Projeto Conte Sua História
Depoimento de Rosina Breim
Entrevistada por Renata Pante (P/1) e Carol Margiotte (P/2)
São Paulo, 27 de setembro de 2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV699
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Oi, dona ...Continuar leitura
Projeto Conte
Sua História
Depoimento de Rosina Breim
Entrevistada por Renata Pante (P/1) e Carol Margiotte (P/2)
São Paulo, 27 de setembro de 2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV699
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Oi, dona Rosina, muito obrigada por vir aqui hoje contar sua história!
R – Ah, se é história! (risos)
P/1 – Toda história é história!
R – A gente conta as coisas sem saber que é história!
P/1 – Certamente. Eu queria começar pedindo para a senhora falar o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – O nome de casada, Rosina Breim. O local de nascimento, São Paulo, rua da Constituição. Só que não lembro o número, acho que era 63.
P/1 – E a data? Em que dia a senhora nasceu?
R – A data de nascimento? 25 de dezembro de 1928.
P/1 – Fale um pouquinho sobre como é nascer no Natal?
R – Olha, eu não sei como é nascer no Natal, mas o que eu tenho lembrança é que em casa sempre se comemorava o Natal, porque o meu pai era sírio e depois de grande é que eu lembrei que aquilo que ele fazia era um ritual que se fazia na Síria.
P/1 – Conte sobre esse ritual. Como funcionava?
R – Porque eu tenho nove irmãos. Tinha, agora somos seis. Então, sempre reuniu a família. Foi crescendo, filhos, netos, cresceram mais e cunhados, cunhadas e a família chegou a ter noventa pessoas. Porque minha irmã, que é abaixo de mim, está lá na casa há oitenta e dois anos, que é a casa que meu pai comprou quando eu tinha sete anos e ficou até agora.
P/1 – Lá no Centro também?
R – Não, na Casa Verde. Porque nós mudamos do Centro eu estava com sete anos.
P/1 – E os nomes dos seus pais?
R – Bachir Moisés, só que o nome dele ficou errado aqui no Brasil. Porque ele não sabia falar Português, então alguém perguntou: “Seu nome, o nome do seu pai”. Então ele ficou com o nome do pai como sobrenome, porque o certo era Pilavigian - era descendência armênia.
P/1 – E ele nasceu aonde?
R – Meu pai nasceu na Síria.
P/1 – A senhora sabe a cidade?
R – Em Alepo. Ele nasceu em 1896, assim contam. Porque não se sabe nada ao certo daquela época, não tinha registro, as pessoas eram registradas na igreja. Então, se sabia pelo que constava na igreja. 1896.
P/1 – E a senhora sabe com quantos anos ele veio para o Brasil?
R – Para o Brasil? Com uns 23, por ai. Porque ele foi para a guerra, em 1918, ficou cinco anos debaixo dos turcos, prisioneiro, trabalhou na guerra. Aí, quando terminou, não tinha serviço para ninguém. O pessoal começou a emigrar, abriram emigração para as Américas - tanto do Sul quanto do Norte. Calhou que a família do meu pai veio para a América do Sul e o resto - porque tinha tios e primos - foi para a América do Norte. Mas, nunca mais se viram.
P/1 – E o nome da sua mãe?
R – Laura Kfouri Moisés, ficou. Porque ela foi adotada por uma família árabe, tanto é que ela falava árabe. Teve uma educação de árabes.
P/1 – Como era a educação de árabes?
R – Ah, sei lá, a gente não consegue diferenciar, só muito mais tarde. Assim... As crianças são mais presas, não têm muita liberdade, muita coisa era proibida para as mulheres. Já era, e com os árabes era mais.
P/1 – E a sua mãe fazia a mesma coisa com vocês? Também proibia bastante coisas na sua casa?
R – Não, até tinha coisa que meu pai proibia e
a minha mãe abria mão.
P/1 – Tipo o quê?
R – Não sei, ela dizia: “Não dá confiança”, não é? Porque as crianças crescem também, cada um vai tendo a sua personalidade.
P/2 – Sua mãe contava sobre a infância dela, de como ela soube que era adotada?
R – Ela contava, mas ela não via a mãe desde os quatro anos, porque a mãe dela era do interior e ela foi adotada com quatro anos por essa família e foi criada no meio deles, como as outras. E depois, quando ela tinha doze anos, a mãe dela veio para São Paulo para ver a filha, mas ver um pouco assim, à noite, fez uma visita e eu sei que ela chorou que queria ir embora, porque lembrou, não é? E não deram confiança, ela ficou lá sempre.
