Projeto: Centro de Memória do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo
Depoimento de Luiz Fernando Mussolini
Entrevistado por Stella Franco e Ignez Barretto
Local: São Paulo - SP
Data: 2 de abril de 2001
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: CRC_HV006
Transcrito por Jeane ...Continuar leitura
Projeto: Centro de Memória do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo
Depoimento de Luiz Fernando Mussolini
Entrevistado por Stella Franco e Ignez Barretto
Local: São Paulo - SP
Data: 2 de abril de 2001
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: CRC_HV006
Transcrito por Jeane Gonçalves
Revisado por Grazielle Pellicel
P/1 - Stella Franco
P/2 - Ignez Barretto
R - Luiz Fernando Mussolini
P/1 – Professor, por favor, para a gente começar eu gostaria que o senhor falasse o seu nome completo, local de data de nascimento.
R – É Luiz Fernando Mussolini, graças a Deus nascido em Santa Rita do Passa Quatro (SP), que é a capital intelectual da região, região que inclui Mococa e outras cidadezinhas adjacentes.
P/1 – E a data do seu nascimento?
R – É 5 de janeiro de 1919, embora não pareça. (risos)
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Luiz Mussolini e Marieta Mussolini, ou Ana Maria Mussolini, mais conhecida como Marieta. Ela é daquela cidade famosa, onde tem aquele queijo famoso, Gorgonzola, no norte da Itália.
P/1 – Qual é o nome da cidade?
R – Gorgonzola mesmo, é um subúrbio de Milano [Milão].
P/1 – E o senhor sabe a história, quer dizer, o seu pai também veio da Itália, não?
R – Meu pai veio da Itália dois anos ou três depois que a minha mãe veio, e casaram-se aqui, em 1891.
P/1 – E ele era da mesma região da sua mãe?
R – No norte da Itália, ele é das províncias de Pádua. Minha mãe é da província de Milano.
P/1 – Eles contavam para o senhor as histórias deles lá, da família na Itália?
R – A minha mãe foi educada ou viveu muito tempo com uns condes na Itália, então ela tinha muito boas maneiras, era muito fina. Tanto que nós lá em Santa Rita, os filhos eram obrigados a tomar chá com torrada vestidos com gravatinha, os rapazes, as moças com blusinhas adequadas. Éramos obrigados a tomar esse chá todo dia às 8:30 [horas da manhã], porque minha mãe fazia questão que nós fizéssemos isso. Quando vinha alguma pessoa do exterior ou de uma cidade importante em Santa Rita, o pessoal convidava a minha mãe para ver se os talheres e as mesas estavam postos adequadamente. Ela era uma mulher fina, [mas] não era bonita. O meu pai era um homem muito bonito, mais bonito que o Mastroianni, e eu percebi um dia que minha mãe tinha ciúmes dele. (risos) Muito sub-repticiamente [de forma disfarçada]. Só mais tarde é que eu entendi isso.
P/1 – Por causa da beleza dele.
R – Ele era um homem muito bonito, se vestia como um príncipe, chapeuzinho virado, gravatinha, colete de fustão branco, lenço no bolso, sapato com polaina. Ele era um homem muito elegante, muito educado, muito fino. E eu notei que minha mãe, que não era bonita, tinha muito ciúmes dele. Notei porque uma única vez eu ouvi ela falar uma palavra feia, porque ela era muito católica, não falava. Uma mulher mandou uma carta anônima para o meu pai - esse anônimo era muito relativo -, minha mãe disse para a minha irmã, para a minha tia, irmã dela: "Non c`é dubbio che è quella puttana." [Tradução livre do italiano para o português: “Não há dúvida de que é aquela ‘cadela’”.] (risos)
P/1 – Quer dizer que sua mãe falava italiano também, para as crianças não entenderem?
R – Falava italiano também. Mas ela, no geral, não queria que nós falássemos italiano, tanto que o meu sotaque não tem nada de italiano, porque ela queria que nós falássemos o português correto, e ela conhecia muito bem português. Ela nos obrigava a falar claramente.
P/1 – Ela aprendeu aqui o português?
R – O português aprendeu aqui, mas ela falava muito bem. Ela era uma mulher muito ilustrada.
P/1 – Por que eles se mudaram para o Brasil, professor?
R – Porque a família dos meus pais, especialmente, que tinha a prerrogativa de recolher as dízimas para a Igreja - o Francesco Nitti, que foi um ministro italiano de grande projeção mundial, aboliu essa prerrogativa. Então eles que tinham 10% sobre as dízimas, perderam essa, vamos dizer, essa mamata. Então quiseram vir para o Brasil trabalhar, isso o meu pai.
P/1 – E eles foram direto para Minas Gerais, não?
R - Não, foram para Santa Rita do Passa Quatro... Foram para Descalvado, que era uma cidade próxima ao subúrbio também de Santa Rita do Passa Quatro. Se conheceram em Descalvado e eles se casaram, por amor.
P/1 – E seu pai fazia o quê?
R – O meu pai era alfaiate. Mas ele era um homem de uma visão muito avançada, tanto que ele achava normal as mulheres fumarem naquele tempo, achava normal as mulheres guiarem. E ele argumentava: "Se um homem fuma, por que uma mulher não pode fumar? Se um homem guia, por que uma mulher não guiar?" E tinha uma prostituta chamada... Não me lembro o nome dela agora - eu tinha guardado esse nome - e minha mãe falou que não tinha dúvida que aquela mulher era uma mulher da vida, que estava passando em frente aos estabelecimentos do meu pai, e os empregados iam todos na janela. Meu pai dizia: “Mas não, Marieta, ela não é tão assim quanto você diz, porque essa é a profissão mais antiga do mundo." Era é um homem para “frentex”, um homem muito avançado. E eu tinha grande admiração por ele por causa disso.
P/1 – E o senhor é o primeiro filho?
R – Sou o último filho, o último e o único vivo.
P/2 – De quantos?
R – De oito, eu sou o único vivo.
P/1 – O senhor se lembra da sua casa de infância?
R – Me lembro.
P/1 – Como é que era?
R – Era uma casa muito bonita, porque minha era muito caprichosa, a palavra está certa. Era uma casa muito bonita e o meu pai, tudo o que ela [mãe dele] queria e exigia, ele fazia. Era uma casa muito grande, muito alegre. Uma casa fantástica.
P/1 – Tinha quintal?
R – Tinha um quintal enorme com frutas, meu pai entendia muito disso. Tanto que a minha tese de economista - que eu a perdi - foi a formação dos professores para a agricultura. “Mas para a agricultura, onde se viu?” O que adianta o professor saber que do lado esquerdo é o Juruá, o Perus, e ele não sabe nem como se faz um enxerto. Não adianta nada. Então eu queria que essa mulher fosse entendida em parto se possível, em dietética se possível, e ele, com conhecimentos de veterinária e de agronomia, para orientar os rapazes. Quem come o mamão no interior é o sabiá, eles nem sabem os benefícios do mamão, não sabem os benefícios que eles podem auferir daquela agricultura rudimentar. Então eu queria que esses, eu defendi a tese de que esses professores deveriam conhecer veterinária e agronomia para orientar esses meninos, e as mulheres orientarem essas meninas em relação à comida. Minha irmã foi professora primária nessas fazendas e observava o seguinte: que quando ela fazia sopa ou matava uma galinha era uma festa, e eles nem ligavam para isso, porque não sabiam o valor que tinha uma canja de galinha ou uma fruta para o seu organismo. Por isso é que eu defendi essa tese. Eu perdi a minha tese, foi minha tese de economista. Eu perdi essa tese, não acho. Procurei-a em todo lugar.
P/2 – Que pena.
P/1 - Onde o senhor defendeu essa tese?
R – Em 1943.
P/1 – Em que Instituição?
R – Na Álvares Penteado [Fecap], que é a minha escola, da qual eu sou vice-presidente do Conselho.
P/1 – A gente vai chegar lá ainda nessa história, vamos só voltar um pouquinho na sua casa, nos seus irmãos.
R – Os meus irmãos eram homens muito inteligentes e muito para frente.
P/1 – E como é que era a convivência entre as crianças?
R – Era ótima.
P/1 - Vocês brincavam?
R - Brincávamos muito. Eu e o meu irmão mais novo, tinha uma diferença de sete, oito anos, de forma que eu não conheci a infância dele, conheci só a mocidade dele. Eu tinha alguns vizinhos que eram meus amigos, e com eles é que eu convivi na infância.
P/1 – Do que vocês costumavam brincar, professor?
