Na data de maior significação para a cristandade - 25 de dezembro, Natal - eu, Rosina Breim, nasci. No ano de 1928, no coração de São Paulo, Capital, bem ali no Centro - rua da Constituição, acho que número 63. Fui a segunda de nove filhos de Bachir, imigrante sírio, e Laura, adotada por árabes. Lembro de como os Natais eram comemorados em casa: um ritual sírio que consistia, basicamente, em reunir toda a família. Com o passar do tempo, a família foi crescendo, chegou a noventa pessoas.
Trago na memória coisas da infância, como as brincadeiras, a ida para a escola síria aos quatro anos, a mudança para a Casa Verde. Da escola, lembro dos castigos por supostas travessuras - tinha que ficar ajoelhada no milho. E lembro, também, que meu pai teve que nos tirar, porque o governo proibiu o ensino de língua estrangeira para crianças de até dez anos. A mudança para a Casa Verde se deu quando eu tinha sete anos e meu pai comprou uma casa, casa esta que existe até hoje e onde, inclusive, mora a minha irmã - há oitenta e dois anos. Eu detestei, lembro que chorava muito. Primeiro, porque estava acostumada com as amiguinhas que eu tinha lá onde nasci - no centro da cidade. Segundo, porque não havia água potável, nem luz - só foi existir daí a dois anos. Mas, uma outra lembrança que guardo lá do Centro é um senhor, dono de uma alfaiataria em frente de casa. À noite, ele passava filmes, com uma máquina lá, para a gente assistir - as filhas dele eram nossas coleguinhas. Eram filmes do Carlitos, sem som. Aliás, os desenhos do Gato Félix foram os primeiros com som.
E, às vezes, pegava fogo; a gente saía correndo para a rua.
Meu pai era marceneiro, e também marcheteiro. Só que no Brasil, ao contrário da Síria, ele não trabalhou com marchetaria. Para quem não sabe, a marchetaria eram aquelas incrustações nos móveis, com pedrinhas de mármore. Minha mãe costurava gravatas - existe uma cultura de usar gravata na Síria, mesmo...
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Na data de maior significação para a cristandade - 25 de dezembro, Natal - eu, Rosina Breim, nasci. No ano de 1928, no coração de São Paulo, Capital, bem ali no Centro - rua da Constituição, acho que número 63. Fui a segunda de nove filhos de Bachir, imigrante sírio, e Laura, adotada por árabes. Lembro de como os Natais eram comemorados em casa: um ritual sírio que consistia, basicamente, em reunir toda a família. Com o passar do tempo, a família foi crescendo, chegou a noventa pessoas.
Trago na memória coisas da infância, como as brincadeiras, a ida para a escola síria aos quatro anos, a mudança para a Casa Verde. Da escola, lembro dos castigos por supostas travessuras - tinha que ficar ajoelhada no milho. E lembro, também, que meu pai teve que nos tirar, porque o governo proibiu o ensino de língua estrangeira para crianças de até dez anos. A mudança para a Casa Verde se deu quando eu tinha sete anos e meu pai comprou uma casa, casa esta que existe até hoje e onde, inclusive, mora a minha irmã - há oitenta e dois anos. Eu detestei, lembro que chorava muito. Primeiro, porque estava acostumada com as amiguinhas que eu tinha lá onde nasci - no centro da cidade. Segundo, porque não havia água potável, nem luz - só foi existir daí a dois anos. Mas, uma outra lembrança que guardo lá do Centro é um senhor, dono de uma alfaiataria em frente de casa. À noite, ele passava filmes, com uma máquina lá, para a gente assistir - as filhas dele eram nossas coleguinhas. Eram filmes do Carlitos, sem som. Aliás, os desenhos do Gato Félix foram os primeiros com som.
E, às vezes, pegava fogo; a gente saía correndo para a rua.
