O serviço de expansão cultural da Secretaria de Educação geralmente ia encerrar e dava o certificado: eram 30 horas de aulas, 80% obrigatório de comparecimento e exame final. Tinha a sala de artes masculina e feminina; a sala de artes masculina tinha tudo. O aeroclube de Bauru, o presidente Luís Gonzaga Bevilacqua cedeu para a escola umas serras circulares e outros materiais para funcionar mesmo. E o professor de trabalhos manuais - eu nunca tinha visto aquilo - punha umas latas com tinta e cortava a madeira para pintar em verde, azul, amarelo, branco, punha madeira cortada ali dentro e depois montava trabalho com as crianças e um menino. Ele pegava essas latas de óleo de automóvel, cortava verticalmente, dava uma torcida nela e fazia uns carrinhos de criança; tinha aluno da escola que fazia e vendia. Olha que coisa interessante! Encadernação: sistema simples de encadernação, encadernação com prego, simples. Levamos o Flamínio Fávero de São Paulo foi para lá sabe por quê? Porque transformaram a escola técnica de agricultura que havia lá. O Fernando Costa construiu cinco escolas de agricultura no estado de São Paulo: uma em Bauru, uma em Ribeirão Preto, que é a Faculdade de Medicina, outra em Guaratinguetá, que é a Escola Técnica de formação em Aviação e elas foram transformadas, só a de Bauru ainda é presídio aberto. Houve uma celeuma na cidade, então nós conseguimos levar o Flamínio Fávero para fazer umas palestras, mostrando que não havia perigo porque a turma estava apavorada. Ele mostrou para gente que o preso, tendo cumprido pena até um certo número, ia para o presídio aberto e iria se dedicar à agricultura, socializar. Foi interessantíssimo!
O Silveira Bueno foi outro que eu levei lá que foi fantástico! O Plínio Salgado falando sobre coisas políticas - ele tinha uma capacidade de empolgar, era um tipo de líder até no falar. Tem uma fotografia aí comigo, o governador Garcez, Ulisses Guimarães mocinho, Ferreira Keffer e Benedito Moreira, que é presidente do diretório municipal, era muito amigo do tio da minha senhora. Eles foram inaugurar uma sala ambiente de música, todo o material das paredes da escola: Schubert, Mozart, Beethoven. Então [havia] coisas sobre eles, biblioteca, livros, filmes, discos sobre cada um, sobre a obra deles, tudo uma beleza. A professora, Dona Rita, era uma grande professora e era cabo eleitoral do Ulisses. O Ulisses era solteiro, depois você vai olhar aí, ele ainda tinha cabelo. O que aconteceu nessa fotografia? O Garcez morreu, o Ulisses morreu, o Moreira morreu, só estou eu vivo. Mas foi uma época fantástica. Você vai olhar aí uma reportagem que o Silveira Bueno fez quando foi para lá. Ele pediu para mim: “Não me coloquem perto da Estrada de Ferro Sorocabana.” Eram três estradas, então a malha ferroviária era tremenda. Arrumei um hotel longe para ele ficar e ele mandava uma relação de palestras sobre o que você queria que ele falasse: o romance das palavras, mostrando, por exemplo, como a palavra surge, fica em uso e depois pode morrer. Uma coisa louca de palavra. O Malba Tahan [tinha] uma coisa notável: ele pegava um livro, um caderno sobre a coisa que vai falar assinalando só em vermelho e azul. A turma ficava boquiaberta ouvindo esse homem falar, as histórias. Era uma coisa de nada, mas o modo como que ele falava empolgava.
Outra coisa que nós levamos para Bauru - esse foi demais, acho que foi uma das coisas mais fantásticas que eu presenciei. Esse Luís Gonzaga Bevilacqua era presidente do aeroclube e funcionário do Ministério da Fazenda. A maior biblioteca e maior discoteca de Bauru ele tinha. Os filhos deles foram meus alunos e ele foi membro do órgão de cooperação escolar. Então ele foi lá fazer uma palestra, veja bem, na década de 50, mostrando que o homem chegaria à Lua. Ele fez: quando surgiu o avião? Quantos quilômetros por hora? Foi mostrando até o avião atingir uma velocidade acima do som, em quantos anos. Contou que fazia parte - olha que interessante - da Comissão Internacional de Estudos para Vôos Interplanetários. Ele convivia com russos, americanos, com tudo sobre esse assunto. Quando ele foi lá, ao término da Segunda Guerra Mundial, os americanos, os russos catavam os técnicos, os cientistas alemães para levar para os seus países. Os Estados Unidos trouxeram oitocentos técnicos, dentre eles Von Braun, que foi o homem quem inventou aquela B2, a bomba que saía da Alemanha e caía para a Inglaterra, foguetes. Mas houve uma certa dúvida sobre eles lá; eles ficaram ganhando, ficaram trabalhando, mas o governo americano tinha receio deles até que o russo soltou o primeiro satélite - dizem que ele recebeu verba de todo jeito porque o americano soltou trezentos depois. Ele mostrou, isso que é importante, uma plataforma, fizeram uma plataforma que seria posta entre a Lua e a Terra, é idéia do Von Braun. O homem sairia da Terra, iria para a plataforma e dessa plataforma ele iria para outros planetas. Hoje, por exemplo, o homem saiu da Terra e foi para a Lua, mas já tem uma plataforma no espaço equilibrada. O homem está saindo daqui e indo para lá, o sujeito pode ir para a frente. Então esse Von Braun é a cabeça disso, ele que teve essa ideia, esses foguetes que lançam, essas coisas, ele que fez, ele era a cabeça. A turma ficou admirada de ver essa palestra para o alunos do colegial: “Não é possível, traz esse homem outra vez aqui.” Eu levei o homem lá outra vez; ele era muito culto, voltou lá na escola. Eu tinha professor formado na Universidade de Madri, Isaac Portal Roldan, então eles ficaram todos admirados com que o camarada contou. Foi um sucesso!