R – Especialmente, quando em dezembro começavam a amadurecer as mangas, nós apostávamos quem derrubaria com estilingue as duas primeiras mangas, para chuparmos, e quem deixasse ela mais branca, o caroço, era o campeão. (risos) Então nós deixávamos ela branquinha. Campeonato de mangas, era uma delícia. Bons tempos. Eu era coroinha, na Igreja, e todo mundo sabia quando eu batia o sino, porque eu tocava o sino de maneira diferente dos outros.
P/1 – O que o senhor fazia de diferente?
R – O bater do badalo. Eu ia lá embaixo do badalo - eu não ia no lugar que... Eu ia embaixo do badalo, então eles diziam: "É o Luizinho do Mussolini que está tocando o sino." (risos)
P/1 – Ficou conhecido na cidade.
R – É. E eu, por exemplo, ajudava o padre, em Missa Solene precisava de mais pessoas, e tinha um padre de Ribeirão Preto chamado Silvestre que eu não me simpatizava com ele, não sei porquê, até hoje essa antipatia por ele. Eu pedia para os meus colegas porem mais mirra do que incenso no turíbulo, porque a mirra não é muito agradável, e eu chacoalhava na cara dele quando tinha que saudá-lo. (risos)
P/2 – Traquinagens.
R – É, os moleques eram mais traquinas, mas eram educados. Hoje eles são mal educados, no geral, as crianças. Eu adoro criança.
P/1 – Como é que chamava a Igreja onde o senhor foi coroinha?
R – Santa Rita.
P/1 – Foi lá que o senhor fez a sua primeira comunhão?
R – Foi lá que eu fiz a primeira comunhão e que fui batizado. Eu varria a Igreja e a minha mãe achava um ato fantástico varrer a Igreja. (risos)
P/1 – O senhor tinha uma educação religiosa forte na sua família?
R – Fortíssima. Tanto que eu fui estudar para padre e fugi do Seminário, porque Deus escreve certo por linhas tortas, dizem. Mas eu continuo católico, fervorosamente católico, e sou francamente pela doutrina católica, porque eu acho que ela tem fundamentos filosóficos necessários. Veja a definição de São Tomás de Aquino sobre o belo: “O belo é aquilo que visto, agrada.” Curto e importante, não é? São Tomás de Aquino diz que a inveja é a tristeza de não possuir o bem alheio. Veja que coisa maravilhosa! A Igreja é fantástica nos seus ensinamentos.
P/1 – Quem tomou a decisão de enviar o senhor para o Seminário?
R – Minha mãe. E eu também queria.
P/1 -
E o pai do senhor concordava?
R – O meu pai ficou completamente alheio. Meu pai ficou feliz quando ele me perguntou onde eu ia e eu disse que estava me preparando para entrar na Álvares Penteado. Então meu pai ficou felicíssimo, porque ele era muito amigo do pai do Pedro Pedreschi. O Pedro Pedreschi foi um padrão de honra para os contabilistas, e foi aluno e professor na Álvares Penteado. E meu pai disse: “Será que um dia você chega a ser como ele?”
P/2 – Pedro Pedreschi foi o primeiro presidente do CRC?
R – Exatamente. E quando o diretor Horácio Berlinck me convidou para ser professor da Escola, e ele me aprovou, eu fui no cemitério dizer para o meu pai: ”Olha, papai, consegui o que você queria!” Eu fico emocionado, comovido de lembrar esse detalhe. O meu pai queria tanto que eu fosse professor na Álvares Penteado, e eu amo a minha Escola por causa disso.
P/1 – Nessa época, o senhor estava morando lá e se mudou para fazer o...?
R – Viemos para São Paulo porque meu pai começou a vender tudo, porque ele tinha feito uma promessa verbal - os homens antes cumpriam as promessas verbais - de ajudar um cunhado, um genro, e ele mandou que vendesse até “x”, que ele pagaria. Infelizmente ele não pôde pagar e o meu pai pagou tudo. Viemos para São Paulo.
P/1 – Em que ano foi, professor?
R – Em 1932, um pouco antes da Revolução de 32. Eu era menino.
P/1 – O senhor tem lembranças da Revolução?
R – Me lembro sim, perfeitamente.
P/1 – O que o senhor lembra da Revolução?
R – Eu achava que era uma grossa mentira. Eu, como menino, achava, não sei porquê, achava que a Revolução de 32 era um blefe, que não havia necessidade nenhuma [de] o povo paulista se mobilizar e se sacrificar tanto por uma coisa que viria naturalmente. Essa era a minha opinião quando jovem, hoje eu interpretaria diferentemente.
P/2 – A primeira escola foi em Santa Rita?
R – Foi o Grupo Escolar de Santa Rita. Fiz o curso primário lá, depois estudei no ginásio de São José do Batatais.
P/2 – Era interno?
R – Era interno. Depois eu fui para o Seminário.
P/2 – E o Seminário, onde era?
R – Era em Campinas. O Dom Barreto fez o pior prognóstico da vida dele. Quando eu fui visitá-lo, ele me abençoou, pôs a mão na minha cabeça e disse: “O futuro bispo de Campinas.” Coitado, ele era um ingênuo. E ele era um gênio, Dom Barreto foi um gênio, uma das figuras mais importantes do clero paulista.
P/1 – Essa foi a primeira vez que o senhor estava se separando da sua família?
R – Exato. E essa distância tão grande da família que me obrigou a fugir do Seminário, meu amor pela família, pela minha mãe.
P/1 – Por que o senhor ficava interno lá?
R – Tinha que ficar interno e o ano inteiro, ao contrário de antes. Quando eu estudava em Batatais, que eu ficava seis meses, três meses e seis meses.
P/2 – E mesmo assim o senhor aguentou, quando o senhor estava em Batatais?
R – Aguentei.
P/2 – O senhor, lá de Campinas, depois mudou-se para São Paulo?
R – Para São Paulo. Aí eu entrei na Álvares Penteado, eu fiz exame para a Escola Normal da Praça, porque eu pensei, diziam que ia ter curso noturno, e eu fui um dos melhores classificados. Mas eu não pude fazer o curso noturno porque não foi instituído.
P/1 – Como é que chamava professor, Escola Normal da Praça?
R – Da Caetano de Campos.
P/1 – Tinha esse nome?
R – Chamava-se Escola Normal da Praça.
P/1 – Olha! E era difícil para entrar?
R – Dificílimo.
P/1 – O senhor teve que prestar um exame?
R – Tive que prestar exame e me saí muito bem.
P/1 – Mas aí não teve curso noturno?
R – Não teve curso noturno, eu não pude fazê-lo. Eu queria ser professor primário, então eu fui para a Álvares Penteado. E lá eu me tornei professor, na Álvares Penteado.
P/2 – Mas lá o senhor fez o curso noturno?
R – Fiz o curso noturno, eu trabalhava durante o dia, fui “office boy” na Souza Cruz.
P/2 – Então aí começa a sua vida profissional, na Souza Cruz, e estudando à noite. Quantos anos o senhor tinha?
R – Eu fui para a Souza Cruz, tinha quase 15 anos. Trabalhei lá durante dez anos.
P/2 – E o senhor era “office boy”?
R – Entrei como “office boy” e terminei como contador de custos.
P/2 – É mesmo? O senhor percorria a cidade, na época, a cidade inteira?
R – A cidade inteira, mas eu fazia rapidamente, tanto que eu passei logo a preencher os memorandos, que eu subi de posto. Porque eu fazia com muito interesse, eu queria progredir. (risos)
P/1 – E o curso na Álvares Penteado foi muito em decorrência do desejo do seu pai também?
R – Do desejo do meu pai e de eu aspirar ser como Pedro Pedreschi. O Pedro Pedreschi foi um perito judicial, acho que o mais importante que os contabilistas tiveram. E era um homem genial, escrevia muito bem, em português correto, muito bom [o] português.
P/1 – Como o senhor conhecia o Pedro Pedreschi?
R – Porque o meu pai era amigo do pai dele, ele era da minha terra. Aliás, a minha terra deu três presidentes do Sindicato dos Contabilistas: Pedro Pedreschi, eu e o José Maria Camargo, três presidentes do Sindicato dos Contabilistas. O Sindicato dos Contabilistas de São Paulo tem uma posição invejável nisso tudo, porque ele foi o fulcro de todas as conquistas da classe. O CRC, todas as conquistas da classe foram feitas através do Sindicato dos Contabilistas e dos seus membros, e da Álvares Penteado. Essas duas entidades tiveram uma participação decisiva no desenvolvimento da classe.
P/1 – Professor, depois eu vou pedir para o senhor falar mais sobre a Álvares Penteado, mas antes eu queria saber o que o senhor achou de São Paulo quando o senhor chegou?