Meu pai era marceneiro, e também marcheteiro. Só que no Brasil, ao contrário da Síria, ele não trabalhou com marchetaria. Para quem não sabe, a marchetaria eram aquelas incrustações nos móveis, com pedrinhas de mármore. Minha mãe costurava gravatas - existe uma cultura de usar gravata na Síria, mesmo nas atividades mais modestas. E eu, com treze anos, pedi que ela me ensinasse e me passasse esse serviço. Fiquei com essa incumbência até os dezessete anos. Daquilo que pagavam, minha mãe separava vinte mil réis e me dava. Eu usava todo esse valor para pagar uma pessoa que ensinava a bordar. Agora, estudar mesmo eu só fiz o primário. E com a interrupção da escola síria, o pouco que aprendi de árabe foi com a minha avó - ela nunca falou Português. E, mais tarde, quando morei por três anos com os meus sogros, aprendi um pouco mais. Porém, aprendi a bordar, a fazer tricô, essas habilidades eu tenho. O meu marido, eu conheci em casa mesmo - o meu pai era amigo do pai dele, desde a Síria.
E aí acabou dando certo. Acabou que fazia quase um mês que ele estava indo lá (em casa), aos domingos, e eu nem convidei para almoçar (...).
Namoramos três anos e quando ele se formou - Ciências Econômicas - nos casamos. Moramos três anos com os pais dele. Até eu não gostei muito porque ele só me avisou disso às vésperas do casamento. E seria um ano só, foram três. Eu tinha três cunhadas e um cunhado e, felizmente, nunca houve qualquer divergência, qualquer discórdia. E isso é raro, porque com o passar do tempo até mesmo entre irmãos a harmonia acaba não sendo completa. Eu tenho uma amiga - nós somos amigas desde 1953 - que comenta que, em todo esse tempo, nunca houve qualquer desentendimento entre nós, qualquer briga, qualquer estranheza. Vejo, então, que nós convivemos, uma com a outra, melhor, por exemplo, do que eu convivo com minhas irmãs.
Aí, depois de três anos, fomos para nossa casa. Um sobrado pequeno em Pinheiros, que o meu sogro comprou. Recordo que fiquei um pouco brava porque achava que, depois de três anos morando com os pais, meu marido é quem deveria comprar. Mas… Aí, vieram os filhos. Três meninos - o mais velho e os gêmeos. A propósito destes, às vezes as pessoas perguntam como foi ser mãe de gêmeos. Difícil? Cansativo? Eu digo que não, porque se dá trabalho eu nunca senti. Porque havia disciplina, horário para tudo. Normalmente só chorava quando tinha fome. Então eu cuidava para que comessem, dormissem e não chorassem. E com isso não havia trabalho, nem amolação. E os gêmeos em particular, sempre foram muito alegres e muito unidos. Hoje, um é médico, o outro trabalha com processamento de dados e o outro é professor de música. Sempre gostou de ensinar, eu percebi isso cedo. Ensinava aos irmãos com dedicação, mesmo que, por exemplo, tivessem brigado por qualquer razão. E assim eu tenho lembranças principalmente do mais velho, que sempre foi mais estudioso, com quatro ou cinco colegas estudando em casa. Senão, estavam nos bailinhos, jogando bola, botão… E assim passou.
Meu marido teve Alzheimer. De início, eu não sabia nada da doença, sintomas, cuidados que precisava ter, nada disso. Fui procurar saber. Frequentei reunião de cuidadores da doença, em uma igreja. Ele começou esquecendo as coisas, comportamento estranho. Como, por exemplo, uma viagem que fizemos, ele não quis desfazer a mala, deixou embaixo da cama, perdeu-se no estacionamento. Com a evolução do mal, ele já não levantava, não comia sozinho, teve cuidadoras, passou a usar cadeira de roda, foi internado e, em seguida, faleceu. Mas foi um calvário de quinze anos! E como eu reagi a tudo isso?
Tudo que eu enfrento, tudo, me preparo para tudo. E tudo eu fui aprendendo. (...). Aliás, a gente vai aprendendo durante. (...). Nada de se desesperar e nem ficar chorando, que tudo é normal. (...). E lembro do meu pai (...) que muita coisa ele ensinou; ensinou a não depender um do outro.
E assim eu vou caminhando. Apesar de achar que ainda tenho que aprender, mas eu não fico sem fazer nada. Eu costuro, faço tricô, cozinho - se tenho vontade de algo que a empregada não sabe fazer, eu vou lá e faço. Agora, para o futuro, eu não tenho sonhos; o futuro - eu digo sempre - é o dia de hoje. Já sonhei, quando era moça e os aviões eram bem pequenos, eu sonhei ser comissária de bordo. Mas hoje não costumo programar nada.
Tenho que estar ciente de que a vida é assim. Não sou pessimista. Nessa parte, eu acho que sou muito realista.
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