Apareceu na escola também - essa foi muito boa - um professor chamado Álvaro Ruiz. Era padre, andava com uma batina branca bonita, tinha uma motocicleta que vendiam na Itália na ocasião, a vespa. Ele fazia um sucesso na cidade. E em Bauru, [que era uma cidade] católica e espírita, quando eu fui para lá uma pessoa chegou e falou: “Olha, Edésio, toma cuidado.” Na escola eu tinha espírita, tinha padre, ex-padre, ex-seminarista, tinha de tudo. Tinha um padre, Carlos Peixoto de Mello, formado em Roma, fez curso de doutoramento na Alemanha. Estava revoltado na ocasião porque com todos esses cursos superiores ele foi mandado para uma cidadezinha no interior completamente segregado. Ele acabou se casando com uma caipira, teve dois filhos; ele ia nem ver os filhos entrar na igreja para nada, missa, religião. Depois de muitos anos que eu saí de Bauru o Vaticano deu aquele beneplácito para ele regularizar a situação dele - ele não podia assistir missa, entrar na igreja, ele era revoltado. Esse padre Álvaro Ruiz dava aula de religião: os pais estavam apavorados, os espíritas não queriam nem ver, mas ele entrava na sala muito bonito, sempre de batina branca. Ele não falava em religião, ele falava sabe do quê? Regressão ao útero materno, levitação, então os alunos ficavam apinhados, vinham aqueles pais espíritas ferrenhos, telefonavam: “Professor Edésio, o que é que está acontecendo? O meu filho está vendo um padre aí.” “O senhor venha assistir, acho que o senhor vai gostar.” Calculem naquela época você falar em regressão, pegar uma aluna do curso normal por no pátio, no salão assim em cima e falar com uma aluna e aluna ficava como sendo hipnotizada e contava coisas interessantíssimas da vida da pessoa. Então um sucesso o padre, muito bonito. Me parece que depois ele começou a namorar uma moça na Faculdade de Filosofia. Eu era diretor em Santo André, apareceu o Álvaro de roupa... Perguntou se não havia possibilidade de eu arrumar umas aulas para ele e para a noiva. Arrumei aula de português para a noiva e para ele filosofia, só que eu tive que chamar em particular e falar com ele: “Seja comedido com o seu namoro aqui na sala.” Ele ficava enlevado com a namorada na sala dos professores. E uma professora, uma senhora da escola, eu pedi: “Chama a noiva dele também e fala com ela.” Mas foi um sucesso.
Levei um cientista aqui de São Bernardo, ele fazia uma experiência, caía chuva, dava uma explosão, foi uma agitação terrível, mas caiu chuva, sai água. Os alunos ficaram apavorados no salão quando ele fez a experiência e deu uma explosão, pelo amor de Deus!
P/1 - O senhor ficou em Bauru até quando?
R - Até 59. Em 59 eu entrei na remoção e escolhi Santo André. A cidade de Santo André na época, apesar de ser a terceira de São Paulo em arrecadação não tinha infra-estrutura nenhuma: água, esgoto, tudo era difícil. O próprio prédio do Instituto de Educação eu escolhi enganado porque eu fui jogar um campeonato paulista de basquete pelo Rhodia e ia de automóvel de São José dos Campos, passava perto de um prédio grande e falaram que era o Instituto. Era o prédio do Correio, o Instituto era atrás, era uma chácara. Eu levei um susto: oito classes paradas, uma miséria e o estado transformou em Instituto de Educação. Eu cheguei lá e imediatamente [criei o] órgão de cooperação escolar. Fizemos um abaixo-assinado com sete mil assinaturas, pegamos o D. Jorge Marcos de Oliveira, que era um bispo da cidade muito bom. Fomos ao [governador] Carvalho Pinto, o Carvalho Pinto olhou o prédio e falou: “Olha, vamos fazer a metade.” Era grande. Depois ele resolveu fazer o prédio inteiro, eu inaugurei o prédio. Fui lá agora na festa do cinquentenário, foi feito agora.
Nesse período eu fui chamado para São Paulo, fiz parte da comissão que organizou o estatuto padrão para [que ao] invés de ser órgão passasse a ser Associação de Pais e Mestres, essa associação que existe hoje em dia. Depois foi novamente reformulada, ampliada, para ficar juridicamente mais consistente. Existe no estado de São Paulo inteiro e o Ministro da Educação está falando tanto na Associação de Pais e Mestres, praticamente foi o estado de São Paulo que criou. Então essa associação também fez, nós fizemos muitos cursos de atualização, palestras de professores: Malba Tahan, Marcelo Dami, do Centro de Energia Nuclear da USP esteve lá. Quando ele marcou a vinda nós fomos ver e não tinha lugar para ele ficar na cidade, não tinha hotel. Eu já estava quase pondo junto com o meu sogro, aí arrumaram um lugar em uma maternidade. Ele ficou numa maternidade; ele deve contar isso para o Brasil inteiro. Esses intelectuais todos foram lá, fizeram palestra, conferência.