R – Ah, eu fiquei estupefato.
P/1 – É mesmo. Por quê?
R – Sair de uma cidadezinha como Santa Rita do Passa Quatro, e a única cidade grande que eu conheci era Ribeirão Preto, de passagem, assim, mesmo. Então eu fiquei estupefato com São Paulo.
P/1 – Qual é a primeira imagem de São Paulo que o senhor tem?
R – Uma imagem acolhera, engraçado... Não hostil. Apesar de alguém jovem, do interior de São Paulo, eu via São Paulo com muita simpatia. E de fato, para mim é uma cidade muito simpática. Apesar de todos os seus defeitos, as suas dificuldades, mas é uma cidade muito simpática.
P/2 – E onde o senhor foi morar?
R – Fui morar na Rua Barão de Iguape.
P/2 – Que bairro que é?
R – Liberdade.
P/2 – Era uma casa, como era?
R – Era uma casa, um porão. Eu dormia em um porão, era comum isso.
P/2 – Mas era o quê? Uma pensão, ou o senhor veio com a família?
R – Não, o meu irmão estava aqui, nós viemos juntos, viemos para a casa dele. Inicialmente, em Vila Mariana, mas pouco tempo, na Rua Dona Avelina. Depois viemos para a Liberdade, aliás, na Rua Barão de Iguape, que era na Liberdade. Eu morei em duas casas lá, na mesma rua, diferentes. Morei na Rua Bonita. Conhecia bem o bairro dos japoneses.
P/2 – Tinha bastante japonês naquela época?
R – Aliás, eu tive muitos alunos descendentes de japoneses. A última estatística que eu fiz no curso superior, eu tinha 49% dos meus alunos descendentes de japoneses, ou “nissei” [filhos de japoneses] ou “sansei” [netos de japoneses], eu não sei. (risos)
P/1 – Então conta um pouquinho, professor, da Álvares Penteado, quando o senhor era aluno.
R – Quando eu dei aula lá... Quando aluno não me lembro muito bem...
P/2 – O senhor não lembra da sua turma, nada?
R – Me lembro, alguns elementos muito bons tinham na minha turma. Tinha o Luiz Berté, que foi diretor da Seção de Matemática da USP, aliás, vários professores nossos foram fundadores da USP. A Álvares Penteado foi o fulcro do ensino comercial no Brasil, o centro, não só sob o ponto de vista material como sob o ponto de vista intelectual. A Álvares Penteado foi exatamente isso: a mãe, a patrona.
P/1 – E tem professores que tenham marcado a sua passagem?
R – Teve alguns que marcaram de maneira decisiva. Por exemplo, em Contabilidade o professor Milton Improta, que era uma inteligência rara, o professor Raimundo Marchi.
P/2 – Eles eram professores do quê?
R – De Contabilidade. Especialmente os de Contabilidade me marcaram, porque eu sempre gostei da Contabilidade. Eu acho que hoje no Brasil falta Contabilidade, tanto que essa participação dos empregados nos lucros não é baseada numa Contabilidade de Custos, deveria ser uma Contabilidade de Custos, saber se realmente a firma deu resultado ou não. Então eles dão uma participação sob o 13º, ao invés de ser sob a participação nos lucros. Se realmente a empresa deu lucro ou não, isso tem que ser apurado com muito cuidado. A senhora sabe que hoje é muito fácil em Contabilidade, porque eles pensam que Contabilidade é escrituração. Escrituração é um simples instrumento da Contabilidade, a Contabilidade é mais séria, muito mais séria e muito mais importante, porque a Contabilidade leva a comparações, sem o que a senhora não pode fazer raciocínio. Como é que a senhora sabe que uma mulher é mais bonita que a outra? Comparando, não é? Em Contabilidade precisa comparar os números. Por exemplo, tem empresas que fazem as depreciações puramente fiscais, quando a depreciação é um critério eminentemente técnico. Vou explicar para a senhora: por exemplo, um imóvel. O Fisco estabelece um critério para depreciar o imóvel, quer dizer, a senhora diminui o lucro. Mas tem um critério técnico se ele vai mais ou se ele vale menos, se ele realmente se depreciou com o tempo, porque a depreciação é o tempo, o uso e a obsolescência são os ítens da depreciação. Não se tem esse cuidado aqui. Eu vejo aí, essa participação dos empregados nos lucros é um crime, não fazem de conformidade com as regras eminentemente técnicas. Não quero exagerar o papel da Contabilidade, mas é muito importante. Veja, por exemplo, a questão de Auditoria, se nós tivéssemos Auditoria, que é um dos ramos da Contabilidade, bem aplicada e bem desenvolvida, nós não teríamos esses problemas que estamos tendo aí de tanta ação no Ministério Público, com relação às falcatruas que existem. A Auditoria é mais dinâmica, mais constante, e ela e concomitante, pode ser apurada a cada três meses, a cada seis meses, depende dos recursos que o Estado disponha para isso. A Contabilidade é muito importante para por exemplo a senhora, como é que sabe os seus resultados aqui, vocês, se não for através de uma Contabilidade adequada, perfeita?
P/1 – E essa preocupação o senhor adquiriu...?
R – Adquiri com a vida, a vida profissional foi me ensinando isso. Como perito, as perguntas. Por exemplo, contador tem que ter conhecimentos de Direito, noções elementares de Direito, especialmente de Direito Comercial, porque os quesitos formulados nas Perícias, às vezes, são de natureza eminentemente jurídica. Porque os advogados infelizmente não sabem nada de Contabilidade. Lá na nossa escola nós pretendemos, na Álvares Penteado, abrir um curso de Direito com ênfase para as matérias econômicas e contábeis.
P/1 – E vocês, na época do senhor, que o senhor estudava, vocês tinham essa parte do Direito?
R – Tínhamos alguma coisa do Direito, tínhamos por professores eminentes do Largo São Francisco, entre eles, o professor Condé, Tito Prates da Fonseca e outros professores eminentes, Luís Corrêa de Brito. Professores eminentes que nos davam uma noção exata, prática do processo.
P/1 – O senhor se formou em que ano, professor?
R – 1940, economista em 43 e contador em 39.
P/1 – Depois que o senhor terminou então o curso, o senhor foi fazer Economia?
R – Eu fui quem insistiu muito para a criação do curso de formação de professores. Eu fui o primeiro professor da matéria na Álvares Penteado, eu insisti muito sobre isso. Porque o que acontecia era o seguinte: o sujeito se formava, era bom aluno, era escolhido para ser professor, mas nem sempre os que conhecem muito a matéria são bons professores. Não pode haver um bom professor se não conhecer bem a matéria, mas tem que ter alguma coisa. E o professor precisa dar algo de si. Se ele não der algo de si para o aluno, ele não consegue ser um bom professor. Então eu via que muitos colegas que eram brilhantes colegas eram maus professores. Para evitar isso nós criamos um curso de formação de professores, eu convenci o diretor do ensino comercial.
P/1 – Nessa época, o senhor era o quê?
R – Não era nada.
P/1 – O senhor era estudante?
R - Estudante.
P/1 - Em que ano? Foi instituído o curso?
R – Foi instituído.
P/1 – O senhor se lembra o ano?
R – Não me lembro. Eu me lembro que foi alguns anos depois que eu comecei a dar aula, que eu notei professores ineficientes. Capazes, conhecedores da matéria, mas incapazes sob o ponto de vista didático ou pedagógico de dar aulas. Então o que eu queria era que os professores fossem capazes, para que o aluno não ficasse completamente acéfalo na matéria. Me lembro que quando dava a primeira aula eu entusiasmava muitos alunos.
P/1 – É. Por quê?
R – Eu precisava entusiasmá-los para a matéria que eles iam estudar, na primeira aula.
P/1 – O que o senhor fazia para deixá-los envolvidos?
R – Eu acenava com as expectativas da profissão, que era uma profissão nobre, uma profissão útil. Imagine, se tiver alguém roubando na sua empresa, você consegue controlar se consegue melhorar os resultados das empresas mediante as informações contábeis. Veja que importância que tem! Gastaria menos, produzindo mais. O custo por unidade seria menor, e o povo se beneficiaria. Isso é que é a dinâmica social, não um papo furado aí. Mas eu sempre digo que a... Como chama a nova prefeita? A Marta [Suplicy] vai resolver. Quando esse trânsito estiver difícil, não se preocupe que a Marta vai resolver. (risos) Mas não pode resolver, que ela não tem dimensão exata do número de automóveis que cada ano entra nas ruas de São Paulo. Fazer uma rua é uma fortuna. Agora, esses cidadãos do trânsito ficam sentados nas escrivaninhas, sem cuidar do trânsito, que poderia ser melhorado. Não vai resolver, a não ser a Marta. Eu sempre digo: "A Marta resolve." Coitada da Marta, tenho até pena dela. (risos)
P/1 – Falando em política, professor, o senhor quando jovem tinha um envolvimento com a política, gostava?
