P/1 - Boa tarde, Ademir.
R - Boa tarde.
P/1 - Eu gostaria de começar a nossa entrevista pedindo que o senhor nos dê o seu nome completo, o local e a data de nascimento, por favor.
R - O nome é Ademir Ferreira da Silva. Data de nascimento, primeiro de agosto de 50. Local, Rio de Janeiro.
P/1 - O nome dos pais e de onde eles eram.
R - Meu pai chamava-se Manuel Ribeiro Marques, era de São José de Ubá. Minha mãe, Cleonice Ferreira da Silva, natural do Rio de Janeiro.
P/1 - E os avós? Você chegou a conhecer seus avós?
R - Não, não tive essa sorte.
P/1 - Você conhece um pouco a história da família?
R - A minha família é de classe média, a gente lutando com muita dificuldade. Minha mãe principalmente, já que o apoio do meu pai não era total. Minha mãe teve sete filhos, todos criados em casa, com a exceção da minha pessoa. Fui criado no colégio interno.
P/1 - E seu pai? Qual era a profissão do seu pai?
R - O meu pai era marceneiro, mas fazia as vezes de feirante. Era trabalhador autônomo.
P/1 - Onde? Você sabe onde ele trabalhava? Fazia feira onde?
R - Meu pai trabalhava numa oficina na [Rua] Teodoro da Silva, em Vila Isabel, Feira de Acari... Cheguei a vê-lo ele trabalhando numa feira na Rua Filipe Camarão, também em Vila Isabel. É isso que eu lembro.
P/1 - Você nasceu em que bairro?
R - O Maracanã, na época [se] chamava Favela do Esqueleto, onde hoje é a UERJ, em frente ao estádio do Maracanã. Rua _______, para ser mais exato. A favela foi construída por volta de 49, 50, pelo que eu soube. O Jóquei [Clube], na época, no Rio de Janeiro, era naquele espaço ali. Eu lembro, quando criança, de ter jogado bola num local perto da favela onde existia o estábulo, onde os cavalos bebiam água, eram alimentados.
P/1 - Essa favela existe ainda?
R - Não, hoje é a UERJ, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
P/1 - E a sua mãe? Sua mãe trabalhava fora também?
R - Não, minha mãe...
Continuar leituraP/1 - Boa tarde, Ademir.
R - Boa tarde.
P/1 - Eu gostaria de começar a nossa entrevista pedindo que o senhor nos dê o seu nome completo, o local e a data de nascimento, por favor.
R - O nome é Ademir Ferreira da Silva. Data de nascimento, primeiro de agosto de 50. Local, Rio de Janeiro.
P/1 - O nome dos pais e de onde eles eram.
R - Meu pai chamava-se Manuel Ribeiro Marques, era de São José de Ubá. Minha mãe, Cleonice Ferreira da Silva, natural do Rio de Janeiro.
P/1 - E os avós? Você chegou a conhecer seus avós?
R - Não, não tive essa sorte.
P/1 - Você conhece um pouco a história da família?
R - A minha família é de classe média, a gente lutando com muita dificuldade. Minha mãe principalmente, já que o apoio do meu pai não era total. Minha mãe teve sete filhos, todos criados em casa, com a exceção da minha pessoa. Fui criado no colégio interno.
P/1 - E seu pai? Qual era a profissão do seu pai?
R - O meu pai era marceneiro, mas fazia as vezes de feirante. Era trabalhador autônomo.
P/1 - Onde? Você sabe onde ele trabalhava? Fazia feira onde?
R - Meu pai trabalhava numa oficina na [Rua] Teodoro da Silva, em Vila Isabel, Feira de Acari... Cheguei a vê-lo ele trabalhando numa feira na Rua Filipe Camarão, também em Vila Isabel. É isso que eu lembro.
P/1 - Você nasceu em que bairro?
R - O Maracanã, na época [se] chamava Favela do Esqueleto, onde hoje é a UERJ, em frente ao estádio do Maracanã. Rua _______, para ser mais exato. A favela foi construída por volta de 49, 50, pelo que eu soube. O Jóquei [Clube], na época, no Rio de Janeiro, era naquele espaço ali. Eu lembro, quando criança, de ter jogado bola num local perto da favela onde existia o estábulo, onde os cavalos bebiam água, eram alimentados.
P/1 - Essa favela existe ainda?
R - Não, hoje é a UERJ, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
P/1 - E a sua mãe? Sua mãe trabalhava fora também?
R - Não, minha mãe trabalhava para fora. Não trabalhava fora, trabalhava para fora, para famílias que davam roupas para ela lavar, essas coisas. Minha mãe tinha uma atividade assim: ela comprava barricada de porco para vender, chouriço, miúdos de porco. Boa parte do sustento da família provinha disso.
P/1 - Como é que era feito? Isso era feito no espaço da casa de vocês?
R - É. Ela comprava o material, o porco, essas coisas todas, num matadouro que tinha em Santa Cruz, me parece, e trazia para casa. Eu me lembro de vê-la temperando uma daquela bacia enorme de sangue com salsa, um monte de coisa. Ela abria uma tripa, comprida, e jogava o sangue ali dentro, temperado. Depois ia amarrando aquilo em pedaços, cortava, botava para fritar. E quem vendia era eu. (risos) Meus irmãos também participavam disso, mas o mais chegado à minha mãe era eu mesmo, eu que ajudava um pouco mais.
P/1 - E a roupa? Ela lavava? Ela era lavadeira?
R - Ela lavava, era lavado num... A gente chamava de varal. Não sei se é esse ainda o nome que se dá hoje, varal. Lavava ali, estendia ali. Passava um rio embaixo do barraco que a gente morava, parte dos esteios eram fincados nesse rio. Rio raso, nada que transbordasse. E na nascente desse rio, um pouco mais adiante, a água era bem abundante, então a ajudava nesse aspecto de lavar roupa.
P/1 - Ela levava roupa para lavar nesse rio?
R - É, também no rio. Não tinha água encanada em abundância, então ela usava a água da nascente do rio para lavar roupa. Essa roupa, depois de lavada, seca, passada, ia para a casa dos clientes dela, e eu fazia a entrega. Sempre eu. (risos) Na Rua dos Artistas, eu me lembro bem, tinha uns três fregueses dela. Rua Filipe Camarão, Rua São Francisco Xavier… Naquela parte do Maracanã ali andei muito com trouxa de roupa na cabeça.
P/1 - Conta para a gente um pouco as memórias da sua infância nessa Favela do Esqueleto. Como era a moradia? Você falou, por exemplo: não tinha água. Não tinha luz? Como era a casa de vocês?
R - A nossa casa era um barraco de madeira, mas muito grande, porque antigamente sobrava espaço. E minha mãe, quando foi para ali, ela escolheu uma parte grande, porque a família realmente era grande. Éramos sete, eu e mais seis irmãos. Era bastante espaçosa a casa, não tinha problema de estrutura. Quer dizer, meu pai trabalhava também com esse tipo de coisa. Ele fez uma obra bem feita, não tinha perigo, era bem ______.
P/1 - Era madeira?
R - Era madeira.
P/1 - Eles tinham vindo de onde, você sabe? Onde os seus pais moravam antes de se estabelecer ali na Favela do Esqueleto? Você nasceu ali?
R - Eu nasci ali.
P/1 - Nessa casa?
R - Não. Eu lembro que a minha mãe morava numa situação pior. Quando ela conheceu o meu pai ela veio para um situação melhor. Mas a tal casa a que eu me referi há pouco, meu pai ajudou a conseguir aquele espaço com uma pessoa que na época chamavam lá de coronel - ainda tinha isso aqui. Ele ajudou nesse aspecto, de conseguir o local e fazer parte da fundação. Mas depois de um certo tempo, ele tinha outra família e se dedicava mais à outra família dele, e minha mãe foi que segurou a barra.
P/1 - Mas vocês nasceram ali, nessa favela?
R - Todos. Eu não me lembro de um filho... Quer dizer, de mim para baixo, no caso. Tenho três irmãos mais velhos que eu e não me lembro. Dos meus irmãos abaixo de mim eu não me lembro de nenhum ter nascido num hospital ou numa casa de saúde, qualquer coisa assim. Todos nasceram em casa, com parteira, uma senhora chamada Dona Efigênia, que era a parteira do pessoal lá. (risos)
P/1 - Como você se referia a esse lugar onde você vivia? Se perguntasse: "Onde você mora?" Dizia onde?
R - Sempre Favela do Esqueleto. Hoje ele me perguntou sobre o meu endereço, eu falei: "Favela Nova Holanda, Complexo da Maré". Não esconde-se as coisas, não. Uma coisa que passou de repente: eu estava falando da minha mãe e da criação dos sete filhos. Todos foram criados em casa e eu fui criado no colégio interno.
P/1 - Como foi isso? Por que você foi para um colégio interno?
R - Eu não sabia. Quando era criança, eu me questionava porque todos os meus irmãos estavam em casa e eu não. E colégio interno era uma brava, na época.
P/1 - Qual era o colégio?
R - Foram três, na realidade. O primeiro foi Escola Rural Santa Mariana, na Praça Seca. Um lugar bem rude mesmo, bem agreste; era tipo colônia agrícola, bem mato, morro, barro. Depois fui estudar na Estrada do Pau da Fome, também em Jacarepaguá. Chamava-se Instituto Padre Antônio Vieira. Aí mudaram o nome depois para Colégio Dois de Julho. E o último foi Instituto São Pedro, já na Vila Valqueire, na Rua das Rosas.
A causa de eu ter ido estudar em colégios internos... Eu sempre fui muito de rua mesmo, parava pouco em casa, estudar não era o meu forte. Negócio de bola de gude, essas coisas de moleque. A Favela do Esqueleto tinha uma proximidade muito grande com a Mangueira, Candelária, Buraco Quente. E eu, através da bola, organizava o nosso grupo para jogar contra o pessoal de lá, e eles vinham de lá para cá também. Havia esse intercâmbio, muito grande, esse meio me proporcionou conhecer muita gente de lá do outro lado. E a gente era doido para ganhar uma moeda. Qualquer coisa a gente faria para ganhar uma moeda, para comprar um refrigerante ou qualquer coisa assim. E eu levava, na época chamava-se ‘encomendas’. "Leva essa encomenda para mim, para o ________, para não sei quem. Conhece?" "Conheço." "Está na tendinha assim, está te esperando. Leva lá." Eu não sabia o que eu estava fazendo. Ela soube, mas também não me falou, então a providência que ela tomou foi me botar no colégio interno. E eu estava fazendo jogo para bandido daquela época. A causa foi essa.
Aí eu saí do colégio em 62. Meu último dia de colégio interno foi quinze de dezembro de 1962. Eu saí do colégio interno para ir para o Maracanã, para ver a decisão do campeonato carioca de 62.
P/1 - Qual decisão?
R - Flamengo e Botafogo.
P/1 - Quem ganhou?
R - Foi o Botafogo, três a zero. (risos) Ficou marcado. Eu morava em frente, todo jogo eu ia, fosse qual jogo fosse. Mas esse jogo ficou marcado, porque foi meu último dia de colégio interno e foi uma corsa danada.
P/1 - Vamos voltar, porque eu tenho um monte de coisa legal para perguntar. Uma: primeiro, memórias de infância de um garoto na Favela do Esqueleto na década de 50. Como você brincava? Como era o espaço físico para brincar?
R - Era muito amplo...
P/1 - Tinha área verde?
R - Tinha, porque, por exemplo, tinha campo de futebol. Área verde, propriamente dita, a gente ia para a Quinta da Boa Vista, aqui do lado. Você atravessava, vinha pela Radial Oeste, pegava a Ponte São Cristóvão, dava na Quinta da Boa Vista.