Nesse cinquentenário de Santo André deu-se um caso interessante. Minha fotografia saiu no jornal, aí eu recebi uma carta de um professor da USP que é chefe do Departamento de Sociologia. Na ocasião ele era aluno [da escola] e eu fiz um concurso sobre o [colégio] Américo Brasiliense. Ele ganhou o concurso, eu dei 5 mil reais de prêmio; ele era uma pessoa humilde, diz [que] comprou tudo em livro. E hoje ele é chefe do Departamento de Sociologia da USP, mandou uma carta super interessante pra mim dizendo que ocupa atualmente o cargo que era do Fernando Henrique e do Florestan Fernandes e numa universidade no exterior. Ele é o representante do Brasil lá, tem mais de quarenta livros escritos.
P/1 - Qual o nome dele?
R - José Gomes. Tem essa carta enorme que ele mandou pra mim, dizendo que aquela atividade cultural, aquele movimento é que o despertou para essa área. Nessa ocasião ele fez um livro já para São Caetano, ele era aluno. José de Souza Martins.
P/1 - Ah, é. Ele é muito famoso.
R - Ele tem quarenta livros escritos. [Foi para] Cambridge e agora foi para a Itália numa reunião do Banco Mundial com dois, três ‘crânios’. Ele falou que essa atividade cultural despertou interesse nele. Ele fica satisfeito quando sabe que um aluno dele da USP tenha brilhado, então me mandou essa carta, dizendo que eu também deveria ficar satisfeito sabendo que ele teve esse início lá e de fato foi bom. Mandei uma porção de coisa para ele. E o Todorov, que é reitor da Universidade de Brasília é formado lá também, a Lucélia Santos é formada lá, o prefeito é aluno de lá, tanto é que ele mandou, perguntou para mim sobre uma galeria, aí eu falei para ele: “Eu já fiz isso no Canadá. Tenho uma galeria de professores falecidos e de diretores falecidos. Seria interessante você fazer isso com professores, com funcionários falecidos, dar o nome das classes e pegar, deixar um andar do prédio só para esses que estudaram e que são pessoas de renome como esse Gomes, Todorov, pessoas que saíram daqui e galgaram posto alto na administração, na política.” Eu achava interessante isso. Eu falei que já fiz isso em Santo André. Mesmo agora nós demos a um vereador o nome de quinze professores, não só da minha escola, mas de outras para ser dado o nome de ruas. Muitas vezes você se esquece disso, se você vivo não toma iniciativa de fazer uma coisa dessa, amanhã ou depois ninguém sabe quem é. Eu tirei os nomes desses professores meus, todos, tem uns dez ou doze falecidos que eu peguei uma biografia, dei para o deputado Erasmo Dias, ele apresentou na Assembleia projeto de lei dando nome a escolas. Se você não faz isso a pessoa esquece e nem lembra mais.
P/1 - De Santo André, o senhor teria alguma coisa para acrescentar?
R - [De] Santo André, essa parte do prédio foi uma coisa fantástica, foi uma obra... Aprontar o prédio foi uma coisa louca na cidade. Eu, notando que quem não se preparava não entrava no ginásio, comecei a criar cursos preparatórios pela Associação Pais e Mestres, gratuitos. E dei para um deputado estadual chamado Benedito Matarazzo um projeto de lei para que o estado criasse, então o projeto de lei foi aprovado e foi criado. Só que na Secretaria de Educação, quando foram regulamentar - vê se entra na cabeça de uma pessoa - quando regulamentaram o curso preparatório para implantar começava em agosto. Se quem tem dinheiro começa em fevereiro, você começa em agosto para fazer o mesmo exame? Então eu fiz as considerações para que voltasse a começar em fevereiro, mas o estado só deu uma classe de curso preparatório para cada escola. Ora, se estou numa cidade que tem trezentos mil habitantes, que só tem aquela escola, onde é que eu vou me arrumar? Conclusão: eu em Santo André tinha trinta, quarenta classes preparatórias gratuitas, pagava pela Associação de Pais e Mestres, arrumava professores, um dava História e Geografia, o outro dava Português e Matemática, então Português e Geografia, trocava e a associação pagava. O preço que o estado pagava, pagava menos porque não tinha carteira assinada, era aluno de faculdade que queria estudar e preparava a turma. Isso também foi uma coisa que funcionou mesmo em Santos, também era uma classe só. A associação pagava, então tinha classe na Zona Noroeste, no morro, onde estivesse fazia funcionar a classe.
Essa parte cultural da escola eu acho fantástica, trazer a família para dentro da escola, a Associação de Pais e Mestres - esse José Gomes, por exemplo, era um aluno pobre, então a associação dava uniforme, livro, caderno. [Quando] O camarada chegava, não tinha problema. Chamava a pessoa, fazia uma ficha e via se o pai realmente precisava. Dava tudo: livro, caderno, nunca nas minhas escolas o aluno [dizia]: “Não vou estudar porque eu não tenho dinheiro.” Nunca, ele chegava e eu arrumava. A Associação de Pais e Mestres comprava e dava para todos eles.