R – Sim, eu fui fundador do MTR, Movimento Trabalhista Renovador. Eu fui um dos fundadores, era uma dissidência do PTB.
P/1 – Em que época?
R – Não me lembro bem, eu era jovem, bem jovem. É porque eu tinha sonhos com relação ao Brasil, sonhos de grandeza.
P/1 – E qual foi a atuação do senhor dentro do MTR?
R - Quem deu a legenda para o Faria Lima foi o MTR. Ele teve a legenda, eu era o presidente do diretório. E o Fernando Ferrari, que foi um italianinho terrível, lá do Rio Grande do Sul, um gaúcho terrível, foi um dos fundadores do MTR. E foi tão gentil que quis que eu assinasse o pedido de registro do partido no Ministério da Justiça em Brasília, ele mandou toda a documentação para eu assinar. Sabia do meu idealismo. Nós defendemos ardorosamente o benefício da cidade, o benefício do cidadão, sem demagogia, como fazem hoje muitos partidos políticos. Sem demagogia, defender os interesses do cidadão naquilo que realmente ele necessita, precisa, esse era o nosso objetivo. Mas voltando ao assunto da Álvares Penteado, a primeira aula que eu dei para um aluno, era um japonês que estava sentado perto desse Fernão Bracher, por isso que eu me lembrei. Esse Fernão Bracher que se formou na Álvares Penteado, foi meu aluno, esse banqueiro aí, de renome. E o japonês fazia assim com a cabeça, apoiando tudo que eu dizia. Eu estava entusiasmado, dizia: "Hoje eu sou o Pelé da matéria", eu dizia comigo. Eu gosto de futebol. (risos) "Eu sou o Pelé da matéria." Porque imagina o japonês acenando, fazendo sinal de aprovação. Tocou o sinal, ninguém se mexeu, ninguém se atrevia a se mexer no tempo em que eu era professor, porque eu entrava na classe, todos se levantavam. Enquanto eu não sentava, eles não sentavam. (risos) Então eu disse: "Bem, vamos suspender a aula, como os senhores todos entenderam, especialmente o senhor", apontei para o japonês, ele fez assim com a cabeça. Não entendi nada. Eu me senti tão pequenininho, porque eu estava tão empolgado. (risos) Tem passagens notáveis, por exemplo, um rapaz fez todo o esforço possível. Eu estava ajudando o professor Hilário a examinar os alunos no último ano e os exames iam até tarde, mais de meia noite. Para apressá-los, eu me prontifiquei a ajudá-los. E tinha um cidadão que fez o possível para dizer que estava se formando no Largo São Francisco. Me lembro bem dele porque ele era ruivo, cabelo de fogo, e gravatinha borboleta. Eu me lembro bem dele. Ele fez todo o possível para me dizer que estava se formando em Direito. “Bom, já que o senhor está se formando em Direito, vamos fazer umas perguntas de Direito, vamos fazer um exame de Direito.” Eu estava muito afiado porque o meu professor de Teoria Geral do Estado tinha me dado umas aulas, tinha assistido umas aulas com muito entusiasmo. Eu estava muito afiado na matéria, e eu formulei algumas perguntas para ele, e ele não respondeu nenhuma.
P/1 – Era exame oral?
R – Era exame oral. Eu disse a ele: “O senhor tirou zero em Direito. Vamos agora à Contabilidade? O senhor está de acordo com o zero?” Ele disse: “Estou de acordo.” E em Contabilidade, terminado, eu disse: “O senhor também tirou zero de Contabilidade, então vai para a segunda época.” (risos)
P/2 – Coitado, não era o dia dele.
R – Ah, eu era... Eu não sou sorteava o ponto, eu mandava [para] escolher: “O senhor escolhe o ponto que o senhor quiser.” E perguntava. Mas aí dava para desenvolver sobre toda a matéria, ver se ele tinha estudado ou não, claro. Eu fui um professor terrível.
P/1 – O senhor logo que se formou, começou a dar aula lá?
R – Não. Passou um ano, ou dois. O Horácio Berlinck, um grande professor, fundador da Escola, ele proporcionava essa oportunidade aos alunos, e eu fui um escolhido. Ele ficava ouvindo pelo microfone, tinha um microfone que ele ligava, a aula. Então era um espécie de concurso. Quando eu passei pelo corredor, ele bateu nas minhas costas e disse: “Vem cá, Mussolini. Meus parabéns, gostei da sua aula. Só que vai mais devagar, senão cansa.” Porque o italiano, descendente de italiano, impetuoso como eu sou, tinha que...
P/2 – Era empolgado.
R - Tinha que empolgar, era empolgado, isso mesmo.
P/1 – E aí o senhor começou como assistente ou direto como professor?
R – Não, direto. Eu substituí um professor e eles gostaram muito, o Berlinck gostou, e aí eu fiquei como efetivo, no curso técnico, e depois no curso superior. Eu dei uma matéria que hoje não existe mais: Estrutura das Organizações Econômicas. Porque o Ministério da Educação nem programa tinha.
P/1 – Não tinha programa?
R – Tinha a matéria e não tinha o programa. Eu tentei obter esse programa, não consegui. Estrutura das Organizações Econômicas. Então eu comecei a dar sobre bancos, sobre Petrobras, em Estrutura das Organizações Econômicas. Eu dava uma ideia panorâmica do que eram essas Instituições. E assim passou-se o ano.
P/1 – O senhor costumava dar aula para quantos alunos, professor, em média?
R – 50 alunos em cada classe.
P/1 – E era uma turma mista ou só homens?
R – Mista, a maioria homens, raríssimo mulher. Eu só tive uma aluna mulher. Naquele tempo, as mulheres não se davam a esse gosto.
P/1 – Depois o senhor decidiu fazer o outro curso, de Economia. Em que local o senhor cursou?
R – Na Álvares Penteado também. E fiz Administração de Empresas.
P/1 – Mais um curso superior. Lá também?
R – E eu tenho um curso interessante, que eu não digo para ninguém.
P/1 – Qual que é?
R – De Hipnotismo.
P/1 – Hipnotismo? Mas é verdade mesmo?
R – É. Eu tenho diploma de hipnotista.
P/2 – O senhor usou, chegou a praticar?
R – Não consegui hipnotizar nem um pintinho. (risos)
P/1 – Nem os alunos?
R – Nem os alunos. Muito menos as alunas. (risos) Não consegui hipnotizar. O cidadão pega uma galinha, olhava, pegava uma galinha, e com o olhar fazia ela dormir. Eu nem pintinho conseguia, fui um fracasso. Eu que estava habituado sempre a ser o primeiro, me senti tão humilhado com esse curso. E tenho um diploma que está escondido.
P/1 – Por que o senhor decidiu fazer esse curso tão diferente?
R – Porque eu achava que Hipnotismo era uma coisa muito importante, principalmente para um professor, que podia hipnotizar os alunos e conseguir...
P/1 – Bons resultados.
P/2 – Essa tática não deu certo.
R – Foi um fracasso. (risos)
P/2 – E paralelamente a isso, vamos voltar um pouquinho para a sua atividade fora da Álvares Penteado, o senhor trabalhou dez anos na Souza Cruz. Na Souza Cruz, o que o senhor fazia naquele tempo, como era a Contabilidade?
R – Eu fiz todos os degraus lá. Era escrituração, preencher formulários...
P/2 – O senhor preenchia à máquina ou ainda era no tempo manual?
R – À máquina. Correspondência, aprendi tudo isso. Estatística, fiz parte do setor de Estatística, Faturamento. Eu aprendi todos os serviços de escritório, até o mais importante, que era ser caixa. Quando eu fui caixa na Souza Cruz, escriturar o livro Caixa, se me oferecessem a presidência da República em troca, eu não aceitaria. Eu achava que era porcaria perto do cargo que eu possuía, de caixa da Souza Cruz. Era uma coisa muito importante.
P/2 – Esse livro Caixa era escriturado à mão?