Na favela propriamente dita não tinha árvores, não tinha campo, tinha barraco, chão. Mas você saía dali, tinha, por exemplo, a Praça Saenz Peña, que é do lado. Vila Isabel, do lado, se você voltasse mais um pouquinho para cá, Méier, perto também. Não era um tipo de lugar recluso. Desde que você não se envolvesse com nada errado, você tinha acesso a qualquer lugar.
P/1 - Naquela época, você consegue me dizer mais ou menos, Ademir, quantas pessoas moravam numa favela como aquela? Qual era a origem das pessoas?
R - Era uma favela muito grande. Ela tinha uma parte, uma entrada na rua _________, tinha uma outra entrada na [Rua] São Francisco Xavier, onde é a entrada principal da UERJ, você deve conhecer. Tinha uma outra entrada pela Estação de Mangueira, estação de trem, e tinha uma outra entrada, vindo pelo Maracanã propriamente dito. Então era um espaço enorme, tanto é que quem conhece a UERJ vai ver. A UERJ é uma faculdade de uma dimensão enorme.
P/1 - A UERJ, hoje, é no espaço físico exatamente onde era a favela?
R - Exatamente. Cobre todo o espaço que era da favela. Todo.
P/1 - A sua casa era virada para que lado da cidade?
R - A minha casa era virada para frente do Maracanã, na frente. O Maracanã tem duas entradas para as arquibancadas. Tem a do lado do Bellini e a que fica do outro lado, da Avenida Maracanã. E tem a entrada da UERJ. Quer dizer, antigamente não falava, falava Entrada do Esqueleto. O Esqueleto, só tinha aquele prédio sem... Era o esqueleto de um prédio, não tinha nada. Tanto que naquelas tardes muito quentes, ou de noite muito quente de janeiro, fevereiro, aquele calor bravo, a gente subia para o esqueletão do prédio e ficava lá em cima.
P/1 - Que prédio? Não entendi. Era um esqueleto de prédio?
R - Era um esqueleto de prédio. Eles começaram a fazer o prédio e abandonaram.
P/1 - Isso perto da favela?
R - Não, não era perto. Era dentro da favela. A favela era em volta e embaixo. Tinha o primeiro andar, que era bem alto; embaixo daquele primeiro andar construíram uma infinidade de barracos ali e em torno do esqueletão.
P/1 - Alguém comentava alguma coisa sobre a construção do Maracanã?
R - Ah, sim, poxa vida! Todo mundo que morava ali, verdade ou não, o pai trabalhou na construção do Maracanã.
P/1 - Verdade ou não é ótimo! (risos)
R - É, porque o Maracanã é uma referência, né?
Eu morava de frente para o estádio e o rio. Do outro lado do rio tinha um espaço que também era considerado da favela, mas a gente chamava de "os paraíbas". "Os paraíbas" era onde moravam os paraíbas que vinham do norte, da Paraíba, para trabalhar na construção do Maracanã. E acabaram, depois do Maracanã inaugurado, morando ali. Tanto é que eu tenho... O padrinho do meu irmão mais novo, ele é padrinho do meu irmão, mas tem mais afeição por mim. Ele é muito mais meu amigo, gosta muito mais de mim do que do meu irmão. Ele ia me visitar no colégio interno, ia me buscar no período de férias. Esse cidadão, ele trabalhava no Maracanã. Todos os funcionários tinham um número no Maracanã e o número dele era quatrocentos. Esse cidadão trabalha até hoje. A última vez que eu fui ao Maracanã eu encontrei com ele.
P/1 - Qual é o nome dele, você lembra?
R - José. Só sei que é José. Mas se você chegar no Maracanã e perguntar pelo Quatrocentos, todo mundo te diz. Talvez seja a figura mais popular do Maracanã. E esse cidadão, ele era muito amigo do meu pai. Ele era flamenguista e meu pai era vascaíno; ele botou meu nome de Ademir por causa do Ademir do Vasco. Eu acho que estou desvirtuando o assunto.
P/1 - Não, está sensacional.
R - Porque a gente estava falando de uma outra coisa.
P/1 - Não, mas a gente vai voltar. Pode continuar, que está sensacional.
R - E o que acontece? Ele...
P/1 - Está bom para o André, que é vascaíno. Então agora eu sei porque ele selecionou o senhor para dar entrevista.
R - (risos)
P/1 - Porque é homenagem ao Ademir. Quem foi? Foi um grande jogador do Vasco?
R - Foi. O Ademir foi um grande jogador do Vasco. Foi campeão pelo Vasco, foi campeão pelo Fluminense também. Mas foi o artilheiro do Brasil na Copa do Mundo de 50, realizada aqui no Brasil. E meu pai era vascaíno, botou meu nome.
Eu nasci em 50, logo após a Copa do Mundo, em agosto. O meu pai colocou meu nome Ademir em homenagem ao Ademir.
Voltando ao Quatrocentos, ele convidou-nos uma vez para ir ao jogo, era um jogo Flamengo e Vasco. E meu pai me comprou na época uma camiseta branca, que tinha um escudo do Vasco aqui. Quer dizer, tinha do Flamengo, mas meu pai comprou do Vasco. E eu falava que era Vasco. Aí nos levou. Marcou uma hora com o Quatrocentos, ele trabalhava no portão dezoito e lá chegando, o cidadão recusou a me botar dentro do estádio com aquela camisa. Ficou aquela briga, vai não vai, ele é Vasco, ele é Flamengo. E ao lado tinha um cidadão vendendo bandeiras, bandeirinhas, camisas. O cidadão foi lá e comprou uma bandeira do Flamengo. Falou: "Ele vai, mas vai com a bandeira do Flamengo." Aí nos levou para o sexto andar. Você imagina hoje uma pessoa com a camisa do Vasco e a bandeira do Flamengo.
P/1 - Sensacional. (risos) E se chamando Ademir! Vai apanhar das duas.
R - Vai apanhar das duas! (risos) Aí, conclusão: o jogo foi quatro a um...
P/1 - Para quem?
R - Para o Flamengo. Foi três gols no jogador chamado Dida, o jogador que o Pelé ficou na reserva para ele, no início da Copa de 58. Quer dizer, eu saí do estádio como? Com o escudo do Vasco amarrado aqui, preso aqui, e com a bandeira na mão. Sorte que eu morava em frente, praticamente, o percurso foi pequeno.
P/1 - E você torce para que time?
R - Flamengo.
P/1 - Viu? Valeu o Quatrocentos!
R - É, valeu o Quatrocentos.
Esse espaço que o Quatrocentos morava era chamado "os paraíbas". Eram moradias assim: bastante longas, compridas e divididas com paredes. Nessa aqui morava uma família, nessa morava outra. E tinha um cidadão lá chamado João Camilo, que também trabalhava no Maracanã - não sei se ainda é vivo, tomara que seja. Na época ele tinha oito filhos, um espaço só para ele não dava, aí ele tinha cinco, seis espaços para ele. Para você ver o tamanho do espaço... Só para falar isso eu dei uma volta danada.
P/1 - Não, é sensacional, para a gente recuperar uma época da cidade. Quem era seu vizinho de lado? Você consegue lembrar? Eles eram de que origem? Eram cariocas também? Você consegue saber disso?
R - Não, não. Por exemplo, eu lembro do vizinho da direita. Era um casal, Dona Laura e Seu Arlindo. Dona Laura era costureira e Seu Arlindo era chofer de praça. Do lado esquerdo morava uma família que, engraçado, lá em casa nós éramos seis homens e na família ao lado eram seis mulheres, uma família com seis meninas. Não me lembro o nome da mãe nem do pai. Eu sei que ele trabalhava na Vigor. Vigor era uma companhia de leite.
P/1 - Ainda tem.
R - Ainda existe? É isso.
P/1 - Ademir, conta um pouco essa sua ajuda no trabalho da sua mãe. Como era? Onde você levava essas carnes, essas linguiças?
R - O chouriço era vendido ali. Minha mãe pediu para fazer para ela um fogão de barro com uma boca só, mas uma boca muito grande. Tinha o fogão e mais um espaço, tinha uma gaveta embaixo para botar dinheiro, essas coisas. Aquilo era fixo. A roupa que era terrível. A gente tinha que às vezes levar em três, quatro lugares diferentes. Aí andava para Saenz Peña, Maracanã...
P/1 - Você ia a pé?
R - Ia a pé. Todo percurso era feito a pé.
P/1 - Não caía trouxa e sujava, não?
R - Não. Quando eu digo "eu ia", eu não levava quatro trouxas de roupa. Quando vinha era trouxa, quando ia era tudo bonitinho. Mas ia eu, meu irmão, às vezes um amigo mais próximo também, que ajudava. Até porque a estrutura física não permitia que eu carregasse muito peso. Mas também não era uma quantidade de vinte calças, trinta camisas, dez lençóis. Não, era um lençol, duas calças, era uma coisa suportável.
P/1 - E sobre a sua ida às escolas? Você faz o que? Você faz primário nesse internato? Você fez até que ano?
R - Nesse internato eu fiz até o último ano permitido lá, que era o quinto ano. Depois eu saí para ir estudar à noite, mas estudar, realmente, foi o que eu disse: nunca foi muito o meu forte. Eu estudei muito pouco.
P/1 - Você fez o primário?
R - Tenho o primário e fiz... Antigamente tinha primário, ginásio, curso ginasial. Eu fiz dois anos de ginásio. Fiz na escola [República] Argentina, aqui em Vila Isabel.
P/1 - Como era o bairro de Vila Isabel na sua infância? Qual a sua memória do bairro? O que você lembra, por exemplo, de lojas?
R - O que eu lembro já não existe. Eram armazéns, um armarinho - nós saíamos da favela para ir lá comprar botões, agulhas, pano.
P/1 - Lembra o nome?
R - Não me lembro.
P/1 - Mas era onde?
R - Era onde é hoje o negócio chamado Planalto do Chopp, um negócio assim, bem na praça do Maracanã, a primeira loja depois da praça. _____ da torre. É um seguimento da Rua Filipe Camarão.
P/1 - Que outras lojas você lembra no bairro?
R - Açougues. Tinha um açougue lá, do Seu Pereira. Não sei por que, mas ele dava muito bucho para a minha mãe; diziam, na época, que aquilo era bom para curar pneumonias e doenças do pulmão. Ele dava. Minha mãe dizia: "Ah, ele anda muito doentinho." Ele ia lá, cortava um pedaço daquele troço. Eu lembro do cinema que tinha ao lado também desse açougue. Tinha o açougue, tinha o botequim onde eu trabalhei tempos depois, e tinha o cinema, Cinema Maracanã. Era um ______, onde eu fui barrado muitas vezes, porque não tinha quatorze anos. Ficava do lado de fora, era barrado.
P/1 - Mas você ia? Você às vezes ia ver cinema?
R - Ia.
P/1 - Você lembra de algum filme que nessa época marcava vocês, na sua juventude?
R - Claro! Que dizer, eu sempre fui muito ligado a futebol. Ali eu vi os filmes das copas de 58 e 62, tenho uma lembrança perfeita disso. Ali eu ia ver alguns filmes do Elvis Presley, que na época era a coqueluche da garotada.
P/1 - Você está falando que ano, Ademir?
R - Ah, eu estou falando [de] 60. Com dezenove anos já podia entrar no cinema. Filme de cinco anos eu não gostava. Eu nunca gostei de desenho, mas de coisas mais profundas um pouquinho. Por volta de 60, era isso. Você sabe o que era um barato naquela época?
P/1 - O que?
R - Tomar Coca-cola.
P/1 - Ah, é? Era novidade?