P/2 – E a senhora sabe como seus pais se conheceram?
R – Foi assim... Depois da guerra, quando meu pai veio, lá no Centro da cidade tem a colônia árabe, na 25 de Março e redondezas, Florêncio de Abreu... E meus avós moravam na rua Augusto Severo, por ali também. E quem vinha da Síria costumava procurar os amigos, os parentes e, à noite, muitos se reuniam porque não tinham para onde ir, não é? Então, conheceu na casa dela mesmo, porque os homens se reuniam. Porque há muita separação de homem e mulher. Mesmo eu, cresci e meu pai não gostava nem que chegasse perto de homem. Os meninos... Se visse lá brincando com a gente, mandava entrar.
P/1 – E do que a senhora brincava?
R – Ah, das coisas que tinha naquele tempo: pular corda, jogar peteca, amarelinha. E quando eu era bem pequena, quando ainda morava na cidade, tinha um senhor em frente... Porque lá na Ladeira, a maioria era árabe, tanto é que quando eu mudei de lá eu estranhei as amiguinhas. Eu estranhei muito! E o que eu ia falar?... Ah, tinha um senhor em frente, que tinha uma alfaiataria e a gente ia brincar com as filhas dele. E, à noite, ele passava filme lá na sala, com a máquina, não é? E, às vezes, pegava fogo (risos); a gente saía correndo para a rua (risos).
P/1 – E que filmes eram?
R – Filmes do Carlitos, ahm... Não existia som ainda no cinema. Eu me lembro quando veio o som, que eram os filmes do Gato Félix. Desenhos, eram quase todos do Gato Félix.
P/1 – E a senhora falou que teve nove irmãos, não é? E a senhora é a mais nova ou mais velha...
R – Sou a segunda.
P/2 – Fale o nome de todos, por ordem de nascimento.
R –
A mais velha, que já faleceu, Julieta. Eu sou a segunda, Rosina. A terceira é a Janete, que chamam de Jane, porque naquele tempo, nas famílias árabes, em todas as famílias, existiam quase os mesmos nomes, que era tudo Francês porque a Síria foi dominada pelos franceses, não é? Então, não tinha uma casa que não tivesse Ivone, Janete, Julieta, era tudo assim. Depois, foram mudando.
P/2 – Depois da Janete vem quem?
R – Depois da Janete vem o Moisés, o primeiro homem, que também faleceu. Quatro anos mais novo que eu. Depois veio a Olga. A Olga, nós mudamos quando ela tinha três dias só, para a Casa Verde. Porque naquela época, eu acredito que foi a época em que começaram a desapropriar as casas por ali, porque eram todas casas baixas, para construir prédios. Até, o primeiro prédio que teve, alto, foi ali na esquina da Florêncio de Abreu com a Ladeira, fora o Martinelli. O Martinelli foi antes, que era de treze andares. E foi assim. A gente mudou para lá. Tanto é que meu pai era muito correto, ele pegou uma casa para morar só vinte e três dias, no Brás. E quando saiu o negócio na Casa Verde, na rua Maria Domitila, que a gente morou... Depois ficou sempre na Casa Verde.
P/2 – A senhora se lembra da mudança?
R – Lembro, eu lembro que até eu e minha irmã subíamos e descíamos escada, tantas vezes! Já com tudo pronto para mudar, colchões dobrados, camas desmontadas, não vai mais, porque minha mãe deu à luz naquele dia. E depois, quando ela tinha três dias, a gente mudou.
P/1 – E como foi chegar na casa nova?
R – Bom, eu não gostei. Eu me lembro até hoje de que eu nunca gostei, eu chorava, chorava, chorava. Que não queria ir porque estranhei as amiguinhas de lá, estranhei porque era um bairro praticamente novo, não sei. E que não tinha luz na rua e nem tinha água, tinha água de poço e que não servia para beber. Ia pegar água da vizinha para beber. E para fazer a limpeza, era do poço. Mas depois de dois anos veio a luz e veio a água encanada.
P/1 – E a senhora sabe por que seu pai escolheu ir para a Casa Verde?
R – Ah, porque ele queria comprar uma casa e acho que o preço foi bom, porque tinha que ver preço também. E ele não gostava nada de prestação. Eu cresci assim, nunca fiz nenhuma prestação. A única coisa que eu comprei foi pagamento em duas ou três vezes, porque na cidade tinha umas casas de moda que vendiam com carnê e pagava dessa forma.