R – À mão. Eu obtinha o saldo, chegava para o Caixa e dizia: "Saldo é dois contos, 475 reais, ou mil réis, e 400 centavos." E ele dizia "Certo" ou "Não". Eu não, uma vez deu uma diferença de 400 réis, e o homem insistia em pôr do bolso 400 réis. Eu falei: "Não", ele não sabia que era 400 réis, eu sabia que havia essa diferença de 400 réis. Ele tinha que dizer que estava certo ou não estava certo o saldo que eu oferecia, porque o meu não era errado, o meu estava sempre certo. (risos)
P/2 - O senhor fez curso de Caligrafia?
R - Fiz com um engenheiro que ele achava que eu, sendo um bom aluno, como é que eu ia fazer um curso, como é que eu tinha a letra tão feia? E a minha letra é bonita, eu reconheço que é bonita. A minha neta é que diz que a minha letra é muito bonita, que o sonho dela é ter uma letra igual à minha. Eu aprendi com um engenheiro chamado Bergson, que gostava muito de mim e me achava, entre aspas, um gênio. (risos) Isso é uma piada dele. Mas eu aprendi Caligrafia com ele, e ele morava na Vila Mariana, naquela avenida, e no sábado à tarde eu ia lá fazer a Caligrafia com ele, ele me ensinava. Ele era um homem notável, uma inteligência brilhante. E os meus professores na Álvares Penteado tinham uma grande vantagem, eram todos filósofos, pensadores, como, o Tito Prates da Fonseca, o Humberto Condé, não eram meros professores da matéria. E isso fez com que eu aprofundasse os meus conhecimentos de Teologia, que no Seminário eu gostava muito de Teologia. Isso fez com que eu ampliasse os meus conhecimentos de Teologia, porque eu até hoje defendo ardorosamente os princípios cristãos, católicos.
P/1 - Mas isso era uma atividade extraclasse?
R - Extraclasse.
P/1 - O senhor acompanhou muito as transformações nos aparatos tecnológicos no ramo da Contabilidade?
R - No Brasil, infelizmente, não se dá para ver, porque não tinha aplicações. Hoje, com essas novas técnicas, talvez seja possível isso. E eu não quero começar a acompanhar porque eu vou me empolgar e quebrar a minha cuca, eu não quero isso. Mas eu acho que a Álvares Penteado está bem avançada nesse setor.
P/2 - O senhor diz da Informática?
R - Da Informática. Tem mais de 150 computadores lá.
P/2 - Quem não entra nessa área hoje em dia, não existe.
R - Está roubado. Porque é uma coisa muito interessante, a Informática.
P/2 - Em que altura dessa história, em que momento, o senhor casou?
R - Eu me casei quando eu arranjei um bom emprego, tinha 104 candidatos, e sobraram quatro, eu era um dos quatro.
P/2 - Que lugar era esse?
R - Aqui no Bom Retiro, uma firma enorme. E eu me lembro muito bem que eu tive reunião com os diretores, e um deles, chamado Verber, que eu não esqueci o nome, ele disse: "Nós escolhemos o senhor porque o senhor é formado pela Álvares Penteado." Aquilo ficou no fundo da minha alma, e eu defendo a Escola com unhas e dentes. Então eu passei a ganhar muito dinheiro. Imagine, naquele tempo eu ganhava o suficiente para em quatro meses comprar um automóvel. Eu entrei em setembro, me casei em novembro, recebi uma gratificação de 20 contos. Eles gostavam de mim, muito.
P/2 - Como era o nome da empresa?
R - Samira S/A.
P/2 - E fazia o quê?
R - Fazia tecelagem, metalúrgica, fábrica de cabos de guarda-chuva. Eles eram formidáveis.
P/1 - O nome da sua esposa qual é?
R - Nicolina.
P/1 - Ela é descendente de italianos também?
R - Italianíssima. Ó, senão não tem macarronada! (risos)
P/2 - É o prato predileto, a macarronada, como que é?
R - Macarronada e vinho. Os meus ascendentes na Itália eram experimentadores de vinho. Eles que fixavam o preço de vinho, porque os franceses, apesar de tudo, eles não produzem vinho o suficiente dado ao renome que eles têm, para atender o renome que eles têm. Então eles precisam comprar vinho na Espanha, na Itália, na Suíça, para poder atender ao mercado. E eles iam lá e diziam: "Quem fixou o preço?" "Foi o Mussolini." "Ah, então está bom." Imagine que prestígio que nós tínhamos? Eles diziam: "O Mussolini que fixou o preço, está bom." E eu não sou parente do Duce [Benito Mussolini] não. O Lee Iacocca, quando esteve aqui em São Paulo, aquele famoso (cultor?) americano - ativo, ele é muito ativo, um verdadeiro homem de negócios -, ele me chamou e quis saber se eu era parente do Duce. E eu, no meu inglês macarrônico, respondi que não, que sabia que o meu bisavô tinha andado pela Itália, [mas o] que ele andou fazendo, eu não sabia. (risos)
P/1 - E a Dona Nicolina era nascida na Itália ou nascida no Brasil?
R - Nascida no Brasil, é neta de italiano.
P/2 - Como é que vocês se conheceram?
R - Na rua. E meu pai, veja que homem adiantado, um dia eu disse: "Eu vou casar." Ele falou: "Com aquela moça bonita que você espera ela no ponto do Camarão?"
Eu falei: "É." "Você gosta dela?" Eu disse: "Gosto." "Mas você gosta muito mesmo?" " Gosto muito." "Então casa." (risos)
P/2 - O senhor esperava ela no ponto do [bonde] Camarão?
R - É.
P/2 - Ela vinha de Camarão e o senhor estava aguardando?
R - É. (risos)
P/1 - Que bonito. E ela fazia o que, a Dona Nicolina, ela estudava?
R - Estudava no Colégio São José, ali na rua da Glória, e eu morava no Cambuci. E tomávamos o bonde Camarão quase que juntos, um quarteirão antes, um quarteirão depois. E meu pai foi formidável: "Você gosta muito, gosta muito mesmo?" Eu disse: "Gosto." "Então casa." (riso)
P/1 - Em que ano foi esse casamento?
R - Em 1953, já fazem 50 e poucos anos. Eu ainda mando flores para a minha mulher. (risos) É, porque flor é importante.
P/1 - O senhor se casou em qual Igreja, professor?
R - Na Igreja Martiniano de Carvalho, toda enfeitada. Era bonita aquela Igreja, era nova, toda enfeitada. E eu fui fazer a minha lua de mel em Serra Negra, gostei muito porque lá tinha um “maître” de navio italiano, ancorado aqui em Santos, preso em Santos por causa da Guerra, e ele, quando soube que eu chamava Mussolini, a senhora não imagina o que ele fez, só faltava me carregar no colo. (risos) Ele devia ser um fascista roxo, e quem não era tinha que tomar óleo de rícino, eu acho que ele não preferiu aplaudir o Duce do que tomar óleo [de] rícino. (risos)
P/1 - Quando o senhor se casou, então, vocês estavam morando no Cambuci, sua mulher foi morar com o senhor no Cambuci? E aí o senhor trabalhava já nessa empresa que o senhor citou?
R - Não, aí um pouco depois eu comecei a trabalhar nessa empresa, e com essa gratificação eu casei. Além do que, eu fiz um trabalho no Nadir Figueiredo, para o próprio Nadir, que iria demorar seis meses [e] eu fiz em quatro meses. Eu ia trabalhar de sábado e domingo. E ele gostou tanto que me ofereceu um cheque de 6000 reais, que eu não aceitei, a não ser com a autorização dos meus chefes de Auditoria. Eles concordaram, ficaram felizes, aí eu recebi o cheque mais feliz ainda. Seis com 20, 26, mais seis que eu ganhei de um trabalho, 32. Ah, eu montei uma casa na Aclimação que a senhora não imagina, chique!
P/1 - É mesmo? Em que rua que era?
R - Na rua, era continuação da Fonseca Telles. Era o nome de uma pessoa que eu conhecia.
P/1 - E a Dona Nicolina também ficou feliz com a casa nova então?
R - Oh, a senhora não faz ideia. Mas ela é tão exigente, meu Deus do Céu, a senhora não faz ideia. Em casa, eu sofro até hoje.
P/1 - Ela trabalhava, professor, ou era dona de casa?
R - Não, ela trabalhava no correio. Eu fiz ela pedir demissão para casar. Que chato, né? Os homens eram chatos naquela época, não eram liberais. Podiam ser mais liberais. Ela fala: "Eu podia estar aposentada agora pelo correio, receber um bom dinheiro", ela diz. “Mas se for questão de dinheiro, você fala comigo que eu acerto.” "Não é isso, é a minha independência."
P - Moderna ela, então!
R - Mulher é fogo, bicho danado.
P/1 - E, paralelamente, a todos esses trabalhos que o senhor ia desenvolvendo, continuava dando aula?