R - Era novidade. Coca-cola.
P/1 - Você lembra a primeira vez que você tomou Coca-cola?
R - Lembro. Tinha uma garrafinha pequenininha a Coca-cola, e você não conseguia beber aquela garrafa sozinho, de uma só vez. Você virava na boca para beber, de repente dava uma ardência na narina e você tinha que tirar da boca. Eu não sei, acho que mudaram, deve ter mudado a fórmula, porque é muito diferente. Era um barato ir para a pracinha, tomar sorvete ou Coca-cola.
A gente tinha uma família amiga lá. Esse cidadão, chefe da família... Talvez fosse a única família que tivesse um aparelho de TV. Era uma família um pouco mais...
P/1 - Lá na Favela do Esqueleto?
R - É. Era a única pessoa que tinha um barraco de dois andares. Era comerciante, tinha o ‘comercinho’ dele. E os filhos dele eram muito meus amigos.
P/1 - Ele era comerciante de que? Da favela?
R - Birosca, o que chamavam de tendinha. Então vendia tudo.
P/1 - O que vendia?
R - Doces, refrigerantes, ovos, alguns enlatados, lâmpadas, coco, coco já partido, cortado. Eu lembro daqueles garrafões imensos com aqueles pedaços de coco dentro da água, aquela visão bonita. Balas, balas de tamarindo, balas de puxa-puxa. Eu lembro que minha mãe me mandava comprar uma boneca de anil, imagina! Hoje não tem mais.
P/1 - Boneca do que?
R - De anil. Era aquela para lavar roupa. Colorau, que hoje é substituído pelo extrato de tomate. Então tinha isso.
P/1 - E a primeira vez que você viu televisão?
R - Foi um fascínio. Foi bom, quer dizer, chamava muita atenção, uma novidade.
P/1 - Vocês iam para a casa desse comerciante ver televisão?
R - Não, eles iam em casa me buscar. Os dois irmãos brigavam por minha causa, um tinha ciúme do outro por causa da minha companhia.
No campeonato de basquete - agora fez quarenta anos que o Brasil foi bicampeão de basquete. O campeonato foi realizado no Maracanãzinho, do lado de casa, de novo. Eles não se davam bem, os dois, mas cada um gostava de mim o que era para gostar do outro. Aí ficava aquilo: "Hoje quem vai para o Maracanã..." E eu não pagava nada, os caras pagavam para mim, eu não tinha como. Eles brigavam para pagar as coisas para mim, brigavam para me levar para tomar sorvete, brigavam para me levar para tomar Coca, para ir para o cinema, para ir para o circo, para ir para o jogo.
Eu lembro que uma vez eu estava em casa... Era o Paulo e o Jorge - o Jorge veio a morrer depois, porque se envolveu com o tráfico. E a minha mãe falou comigo: "Você toma cuidado, o Jorge está meio assim." O Jorge apareceu lá em casa para me chamar para ver o jogo de basquete. Era a final, foi Brasil e Estados Unidos. Estava em casa, foi o pessoal lá para me chamar. Baseado no que minha mãe tinha dito, falei para ele que não estava a fim de ir, ou estava meio doente, estava com sono, queria dormir. Enquanto eu estava tentando convencê-lo, chegou o outro, me chamando. Aí eu falei... Mas eu queria ver o jogo.
P/1 - (risos)
R - Fingi que estava dormindo. Aí o Jorge foi embora e eu fui para o Maracanãzinho com o Paulo.
P/1 - E você viu a final?
R - Vi.
P/1 - Essa que agora está comemorando quarenta anos?
R - É, quarenta anos. Me parece que foi em 85 ou 81. Pode procurar nos alfarrábios aí, que deve ter isso. (risos) O Brasil foi bicampeão. Tinha sido campeão no Chile, parece, em 59. Aí já foi 63.
P/1 - Vocês jogavam bola?
R - Jogávamos.
P/1 - Tinha aqueles campos de várzea por ali, aqueles...?
R - Não, a favela tinha um campo. Chamava-se Campo do Unidos do Sul. Unidos do Sul era um time, e esse time tinha esse espaço. Esse campo, por volta de 61, 62, foi aterrado, com a construção da Radial Oeste, porque a Radial Oeste liga a Ponte São Cristóvão até a Estação da Mangueira.
Aquele espaço todo ali era favela. Só que um pouco mais para baixo era o campo. Aterraram o campo e tiraram boa parte do pessoal que morava ali, para que a rua passasse por ali.
P/1 - Você sabe para onde esse pessoal foi, para onde eram removidos?
R - Sei. A primeira parte foi para Nova Holanda, em Bonsucesso, onde eu moro hoje. Só que eu não fui na primeira parte. O lugar que eu morava já era... parece que eles dividiram. Parece que zonearam, fizeram o mapa; tiraram o pessoal daqui para passar primeiro uma via, e depois vai sair o pessoal daqui. Eu fiquei do lado de cá. Saí em 64. Esse pessoal saiu em 62.
P/1 - Para Nova Holanda?
R - É, Nova Holanda. Eram casas de madeira, foi no governo do Carlos Lacerda. E aquele terreno era da Marinha. A segunda parte já foi para a Vila Kennedy.
A Vila Kennedy, naquela época, era muito longe. Tinha uma condução, um ônibus da CTC. Os ônibus tinham sido abolidos, acabaram com os bondes e ficou a CTC, uma companhia de transporte coletivo. Mas o ônibus não chegava nunca, e a minha mãe resolveu que não ia morar ali de jeito nenhum. E não foi, realmente.
A pessoa que foi fazer as fichas das famílias, a minha mãe pediu a ela se não encontrava uma casa para morar onde foi o pessoal da primeira leva. Essa pessoa conseguiu, nós fomos morar lá.
P/1 - Onde?
R - Nova Holanda. Não fomos para a Vila Kennedy.
P/1 - Você lembra dessa situação de transferência? Para a Nova Holanda, essa extinção da favela?
R - Lembro. Sabe o que é você... Você nasce naquele lugar, o espaço que você conhecia cada pedra; a sua casa de tanto tempo morando ali, você se apegando àquilo, sabendo que um dia você vai sair. O fato de sair dali não era uma promessa, soava como uma ameaça até. E, pô, eu gostava muito dali onde eu morava, muito.
Depois que eu mudei, uma semana depois, eu fui ao Maracanã ver o jogo. Passar por onde era a minha casa, aqueles troços todos jogados no chão, madeiras em quantidade, pedras, essas coisas. E revendo amigos que tinham ficado ainda, para sair um tempo depois. Uma coisa muito triste mesmo. Sei lá. De repente eu esteja dando uma dimensão maior do que a coisa tem, mas...
P/1 - Mas para você, afetivamente, era...
R - Aquela mudança foi terrível.
P/1 - Houve, por exemplo, dos moradores, uma revolta contra isso? Havia resistência?
R - Não. O povo era cordeirinho, o pessoal era... Lógico que sempre tinha aquilo: "Eu não vou!" Aquela conversa entre amigos: "Não, vou, não vou." Mas o que você vai fazer? Chegam máquinas, os caras jogam máquinas no seu barraco, derrubam tudo, porque estão do lado do governo, da polícia. Você vai resistir como? Não tem como. Então você tem que aceitar, não tem jeito. Mas por prazer, por querer, nem 10% das famílias que moravam ali, embora em condições precárias, gostaram de ter saído dali para outro lugar.
P/1 - E como é essa casa nesse lugar que vocês moram? É casa de laje?
R - Não, nada disso. Em Nova Holanda, por exemplo, não tinha uma pedra, nada de alvenaria, só madeira. Tanto é que aconteceram dois incêndios alguns anos depois, _____ quase tudo de um determinado lado. Tinha um lado que o pessoal chamava de Vietnã, porque era muito violento. Esse lado pegou fogo, aí construíram casas de dois andares. Não casas de alvenaria, ainda barracos. Pegou fogo de novo. Quando construíram, fizeram uma coisa um pouco melhor.
P/1 - Quantos anos você tinha quando você foi morar lá?
R - Quatorze. Em 64, quatorze incompletos. A gente saiu dali por volta de fevereiro, março; eu fui fazer quatorze em agosto. Eu tinha treze, na verdade.
P/1 - E nessa época, por exemplo, você trabalhava? Você começou a trabalhar quando, Ademir?
R - É como eu estava explicando para ele, eu esqueci seu nome... André. Eu estava conversando com o André. Meu primeiro emprego foi numa oficina clandestina. Era uma oficina de ourives, trabalhava com ouro, prata, metais em geral. Foi meu primeiro emprego. Era um vizinho, que morava ali perto da gente, que tinha essa oficina em Quintino Bocaiúva, quase Cascadura, quase Madureira, na Rua Goiás. Eu trabalhei ali uns quatro, cinco meses. É isso aí.
P/1 - Com quantos anos? Logo que você foi morar em Nova Holanda você começou a trabalhar?
R - Não, eu morava ainda no Esqueleto.
P/1 - Ah, você morava no Esqueleto?
R - É. Ia de trem, pegava o trem ali, saltava em Quintino.
P/1 - E o que você fazia, exatamente?
R - Ah, o primeiro emprego, garoto, eram serviços gerais, praticamente. Varre aqui, compra um café ali, compra um cigarro ali. Eram uns dez homens trabalhando. Quando tinha que ajudar na produção de alguma coisa, era só para segurar... Por exemplo, você vai trabalhar com solda, tem que esticar um fio. Você ficava segurando aquele negócio, era a base, e a pessoa esticava o fio o máximo que podia, ou na dimensão que estivesse, para depois cortar. O máximo que eu fazia para produzir algo era soldar. Soldar uma pulseira aqui, uma pulseira ali. Às vezes estragava alguma coisa, às vezes dava certo.
P/1 - E depois desse trabalho, qual foi o outro trabalho que você teve?
R - Depois desse trabalho eu fui trabalhar de que? Numa casa de confecções, no centro, na Rua Senhor dos Passos, Confecções Tia Ná.
P/1 - Tia Ná?
R - É. Mas o que eu fazia lá também era algo quase irrelevante. Além dos mesmos mandados, comprar as coisas na rua, fazia panfletagem, divulgação com panfletos. Entregava na rua; passava o cidadão, entregava.
P/1 - Já se fazia isso nessa época?
R - Dona Sara não era mole, não. Dona Sara era astuta.
P/1 - (risos) Astuta é ótimo! Como era? Me descreve como era essa propaganda, quais eram os dizeres? Dona Sara vendia o que?
R - Roupas.
P/1 - De mulher?
R - É. Vinha escrito: "Confecções Tia Ná, preço de atacado, ótimo preço...", essas coisas. Aí vinha o endereço. Era isso.
P/1 - Mas você fazia essa panfletagem na própria Rua dos Passos?
R - Fazia na Avenida Passos, que era uma coisa mais... Quem passava pela Avenida Passos podia ir para a [Rua] Senhor dos Passos, [Rua da] Alfândega, [Rua] Buenos Aires, podia ir direto também. Quer dizer, ali era o ponto melhor para se entregar. Às vezes ia para a Central do Brasil fazer isso, às vezes ia para a Cinelândia. (risos) Pontos terríveis. Na época era muito bravo. Ainda hoje.
P/1 - Por que?
R - Porque eram pontos de malandragem, prostituição, essas coisas. A Cinelândia não era só cinema. Tinha uma infinidade de cinemas, mas também tinha muita coisa ruim. Se você não tivesse uma mente boa, se perdia.
P/1 - Você trabalhava de manhã? De tarde?
R - No período normal, de manhã e de tarde.
P/1 - Como era essa região do que a gente chama hoje de Saara? Como era nessa época?