P/1 – O pai da senhora trabalhava com o quê?
R – Marceneiro. Marceneiro e marcheteiro, mas aqui ele não trabalhou na marchetaria. Na Síria, sim. São aquelas incrustações nos móveis com pedrinhas de mármore. Tanto é que parte dos móveis que eram da minha mãe estão lá até hoje, com minha irmã, com essas incrustações. E o pessoal da família fala: “Ah, eu quero isto, quando você não quiser mais. Eu quero aquilo”. Querem tudo que é antigo.
P/1 – E a mãe da senhora trabalhava?
R – Era do lar, mas trabalhava também em costura. Porque, naquela época, mesmo desde a cidade, a maioria das mulheres descendentes de árabe costurava gravatas, que os homens usavam gravata! Qualquer emprego, mesmo baixo, usavam gravata. Então, faziam muito. E eu me lembro de que tinha sete anos e ficava lá olhando minha mãe fazer, ajudava a cortar a linha com a tesoura. Depois eu cresci, tinha treze anos quando falei para a minha mãe que eu queria costurar. E a minha mãe, sempre trabalhando em casa, e pegou serviço. Até meu pai é quem levava para lá o pacote das coisas cortadas. Então eu falei: “Me ensina que eu faço”. Ela dizia: “Ah, você não sabe”. “Me ensina que eu faço”. Então eu comecei a fazer e peguei o serviço dela, fiquei até os dezessete anos. Recebia no fim do mês, porque era tudo marcado em caderneta. No fim do mês recebia. E quando recebia, minha mãe me dava vinte mil réis. E eu via uma vizinha lá que fazia bordados e eu perguntei para ela quanto ela cobrava para ensinar. Ela me disse: “Vinte mil réis”. Era o que eu ganhava na costura, então eu pagava os vinte mil réis e ela me ensinou a bordar. Eu fiz muita coisa, até o enxoval da minha irmã mais velha, tudo eu bordei, fiz coisas lindas. E eu fico lembrando que até hoje, até hoje, tudo que eu fiz eu dei para os outros, não fazia nada para mim. E nunca me incomodei.
P/2 – Dona Rosina, o seu pai contava histórias dele lá na Síria?
R – Ele contava que trabalhava numa marcenaria de alemães, e do serviço dele. O pai dele plantava arroz, eu acho. Ele nunca falou, mas como eu, depois, comecei a ver que as pessoas tinham sobrenome de acordo com a profissão - é como os portugueses também tinham - então o Pilavigian, que era do meu pai e do meu avô, era de arroz.
P/2 – E seu pai contava como foi vir para o Brasil? Como foi a vinda dele, como ele veio?
R – Depois da guerra... Ele contava que quando pegaram o pessoal para ir para a guerra, ele nem tinha feito o serviço militar! Pegaram os rapazes da rua e foram para o Exército. E pegaram o meu tio também, que era um ano mais novo. Meu tio ficou com medo, quando eles iam passando debaixo de uma ponte ele se escondeu. E se eles pegassem, eles matavam, porque aqueles países sempre foram dominados pelos muçulmanos, não é? Católico tinha pouco. E ele ficou na fábrica onde ele trabalhava, junto com meu pai, de alemães, ficou lá preso uns cinco anos, não saia para a rua. Minha avó passava por lá, levava alguma coisa para ele comer, não podia também, era escondido, tudo era escondido.
P/2 – E aí, como foi depois?
R – E aí, quando terminou a guerra ele foi para casa, depois de dois anos. Quer dizer, não sei onde ele ficou, mas até minha avó não acreditou que era ele. Mas também não tinha serviço e abriram a imigração e ele veio para o Brasil. Já tinha gente aqui, de patrícios, porque naquela época vinham... Muita gente que está instalada na rua 25 de Março já veio antes.
P/2 – E a senhora sabe com quem ele veio, da família?
R – Não veio com ninguém, veio com uns conhecidos que imigraram.
P/2 – E como ele se comunicava com a família na Síria?
R – Bom, na Síria, em árabe. No Brasil é que era pior, não é? Porque tinha que falar Português, aprender Português, então tinha aqueles sírios que já tinham vindo antes e que se comunicavam. Foi aprendendo, mas ele falava com muito sotaque.
P/2 – Tem alguma coisa que a senhora lembra que ele falava que era diferente?