Em Santo André teve um caso interessante que aconteceu: um professor que dava [nota] oito e nove para todo mundo. Um dia, no final do ano, mandei retirar um material que não servia da sala, guardar. Acharam as provas dele, nenhuma corrigida; ele não corrigia, dava oito e nove para todo mundo, quem reclamava? Você vê como é a coisa! A pessoa humana… Na minha opinião, onde está o homem está a imperfeição. Por mais que você queira fazer bem feito, o homem perfeito não tem brasileiro, não tem em lugar nenhum, tanto é que eu critico tremendamente essa coisa da televisão, da pessoa chegar e falar, mas falar da infância abandonada: Brasil, delinquência: Brasil, mortandade: Brasil, tudo Brasil. Ele acha que no mundo inteiro não acontece nada. Tive oportunidade de viajar pelo Brasil quase inteiro, fora o Brasil eu andei quatorze mil quilômetros na Europa! Então você encontra muita gente pedindo esmola, muita gente dormindo na rua. Em plena entrada do museu do Escorial, na Espanha, um camarada dormindo estendido lá, entre centenas de ônibus de turistas e o sujeito dormindo. Pelo amor de Deus! Existem essas coisas. Quando a televisão for abordar qualquer… “Nós vamos abordar hoje, suponhamos, o menor abandonado.” Então o mundo é assim, mostrar Índia… Também temos aqui no Brasil [que] não estigmatizar o país, como se só aqui acontecesse isso. Desonestidade, no mundo inteiro existe só que eles punem. Na Holanda, a venda de aviões para o Japão houve falcatrua altíssima; o próprio Clinton, esse atual presidente dos Estados Unidos está sendo pesquisado porque ele telefonou do palácio procurando auxílio. A mulher dele está envolvida num loteamento. Tem desonestidade no mundo inteiro, acho que não deviam só estigmatizar o Brasil. Deveriam cuidar das coisas de modo que todo mundo refletisse não só pra nós aqui, ignorante, a pessoa sem instrução nenhuma, que não lê nenhum jornal. Se o camarada falar pensa que isso aí, como não conhece nada...
(pausa)
Sr. Edésio, o senhor estava contando para a gente sobre Santo André, quando o senhor trabalhava lá, continua contando uma história pra gente.
R - Santo André tem três fatos interessantíssimos. Uma com o bispo D. Jorge Marcos de Oliveira: na ocasião [ele] tinha sido fichado na Ordem Política Social e o tio de minha senhora era delegado da Ordem Política Social. Quando ele soube que eu convidei o D. Jorge Marcos de Oliveira para fazer umas palestras para os alunos na escola, ele quis que fosse interrompido esse intercâmbio com o bispo, alegando que ele era fichado como comunista e podia repercutir mal. Eu insisti no sentido de que as palestras do bispo eram interessantes porque ele defendia os interesses dos trabalhadores. Eu assisti e não vi que ele quisesse fazer proselitismo sobre o comunismo, ele só quis contar os fatos que existiam e que os trabalhadores eram injustiçados.
Outro foi uma campanha que nós fizemos na escola arrecadando pasta de dente, sabonete, cigarros, para levar aos presos porque a cadeia já era horrível naquela ocasião e permaneceu por muitos anos horrível ainda. Fizemos essa campanha por solidariedade para levar e o delegado não aceitou, achando que os presos não deviam receber essas coisas, tinham que cumprir pena. Os alunos ficaram decepcionados, entregamos em instituições para velhos, para outras pessoas.
O Moinho São Jorge tinha um salão em Santo André que [se] chamava até Salão de Mármore, junto às indústrias, um salão chiquérrimo. As grandes festas eram feitas lá, então num dos aniversários da cidade de Santo André trouxemos do Rio de Janeiro o Grupamento dos Fuzileiros Navais. Foram feitas inúmeras manifestações e o Moinho São Jorge se prontificou a oferecer um banquete para 500 pessoas, mas um banquete finíssimo: cada mesa tinha um litro de uísque estrangeiro, uma champanhe, vinho estrangeiro. O jantar foi [de] alto nível, a sobremesa com todos os garçons juntos, um sorvete saindo fumaça em torno de tudo. Foi uma coisa muito bonita! Todo mundo ficou admirado, o Moinho assumiu toda a despesa. Posteriormente foi descoberto que o Moinho tinha depósito; recebia o trigo e punha em depósito, em silos. Eles eram fiéis depositários da justiça e qual não foi a surpresa: construíram uma estrutura de madeira dentro dos silos para manter, por exemplo, dois metros na boca, cheios de trigo, e a parte de baixo toda revirada e vendida. Veja que desfalque eles davam. [Em] todos os silos a parte de baixo estava vazia, só a parte de dois metros próxima à boca é que estavam cheias, razão pela qual eles podiam dar uma festa dessas, de milhares de cruzeiros para 500 pessoas. Assumiram tudo, passaram como grandes benfeitores, apareciam aos olhos da sociedade como uma coisa fantástica e não eram na realidade.