R - Nessa época já era Saara, muita gente. Não era o que é hoje, tinha um pouco mais espaço para você se locomover. Era um formigueiro, guardando as devidas proporções. Naquela época já era bastante gente, se concentrava muita gente naquele espaço lá.
P/1 - Quais eram os ramos de comércio que tinha?
R - Os mesmos de hoje. Roupas, jóias, plásticos, barbantes, papéis.
P/1 - Que ano era isso, Ademir?
R - Aí já foi 64. Em 63 eu estava na oficina, 64, por aí. Aliás, 64 foi o ano das mudanças, literalmente falando. Porque em 64 eu trabalhei em três ou quatro locais diferentes. Mudei de residência, saí do Esqueleto, fui para Nova Holanda. E foi o ano da mudança de governo. 64 foi o ano do golpe militar.
P/1 - Você acompanhava?
R - O que? Política? Foi o que eu falei para o André. Eu vivi a época sem saber o que estava acontecendo. Porque, como todo mundo sabe, as informações não passavam como tinha que ser feito. Passavam pouca informação para a gente.
P/1 - Você morava em Nova Holanda. Havia algum tipo de presença militar em certos lugares? Havia algum tipo de repressão nessa favela que você morava?
R - Não.
P/1 - Você não vivia isso?
R - Não, isso não. Nas comunidades, esse tipo de coisa não chegava. Não se discutia isso. A gente sabia o que? Que o João Goulart não era mais o presidente, que o presidente era outro. Isso a gente sabia porque estava nos jornais, mas o que acontecia a gente não sabia. A informação que era passada era muito restrita, muito pouca.
P/1 - Você, morando em Bonsucesso, você ia trabalhar no centro como? Você vinha de que?
R - Quando eu fui morar em Bonsucesso, eu já não trabalhava no centro. Quando eu trabalhei no centro, eu morava no Esqueleto. Morando no Esqueleto ainda, eu comecei a trabalhar na primeira farmácia que eu trabalhei, Farmácia Magalhães. Trabalhando na Farmácia Magalhães veio a mudança para Bonsucesso.
Eu vinha de Bonsucesso para a Vila Isabel, que era totalmente contramão, não tinha uma condução que fosse para lá. A condução mais próxima me deixava na praça Saenz Peña?). E eu, a princípio, fazia isso, eu saltava na Saenz Peña e ia a pé para Vila Isabel. Pegava ali a [Rua] Gonzaga Bastos. Ia direto, até o [Boulevard] 28 de Setembro, para o meu trabalho. Houve uma época em que esse mesmo ônibus me deixava na Mangueira, na esquina da Rua Ana Neri. Eu saltava ali, pegava a [Rua] Visconde de Niterói, [Rua] Oito de Dezembro. Andava mais, mas em compensação andava menos de ônibus, porque era terrível aquele ônibus. (risos)
P/1 - Então conte, Ademir, como se deu esse primeiro trabalho numa farmácia? Qual era a farmácia? Onde ela era? O que lhe levou a trabalhar numa farmácia?
R - O que me levou a trabalhar na farmácia foi estar desempregado. Um colega de pelada de rua perguntou se eu queria trabalhar na farmácia que ele trabalhava, porque alguém tinha saído, tinha uma vaga. E eu falei: "Ah, eu vou. Mas eu não conheço nada de farmácia." Eu nunca tinha entrado numa farmácia, só para tomar injeção. Não sabia o que era uma farmácia por dentro, mas tinha que trabalhar. Aí fui. Chegando lá… Quer dizer, homeopatia é uma coisa...
P/1 - Qual era o nome da farmácia?
R - Farmácia Magalhães. Na [Rua] 28 de setembro, 283.
P/1 - Ainda existe?
R - O prédio. A farmácia não. Foi comprada pelo grupo Max, virou uma farmácia de alopatia, drogaria. Até a Max, parece que hoje já vendeu.
Entrar numa farmácia: como eu vou fazer, o que eu tenho que fazer? A homeopatia é assim: tem os remédios em determinadas potências; não têm gosto, nem têm cheiro. Você faz o tablete - a gente chama de tablete o que é comprimido. Ou é líquido ou é comprimido. A nomenclatura é essa, tabletes: "Me dá o remédio tal em tabletes?" Aí era o comprimido.
Aquilo não tinha o gosto do remédio. O veículo é açúcar de leite, lactose. É um sabor bem agradável. Quando você faz bem-feito, o sabor é sensacional.
A minha primeira tarefa era fazer recolhimento. O que é recolhimento? O remédio está pronto, os frascos estão vazios, em determinado local. Então você vai na estufa, pega aqueles remédios que estão prontos, bota para esfriar, para abastecer aqueles frascos. Os frascos, uma vez cheios, voltam para os seus lugares.
Eu não sabia mais se eu enchia o frasco ou se eu comia o remédio, porque era muito gostoso, o gostinho da lactose era fantástico. Aí, o meu patrão, ele... O rapaz que trabalhava comigo não, ele me deixou à vontade, mas o meu patrão me viu comendo remédio escondido. Eu pensava que ele não estava vendo; pegava dois, três, botava na boca, mas ele estava vendo. Aí ele falou assim: "Olha, eu vou pegar um prato desse remédio e você come o quanto você quiser, mas desse aqui, os outros, você não come mais." Eu comi quase a metade, aí não aguentei mais comer. Nunca mais eu quis comer.
P/1 - E aqueles que ele lhe deu não tinham componentes de remédio, né?
R - Era placebo. Sabe o que é placebo? Placebo é neutro, ele não tem o medicamento, você vai adicionar o medicamento ali. No processo de manipulação, o placebo é para você pegar... Você quer fazer o remédio em tablete, pega o líquido, mistura no placebo. Aquele placebo vira aquele remédio que você colocou nele. E quando você... Porque tem médicos… Um médico que eu trabalhei, o doutor Roux, talvez tenha sido a maior sumidade em termos de medicina.
P/1 - Como era o nome dele?
R - José Roux. R-O-U-X, a gente chamava “Rou”.
P/1 - Nessa farmácia?
R - Nessa farmácia. Um cara que vivia para aquilo. Ele não tinha mulher, não tinha filhos; a vida dele era a medicina.
Quando ele fazia algo fora da medicina, era um retiro que fazia em Muriqui. Ele tinha uma casa lá. Das quatro semanas, o finalzinho da última semana do mês ele ficava em Muriqui. Era da casa para o consultório, do consultório para casa. E ele era espírita, mas um tipo de espírita praticante, ele fazia as reuniões dele lá, com a irmã dele, com a empregada, com o afilhado, que depois veio a se formar também, através dele. O doutor Roux, ele tinha isso.
Tem uma história curiosa a respeito de uma cliente, a Dona Elza: ele passou um remédio para a Dona Elza, porque a Dona Elza tinha uma simpatia por determinado remédio, digamos assim, Brione. Ela achava que se tomasse Brione ia melhorar, mas tinha que ser receitado por ele, ele tinha que mandá-la tomar. Mas ela estava com outro tipo de problema, aquele remédio não era indicado para o que ela estava precisando; ele passou o remédio que ela precisava tomar. Ela tomou umas quatro, cinco doses do medicamento, em dois dias; no terceiro ela voltou no consultório e disse para ele que não ia continuar tomando o remédio, porque não estava fazendo efeito. E foi lá no balcão da farmácia, brigou com a gente, porque achava que a gente que não tinha feito o remédio direito. Foi lá no consultório para ele mudar o remédio. Ele mandou botar... Ele passou um outro nome, uma outra receita, ela foi lá fazer. Só que o telefone tocou, ele falou assim: "Olha, Ademir, você bota esse nome que eu botei na receita, mas você enche o vidro dela do remédio de novo, do remédio que eu tinha passado.” Ela tomou o mesmo remédio que tinha tomado, que não tinha feito efeito, e voltou no dia seguinte para dizer que tinha melhorado. [Disse] que quando ela falasse para ele para passar tal remédio para ela, que ele passasse o remédio que ela quisesse. (risos)
P/1 - E tinha outras farmácias homeopáticas ali?
R - Em frente tinha uma.
P/1 - Qual era?
R - Na época era Farmácia... Daqui a pouco eu vou lembrar.
P/1 - Isso era final da década de 60? Quando é que você entra na Farmácia Magalhães?
R - 64. Eu lembro do nome dos donos, não lembro da farmácia. Era o Seu Francisco e o Seu Ronaldo. Não estou lembrando o nome. Lembro o nome do empregado, Astrogildo.
P/1 - Depois você lembra. E outras farmácias homeopáticas na cidade?
R - Tinha. Naquela época tinha a Farmácia De Faria, Farmácia Aimoré, que são farmácias antiquíssimas. Essas duas eu lembro. A Farmácia Almeida Cardoso, que a gente, quando precisava de uma matéria que não encontrava em lugar nenhum, ia na Almeida Cardoso. Eles sempre tinham, parece que importavam.
P/1 - Nessa época, na cidade, já tinha muitas farmácias alopáticas?
R - Tinha, bastante. Drogarias tinha sempre. Talvez para cada farmácia de homeopatia tinha dez de alopatia.
P/1 - Nessa época já, em 64?
R - Nessa época. Não tinha grandes redes, como tem hoje. Tinha farmácias de bairro, particulares, “Farmácia tal”. Hoje em dia tem redes de farmácia, Pacheco... E antigamente não, era “Farmácia Cosmo”, Farmácia isso, Farmácia aquilo. Tinha muita farmácia. A homeopatia era quase desconhecida, não se difundia.
P/1 - Quem era um cliente da farmácia homeopática nessa época? Era o pessoal mais do bairro?
R - Olha só, eu não tenho... Essa informação eu não tenho. A característica do cliente de homeopatia.
P/1 - Qual é?
R - Paranóico, talvez.
P/1 - (risos) Jura?
R - É, um doente mais da cabeça do que do físico. A Dona Elza era um caso desses. O freguês de homeopatia chega no balcão para comprar… Dificilmente ele chega: "Eu quero o remédio tal", você dá o remédio tal, ele vai embora. Você esquece disso, porque normalmente eles têm uma história e fazem questão de contar a história. Então, para você trabalhar com isso você precisa ter...
P/1 - O que?
R - Saco de filó, como dizia ________.
P/1 - Mas, Ademir, você acha que isso é uma característica da farmácia homeopática? Do cliente, por exemplo, sentir no vendedor do ramo da homeopatia essa... Querer conversar? Numa farmácia alopática, você não entra em conversa com o vendedor. Por que você acha que essa é uma característica da farmácia homeopática?
R - Porque o cara quer conversar, ele quer desabafar, e todo desabafo faz bem. Não tem que... "Ah, falei isso, passei mal porque falei." Não, você falou, botou para fora. Então é isso, a pessoa chega ali, desabafa, conversa com você. Talvez o remédio seja a coisa menos importante para aquela pessoa. Acho que tem a ver com esse problema de cabeça. Sei lá.
(pausa)
P/1 - Ademir, você estava falando de quando você entra nessa Farmácia Magalhães. Quer dizer, você acaba trabalhando por quantos anos? Vinte anos?
R - Não, eu trabalhei ali de 64 a 78. Foram quatorze anos.
P/1 - Nessa época, quais foram as mudanças que você presenciou dentro da farmácia homeopática? Profissionalmente, o que você foi mudando e galgando dentro da farmácia? Porque você começa só empacotando.
R - O meu início foi como ajudante de produção. Aí tem uma história legal, porque o manipulador prático chamava-se Evaldo, era um amigo da família dos donos. O médico era irmão do dono da farmácia, esse Evaldo foi criado por eles. Mas o Evaldo adoeceu depois de dois meses de eu estar na empresa, ficou tuberculoso e foi se tratar em Curicica. E o patrão não queria fazer investimento, contratar outro prático, ia ter que gastar dinheiro com isso. Ele achava que eu tinha me adaptado bem e que eu tinha condições de assumir.