R – Bom, eu lembro... Ele colocou a gente na escola síria - eu e a minha irmã mais velha. Eu tinha quatro anos, ela tinha cinco. Eu me lembro da escola, que era na rua Santo André, atrás, e a escola era uma sala, sem placa, sem nada, tinha uma escadaria para subir e tinha uma sala que não tinha primeiro ano, segundo ano, era misturado. Lembro do nome do professor, em árabe, Malem Yussef, professor José. Tinha castigo...
P/1 – Como eram esses castigos?
R – Ficava ajoelhada no milho.
P/1 – E a senhora já chegou a ficar ajoelhada?
R – Ah, fiquei. Eu fazia muita travessura.
P/1 – Que travessura?
R – Ah, não sei, era travessura. Porque punha de castigo, não podia falar, não podia olhar para trás! Era assim. E eu me lembro, vagamente, do livro. Eu sei que quando chegava em casa, meu pai queria ver e eu fui arrancando as páginas que eu aprendia. E meu pai falou assim: “Mas não arranca, deixa aqui, por que você arranca?” “Ah, porque eu já aprendi!”
P/1 – (risos)
R – Mas depois o governo proibiu que se ensinasse língua estrangeira para menores de dez anos aqui, então a gente não foi mais. A gente falava um pouco porque minha avó nunca falou Português. A minha avó veio para o Brasil dois meses antes de eu nascer, então ela ensinava a falar árabe. Então, a gente falou só esse pouco em casa. E também, quando mudou lá para a Casa Verde, os vizinhos caçoavam de quem falasse outra língua, a gente foi deixando de falar e até esqueci, a gente esquece de não falar. Só que depois eu me casei com um rapaz que era descendente de árabe, de pai e mãe. E a minha sogra falava árabe, meu sogro também, então eu sabia palavras. Eu sei muitas palavras. Ela dizia assim: “Fala em árabe!” “Não, mas eu falo errado, não posso.” Ela dizia para mim: “Fala errado ou certo que a gente corrige”. Porque isso meu pai não falava, ele ficava bravo se falasse errado, mas não ensinava o correto.
P/1 – E depois dessa escola...
R – Morei três anos com meus sogros e aí, de falar um pouco, a gente tem gravado, não é? Comecei a falar um pouco, tanto é que depois, das minhas irmãs... Aliás, das minhas irmãs, só a mais velha é que aprendeu árabe, porque os outros que nasceram depois ninguém falava.
P/2 – Dona Rosina, queria saber dessa avó que veio para o Brasil antes de você nascer, qual o nome dela?
R – Luísa.
P/2 – Com quem ela veio?
R – Com meu tio, era o único irmão que meu pai tinha, meu tio Leon.
P/2 – E aqui eles ficaram aonde quando chegaram?
R – Na casa dos meus pais. E minha avó morou sempre lá, dezoito anos.
P/2 – Que lembrança a senhora tem dela? Como ela era?
R – Ah, ela ajudava a cuidar da gente e depois sempre nascendo criança, não é? Falava em árabe com a gente e a gente respondia mal. Foi desaprendendo.
P/2 – E as comidas que tinha em casa, que ela ajudava a fazer?
R – Ah, tudo comida árabe. Só comida árabe. Tanto é que parece que eu não sei fazer outra comida.
O pessoal que vai em casa gosta de comida árabe e, na minha família, todos achavam que eu cozinhava bem, porque também quando eu fui morar em Pinheiros, depois que eu tive o primeiro filho, em 1953, minha vizinha, que morava em frente, era árabe e tinha uma filha da minha idade, e a gente ficou amiga até hoje! A única amiga viva que nós temos uma com a outra, porque ela já perdeu todos os irmãos, tios, tudo, só resta ela e um primo. E a família era enorme! Eu conheci todo o pessoal da família dela, porque eles eram muito... Aliás, todo mundo gostava muito de jogar baralho, eu aprendi com ela, não é? Aprendi com ela e meu pai criou a gente contra o baralho e contra o jogo. E aí, para começar eu não pude falar para ninguém que jogava baralho, joguinho simples, mas a gente joga, joga, joga, vai aperfeiçoando, vai jogando, que acaba jogando bem! (risos) Mas depois eu não joguei mais, meu marido ficou 15 anos com Alzheimer, depois não joguei mais. Aliás, ia jogar bingo, fora de casa, com essa amiga, ela que me levava. Todos os bingos ela conhecia.