Outra coisa também que me chamou a atenção em Santo André: tinha uma estrutura de madeira dentro da escola com tábua de eucatex, de cem metros de comprimento, no salão nobre. Deram o nome de Jules Dreyfuss. Quando eu vi aqui eu falei: “Se o Jules Dreyfuss na França souber que vocês deram esse nome para ele, os ossos dele vão sair do túmulo de raiva.” (risos)
Ficamos em Santo André, compramos casa e descíamos a Santos. Tínhamos automóvel, descíamos para Santos no fim de semana para levar as crianças. Numa delas o breque do carro parou na altura da curva da onça e o carro virou dentro de uma estrutura de madeira que caía num precipício; foi uma sorte tremenda, ninguém se arranhou. A partir dali nós resolvemos... A família toda estava reunida, estava meu sogro, sogra; entrei em remoção e fui embora para Santos. Esse fato é que determinou a minha ida para Santos porque as crianças eram pequenas, Santo André não dispunha de recreação nenhuma, não tinha clube nenhum. Como as crianças eram pequenas, em Santos havia clube e praia, nós fomos para lá. Esse incidente é que determinou a minha ida; foi um renascer de todos porque estavam todos: meu sogro, minha sogra, minha senhora, as crianças e empregada. O carro virou de lado, com as rodas de lado, e todos ficaram presos dentro. Saímos por cima, pegamos as crianças, viramos o carro. Um ônibus parou, levou a turma toda para Santos. Fiquei esperando chegar o guincho para levar o carro para Santo André, para consertar. Esse fato é que determinou, eu fiquei assustado.
P/1 - E lá em Santos, o senhor foi trabalhar onde?
R - A minha remoção foi para ser diretor do Instituto de Educação Canadá, o que foi uma verdadeira missão. Saí de Santo André, fui para Santos imediatamente para o Canadá, que era uma escola de grande tradição. Era a única escola na cidade que tinha segundo grau, então o número de alunos era enorme. Foi feito imediatamente um prédio ao lado para ampliar [a escola], ficamos mais de cem classes, quatro mil alunos.
A Associação de Pais e Mestres foi estabelecida e começou imediatamente a desenvolver um trabalho no sentido de melhoria material. Imediatamente os alunos melhores do clássico e científico faziam recuperação com os alunos das séries iniciais que precisavam de recuperação de português, matemática, história, geografia; a Associação de Pais e Mestres pagava. Depois surgiu uma ideia de se construir um ginásio de esportes, então foi feita... A Associação de Pais e Mestres tomou a iniciativa, mas com o apoio da comunidade, de todos os alunos. Os alunos davam um real por mês e fomos arrecadando dinheiro. Quando nós tínhamos uma determinada quantia o pai de um aluno fez o projeto e começou a construção. O forte do Itaipu… O Coronel Erasmo Dias, [que] era comandante, fornecia os blocos pelo preço de custo e foi feito naturalmente. Quando o chefe do departamento de obras do Fundo Estadual de Construção Escolares foi a Santos o prédio já estava pronto, faltava o telhado, aí ele deu o material. Foi um sucesso porque a comunidade toda colaborou bastante.
Na parte cultural os professores vieram para São Paulo visitar o Ginásio de Aplicação na USP para ver coisas modernas para aplicar. Levamos do Departamento de Recursos Humanos da Secretaria da Educação uma equipe de técnicos para ministrar coisas modernas para os professores também. Malba Tahan esteve lá dando um curso sobre a arte de contar estórias, a metodologia da matemática moderna e tantos outros intelectuais de São Paulo, por exemplo: teve o Franco Montoro, teve o Bispo Dom Davi Campos, a Noemi Silveira Rudolfer, Guilherme de Almeida, delegada de polícia que falou sobre do tóxico, Padre Antônio que falou sobre tóxico. Foram dados inúmeros cursos sobre a preparação para o matrimônio. Havia uma grande movimentação em torno da escola porque o nível de ensino era altíssimo, os alunos terminavam o colegial e entravam direto em faculdade.
Nós fizemos uma experiência uma vez: o número de candidatos para o Canadá era quatro mil, então nós fizemos uma seleção rigorosa de português, matemática, história e geografia, tiramos a nata. Então pegamos as melhores notas e pusemos numa classe, 25 alunos, e as últimas notas numa [outra] classe, dando o mesmo tratamento e com os professores desenvolvendo as mesmas atividades em ambas as classes. Depois de um ano os resultados foram fantásticos. Os últimos passaram, mas esses que passaram em primeiro se constituíram numa classe que foi só [de] crianças com QI altíssimo; o estado não permitiu que continuasse por causa da despesa que acarretava. Esses alunos tiveram uma classe completada com mais cinco, mas continuaram fazendo o científico e constituíram um problema porque eles exigiam demais dos professores. E a maioria dos alunos que saíam do Canadá entrava diretamente para as faculdades, não havia necessidade de cursinho.