Poxa, eu tinha feito quinze anos. Ele falou: "Olha, eu vou te dar essa oportunidade. Você vai assumir a responsabilidade da farmácia, da manipulação." Tinha uma série de livros da Farmacopeia. Aí ele falou: "Você não faz nada que não saiba fazer. O que você não sabe você não faz. Mas você pode aprender através da Farmacopeia."
P/1 - A Farmacopeia é o que?
R - É um livro que ensina as coisas que você tem que fazer, como manipulação, comportamento, essas coisas. Eu aprendi através da Farmacopeia. As coisas práticas, quando eu não sabia, o Seu Sílvio, que era o dono, mandava ligar para a Farmácia De Faria, onde trabalhava um senhor chamado Paulo. [Ele] morava no prédio em frente à farmácia que eu trabalhava, a Magalhães; morava ali e trabalhava no centro. Ele falava: "Liga lá para o Seu Paulo, pergunta para ele como é que faz." Aí eu ligava para o cidadão. O cidadão tinha uma paciência de Jó, me ensinava como fazer as coisas. A partir daí eu aprendi tudo: a fazer macerações, triturações, fazer os tabletes em si, do modo mais correto possível. Dinamizações, fazer escala decimal, escala centesimal e por aí afora.
P/1 - Sozinho você foi aprendendo?
R - Esse rapaz que me levou para lá, para a farmácia, um mês depois que eu estava lá ele saiu. Por um problema ou outro ele saiu, não me lembro por quê. Ficamos eu e o outro garoto. Nós trabalhávamos como duas mulas, todo dia, o dia todo. (risos)
P/1 - Como era a carga horária de vocês nessa época?
R - Ah, era bastante extensa. Era das oito da manhã às seis da noite.
P/1 - Final de semana?
R - Final de semana, sábado. Descanso só domingo.
P/1 - Você, como menor, era registrado?
R - Não. Eu trabalhei ali três anos sem registro, eu só fui ser registrado em 67.
P/1 - Na Farmácia Magalhães?
R - Na Farmácia Magalhães. Foi quando veio... Quando criaram o PIS. O PIS foi lançado em 67, me parece, se eu não estou enganado, então eles não tiveram outro jeito a não ser me registrar. Mas o meu patrão era muito bonzinho. Era uma pessoa que... a gente chamava de “baba de quiabo”, porque deslizava de tudo que era jeito; era uma criatura super agradável, amiga, gentil. Minha mãe foi brigar com ele por causa disso, porque ele não tinha me registrado. E eu fiquei de mal com a minha mãe por causa dele. Incrível isso, né?
P/1 - No seu primeiro registro na carteira qual era o nome da sua profissão?
R - Estava escrito "auxiliar de laboratório". Foi no dia primeiro de março de 67.
P/1 - Quais eram os produtos que vocês compravam? Os remédios eram feitos de que produtos, quem fornecia esses produtos?
R - Como eu expliquei ainda há pouco, falei da Almeida Cardoso. A Almeida Cardoso era uma farmácia muito boa, ela fornecia matéria-prima. O que a gente não conseguia fazer através da maceração…
A maceração você obtém através de planta... Remédio tal, é derivado daquela planta. Por exemplo, a passiflora: é feita do maracujá. Você pega a folha do maracujá, digamos, você pega um quilo, reduz a uma pasta, coloca num garrafão, e ali naquele garrafão você coloca cinco litros de álcool retificado. Diariamente, você tem que fazer uma agitação naquilo ali. Você agita durante... O prazo mínimo são oito dias, que aquela planta fica ali em infusão, macerando. Ao final de oito dias, você tira aquilo dali, filtra, bem filtradinho; ali você conseguiu a tintura-mãe de passiflora. Se você vai manipular, tem duas escalas, decimal e centesimal. Se você vai fazer pela decimal, você faz um para nove, para cada dez ml, quer dizer, um milímetro para nove milímetros de álcool diluído, para fazer a dinamização primeiro. Para fazer a maceração da tintura, álcool retificado. Para fazer a manipulação da primeira em diante, a partir da tintura-mãe, fazer a primeira, a segunda, até o infinito. Se você faz a decimal, você faz um para nove. Se você faz na escala centesimal, você de um para 99.
P/1 - Você fazia essa fórmula ainda lá na Magalhães?
R - Fazia.
P/1 - E comprava de quem o maracujá, a flor, a folha? Quem eram os fornecedores da Farmácia Homeopática Magalhães?
R - Em São Paulo havia na época uma empresa chamada Moageira Botânica. O que a gente conseguia de planta vinha de lá. Ou esse pessoal da roça, que trazia essas plantas mais comuns - centopódio, um monte.
P/1 - Centopódio é uma planta?
R - É. É excelente para furunculose. Tinha o fornecedor oficial e tinha esse cara que vendia sem nota fiscal. Até hoje ainda existe isso, se você quer saber.
P/1 - Ah, é?
R - Existe. Dependendo da empresa, pode trabalhar só com nota fiscal, e tem empresa que trabalha sem nota.
P/1 - E era condicionado onde? Era geralmente vidro, o tipo de embalagem usada na época?
R - Não, era vidro. Eu sempre trabalhei com vidro.
P/1 - Tinha embalagem plástica nessa época?
R - Não, plástico até tinha. Mas a pessoa com quem eu aprendi a trabalhar, ele me ensinou que tem determinados remédios que não se dão com plástico. O vidro não, o vidro já é neutro. O vidro não passa nada, o plástico passa alguma coisa. Dependendo da tintura que ficar armazenada naquele plástico, o líquido chupa alguma coisa do plástico. O plástico não é totalmente neutro, o vidro é.
P/1 - E mais que produtos vendiam na Farmácia Homeopática Magalhães? Era remédios, mas tinha, por exemplo, sabonete, perfume, essas coisas?
R - Tinha, mas não fabricada por ela.
P/1 - Ah, tá.
R - A _______ vendia muito, inclusive produtos do laboratório no qual eu trabalho hoje.
P/1 - A _______não, a Magalhães.
R - A Magalhães vendia muitos produtos que eram fabricados pelo laboratório que eu trabalho hoje.
P/1 - Quais produtos?
R - Ah, vários. Por exemplo, talco, Talco Alívio.
P/1 - Talco Alívio. Era produzido por quem?
R - Pelo laboratório Simões. E a farmácia comprava para revenda. Pomada de calêndula, _______, colírio de cinerária marítima, excelente para redução da catarata. Vendiam muito essas coisas lá. Tinha quase nada de alopatia, embora vendesse alguma coisa. Vendia artigos de presente também.
P/1 - A Farmácia Magalhães tinha um logotipo? Tinha uma embalagem própria?
R - Não tinha uma característica, não. Não é o caso, por exemplo, da Simões hoje, que tem a águia como logotipo.
P/1 - A Farmácia Magalhães não tinha?
R - A Farmácia Magalhães não tinha, nem a Homeofarma. Nenhuma das duas tinha uma coisa que identificasse a farmácia, a não ser através do rótulo. No rótulo vinha o nome.
P/1 - Como era esse rótulo? Você pode descrever para mim?
R - O rótulo era azul, tinha escrito "Farmácia Magalhães Limitada”, com endereço, telefone, e com um espaço em branco para você colocar o nome do medicamento.
P/1 - Você batia à máquina?
R - À máquina. Batia não, eu bato até hoje, eu não tenho computador lá não. Computador tem no laboratório. O laboratório é super atualizado. Mas a farmácia, ele viu, foi lá dentro, né, André? É uma coisa assim… Bem, não vou dizer arcaica, mas bem tradicional, bem antiga mesmo. Se você for lá, vai voltar um pouquinho no tempo.
P/1 - Ah, é?
R - É bem interessante lá.
P/1 - Você fica, então, na Farmácia Magalhães até que ano, Ademir?
R - Até 78. Em 78 eu mudei para a farmácia em frente. Mesmo trabalhando na Magalhães, eu fui convidado pelo dono da Homeofarma para fazer serão...
P/1 - Homeofarma. É em frente?
R - Bem em frente, é só atravessar a rua.
P/1 - Você tinha esquecido o nome. É Homeofarma?
R - Não, o nome é Homeofarma a partir de quando fui para lá, mas antes não era. É esse nome que eu não estou conseguindo lembrar.
P/1 - Está tudo bem.
R - A Homeofarma me convidou para fazer serão. Eu saía da Magalhães às seis e ia para a Homeofarma fazer tabletes, manipular os tabletes. Isso ficava até oito, nove horas, dependendo do que tivesse que fazer. Era uma coisa que ajudava a completar o orçamento. (risos)
Aí, passado um tempo, o Seu Ronaldo, que era o dono da Homeofarma, resolveu me contratar. Mas eu falei para ele que eu tinha uma dívida de gratidão com a outra farmácia. E tinha, realmente. Essas coisas existiam antigamente, não sei se existem hoje. [Pedi] que ele fosse falar com o Seu Sílvio; se o seu Sílvio me liberasse... Embora eu quisesse, porque o que ele estava me oferecendo era quatro vezes mais do que eu ganhava lá.
Ele foi falar com o Seu Sílvio. Seu Sílvio falou: "Não, você quer acabar com a minha casa. Você sabe que eu não tenho como conseguir outra pessoa igual a ele." Aí ficaram discutindo lá. No outro dia, ele veio e me liberou. Ele falou: "Ademir, eu não tenho o direito de fazer isso com você. Eu estou pensando mais em mim do que em você e eu não tenho como te pagar o que ele quer te pagar. Então, se você achar que é melhor para você - e é melhor para você -, você fica à vontade." Foi quando eu saí de lá.
(pausa)
P/1 - Ademir, antes da gente falar desse período na Homeofarma, voltando então à Farmácia Magalhães. Você pode descrever um pouco o visual, a estética dessa Farmácia Magalhães? Como era como loja? Os móveis, as prateleiras?
R - A farmácia tinha uma entrada bem vistosa, com vitrines bem acentuadas, artigos de presente nas vitrines, dava um visual bem interessante. A partir do balcão é uma coisa bem restrita mesmo, bem pequena, não tinha uma dimensão grande. Ela tinha uma mesa de manipulação e em torno dessa mesa tinha as vidrarias, com os remédios já prontos, no móvel embaixo, ou de medicamentos, também já prontos para o consumo.
Nos fundos, tinha um corredor, com uma coisa que a gente chama de intermediária - tem as potências oficiais e as intermediárias, que são para fazer essas oficiais. E, mais no fundo ainda, tinha um quartinho; era um quartinho mesmo, uma sala muito pequena, de matérias-primas. Era essa.
P/1 - Se a gente entra hoje numa Farmácia De Faria antiga, a Granado ou a Simões, era assim? Essa farmácia homeopática que a gente conhece um pouco? Aquelas coisinhas de madeira, os vidrinhos?
R - Era, mas só que... Eu posso traçar um paralelo com a farmácia que eu trabalho hoje.
P/1 - Qual é?
R - A farmácia que eu trabalho hoje talvez desse cinco da outra dentro. A outra era bem pequena mesmo. E a Homeofarma, onde eu fui trabalhar, também era a mesma coisa: aquela mesa e, em volta daquilo, as coisas para você trabalhar.
P/1 - Você sabe a idade dessas farmácias? A Farmácia Magalhães, a Homeofarma? Elas existiam há quantos anos no mercado?