P/2 – A gente vai chegar nessa parte, última pergunta, prometo. Como vocês se organizavam em casa? Porque era muita gente morando junto, não é? Eram vocês, que eram nove filhos, o pai, a mãe e a avó!
Como vocês se organizavam em casa?
R – Bom, quando tinha nove já tinha passado muito tempo, não é? Ah, todo mundo junto, almoço junto, jantar. Eu me lembro de que quando ia dormir eu estava sempre pedindo coisa para minha avó. Eu dizia que queria pão com açúcar molhado no leite, comia demais! E a gente era pequena, quatro ou cinco anos, a gente saia um pouco sozinha, ali ao redor. Quando morava na cidade, a gente ia dessa ladeira para a Ladeira Porto Geral, que era a casa dos doces, eu ia lá comprar doce. E lembro que, no fim da ladeira, naquele tempo, era uma escadaria, depois não tinha passagem para carro e nem nada. Depois fizeram plano e eu era louca para comprar o que os homens vendiam na rua. Lá na esquina vendia pipoca, vendia amendoim, vendia machadinho, sabe aquele martelinho? Você não conhece? Recentemente chamam mais por martelinho, e aquele bloco doce que tem diversas cores e eles quebram. Vendia caqui, o homem levava em uma cesta. Vendia figos, figo da Índia, que eu adorava! E lembro o homem abrindo o figo e abrindo assim para a gente pegar.
P/1 – E a senhora quando ia comprar essas comidas ia sozinha ou com alguém?
R – Ia sozinha, porque meu pai tinha a marcenaria em frente á nossa casa, então, se a gente saísse ele via e a gente falava que estava por ali e estava sempre à espreita, não é? E também não tinha esse perigo, que hoje você vê uma criança não sai nem na porta. Eu ia lá na casa de doce sozinha e comprava. Nunca teve nada.
P/1 – E quando a senhora mudou para a Casa Verde como a senhora fazia para comprar os doces? Tinha loja perto?
R – Em frente à nossa casa tinha um armazém, já desses armazéns pequenos, sabe? E em frente tinha que tudo era comprado por quilo - feijão, arroz, milho para as galinhas... Pesava e embrulhava, ou no saquinho ou no papel. Era assim, não tinha nada de plástico. O plástico só veio quando eu estava com uns dezoito anos. Aí começou a ter muita coisa de plástico, não é?
P/1 – E a senhora estudava lá perto da Casa Verde?
R – Só fiz o primário. Só fiz o primário, só aprendi a bordar, aprendi a fazer tricô com uma vizinha, porque hoje eu queria... Agora, recentemente, aprender a fazer um ponto, que eu fiz um xale para a minha neta que está com trinta e quatro anos e eu fui em quatro professoras ali nas redondezas, na Cardeal Arcoverde, na Simão Álvares, ninguém sabia fazer esse ponto. Professoras! E eu, sem querer, peguei pela internet, ensinou direitinho. Tudo se aprende pela internet.
P/1 – E qual o nome desse ponto?
R – Ah, eu não sei, é um ponto que fica quadradinho, fica um para lá e outro para cá, ficou lindo. E a minha neta, irmã dessa daí que eu fiz o xale, ela tem ele guardado até hoje, porque a mãe dela guarda muito as coisas, conserva, então ela ouvia elas falarem tanto do xale, porque essa neta se formou em Medicina faz cinco anos, é a mais nova, e ela falou: “Ah, vó, quero um para mim também”. Falei: “Mas você nem casou!”. “Não, mas eu quero que a senhora faça que eu vou guardar quando eu tiver”. (risos). E eu não vejo ninguém falar isso. Ela está esperando agora, agora com essa idade, estou com uma toalha de mesa lá para fazer crochê em volta, para ela. Porque ela está morando sozinha em Jundiaí, encostado na faculdade, que ela trabalha lá. Agora ela trabalha.
P/2 – Dona Rosina, posso voltar um pouquinho no tempo?
R – Pode.
P/2 – Eu queria saber como foi para a senhora ficar adolescente, sua mãe falava para a senhora o que ia acontecer? Como era?
R – Nada, nada, nada. Eu não sabia de nada, tanto é que a gente começa a se achar muito burra, viu? Muita coisa a gente se acha burra de não aprender. Porque, Nossa, hoje eu vejo ensinar nas escolas até tanta coisa que não se ensinava! Aliás, eu sou contra muitas coisas que estão ensinando agora. Então, sabia pela nossa vizinha, esse povo era mais adiantado, filha de espanhóis.