Um fato jocoso que aconteceu no Canadá [foi de] uma funcionária que tinha um marido tuberculoso, pessoas da família com problemas sociais. Ela me procurou um dia dentro da diretoria chorando, dizendo: “Professor, mas que desgraça que está acontecendo comigo!” “Mas o que está acontecendo com a senhora? O que foi que houve, a senhora estava trabalhando?” “O senhor vê que desgraça: a minha filha está grávida e é virgem.” Uma outra menina cega, a mãe levava para a escola. Ela subia a escada, deixava a filha na escola e depois saía. Eu percebi que ela descia a escola depois que a mãe saía e ia tateando atrás do ginásio para namorar. Então, eu chamei e perguntei: “Você tem namorado?” Ela levou um susto e falou assim: “Quem contou para o senhor?” Aí eu perguntei: “Esse é o primeiro?” “Não, esse é o terceiro.” Contei esse fato para uma professora que tinha uma filha muito bonita e falei: “Olha, essa menina disse que teve três namorados.” Aí a professora, muito séria, falou comigo: “Professor, olha que coisa incrível: a minha filha, moça bonita, perfeita nunca arrumou um namorado.” Outro caso aconteceu com um professor. Ele estava no início do curso, de calças com zíper. Ele entrou na toilette no intervalo e ao puxar o zíper, o zíper prendeu a parte escrotália dele e deu uns berros. Atraiu a atenção dos professores; precisou vir um professor de trabalhos manuais com um alicate soltar o que havia sido prendido. (risos) Foi uma risada geral na escola, todo mundo dava risada porque sabia do fato que tinha ocorrido.
P/1 - O senhor foi quando para Santos? Em que ano?
R - Em agosto de 63.
P/1 - E o senhor ficou lá até agora?
R - Até me aposentar nessa escola.
P/1 - Quantos anos o senhor ficou nessa escola?
R - Nessa escola eu fiquei de 63 até 74. Em 74 o prefeito que entrou, Dr. Antônio Mello de Carvalho, me convidou para ser secretário da educação. Deixei a direção da escola e fui ser secretário de educação na prefeitura de Santos. Eu empreguei na direção da Secretaria de Educação os mesmos trabalhos que fazia nas escolas. Todas as escolas da prefeitura passaram, foram organizadas num estatuto padrão. Imediatamente começaram a funcionar centro cívico em todas as escolas. Não havia bibliotecária nas escolas, então fizemos um curso prático de trinta horas de duração para auxiliar de bibliotecária. [O curso] foi dado por uma bibliotecária efetiva, posteriormente foi feito um exame para selecionar um número que devia ir para cada escola. Após a realização dessa prova foi verificado que houve quebra do sigilo das provas, então pedimos ao prefeito, ele anulou e foi feito um exame posterior.
Como em Santos o interventor foi um militar, ele não... Acho que não ele pessoalmente, mas, mal assessorado, ele não deu terrenos para que o Fundo Estadual de Construções Escolares construísse prédios em Santos, então houve uma defasagem tremenda. A situação dele era tão remplie de soi-même [cheio de si] que a secretária de educação do estado de São Paulo, a Ester de Figueiredo Ferraz, para ser recebida por ele, precisou [que] o comandante do 2º Exército telefonasse para Santos porque ele era um general da reserva, determinando que ele recebesse a secretária da educação. Mesmo assim ele não deu nenhum terreno para construção da escola. Com relação à pré-escola ele até construiu mais escolas, foi atencioso, mas com o ensino de primeiro grau foi uma lástima, acabou com a [Escola] Acácio de Paula Leite Sampaio, que era a única escola técnica.
Assim que o Carvalho entrou eu vim para São Paulo. Fui conversar com a D. Maria Aparecida Tamaso Garcia, que era conhecida minha de outras reuniões e [era] ela que mandava nessa parte de construções escolares. “Você me arruma uns terrenos que vão ser feitas todas as classes que precisar.” Outro problema grave: Santos não tinha terrenos para construir as salas de aula; de automóvel eu percorri a Zona Noroeste, fui para Bertioga para ver os espaços livres. Todos os espaços livres eram praças, mas as praças não tinham sido instaladas ainda, estavam no meio do mato praticamente. O prefeito, sabedor do caso, mandou que fossem ocupados com as classes, então foram construídas 144 salas de aula em Santos nesse período. Na Zona Noroeste quatro, no morro foi construída uma escola fantástica, a desapropriação do terreno tinha sido começada no governo do Dr. Silva Fernandes Lopes, oito ou dez anos atrás. Outro grave problema que surgiu foi para mobiliar essas classes, 144 salas de aula. A Divisão Regional de Ensino tinha um caminhão então isso levava acho que um ano para transportar. Eu recorri a uma empresa, essa empresa tinha jamantas que vinham para São Paulo com material e na volta levava material para mobiliar todas as salas de aula. Na prefeitura que tinha o maior rede de ensino pré-escolar do estado de São Paulo, uma única professora tinha o curso de pré-escolar feito. As outras todas eram cursos já datados, então todas foram obrigadas a fazer curso de atualização. O Departamento de Recursos Humanos da Secretaria da Educação levou uma equipe técnica de pré-escola. Reunimos as professoras de Cubatão, Praia Grande, São Vicente, Guarujá e Santos para fazer o curso de atualização. Eu pedi ao prefeito e vim com ele para São Paulo no dia da posse. Então eu falei com ele: “Você pode fazer uma coisa sensacional. Chegando em Santos, no dia seguinte, você assina o decreto reabrindo a Acácio de Paula Leite Sampaio.” Ele fez isso, causou grande rebuliço porque todo mundo queria que o Acácio voltasse a funcionar. [Reabriu a escola] com mais dois cursos técnicos, com professores de alto nível, foi uma beleza! Santos nesse particular ganhou de uma forma extraordinária, esse Carvalho tinha os olhos voltados para o ensino. O Olavo Bilac foi ampliado, o Marquês de São Vicente foi ampliado, e essas 144 classes construídas praticamente resolveram o problema de matrícula na cidade de Santos.