R - A Farmácia Homeofarma é mais antiga que a Magalhães. Ela tinha uma filial no centro, até pegou fogo. Eu queria tanto lembrar o nome e não consigo. A Magalhães, não. Embora ela tivesse uma vidraria de um modelo antigo, ela não era uma farmácia antiga. Na época que eu trabalhei lá, ela devia ter uns quarenta anos, talvez.
P/1 - E a Homeofarma?
R - A Homeofarma era uma farmácia quase centenária naquela época, com... Adolfo Vasconcelos! Chamava-se Farmácia Adolfo Vasconcelos. Tinha essa, em Vila Isabel, e tinha uma no centro, cujo endereço sinceramente não sei. Depois virou Homeofarma.
Os donos da Adolfo Vasconcelos, um chamava-se Francisco, e era um aficcionado, doente por corrida de cavalo. Ele destruiu praticamente a farmácia, no jogo, nas corridas. Chegou um ponto que ele não pôde mais manter, aí o senhor chamado Seu Ronaldo, com quem eu trabalhei, que me tirou da outra farmácia, comprou e a moldou para homeopatia e alopatia. Ele botou a alopatia na frente e a homeopatia nos fundos.
P/1 - Como era a relação entre patrão e empregado nessas duas farmácias?
R - Olha, eu vou falar para você, eu tive sorte. Comigo foi assim, era uma coisa bem estreita, bem estreita mesmo. Eu consegui um relacionamento fantástico com o meu primeiro patrão, que foi o Seu Silvio, na Magalhães; um cara super maneiro, muito bom. Bom assim, de meter a mão no bolso e lhe dar o dinheiro sem que você espere, sem que você peça. Fora outras coisas. Ele era capaz de lhe comprar um par de sapatos, comprar um tênis, uma roupa. Precisei dele para crediário, nunca ele me disse não. Era um cara que me levava para a casa dele. Quantas vezes eu jantei, almocei, lanchei? Ele me acompanhava no futebol, me levava para o Maracanã.
P/1 - Como era isso? Você ia muito ao Maracanã com ele?
R - Ia.
P/1 - Você era membro do quê, você falou do Maracanã?
R - É, eu trabalhei onze anos como fiscal da Federação. Eu era do quadro nove. A Federação me escalava para o Maracanã, eu ia para o Maracanã.
P/1 - Fazer o que?
R - Fiscalização.
P/1 - De entrada de torcedor, saída?
R - De entrada, de ingressos. Comecei trabalhando nas roletas: arrecadando ingresso, cortando, botando na urna, o cara passava, Depois passei a chefe de setor, cheguei a ser supervisor de área. Engraçado, o Maracanã está sempre na história.
P/1 - É. Então vamos entrar agora na Farmácia Simões. Como foi o convite para ir trabalhar na Simões e quando foi?
R - O convite definitivo para trabalhar na Simões você quer saber, ou na Homeofarma?
P/1 - Na Simões agora. Na Homeofarma você fica até quando?
R - Na Homeofarma eu fiquei até 81, onde eu saí... A causa da saída foi contenção de despesas - o que foi alegado. Eu trabalhei lá três anos e pouco, quase quatro anos. Sem tirar férias, direto, devido às necessidades que o cara falava que havia, de eu não tirar férias, de eu estar ali. Um belo dia, ele falou que estava notando que eu estava meio cansado, que eu precisava tirar férias. Ele me deu as férias; quando eu voltei, ele me demitiu. Até porque tinha um médico que trabalhava lá, o doutor Cadmo de Moura Brandão, era um médico que tinha uma clientela muito grande, e ele faleceu. Quando eu saí de férias, ele veio a falecer. Quando eu voltei, a farmácia não tinha mais a arrecadação que tinha com aquele médico. Foi o motivo que ele alegou, aí me demitiu.
P/1 - Ainda existe a farmácia?
R - Existe o prédio, a razão social não. É uma drogaria.
Isso foi no final de 81. No início de 82 eu consegui o emprego na Simões, através de um vendedor da Simões, que vendia para a farmácia que eu trabalhava antes, chamado Sidnei. Ele falou com o Seu Simões e o Seu Simões me admitiu.
P/1 - O que você conhece da história da Farmácia Simões?
R - Olha, eu não conheço muita coisa, não. O que eu sei é que ela é fundada em Guarani, em Minas.
P/1 - Quando? Você sabe?
R - Sinceramente, não. Eu tenho para mim que isso deve ser há uns noventa anos atrás. Lá na farmácia consta que ela tem setenta, 75 anos, por aí, mas para mim tem mais. O que eu ouvia do Seu Simões falar, e do Seu Paulo, que era o gerente dele.
Quando fui apresentado para o Seu Simões, o Seu Simões apresentou o Seu Paulo, que estava do lado dele. O Seu Simões falou que tinha 42 anos que o Seu Paulo trabalhava com ele. Eu ainda trabalhei uns dez anos com o Seu Paulo, então o cara trabalhou para ele [por] 52 anos.
P/1 - Quem era o Seu Simões?
R - O Seu Simões era uma figura ímpar. A começar pelo visual.
P/1 - Por que?
R – Era característico. O cara só andava de branco e suspensório. E ele puxava uma perna, levemente. Ele sofreu um acidente, numa inauguração de uma casa que ele mandou fazer na Tijuca, e parece que houve uma explosão. Nessa explosão faleceu o irmão dele, o Seu Valdemar, e ele teve um problema no pé direito. Ele (puxava um pé?).
Ele só andava assim, vestido de branco e de suspensório. Era um cara que chegava no trabalho às cinco horas da manhã. Tanto é que, quando eu fui falar com ele sobre o emprego, ele estava na farmácia sozinho. E a farmácia não era onde é hoje, era na Rua do Matoso, 33. Quando eu vi o cidadão, não sabia que era ele, mas não precisava ter dito que era ele porque, pelo tipo físico dele, pela indumentária, ficou claro que era ele. Não podia ser o empregado àquela hora.
P/1 – Que horas eram?
R – Eram seis horas da manhã.
P/1 – Como foi esse começo? Descreva o que significava a Farmácia Homeopática Simões nessa época, na cidade, no bairro.
R – Quando eu fui admitido, eu não fui para a farmácia, fui trabalhar no laboratório. Na farmácia trabalhavam três pessoas e o Seu Simões falou para mim: “Cada um deles tem 25, trinta anos de casa, então eu não tenho como tirar ninguém e colocar você.” Embora eu fosse muito bom naquilo que eu fazia. “Você vai ficar no laboratório ajudando [em] alguma coisa que o Paulo precise de você. Na primeira oportunidade que eu tiver, você vem para a farmácia.” Aí eu trabalhei na produção do laboratório, fazendo mil coisas, não tinha uma coisa que... “Ademir, faça isso.” Não, eu fazia tudo.
P/1 – Onde era o laboratório? Era na Rua do Matoso?
R – O laboratório era no endereço atual, na Rua Pereira de Almeida, do 90 ao 104. E a farmácia, antes, era na Rua do Matoso, número 33 - era só atravessar o sinal, estava no laboratório. No decorrer do ano de 82, ele transferiu a farmácia para o complexo do laboratório. Era laboratório e consultório médico e farmácia. Formou o complexo.
Trabalhei de 82 a 85 no laboratório, foram três anos. Em 86 ele vendeu para o grupo atual, mas eu já estava trabalhando na farmácia há alguns meses. Souberam que ele ia vender, aí o empregado saiu, o outro saiu, quer dizer, havia necessidade que eu fosse para lá e eu fui. Então em 86 eu fui efetivamente para a farmácia. Quem era o responsável pela farmácia era um parente do Seu Simões. Vendo que ele realmente vendeu, que ele não ia ficar lá, preferiu sair. Ele saindo, a direção da casa resolveu me _____ para a gerência, para que eu ficasse responsável pela farmácia. É o que acontece até hoje.
P/1 – Na Praça das Bandeiras tem outras farmácias homeopáticas?
R – Não tem. A mais próxima era na Rua Haddock Lobo, número 70, 71, Farmácia Stuart. Essa farmácia saiu dali, funcionou ali durante muitos anos. Ela veio para a Rua do Matoso, no número 188, sendo que lá não é uma loja. É uma casa. Você passa, não vê que ali é uma farmácia, mas eles estão lá dentro, trabalhando. Tem dois janelões. Não é uma loja, é uma casa, mas é uma farmácia.
P/1 – Então fale para mim um pouco do ambiente da Farmácia Simões, comparativamente de quando você começou a trabalhar nesse ramo. O que mudou na homeopatia nesses trinta anos? De quando você começou, em 64, até a Simões?
R – Não há uma mudança a nível profissional, a nível de manipulação. Porque a manipulação é uma coisa definida. Você ou faz daquele jeito que tem que fazer... Não tem uma alternativa. Você faz o certo e acabou, não tem como.
O que muda muito é o médico com quem você trabalha. Quando você trabalha numa farmácia que tem um médico próprio da farmácia, o seu trabalho é mais facilitado, porque você trabalha de acordo com as características daquele médico. Você sabe o que ele gosta de receitar, os remédios que ele confia. Aí você já estoca, você armazena, adianta as coisas. O trabalho fica mais fácil. Quando vem uma receita de fora, de um médico estranho, você não tem nada daquilo entabulado, encaminhado; você tem que obrigar o cliente a pegar um dia depois, às vezes até dois. Quer dizer, isso faz o ambiente ficar melhor ou pior. Mais trabalho ou menos trabalho. Um trabalho mais organizado ou uma coisa mais corrida.
P/1 – Do ponto de vista da dinâmica de uma farmácia homeopática, a Simões também tinha produtos próprios? Tinha sabonete, perfume?
R – A Simões tem a farmácia do laboratório Simões.
P/1 – Quais são os produtos da Simões?
R – Esses que eu falei ainda há pouco, colírio de cinerária… Tem xarope natural de ameixas, tem uredol, uterovarol, que é um remédio da mulher, tem matricária, que é um remédio para dentição. Tem um remédio do coração chamado serius - no nosso serius, solução oral, mas o mais conhecido realmente é serius brasiliense. Esse nome, brasiliense, nós usávamos na nossa embalagem, “Serius Brasiliense Simões”. O Seu Simões tinha uma afinidade muito grande com o dono do laboratório Araújo Pena, que é quem detém os direitos sobre o nome, do laboratório Araújo Pena. Só que quando o Seu Simões vendeu, o dono do Araújo Pena proibiu que nós continuássemos usando o nome “bralisiense”, então nós tivemos que refazer a embalagem e a nomenclatura. Botaram Serius solução oral, mas é o mesmo Serius brasiliense que vende...
P/1 – Quando você falou embalagem, antigamente os rótulos nos vidros era o que? Colados nos vidros, hoje é adesivo? Como é isso, Ademir?
R – Eu hoje ainda uso cola, porque fica mais barato. Embora lá na farmácia, ela até poderia ter um pouco mais de facilidade para trabalhar, porque eles têm gráfica própria, então eles podem fazer esse tipo de rótulo com autoadesivo.
P/1 – Mas não fazem.
R – Mas não fazem porque encarece também, talvez seja isso. Então a gente prefere fazer a cola, dissolver, aquele negócio todo, aquele trabalho todo que dá.
P/1 – Você dissolve cola ainda?
R – Não, o laboratório que dissolve, já me manda pronta. Também é demais, nessa altura, ainda fazer isso. Eu trabalhei numa época em que os frascos de homeopatia, de líquido, era vedados com folha de cortiça, uma rolhinha pequenininha. Em cima da rolha, você botava uma carapuça de papel vegetal. Você fazia umas carapuças, com uma linha você amarrava, dava um nó, aí cortava com a faquinha, direitinho. Ficava aquela embalagem bonitinha, mas dava um senhor trabalho para fazer. Hoje não, o frasco tem uma boca maior, tem um gotejador que você coloca ali; coloca a tampa, fecha. Tampa de rosca, muito mais prático.