P/1 – E o que ela te ensinava?
R – Ah, ensinava de menstruação, de namorado! Em casa não se podia falar de namorado.
P/1 – E a senhora teve namorados?
R – Olha, para te falar a verdade, a minha irmã, que era mais velha que eu, ela teve muitos namorados, eu era contra. Naquele tempo, eu achava que se namorasse era para casar. Namorar para passar hora, não. Mas eu acho que isso faz parte de mim. Isso faz parte de mim, porque nunca liguei. Eu vejo, por exemplo, as pessoas tão diferentes de mim, muito, muito. Mas tem coisa que é da gente, não é?
P/1 – E o que o seu pai falava desses namorados da sua irmã?
R – Não, porque ele nem sabia!
P/1 – (risos)
R – Minha mãe sabia. Até, quando foi para ela falar desse primeiro namorado, meu pai não gostou porque ele trabalhava e ganhava muito pouco. “Não casa com homem que não trabalha”.
P/1 – E quando a senhora conheceu o seu marido?
R – Olha, por coincidência eu conheci em casa porque o meu pai era amigo do pai dele, desde a Síria. E eles aqui eram amigos, que o pai dele ia todos os dias na oficina do meu pai, mas eu nem sabia da existência da família. E acontece que o meu marido já tinha diversas namoradas, e tudo brasileira, e não queria. Não queria porque o mais velho foi embora de casa com 18 anos e então ele queria que logo casasse o segundo para não correr esse risco. Aí, quando ele foi em casa eu fiquei brava, não gostei, meu pai também não queria que fosse para conhecer, mas já estava combinado! Ele mesmo foi muito gentil. “A gente só vai se conhecer, para um conhecer o outro, não é? Se der certo, tudo bem. Senão...”. E aí acabou dando certo. Acabou que fazia quase um mês que ele estava indo lá, aos domingos, e eu nem convidei para almoçar, porque era no domingo e a gente saía para ir ao cinema. E a minha mãe dizia assim: “Convida ele para almoçar”. Começou a convidar, ele aceitou e acabou dando certo. Mas no começo, eu não gostei muito.
P/2 – E quando foi que a senhora percebeu que estava gostando? O que a senhora sentia?
R – Mas gostando pouco, não é dizer assim gostar, como eu via. Até hoje eu acho que amar, amar mesmo, às vezes eu acho que não existia, não existe. Porque é uma coisa que depende dos dois, um não vai amar como ama o outro, tem essas coisas. Então... E, aliás, o único homem fiel que eu conheci - porque a maioria é infiel - meu pai era muito fiel, e eu acho também um homem de muito caráter, que eu nunca conheci um homem com o caráter que ele tinha, mas isso a gente só pensa mais tarde, porque não conhece ainda, não é? Tanto é que recentemente, (risos) eu admirava muito - sempre admirei os jornalistas - gostava do William Bonner! Gostava demais do William Bonner, mas quando eles começaram cada um a namorar com outro, apagou tudo!
P/1 – Quantos anos a senhora tinha quando conheceu o seu marido?
R – Dezoito.
P/1 – E vocês namoraram por muito tempo?
R – Três anos, porque ele estava estudando Ciências Econômicas. E ficamos esperando ele se formar. Ele mesmo não queria casar antes de se formar.
P/1 – E aí ele se formou e vocês se casaram?
R – É. E, aliás, eu aceitei tanta coisa que hoje eu não queria aceitar, eu aceitava facilmente. Só perto do casamento que ele falou que nós iríamos morar com os pais dele. Isso eu nunca quis, minha mãe também não queria. “Ah, mas só um ano”. Acabamos ficando três! Se bem que eu tinha três cunhadas e um cunhado, nunca teve nenhuma divergência, nem com minha sogra e meu sogro, que era autoritário, avisou às filhas que não tinha que falar nada! Porque a gente vê muito... A gente briga... E depois você entra numa família com muita coisa diferente, não é fácil! Porque depois que passa o tempo, nem com os irmãos! Essa amiga que eu tenho, a Blanche, que é minha amiga desde 1953, ela mesma fala, nós nunca brigamos, nunca teve uma divergência, então eu convivi com ela melhor do que com minhas irmãs. Ainda ela esteve em casa essa semana que passou, que ela não ia, mas ela viu que eu não estava telefonando, porque sempre a gente está no médico, e ela foi lá, mas ela ficou duas horas só porque a filha foi buscá-la. Agora está assim, a gente depende dos outros para ir em todo lugar. Se bem que ela pedia sempre para os filhos, mas eu, nessa parte, sempre fui independente. Não gosto de esperar por ninguém, nem com meu marido. Tinha coisa que ele ia fazer porque queria, mas ele queria porque não queria que saíssem de casa, é isso. Que a gente só percebe depois. Se eu vejo que preciso de uma coisa, já prontamente vou fazer. Então, não dá chance!