P/1 - O senhor ficou na prefeitura fazendo esse trabalho até quando?
R - Eu fiquei na prefeitura até 78. Como eu tinha tempo para me aposentar, eu me aposentei. Passei depois a dirigir uma escola particular, o Leão XIII, onde também instalei a Associação de Pais e Mestres, foi feita uma quadra de basquete, restaurada. Consegui da Receita Federal, através da prefeitura, doação de 300 metros lineares de prateleira de aço para a escola, do serviço de assistência social do governo [consegui] material para mobiliar o salão e da prefeitura, além das prateleiras, poltronas, estofados, cadeiras giratórias, dez a doze arquivos.
Desenvolvemos também uma atividade cultural enorme, com cursos para professores. Todos os membros da Academia Santista de Letras compareceram na escola para corrigir concurso de poesia, de conto, fizemos lançamento de livro de dois escritores na escola, três, (Sores?) Borges Reis e uma professora da própria escola que escreveu um livro. De forma que essa parte cultural foi desenvolvida [de forma] muito boa. O curso particular também era muito bom, os dois médicos de Santos de sobrenome Fillet, que têm a maior clínica veterinária em Santos, estudaram na nossa escola, provando que o ensino particular quando é bem orientado, bem exigido, controlado, o nível de ensino é bom.
P/1 - O senhor ficou de quando a quando nessa escola?
R - Eu dirigi a escola particular [por] uns dois anos, depois cansei. Pedi para sair, estava cansado já porque não havia apoio do Círculo Operário e o número de alunos caía muito porque existia um preconceito, como existe até hoje, um preconceito com o nome “escola mantida pelo Círculo Operário da Zona de Maré”. As famílias que tinham condição, famílias que tinham um nível social maior, ficavam constrangidas de colocar os filhos ali. Embora o nível do ensino seja bom, preferem outras escolas: Objetivo, Stella Maris, Coração de Maria, Carmo. O preconceito infelizmente dificilmente vai acabar.
P/1 - E depois?
R - Durante esse período que eu estive na prefeitura, depois que eu saí do Leão XIII eu não parei. Fui um dos fundadores da Associação dos Amigos da Marinha, do qual fui primeiro secretário. Fui presidente e sócio fundador do _____ Clube de Santos, uma entidade cuja sede é na Itália, é considerada um senado dos esportistas. [Os] dirigentes, nós fazemos reuniões mensais, palestras com especialistas em esportes dentro de escola para alunos. Depois fui o primeiro presidente e sócio do Aspran, Associação dos Profissionais Aposentados, que cuida da parte... Reúnem-se... Essas instituições todas fazem reuniões mensais. Sou membro da editoria do Centro Oficiado Paulista em Santos, que também tem reunião mensal.
A Aspran [tem] a finalidade mais recreativa, mas como estava em discussão no âmbito federal um projeto de lei alterando a situação funcional dos professores, nós emprestamos dinheiro, colaboramos para mandar uma advogada para Brasília para que o professor aposentado receba o mesmo que o professor na ativa. Conseguimos em parte isso porque o governo não quer mais, com a reforma da Previdência ele não quer mais pagar ordenado integral para quem está na ativa igual aos que está nas atividades; quem receber acima de mil cruzeiros vai ter um desconto de 30%, inclusive na magistratura, brigaram aí intensamente e não conseguiram. Foi votado no Senado que eles paguem também. Acho que todo mundo é igual perante a lei, é extremamente desagradável saber que os próprios juizes, desembargadores estão trabalhando para cometer uma injustiça dessa. Desde que os deputados se comprometeram a pagar e extinguir a aposentadoria especial - eles podiam [se] aposentar com quatro, oito anos de atividade, independente da idade - foi uma solução que atendeu ao clamor popular.
P/1 - O senhor tem feito o quê atualmente? O senhor tem alguma atividade de lazer, de trabalho, ligado a alguma associação?
R - Continuo como eu acabei de dizer: sou membro da diretoria do Pato, sou membro da diretoria da Aspran, sou membro do Centro do Professorado Paulista em Santos e faço parte do Conselho do Lam - Lar de Assistência ao Menor. [Com] essas instituições sempre você vai estar [se] reunindo mensalmente, interferindo de alguma forma na cidade. Recentemente, em Santos, providenciei no [Colégio] Canadá a biografia de praticamente quase todos os professores falecidos e entreguei na mão de um vereador para que fossem dados nomes de ruas na Zona Noroeste da cidade. Praticamente quase todos os nomes de professores que faleceram do Canadá eu dei os dados biográficos para o Deputado Antônio Erasmo Dias, Emílio Justo e eles deram nome de escolas.
Essa preocupação com o magistério, com o professor, é uma coisa permanente. Eu fiz isso sempre por idealismo e nunca pensei que esse trabalho iniciado em São José dos Campos em 1947, com o órgão de correção escolar, e em 63, em Santo André… A Secretaria da Educação nomeou uma comissão para estabelecer um estatuto padrão para os órgãos de correção escolar. Tive a satisfação de participar desse órgão de correção escolar. Posteriormente foi mudado para Associação de Pais e Mestres, mas sempre visto com uma má vontade com as autoridades escolares, tanto que um diretor de escola foi suspenso na década de 40 pelo fato de insistir pela cobrança da colaboração da Associação de Pais e Mestres.