P/1 – E a Simões, ela tem... Como é o logotipo da loja?
R - É uma águia. Engraçado, a farmácia Simões é tão identificada com a homeopatia e vice-versa, que as pessoas não sabem nem o nome da Simões, as pessoas falam: “Vai na homeopatia da Praça da Bandeira).” Já sabe que é a Simões. Ou então: “Vai na farmácia da águia.” Essa águia, as pessoas pensam até que tem ligação com a homeopatia. Não é. A águia foi adotada como símbolo pelo Seu Simões. O Seu Simões, na realidade, era isso: uma águia, um sujeito forte, astuto, bem identificado com a águia.
P/2 – __________ a história da águia ____________
R – A história da águia?
P/2 – É, ______________.
R – Tem uns dizeres, o nome da pessoa está abreviado: A. Gumercindo.
P/1 – Quem foi ele? Você sabe?
R- Foi o cara que esculpiu aquilo que está naquela águia. É uma águia de madeira de carvalho, embora muita gente pense que seja bronze, porque ela é da cor do bronze. Mas é madeira, é um senhor trabalho. O nome da pessoa está lá: "Esculpido por A. Gumercindo em 1895".
P/1 - Nossa! Você sabe se a Farmácia Simões foi fundada por este Werneck Simões?
R - Foi.
P/1 - Ele é o fundador?
R - O Seu Simões foi quem criou aquela parafernália toda. O que tiver lá foi criação do Seu Simões, ou culpa dele. (risos)
P/1 - (risos) Agora tem na farmácia um busto também?
R - Tem dois bustos do Hahnemann - Samuel Hahnemann, que é o pai da homeopatia. Esse busto tinha na farmácia Almeida Cardoso também, eu lembro. Quando eu ia lá, garotinho, comprar matéria lá, quando eu comecei a trabalhar na Magalhães, eu ia na Almeida Cardoso também, e tinha o busto do Hahnemann.
P/1 - Como é feita na loja? Existe publicidade? Você sabe se a farmácia Simões faz propaganda?
R - Não. O Seu Simões fazia uma propaganda interna. Eu falei há pouco no uredol. Na embalagem do uredol ia o remédio, uma bula do uredol, três folhas de propaganda de outros produtos e um livreto. Era tudo enrolado naquele frasco - um frasco de trinta ml, pequeno, mas a caixa era assim]. (risos)
A pessoa comprava aquele troço grande. Levava um pouquinho de remédio, mas propaganda levava aos quilos. Se bem que aquela quantidade era licenciada, aprovada pelos órgãos competentes. Esse era o tipo de propaganda que ele fazia.
Vou falar uma coisa para vocês, o Seu Simões vendia muito. Era um movimento maluco, até porque ele facilitava muito as pessoas… Facilitava demais. O cara comprava hoje, pagava daqui a sessenta, noventa dias. Quem trabalhava com o Seu Simões naquela época trabalhava muito, porque era muito pedido, era muita coisa. E você não vendia uma unidade, você vendia dúzias. O cara comprava cinquenta dúzias de uredol, comprava sessenta dúzias de xarope.
P/1 - Mas quem? Era um cliente ou era uma outra loja?
R - Era um cliente.
P/1 - Particular?
R - Particular. Ele tinha facilidade para pagar e tinha público para comprar. Por exemplo, se ele comprasse duas dúzias talvez não saísse tão em conta como se ele comprasse vinte, trinta, quarenta dúzias.
P/1 - Quer dizer, tinha um crediariozinho?
R - Tinha um crediário. A forma de pagamento era facilitada. E isso refletia na gente, porque era trabalho que Deus me livre! Eu lembro que quando cheguei lá tinha uma série de moços em pé, era um compartimento enorme - era não, é. Mesas compridas rodeavam tudo e ficava uma moça aqui, outra aqui. Essa aqui enchia, essa aqui embalava, essa aqui empacotava, aquela transportava, aí vinha um cara com o carrinho, levava para a expedição. Era um movimento maluco, mas vendia-se muito. Hoje em dia não vende 10% do que vendia antes.
P/1 - Quando você foi trabalhar lá, Ademir, quantos funcionários tinha na loja?
R - Na Simões?
P/1 - Na Simões?
R - Na farmácia tinha aquelas pessoas que eu já falei: tinha três pessoas. Agora, no laboratório, onde eu comecei a trabalhar, era muita gente. Era mais de sessenta pessoas. Sessenta no mínimo, porque tinha a parte de escritório, a parte de produção, a parte de fabricação. Hoje não tem esse pessoal todo. Hoje, veja só, a minha participação lá se restringe praticamente à farmácia. Ao laboratório não, porque a gente não tem mais acesso. Antigamente, a gente transitava entre uma coisa e outra, do laboratório vinha na farmácia, da farmácia ia para o laboratório. Hoje não, hoje [fica] cada um no seu setor, não tem mais. Hoje tem pessoas que trabalham lá que eu não conheço.
P/1 - Como você avalia isso?
R - Isso vem de encontro com aquilo que eu estava falando a respeito do meu patrão antigo. Eu ia para a casa dele, ia passear, jantar com ele. O outro, quer dizer, pouco contato eu tenho, então eu acho ruim. Não que eu queira que ele me leve para a casa dele, também não é isso que eu quero. Mas, poxa vida, eu acho assim: se eu cuido de uma coisa que é do seu interesse, é primordial que você tenha um bom relacionamento comigo. O que adianta eu cuidar do seu interesse e você se lixar para mim? É ruim, né? Antes tinha um calor humano mais acentuado, hoje em dia não, é mais frio.
P/1 - E como é a sua carga horária hoje de trabalho?
R - Normal. Quer saber exatamente o horário? É normal.
P/1 - Você trabalha sábado?
R - Trabalho porque é comércio. Farmácia é comércio, tem que trabalhar. O laboratório não, o laboratório é só de segunda à sexta. Mas na farmácia a gente trabalha [aos] sábados.
P/1 - E o que mudou no cliente da farmácia?
R - O cliente continua o mesmo, neurastênico... (risos) Mas a gente também muda com o tempo. O que irritava antes, hoje não irrita mais. São tantos anos, você aprende a não escutar certas coisas. Às vezes o cliente fala um negócio que não é aquilo que você é, não é aquilo que você pensa e não é aquilo que você faz. Mas, poxa, por força da profissão, você tem que relevar. Às vezes o cara está num mau dia e fala um negócio ruim. E o cara vem para o balcão da farmácia doente, você tem que entender que ele é um doente e que merece um pouco de paciência da sua parte, no mínimo isso. Aí você tem que mudar, você é obrigado a mudar. Eu já briguei com paciente no balcão.
P/1 - Conta aí.
R - Ah, foi lá na Homeofarma. (risos) Eu trabalhava na parte da homeopatia. É como eu falei: o cara adaptou a alopatia na frente... Aí eu fazia o meu trabalho lá na homeopatia e vinha ajudar no balcão. Não que eles precisassem da minha ajuda, mas eu vinha porque tinha as gueltas para vender.
Sabe o que é guelta? Sabe, André, o que é guelta?
P/1 e P/2 - Não.
R - Guelta é assim: a farmácia compra uma dúzia de um produto e o laboratório manda 24. Quer dizer, o cara compra doze, ganha 24. Dessas 24, se o balconista vender algo, ele ganha 30%. Tem farmácia que dá 30% de comissão, tem outras que dão 10. Mas tem muita coisa assim.
Eu acabava minha parte lá e ia para o balcão para vender guelta para ganhar dinheiro.
P/1 - Guelta é essa diferença dos doze que vêm a mais?
R - É essa diferença. Tem laboratórios e laboratórios, inúmeros deles que são laboratórios que ‘gueltam’. Quando você chega num balcão de farmácia e vê o balconista lhe induzir a comprar determinado produto, ele está vendendo uma guelta.
Existe a guelta, um produto que é guelta, e o produto ético. O ético é só os laboratórios que você comprou doze [e] ele manda doze. Não tem vantagem alguma. E tem os laboratórios de guelta, que você compra doze e recebe 24, e o balconista empurra esses produtos. Mas aí já é uma outra história.
P/1 - A gente estava falando das cadeias das farmácias hoje, muito presentes na cidade do Rio. Farmácia homeopática não tem cadeia de lojas. Cada farmácia homeopática é uma. Por exemplo, a De Faria...
R - A De Faria até que começou.
P/1 - A Simões teve outra loja?
R - Não. A De Faria até que começou, pelo que eu saiba. Até onde eu sei, só existia a do centro, na Rua São José. Acho que no Méier também tinha. Aí botaram uma na Tijuca, outra na Barra, em Madureira. Mas houve uma dissidência, uma briga entre eles lá. Eram dois irmãos, ou são dois irmãos; um eu conhecia até, o doutor Renato.
Eu quis sair da Simões uma vez para ir trabalhar lá. Tive contato com ele, ele conversou comigo, acertamos tudo, salário, comissão. Quando eu fui falar com o Seu Simões que eu ia sair de lá, o Seu Simões ligou para ele e falou: "Não vai sair!" (risos) Aí me deu reajuste, uma história assim.
Essa De Faria, se não houvesse essa briga entre eles, teria essa rede. Parece que um ficou com uma aqui, outro ficou com outra ali, parentes ficaram com outra farmácia, uma história assim. Houve uma dissidência entre eles.
Mas não há rede de farmácia homeopática. Dificilmente o cara que tem uma farmácia tem duas.
P/1 - Como você avalia o mercado da farmácia homeopática hoje na cidade do Rio de Janeiro?
R - É um mercado estável e, posso até dizer, muito promissor. Porque são inúmeras as pessoas que veem na homeopatia... A homeopatia é muito ligada ao espiritismo, sabia?
P/1 - Ah, essa era a pergunta!
R - A fé. Porque há isso: se você acredita e vai tomar o remédio, o remédio vai lhe fazer bem. Se você tomar o remédio sem acreditar, não tem jeito. O povo brasileiro é um povo que gosta de acreditar nas coisas. Você vê quantas pessoas que não prestam e estão aí, e se fazem às custas da boa vontade do povo, porque o povo é bom. A pessoa que usa homeopatia é muito assim, é uma pessoa que acredita, que crê em algo. Aquelas que não acreditam, quando usam a alopatia [e] chegam em um certo ponto que veem que lá não vai dar certo, vêm para a homeopatia. A homeopatia é uma coisa estável, no meu conceito. Tem mercado para todas as farmácias de homeopatia e tem tendência a crescimento.
P/1 - Você vê uma mudança nesses trinta anos que você está nessa área, por exemplo, da clientela, no sentido de que a homeopatia está voltando? Agora, por exemplo, tem uma clientela, uma juventude que usa, voltou a usar a homeopatia. Antigamente, era uma pessoa mais das antigas que usava homeopatia, não é isso?
R - Olha, eu trabalho esse tempo todo e sempre escutei essa frase: "a homeopatia está crescendo".
P/1 - Ah, é?
R - Está crescendo até hoje. E ela já cresceu, já é uma realidade, é um senhor mercado. É uma referência. Porque todo mundo fala assim: "Olha, criei os meus filhos com a homeopatia." "Meu filho tem trinta anos, sempre usou a homeopatia." Entendeu? Então quando a pessoa quer fazer uma referência à saúde, fala da homeopatia.
P/1 - Você usa remédio da homeopatia?
R - Não, não uso.