P/1 – E como foram esses três anos que a senhora passou com seus sogros?
R – Como é que é?
P/1 – Como foram esse três anos de início de casamento?
R – Desculpe, eu não estou ouvindo muito bem, estou usando aparelho desde anteontem e hoje eu esqueci de colocar.
P/1 – Tudo bem. Como era o início do casamento?
R – Ah, sei lá, era normal. Porque a gente nem sabe como é que é casada! Tinha isso também.
P/2 – Então conta para a gente como foi o casamento.
R – O casamento? Ah, foi na Igreja do Coração de Jesus, porque ele estudou lá e teve festa num salão que eles conheciam, que era da colônia.
P/2 – E o vestido da senhora, quem fez?
R – Foi uma senhora que foi casada com o primo dele.
P/2 – Como era o vestido?
R – Naquele tempo não existia nylon, não é? Então tinha um babado largo aqui na frente, mais estreito para trás, tinha manga, toda enrugadinha com viés de cetim, de tule francês. E até eu falei um dia desses que eu nunca vi costureira como essa senhora. Ela veio para o Brasil, eu lembro quando ela veio, e queria procurar um lugar para costurar. Mas queria um lugar bom, então ela foi ver em diversos lugares, ela acabou indo na Madame Rosita. Lembra da Madame Rosita? Não. Era uma costureira que tinha na Barão de Itapetininga... Eu era sempre muito contra muita coisa! (risos)... Quem escolheu o meu vestido de casamento, em parte, foi a minha cunhada. Minha cunhada se metia muito, sabe? “Usa isso, usa aquilo!”, e até eu fico lembrando, comecei a usar bijuteria por causa dela, comecei a usar perfume por causa dela! Muita coisa que eu usei e que eu vejo que, depois que meu marido faleceu, que eu acho que tudo aquilo era bobagem! Fiquei assim sem dar valor a nada, mas também a gente ficar velha... Sei lá se eu estou muito pessimista. Eu procuro não ser, não é? Fico me policiando, mas a gente tem que resolver sozinha.
P/2 – E quando vocês casaram, o que a senhora levou na mala para a casa do seu sogro, para morar na casa do seu sogro? O que a senhora levou seu?
R – Minha roupa só. Roupa, o enxoval, roupa de cama, de banho.
P/1 – A senhora que fez o enxoval?
R – ... Aliás, ele deu muita coisa. Ele tinha loja em Pinheiros, não sei se vocês conheceram, A Milagrosa. Gente que mora aqui conheceu, era lá no Largo de Pinheiros, então é assim.
P/2 – E como era a rotina nesses primeiros anos de casamento, na casa do seu sogro? O que a senhora fazia? Com quem fazia?
R – Bom, minha sogra não queria mandar fazer nada. Eu, como costurava, ficava sem fazer nada. Se tivesse alguma roupa para arrumar, eu arrumava. Eu cheguei a costurar uma saia para a minha sogra, uma blusa para a minha cunhada, cheia de nervuras, que ela gostou demais. Porque elas mandavam tudo para a costureira, então quando chegava da costureira uma delas chorava, que estava sempre com defeito, tinha que tirar defeito, não é? Eu agora ainda costuro um pouco. O que eu fiz essa... Agora estou terminando de fazer a barra de cinco toalhas de mesa da minha neta, porque ela está com dois filhos - um de três e um de um mês - e então, quando o mais velho fez um ano ela comprou toalha, aliás, a prima que foi comprar, comprou toalha, cortou e colocou assim mesmo, sem bainha. Eu não faço uma coisa dessa! (risos) E agora ela me pediu para fazer a bainha. Ela pediu para fazer a bainha e também o nenê tem um mês, eu fiz um xale para ele. Quer dizer, saiu muito defeito e eu desmanchava. Quando sai defeito, eu desmancho e faço outra vez. Mas eu vi que já não dá muito para fazer, a gente comete erro.