R - Dava aula à noite, e preparava as aulas, todas as aulas eu levava preparadas.
P/1 - Corrigia as provas e tudo?
R - Corrigia as provas e tudo, eu era um apaixonado pela minha profissão.
P/2 - Professor, e a parte da sua atuação no Sindicato? Essa parte o senhor não contou para a gente ainda.
R - Eu fui presidente do Sindicato dos Contabilistas durante quatro anos. [Por] dois anos eu fui reeleito, fui consecutivo. E eu criei algumas coisas boas lá.
P/2 - Quais?
R - Na Álvares Penteado, também criei. Eu criei, por exemplo, aluno que tira o primeiro lugar não paga o ano seguinte.
P/1 - Uma bolsa?
R - É uma bolsa. Quem tira o segundo lugar, paga metade. E diz a professora Ester: "Por que o segundo lugar?" Eu digo: "Porque eu perdi o primeiro por dois décimos, eu achei a maior injustiça do mundo." E eu criei para os professores o 14° salário na Álvares Penteado. Professor que não faltar 5% das aulas, seja qual for o motivo, e comparecer 95%, recebe o 14° salário. Eu acho que foi uma boa medida, parece que os resultados foram muito satisfatórios. Já estamos na experiência há dois anos e foram muito satisfatórios.
P/1 - Ah, isso é recente?
R - Isso é recente. Porque eu acho que o professor, ele dá algo dele, além dos seus conhecimentos. O, um professor tem que merecer toda a consideração, o professor que é professor.
P/1 - O senhor teve um professor que foi um grande exemplo e modelo de vida?
R - Tive, o Íris Miguel Rotundo. Foi vice-presidente da União dos Refinadores.
P/1 - Ele era professor de quê?
R - De Contabilidade.
P/1 - Lá na Álvares Penteado?
R - Na Álvares Penteado.
P/1 - E por que o senhor idolatrava esse professor?
R - Porque ele não perdia tempo na aula, iniciava o programa e tocava a campainha, ele estava terminando a aula. Além desse, eu tive um professor notável, que era Haroldo de Azevedo, que era professor de Geografia.
P/2 - Escreveu muitos livros, né?
R - É. Eu conheci o filho, que é médico, há pouco tempo. Mas esse professor era extraordinário, o maior didata que eu conheci. É difícil ser professor, porque você precisa empolgar os alunos. Se você não empolga os alunos, se você não mostra a importância do exercício da profissão em todos os atos, ele não aceita.
P/1 - Só fechando um parênteses um pouquinho, voltando para o Sindicato, lembra que o senhor estava falando da sua atuação no Sindicato, como é que foi, professor?
R - Foi muito boa, porque eu defendi a classe ardorosamente em todas as oportunidades. Não me lembro quais foram os fatos, mas a minha posição era inflexível com relação aos direitos dos Contabilistas.
P/1 - Contabilista é uma profissão liberal hoje, considerada uma profissão liberal?
R – Profissão liberal, tanto que tem o Conselho Regional de Contabilidade, que admite contabilistas, que é uma palavra genérica, que abrange guarda-livros, contadores, técnicos em Contabilidade, que podem ser registrados como contadores - podia até certo tempo. Quer dizer, ela é ampla, muito ampla.
P/1 – Isso foi instituído, o senhor tem ideia de quando?
R – Ah, isso foi antes de eu ser presidente do Sindicato, isso já foi instituído pela ocasião do Pedro Pedreschi.
P/2 – Foi um pouco antes do CRC [Conselho Regional de Contabilidade]?
R – O Sindicato foi muito importante. Eu fui presidente da Federação dos Contabilistas. A Federação é um órgão sem atuação muito ampla, é importante, mas o órgão mais importante da classe, independentemente dos aspectos legais que envolvem o Conselho Regional de Contabilidade, foi o Sindicato dos Contabilistas. O Sindicato dos Contabilistas, todas as iniciativas nasceram lá, em favor dos contabilistas. Todas as iniciativas regulamentando a profissão nasceram lá.
P/2 – E junto com o senhor, nesse momento de Sindicato, nessas organizações, participou também o professor Hilário Franco.
R – Ah, que era muito meu amigo.
P/2 – Então, eu gostaria que o senhor falasse um pouco dele.
R – Ah, ele era um homem notável, notável, conhecia muito bem o português. E nós discordávamos em ideias. Ele achava, por exemplo, ele era um cientista da Contabilidade... Eu achava que a Contabilidade não é Ciência, é uma disciplina, ela pode ser tudo menos Ciência. Eu não acredito em Ciências Sociais, nas relações necessárias de causa e efeito, oriundas da natureza das coisas. Essa é uma definição de Montesquieu com relação às Ciências. Porque a senhora vê, hoje eu estou defendendo um trabalho, que eu estou elaborando, isso por causa do professor Hilário Franco, em que devem se fazer três Balanços: um Balanço Fiscal, que é para efeitos fiscais, um Balanço para efeito da Lei de Sociedades Anônimas ou as exigências que essas Instituições fazem. Por exemplo, as Instituições que regulamentam as Cooperativas, que regulamentam outras funções exercidas na atividade econômica, eu acho que esse é um Balanço que tem características próprias. E um Balanço Real, eu vou dar um exemplo de um Balanço Real. Por exemplo, os bancos fazem provisões à vontade. As provisões têm que ser feitas com certa técnica, que não sou eu quem vai determinar, são especialistas na matéria. Depreciações também técnicas, por exemplo, a senhora tem hoje empresas que têm edifícios comprados na avenida Paulista, tem um valor. Outros comprados na Berrini, tem outro valor. Outros comprados naquela rua hoje, que dá pena de ir lá, Barão de Itapetininga, com aqueles camelôs. Nós temos lá, o CRC tem um prédio lá na rua 28 de maio, não sei se é 28 de maio, ou 23 de maio.
P/2 – 24.
R – 24 de maio. Aqueles prédios hoje não estão valendo muito, porque tem muito camelô. Então eles estão registrados por um valor [e] aparece no Balanço por um valor que não corresponde à verdade. Então nós tivemos que fazer Balanços Reais. Por exemplo, o Fisco permite que a senhora deprecie os maquinismos 10% ao ano. No fim de dez anos eles estão todos depreciados, quer dizer, é zero. As fábricas, as empresas continuam funcionando com aquilo, e está contabilizado por zero, porque foram todos depreciados. Então tem que ter uma depreciação real, técnica, feita por técnicos, não é o contador que vai estabelecer os percentuais, é o técnico que vai dizer, mediante laudos. Técnicos idôneos, capazes, gente séria [e] não pilantras. Então a senhora vai ter valores reais, um Balanço Real. Se der tempo, se Deus me der alguns anos ainda de vida, eu termino esse trabalho que estou fazendo.
P/2 – E isso aí é uma coisa que é contrária à maneira do que o Hilário Franco pensava, por exemplo?
R – Não. O Hilário Franco, ele queria, por exemplo, nós discutíamos muito o assunto porque ele dava tecnicidade e cienticismo aos princípios gerais de Contabilidade, com os quais eu não concordo. Eu não concordava com muitas coisas que ele afirmava.
P/1 – Ele era professor também?
R – Professor extraordinário, um homem excepcional, culto, muito culto. Ele, quando ia nessas Conferências Interamericanas, que eu o acompanhava, ele dava verdadeiros shows para esses estrangeiros sobre a capacidade dos contadores brasileiros, de que ele era o padrão. Ele dava verdadeiro show de técnica e de português. Ele conhecia português correntemente, era um homem notável, sério, absolutamente sério, reto, capaz, idôneo. Nós fomos sócios muitos anos, trabalhamos juntos mais de 50 anos, portanto eu o conhecia muito bem, nos detalhes, eu o conheci nos detalhes da sua vida particular. Ele era um homem absolutamente sério, íntegro, capaz, honesto.
P/1 – Quando o senhor entrou na Álvares Penteado, ele já era professor de lá?
R – Não, ele era aluno. Nós fomos contemporâneos.
P/1 – Então vocês foram colegas?
R – Colegas.
P/1 – Depois os dois se tornaram professores?
R – Fomos contemporâneos. Ele era um homem notável, notabilíssimo, culto. Ele me dava os livros para prefaciar, esse "50 anos de Contabilidade" [fui] eu quem o prefaciou. Eu disse: “Mas precisa de apresentar? Você não precisa de apresentação, você já é.” É como eu dizia, que quem tem do que ser é “rempli de soi-même” [cheio de si], quem não tem do que ser é “rempli de mèrde” [cheio de porcaria]. (risos) O meu filho ouviu eu falar isso lá na Álvares Penteado, foi dizer para a minha mulher que eu estava fazendo Conferências pornográficas. (risos) Um português horrível, onde se ouviu falar, “la mèrde”.