Recentemente fiz um relatório dessas atividades todas e mandei para o Ministério da Educação porque pela primeira vez na história da educação no Brasil o ministro está falando em Associação de Pais e Mestres ou coisa semelhante. Para minha surpresa recebi um relatório muito bem justificado elogiando todas aquelas atividades feitas, dizendo que o que foi feito é o que o Ministério da Educação quer fazer hoje, que está exigindo que cada escola no Brasil todo crie uma Associação de Pais e Mestres. Eles estão mandando dinheiro diretamente à Associação de Pais e Mestres para que 30% desse dinheiro seja revertido em benefício do professor e o restante seja ocupado na reforma, em coisas do ensino. Quero crer que vai dar certo, desde que seja tomadas as devidas precauções. Na minha opinião, desde 47 em todas as escolas que andei eu exigi que tesoureiro da Associação de Pais e Mestres fosse professor, que fossem pais de alunos para que tivessem conhecimentos da despesa, pagamentos feitos. Eu acho que isso é fundamental.
P/1 - Senhor Edésio, para a gente encerrar o nosso depoimento eu queria que o senhor falasse um pouco sobre as suas atividades de lazer e falasse um pouco se o senhor tem algum sonho.
R - Uma coisa que eu quero deixar aqui registrado é que infelizmente há muita falta de continuidade das coisas no Brasil.
Na década de 30 eu cheguei a lecionar em escolas de educação de adulto em classes mantidas pela maçonaria. Depois a D. Francisca Rodrigues criou a Bandeira Paulista de Alfabetização, que desenvolveu um trabalho grande. E no período revolucionário surgiu o Mobral - Movimento Brasileiro de Alfabetização. Esse movimento de alfabetização criado pelo ministro Roberto Simonsen, que é uma pessoa de cultura ilibada, foi fantástico. Ele criou comissões municipais em todo o território nacional por um preço mínimo, criou, preparou alunos, supervisores, controles, tudo! Foi uma coisa fantástica! Num lugar onde não havia eletricidade foi usado lampião, nós usamos lampião em Bertioga. Havia um posto, nós chegamos a ter 80 classes de curso de alfabetização de adultos. Todas elas eram visitadas anualmente por mim e pela presidente, que era a D. Marina Magalhães Santos Silva.
No presídio tivemos classes e pasmem o que vão ouvir, na Zona Noroeste tivemos um telecurso segundo grau, o que hoje o governo quer fazer: educação à distância. Tinha uma professora formada em Filosofia, muito culta, os alunos ouviam a aula pela televisão e depois a professora repetia as aulas, dava detalhes, funcionava tudo maravilhosamente bem. Infelizmente, como foi criado no período de exceção, foi extinto, mas o valor desse movimento foi grandioso, pois o Roberto Simonsen recebeu em Paris um prêmio da Unesco pela eficiência com que esse movimento desenvolveu no país. Porque além da alfabetização, do Mobral, que eu passava anualmente com essa D. Marina para dar uma palavras de estímulo, os alunos recebiam instruções mostrando o que eles poderiam fazer dali, era um estímulo para que eles não parassem só na alfabetização. As alunas recebiam noções de alimentação, controle de natalidade, doenças transmissíveis sexualmente, arte culinária, corte e costura, bordado, o aproveitamento da soja, como se faz o leite de soja; visitas, foram feitas exposições em Santos, Caraguatatuba, Bragança Paulista, em São Paulo, um posto de atendimento para emprego. Foi uma coisa fantástica, isso aí, foi uma pena o governo ter suprimido. Mas agora Dona Ruth Cardoso criou as comunidades solidárias, essas comunidades solidárias estão desenvolvendo um trabalho também de alfabetização de adulto e levando conhecimentos sobre higiene, controle de natalidade. O que o Mobral fazia eles estão procurando fazer agora.
Outro movimento também, criado no período de exceção, que foi de um valor extraordinário foi o Projeto Rondon, que foi feito em homenagem ao Rondon, a pessoa que entrou pelo sertão nacional de ponta a ponta instalando as linhas telefônicas. O Projeto Rondon pegava estudantes de nível superior: médicos, advogados, professores de história e geografia que estivessem frequentando faculdade. Esses alunos eram enviados em caravana por avião para os mais recônditas cidades do território nacional. Isso foi feito anualmente, mas [foi] uma coisa fantástica! Era controlado por professores universitários e teve um mártir, um aluno que morreu afogado no Rio Apa. Também restringiram, agora está ressurgindo com o nome de... Usando os universitários, mas [com] uma outra denominação.
P/1 - Sr. Edésio, o senhor mudaria alguma coisa na sua vida?
R - Não porque eu fui vocacionado para o magistério. Eu tenho quatro irmãos que são professores. Eu continuaria como professor e executaria todas as tarefas que executei porque parecia que estava determinado que eu não ficasse numa cidade só, que eu fosse a Taubaté, São José, Bauru, Santo André, Santos e cumprisse uma verdadeira missão.
P/1 - Tá bom. A gente agradece o seu depoimento, foi muito bom.
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