Tem até uma história engraçada. Esse doutor Roux, que eu te falei que era uma sumidade. Eu tinha problemas sérios, sempre fui um cara muito indisciplinado em nível de alimentação, comia muita besteira. E eu tinha problemas sérios de estômago, de fígado. Eu ia falar com ele quando eu tinha algum problema assim, ia lá no consultório dele. A farmácia era no 283, o consultório era no 329, na [Rua] 28 de Setembro. Eu chegava lá, olhava para ele, conversava com ele. Ele conversava comigo, falava das coisas que eu tinha. Ele passava a receita, eu saía do consultório bom, não tomava remédio.
A homeopatia é assim: quem manipula a homeopatia como eu manipulei não usa. Talvez seja até uma propaganda contra, mas é o meu caso. Eu estou falando do meu caso. Porque... Aquela história que eu te falei do processo de dinamização, decimal, centesimal. Se você coloca uma partícula para 99 de álcool diluído, para você fazer uma potência, você faz a primeira. E quando você chegar na trigésima? Quanto você usou de partícula e quanto você usou de álcool? E quando é alta potência, o médico passa a dar duzentos, na milésima? Entendeu? Aquela partícula inicial que você colocou já se desfez. Mas aí vem o lado teórico da coisa, que os médicos dizem, que o processo é diluição e dinamização. Você dilui, mas você dinamiza. Essa dinamização é feita assim: você usou aquela partícula, botou nove de álcool, aí você vai bater aquilo cem vezes. Você bate cem vezes, nesse ritmo aqui, compassado. Tem farmácia que tem uma borracha, tem farmácia que o cara faz na mão. Então, quer dizer, nessas cem batidas, aquela partícula está se dinamizando naquele álcool, entendeu?
Essa é uma parte. Mas também é aquilo que eu lhe falei antes: você coloca uma partícula para 99, aí você faz a primeira. Você quer fazer a segunda, você pega um da primeira para 99, aí faz a terceira, faz a quarta. Você não tem mais remédio, não. (risos) É terrível, né? Mas é assim que se processa.
P/1 - Então, para a gente ir encerrando, um pouquinho... Você mora em que bairro?
R - O mesmo bairro, Nova Holanda.
P/1 - Você continua morando no mesmo lugar...?
R - Complexo da Maré.
P/1 - Desde quando você saiu do Esqueleto?
R - É. Não na mesma casa, mas no mesmo lugar. Já mudei de casa umas três vezes.
P/1 - E o que mudou nesse lugar nesses últimos trinta anos?
R - Mudou muito para pior, mas muita coisa. Antigamente era uma coisa mais... Vamos dizer assim, era uma convivência melhor, mais sadia, pessoas melhores. Hoje em dia está muito violento, é muito desrespeito com as famílias. Antes não, antes você podia dormir com a janela aberta, não tinha problema. Isso depende muito do dono do lugar. "Dono", entre aspas. O André sabe do que eu estou falando, não sabe, André? Do dono? (risos) Quando o dono é maneiro, você tem um ambiente bom, quando não é, você tem um ambiente ruim.
P/1 - Você mora com quem?
R - Eu e minha mulher, só. Os meus filhos têm a vida deles.
P/1 - Quantos anos os filhos têm? Como é o nome dos seus filhos?
R - Meu filho mais velho chama-se Marco Aurélio. Ele nasceu em 70, tem 33, em agosto. Aí tem o Marcelo, nasceu em 71. E tem a Marlene, que nasceu em 78.
P/1 - Eles estudam? Têm profissão?
R - Não, não estudam. O Marco Aurélio tem acho que dois ou três empregos.
P/1 - Se vira.
R - Se vira. Segurança aqui, não sei o quê ali. O Marcelo trabalha como almoxarife num clube aqui em Botafogo. E a Marlene é dona de casa.
P/1 - E o nome da sua esposa?
R - Atual? Léia. Trabalha comigo. Trabalha na Simões.
P/1 - Ah! Começou a namorar lá?
R - Foi. Nós nos conhecemos lá. Inclusive, o meu nome é Ademir, o dela é Léia, mas não é Léia. (Léia é diminutivo. Quando ela chegou lá, a primeira vez que eu a vi, ela chegou até com o marido dela. (risos) Ela era casada. Ela saltou do carro, entrou, eu achei interessante. Quando eu fui bater o meu cartão, tinha um cartão antes do meu; antes era pela ordem alfabética, o meu, Ademir, era o primeiro. Tinha um nome antes do meu. Eu falei: "Caramba! Que nome é esse?" Eu fui ver, o nome é esse: Abaldiléia. Eu falei: "O que é isso? Abaldiléia?" Era ela. Fui procurar saber de quem era, aconteceu.
P/1 - E ela trabalhava na Simões, ou trabalha ainda?
R - Trabalha ainda, mas ela tinha acabado de entrar para lá, ia ingressar lá.
P/1 - Em que função?
R - Ajudante de produção. Hoje ela é inspetora, monitora, um negócio assim.
P/1 - E vocês vão trabalhar juntos e voltam?
R - É. Quando o clima está bom... (risos)
P/1 - (risos)
R - Pelo menos para ir junto a gente vai. Na saída não, porque ela estuda. Ela vai para a escola e eu vou para casa fazer as coisas, fazer janta. (risos)
P/1 - E como vocês vêm de Bonsucesso para a Praça da Bandeira?
R - De ônibus. Pega o ônibus na Avenida Brasil, ou salta na Leopoldina e vai a pé, o que é perigosíssimo, ou salta ali perto da rodoviária, vai até aquela rua ali, São Cristóvão - a rua do gás, da empresa do gás. Ali passa o 624, e ele para pertinho da farmácia.
P/1 - E quando tem enchente?
R - É horrível. Cara, já peguei cada uma!
P/1 - Então conta uma para a gente encerrar.
R - Ah, eu peguei uma em 88, foi numa sexta-feira. Foi a primeira enchente que a atual direção pegou. Cara, não dava para sair. Fui lá para o alto, para o segundo andar, onde funciona o consultório. A água cobriu uma kombi que estava na rua. Cobriu a kombi, para tu ver! Estourou a porta da expedição, molhou uma série de remédios, estragou muita coisa, foi terrível. Passei a noite tirando água.
No dia seguinte, era sábado. [Às] nove horas da manhã chegou uma equipe de funcionários lá de Muriaé - a empresa, a família é de Muriaé. Veio o pessoal de lá para ajudar. Eles não tinham... Achavam que a gente estava exagerando, que o quadro não era aquele, então quando chegaram, que viram...! [Às] nove horas da manhã eu fui embora para casa descansar, porque passei a noite toda tirando água. Do lado tinha uma loja de roupa, aí compraram uma calça para mim, nova, porque a outra tinha estragado. (risos)
P/1 - A loja, o prédio é antigo?
R - É antigo.
P/1 - Você sabe se ele é tombado pelo patrimônio?
R - Não é tombado. O prédio é da propriedade da viúva do Seu Simões. A direção comprou a marca Simões, do laboratório, mas o prédio não. Tanto é que eles estão fugindo do aluguel, estão indo para Piraí. A prefeitura de Piraí deu um terreno e eles estão construindo o laboratório lá.
P/1 - Mas a farmácia Simões vai acabar naquele ponto?
R - Não, acabar eu acredito que não, porque o patrão está fazendo investimento lá, botando mais médicos, tem dado uma atenção legal. Eu não acredito que acabe, não. Eu acredito numa mudança de endereço, porque não faz sentido sair o laboratório e a farmácia ficar ali. Não acredito. Acredito que vai para outro bairro.
P/1 - Mas existe a tradição da Simões ali, né?
R - É, pode ser que fique na Praça da Bandeira, mas ali pela Rua do Matoso, alugue um prédio ali. Pode ser.
P/1 - André, mais alguma pergunta? O que você gostaria de perguntar, para a gente encerrar?
R - Pergunta se eu quero uma Coca-cola! (risos)
P/1 - Você quer?
R - Não. (risos)
P/1 - Bom, então, para a gente ir encerrando, se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, você mudaria?
R - Eu tirava o período do colégio interno, isso eu tirava. Porque, infelizmente, o colégio interno não me trouxe nenhum aprendizado. Eu não sei se sentir medo, aprender a ter medo é útil, eu não sei. Mas, sei lá, o que me ensinaram lá foi a ter medo. Medo, medo - só isso, mais nada. Isso aí eu tiraria.
O resto não, o resto foi tudo legal. Quer dizer, até a saída do Esqueleto para ir para lá, hoje eu não lamento tanto, porque me proporcionou conhecer pessoas que hoje fazem parte da minha vida.
P/1 - Você tem um grupo de amigos antigos ali onde você mora?
R - Não digo pelos meus filhos, porque às vezes a gente não consegue acreditar na vida antes de ter os filhos que você tem. As pessoas que ficam enraizadas fazem parte do seu dia a dia, da sua vida, então você não consegue entender a vida antes dessas pessoas, quando elas não existiam. Então...
P/1 - Quer dizer, é apaixonadão pelos filhos?
R - Sou louco!
P/1 - (risos) E foram criados na Nova Holanda?
R - É, igual eu. Foram criados em ambiente de favela, mas graças a Deus todo mundo direitinho.
P/1 - Se você pudesse fazer uma comparação entre uma criança da favela do Esqueleto e uma criança da Nova Holanda, como foi criar os filhos numa favela como a Nova Holanda? Foram muito diferentes essas infâncias?
R - A diferença é a facilidade que existia antes para se criar o filho. Era muito mais fácil ensinar para o seu filho o que é o certo e o que é o errado. Antigamente era mais fácil. Hoje, você até consegue ensinar, mas o que é ruim está muito à mostra, está muito divulgado. A divulgação do que é ruim, a massificação de informações de coisas ruins... Você vai ver um jornal, uma televisão, dificilmente vem uma coisa agradável de se ver; o noticiário é sempre a respeito de violência, de roubos. Pessoas do nosso meio e pessoas acima. Então é muito difícil.
Antigamente era mais fácil criar. Hoje, apesar de toda a tecnologia, toda a gama de informações que você recebe, todo o acesso que você tem… As coisas que foram criadas, essas inovações, mas também essas inovações ajudaram muito a separar a família. Antigamente, não havia um jantar que tivesse alguém separado, ausente. Era uma coisa sagrada, porque ali se conversava. "Amanhã você vai levar a roupa não sei onde, amanhã você vai..." (risos) Entendeu? Esses valores, essas coisas uniam a gente. Hoje não. Hoje em dia: "Eu tenho que ir ao jogo", "Eu tenho que ver a novela", "Eu tenho que ir não sei onde", "Eu tenho que ir para o computador", "Não vou jantar agora, vou depois." Não é? Aí separa. No que separou, é terrível.
P/1 - Então, para acabar, o que o senhor achou de um projeto como esse, de um projeto de memória do comércio da cidade do Rio de Janeiro? E o que achou de ter dado um depoimento e contribuído para o projeto?
R - Ah, eu acho que a gente está invertendo os valores. Acho que vocês deviam me dizer o que vocês acharam de eu estar falando esse tempo todo aqui. (risos) Eu acho legal, porque foi uma coisa que eu nunca fiz. Apesar de que, por personalidade, eu tenho muito medo do novo; eu sou um cara antiquíssimo, arcaico mesmo. Tudo que é novo me dá medo. Mas eu acho legal, achei legal, foi uma experiência boa. Tomara que sirva para contribuição.
P/1 - Foi muito legal. Foi sensacional.
R - Está ótimo para mim também.
P/1 - Você chama Ademir, tem nome de vascaíno, mas é flamenguista. Então está tudo certo, né?
R - Então está bom.
P/1 - Obrigado, então, Ademir, pela contribuição.
R - Obrigado, eu que agradeço.
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