P/2 – Quantos filhos o senhor tem?
R – Dois. Um é professor lá, é vice-diretor na Álvares Penteado. Não é porque o pai é de lá não, é porque ele tem méritos.
P/2 – Ele dá aula do quê?
R – Ele dá aula de Direito, ele é advogado e Bacharel em Ciências Contábeis. O outro é engenheiro, mas se dedicou muito à Economia, fez a Getúlio Vargas e é diretor no Itaú, ele entende muito de Fundos, ele é que manobra os Fundos lá no Itaú.
P/1 – Eles já são casados?
R – Casados, com filhos.
P/1 - Então o senhor tem netos?
R - Eu tenho uma neta com 24 anos, que vai se casar esse ano. Eu ajudei até a comprar uma casa. Ah, ela é um amor. É a única neta, então ela tem o... É o “chá das cinco”, meu e da minha mulher. (risos) Ela é um amor. Tenho uma preocupação com ela.
P/1 – Ela se chama como? Qual é o nome dela?
R – É a Claudia, Claudia Cristina. Esse Cristina eu acho tão bonito, por isso que eu insisti em dar o nome de Cristina. Todos os filhos, o outro filho chama-se Caio César. Imagina, esse é que disse: “Eu não fui estudar na sua faculdade, porque senão, se eu for bom aluno como eu sou, vão dizer que ele é bom aluno mesmo. Vão dizer que é proteção do avô. Se eu for mau aluno vão dizer que o avô não presta." (risos)
P/1 – Qual é a função mesmo, professor, que o senhor exerce lá na Álvares Penteado?
R – Sou vice-presidente do Conselho, por enquanto.
P/1 – E o senhor já exerceu algum cargo no Conselho Regional de Contabilidade?
R – Não. Eu tenho uma medalha lá do Conselho que eu estimo muito, é a medalha Pedro Pedreschi, porque ele é da minha terra.
P/1 – É mesmo? Que ano o senhor ganhou essa medalha?
R - Faz uns quatro, cinco anos.
P/1 – Foi uma homenagem?
R – Uma homenagem ao Pedro Pedreschi, não a mim. Eu tenho essa homenagem porque eu sou da terra dele - ele não é da minha terra, eu sou da terra dele -, de Santa Rita do Passa Quatro.
P/1 – A fundação do Conselho, o senhor não acompanhou, né?
R – Acompanhei à distância, torcendo feito um louco. Estava o Pedro Pedreschi lá, era o suficiente.
P/1 – O senhor se lembra do contexto?
R – Me lembro, estava ele e o Joaquim Monteiro de Carvalho, com quem eu briguei muitas vezes.
P/1 – É mesmo? O que ele era lá?
R – Ele foi presidente do Conselho. O Joaquim Monteiro de Carvalho era um homem muito inteligente. Eu me dou com os filhos dele, com a família dele. Mas o Pedreschi foi o primeiro presidente do Conselho. Se não me engano, ele tem, o escritório dele é o registro número um. Pedro Pedreschi. Ele ganhou muito dinheiro sabe no quê? Ele fazia Perícias para aquela família de Santa Rita, uma família quatrocentona lá, que o homem deixou 54 ou 45 fazendas, e não tinha filhos, Procópio...
P/2 – Moreira Sales... Não.
R – Era o marido que era... A senhora sabe quem é, ele casou com uma irmã, e ela queria... Eles ganharam, se não me engano, a questão. Ele ganhou muito dinheiro, tanto que ele morava àquele tempo já naquela rua paralela à Nove de Julho, num palácio, era um palácio. Ele morava lá.
P/1 – Eu queria perguntar para o senhor, se tivesse que escolher uma profissão hoje, escolheria a mesma profissão?
R – Contabilista, especialmente perito, perito judicial.
P/1 – O senhor atuou como perito judicial também?
R – Atuei como perito judicial, ganhei muitas causas. Algumas eu fiz de graça, porque eu sabia da situação dos contendores, que era difícil, e eu fiz de graça. Os primeiros 50 mil cruzeiros que eu ganhei numa ação, que era do Dhelomme, aquele famoso dono de vários prédios aqui em São Paulo, Daniel Dhelomme, eu o conheci, cobrei 50 contos. E o juíz disse: “Está barato porque o senhor é que ganhou a causa.” Eu apresentei uma nova sugestão sobre Fundo de Comércio, não aquilo que os engenheiros faziam. E eu recebi um cheque de 50 contos. O advogado disse: “Você está ganhando mais do que eu, mas merece.” Era o Paulo Roberto Duarte. Eu passei na Gioline Warms e falei: "Eu quero o maior solitário que você tem aí." Ele era meu conhecido, não me lembro o nome dele, me apresentou um anel de sete quilates. Eu paguei 50 contos, levei para a minha mulher, a senhora não imagina a alegria dela. (risos)
P/1 – Imagino, deve ter ficado muito feliz. E até hoje vocês moram lá na Aclimação?
R – Não, não, eu moro no Jardim Paulista.
P/1 – Então o senhor se mudou daquela casa que tinha construído com aquele dinheiro que conseguiu trabalhando?
R – Com muito sacrifício, porque eu fiquei devendo ainda prestações.
P/1 – Professor, eu gostaria que o senhor falasse um pouquinho do papel da Contabilidade, da utilidade da Contabilidade para a economia, para a sociedade.
R – Eu acho que no Brasil falta Contabilidade, falta em todos os setores. Se tivesse Contabilidade, o problema seria diferente, a ação dos políticos seria diferente. Aqui não se tem noção de quanto se gasta, de quanto se pode economizar, de como é gasto, porque no Brasil não tem essa preocupação. A Contabilidade estabelece as paralelas dentro das quais o cidadão deve se portar. E aqui falta Contabilidade, especialmente em um dos ramos da Contabilidade, que é a Auditoria, um dos instrumentos para verificar se foram feitas certas. Há muito cienticismo jurídico aqui na Contabilidade, esse cienticismo jurídico precisa ser posto de lado e agir economicamente, mais e melhor. (risos)
P/2 – Então, professor, o senhor falou uma coisa aí interessante, que tem que trabalhar mais a área econômica. Existe muito essa associação que aconteceu com o senhor, que fez Contabilidade e depois Economia, e então acha que essa ligação é muito importante?
R – Ou amplia os conhecimentos contábeis na área econômica ou faz um curso de Economia. Eu opto pela hipótese de se ampliar os conhecimentos econômicos na área contábil.
P/2 – Fazer um curso de Contabilidade mais completo?
R – Mais completo, aumentando esses conhecimentos de Economia. Eu acho que isso é muito importante, porque, no geral, o contador não é simplesmente um fornecedor de dados, ele pode fornecer dados comparativos para formulação de juízos. Por exemplo, em custo, eu me lembro que eu estudava junto com o presidente de uma empresa, que eu dava assessoria a ele, isso há pouco tempo até, uns quatro, cinco anos, quando a inflação estava no auge. Entrou um cidadão lá e disse: “Que preço eu vou cobrar isso aqui?” O homem pegou uns papéis lá dele: “Faz 35 reais.” Eu falei: “Mas fulano, você está pedindo 35 reais, será que não é muito ou é pouco? Eu estou vendo a sua Contabilidade de Custos aí que está na sua gaveta.” Ele disse: "Se eu errei, errei. Se eu errar para mais, não tem importância, que a inflação vai comer isso aí. Se eu errar para menos, daqui a pouco a inflação vai permitir eu dar um preço adequado a isso.” Quer dizer, não tinha a menor noção de custo. Na Souza Cruz, chegava-se ao absurdo de depois do número inteiro, depois da vírgula, alcançava-se até três casas, 175%, 121%, 119%. O estoque era conferido mensalmente.
P/2 – Mas isso era num tempo onde o dinheiro era mais estável, se fazia as coisas num modelo mais...?
R – Mas hoje, assim mesmo, com esta estabilidade, esta expectativa, e para a tomada de decisões mais adequadas, é necessário que haja uma quantidade de dados e informações precisos ou aproximadamente precisos, para poder tomar uma decisão. "Por quanto eu vou vender esse produto? Até quanto eu posso vender? Eu posso vender esse tecido de metro por...?" Mas aí tem que ver todos os custos. Eu posso vender esse tecido por 120 reais, mas pode ser 118, 115, aí talvez eu possa competir, mas eu preciso ter dados seguros sobre a matéria-prima, a mão-de-obra, todos os gastos decorrentes disso. Outra coisa que esquece é a mercadoria que está em estoque, juros do capital empregado em mercadorias em estoque. Hoje, com esses métodos de computação, evita-se fazer estoques maiores. Porque se a senhora tem uma ideia de quanto vai consumir por mês, ou quanto vai ser vendido por mês, que a senhora vai ficar a menor, tem meios para poder provar e mostrar que é um absurdo aquele estoque. Ou que ele é alto ou que ele é baixo, que há exagero ao ter fabricado aquilo. Hoje, por exemplo, a senhora pergunta quanto custa um operário, você não sabe, porque um operário tem, por exemplo, o INPS [INSS], tem uma porção de despesas, o espaço que ele ocupa, a luz que ele usa. Num escritório, por exemplo, você ter um funcionário a mais, não é só o custo de salário, nem os encargos sociais, é o espaço que ele ocupa, a água que ele toma, a privada que ele usa, o papel higiênico que ele gasta, isso tudo custa dinheiro. Tanto que em certas empresas, por exemplo, não tem controle de estoque de papel higiênico. Ele acha que vai gastar, vamos supor, 500 rolos por mês, então quando gasta 520 chama a atenção, quando gasta 480 chama a atenção, porque tem controles aí no serviço público que está tudo certinho, com requisições tudo certinho, e levam para casa, lápis, borracha. Tem que ver o consumo exato, quanto se consome. Consome 120 lápis por mês? O mês que foi 130, alguém levou dez, ou gastaram dez a mais. O mês que foi 90, então foi exagerado aquele cálculo de 120, ou de 100. A senhora entende? Então precisa ter um controle concomitante em cima, e a Contabilidade oferece esses recursos, sem precisar gastar muito. Esse que eu acho que é o papel da Contabilidade, é ser um controle concomitante, prévio e a “posteriori”, permanente, contínuo. Então, isso eu considero Contabilidade. Não apurar os resultados pura e simplesmente, que às vezes não são apurados, e não são apurados de maneira certa, são apurados de maneira errada. Não é só isso, é mostrar, é uma espécie de guia de administração, a Contabilidade dinâmica é um guia do administrador. Então ele tem condições de poder dizer: "Não, eu não quero isso porque está gastando muito, isso é desnecessário. Nós, com esse mesmo pessoal, nós produzimos dez, com o mesmo pessoal nós podemos produzir doze, ou produzimos oito." Se pode produzir doze e produz oito, são 33% de diferença, é pesado. Então isso que eu considero a Contabilidade, um auxiliar do dinamismo da empresa, não simplesmente um mero anotador do que aconteceu.
P/1 – O senhor acha que hoje o papel do profissional de Contabilidade é valorizado?
R – Ainda não é devidamente valorizado, porque a Contabilidade não alcançou esses parâmetros que eu estou insistindo na necessidade de ter.
P/1 – Professor, tanto quando o senhor estudava, como depois, quando o senhor começou a lecionar, existiam modelos teóricos vindos de fora que vocês usavam ou que você liam, ou existia uma produção nacional?
R – Havia um certo formalismo ditado especialmente pela legislação fiscal, isso sim. Fazia-se a escrituração em função da legislação fiscal, não em função dos princípios de Contabilidade. Por exemplo, a senhora adquiriu um imóvel, [então] tinha que passar pelo valor da escritura. E, às vezes, esse imóvel, uma parte era por fora, pagava por fora, para não pagar, uma porção de maracutaia. Seria certo, seria errado, às vezes, o imposto exagerado. Sabe o que o brasileiro paga três vezes mais do que paga o americano de impostos, a média, três vezes mais. E aquele negócio de que "nós pagamos" não existe, "nós pagamos imposto de renda." Não é "nós pagamos" não, porque isso dá 10% da arrecadação só do imposto de renda. O imposto de renda é 100 milhões, o "nós pagamos" dá dez milhões. O negócio de que "nós pagamos" é conversa, isso é para o PT, o PT que inventa isso, não [é uma] prova. Precisa ter um cuidado com o PT... Não é que eu sou contra. Por exemplo, leite, eu acho que as criancinhas todas devem ter leite, mas eu mandei fazer um levantamento em 1966, o leite produzido no Brasil não era suficiente para todas as crianças brasileiras. Não adianta querer dar leite para as crianças brasileiras se não tem com o que, não é verdade? Quem não tem pena de uma criança que não come? Batom e cosméticos gastaram no Brasil 213 milhões de dólares num ano, era o suficiente para dar leite para todas as crianças brasileiras, só as mulheres não usarem batons e nem cosméticos. Vai dizer isso para elas, não é verdade? É um direito. Então é muito blá, blá, blá.
P/1 – Professor, eu queria saber um pouquinho da sua vida hoje em dia, o seu dia a dia, o seu cotidiano, como é?
R – Eu dispenso um bom tempo à minha escola, a ler e para a minha cesta básica. (risos) Minha cesta básica é um pouco séria, mas eu fiz muita economia durante muitos anos, então eu tenho recursos para ter uma cesta básica adequada. Eu acho que a gente tem que economizar pelo menos um terço do que ganha, depois que passa a ganhar razoavelmente bem.
P/1 – E quais são as suas principais atividades de lazer? O senhor tem atividades que o senhor gosta de fazer, ouvir música?
R – Eu gosto de música, especialmente sinfônica. Sou doido por música sinfônica. Imagine, hoje a gente tem a possibilidade de assistir nessa TVA [tv a cabo] a Orquestra Sinfônica de Berlim em casa, meu Deus do céu! Quer maior prêmio do que este, ter essa oportunidade?
P/1 – O senhor chegou a conhecer a terra dos seus pais na Itália alguma vez?
R – Conheci.
P/1 – E tinha parentes ainda lá ou não?
R – Tenho, devo ter parentes lá ainda, mas eu não os conheço.
P/1 – Para a sua cidade natal, o senhor volta sempre?
R – Ah, de vez em quando eu vou lá ver a minha Santa Rita do Passa Quatro.
P/1 – Vai passear?
R – É a cidade mais bonita do mundo, a mais importante do mundo.
P/2 – E o senhor saiu de lá com mais ou menos 13 anos?
R – 13 anos. Ela tem uma porção de subúrbios lá, Mococa é um deles. (risos) Mococa, Ribeirão Preto. Outro dia eu disse que Ribeirão Preto foi o subúrbio que mais cresceu na região, imagine que pretensão. (risos) Mas Santa Rita tem uma Academia de intelectuais, uma Academia de Letras. Uma parente minha até escreveu um livro de poesia, que ela me mandou anteontem, muito bonito, é o quarto ou quinto livro que ela escreve, de poesias.
P/1 – De escritores de lá?
R – É, são de lá, são todos de lá.
P/1 – Professor, o senhor tem algum desejo, enfim, um grande sonho que gostaria de realizar?
R – Ah, o meu sonho é que a Álvares Penteado fosse considerada a melhor escola, que ela continue considerada a melhor escola do Brasil.
P/1 – Certo. E ao longo da sua vida teve alguma decepção, enfim, alguma coisa que...?
R – Não.
P/1 – A gente está encaminhando para o final. Então, professor, eu gostaria que o senhor falasse o que achou da experiência de ter contado aqui para a gente a sua trajetória de vida.
R – Ótimo, é um desabafo. E vocês são formidáveis, perguntas inteligentes, são criativas, boa imaginação, enfim, são pessoas experientes. São do ramo, como diz. (risos) Adhemar de Barros, um dia, ele estava no Palácio - eu me dava com o Adhemar de Barros, eu tinha uma dívida de gratidão com ele -, ele mandou buscar a minha prima-irmã, que tinha (doença). Mandou uma ambulância em Porto Ferreira buscá-la, com médico e enfermeira. Levou-a aqui para o Mandaqui e tratou dela até morrer. Quando ele foi enterrado, eu fui no enterro dele. Perguntaram para mim: “Por quê?“ Eu disse: “Quer exemplo mais dignificante disso?” Mas voltando a quem é do ramo, a gente estava lá no Palácio, ele era maçom, e disseram: “O Sodré foi indicado para governador.” Naquele tempo, era a Junta Militar que indicava. Ele disse: “É um bom rapaz, só que não é do ramo.” (risos)
P/1 – Então está bom, professor. Nós gostaríamos de agradecer a sua presença e a sua ótima entrevista.
P/2 – Foi muito bom. Muito obrigada.
R – Ah, não, vocês tiveram paciência de me ouvir.
P/1 – O que é isso? Imagina, o senhor tem histórias fantásticas.
[Fim do depoimento]Recolher