P/1 – Agora, voltando um pouquinho, depois desses três anos que a senhora morou com seu sogro, a senhora foi morar em Pinheiros?
R – Em Pinheiros.
P/1 – Onde era essa casa?
R – Na Rua Mateus Grou, perto da Arthur Azevedo.
P/1 – E vocês foram morar lá porque era perto da loja do seu marido?
R – Meu sogro que comprou a casa. Até isso eu fiquei brava porque como eu fiquei lá três anos, eu achei que meu marido é que tinha comprado a casa, porque era um sobradinho pequeno! Invés, era o pai dele que comprava e colocava no nome dele.
P/1 – E como a senhora descobriu que foi o pai dele?
R – Não, ele falou! Ele falava. Que ele comprava depois. Tudo dele era para depois, e ficou a vida inteira assim. Porque eles tinham um sistema, quando abriu a loja só meu marido que era casado, não é? Tinha um irmão e três irmãs e elas foram trabalhar lá para o começo, não é? Porque saíram de uma profissão para ir para outra, eles tinham uma fábrica e fios de algodão mercerizado, que naquele tempo não tinha novelo como tem agora, comprava meadas e a gente, em casa, uma segurava para enrolar, fazer um rolo. Agora é tudo diferente, não é? Tudo fácil. Até eu tenho uma colcha que eu fiz, que aquele fio também não existe mais, fiz para mim. E como a minha nora gostou, eu fiz para ela. Porque na família delas, elas gostam de coisas mais antigas. Porque ela é do interior e eu fiz uma para ela. “Agora vou fazer para você, mas não vou fazer para mais ninguém”. Porque eu vejo muita gente que ganha e deixa ensaboada, não cuida direito, estraga num instante. Não! A minha está intacta. Agora, até eu não gostei porque meu filho se separou dessa médica também, a Cecília, ela tem consultório na rua Pinheiros, eu senti muito, viu? Porque eu gosto demais dela, até falei para ela: tudo que eu puder fazer para ela eu vou fazer, mesmo estando separados. Porque eu não quero nem saber qual foi o motivo, eles não quiseram falar. Eu nunca pensei que haveria separação entre eles porque os dois são... Parecia que viviam bem, não é? Então, depois ela arrumou um namorado e ele, até mais recentemente, arrumou também uma namorada que queria ter um filho. Com mais de sessenta anos, a moça era vinte anos mais nova que ele e arrumaram uma filha, que está agora com três anos. Então, a neta e o bisneto têm a mesma idade. Aí separou dessa, que eu já sabia que não daria certo, desde o começo, porque eu nunca dei opinião em namorado e coisa de ninguém, cada um acho que é suficientemente inteligente para saber o que quer. Aí separou dessa moça que teve a menina, então a menina agora está assim: fica uns dias com um, uns dias com outro, vai para lá e para cá. Outro dia, a menina, com três anos, perguntou para o pai porque ela tinha duas casas. Mas agora também ele arrumou outra namorada, essa que me trouxe aqui, faz pouco tempo.
P/2 – Já que estamos falando dos filhos, queria saber como foi a primeira gravidez, como a senhora descobriu que estava grávida?
R – Ah, é só falta de menstruação. Porque naquele tempo, tudo era diferente. Ia controlar pressão e tinha coisa que hoje se faz exame e naquele tempo não se fazia. E aí, como eu fiquei logo dos gêmeos, eu, quando estava grávida de quatro meses, eu desconfiei que eram gêmeos. Desconfiei porque a barriga mexia diferente, mexia diferente, como quem diz, fica um para lá e outro para cá, e a barriga fica chata. Até quando eu estava de sete meses o meu médico falou que não eram gêmeos, e essa amiga que eu tenho até hoje falou: “Vai no meu médico”. Fui lá e ele falou: “São gêmeos”. E meu marido falou: “Como é que sabe? Não faz exame nenhum!” Ele disse: “Gêmeos é como uma caixa de sapato, você põe um para lá e outro para cá”.
P/1 – E são três meninos?
R – Três meninos.
P/2 – Qual o nome deles?
R – O mais velho é Ricardo e os gêmeos, um é Luiz Carlos e o outro Paulo César.
P/2 – E como foi ser mãe de gêmeos? Como foi o começo?
R – Ah, não sei como foi, para mim tudo vai passando, eu vou enfrentando tudo! Sabe? Tanto é que hoje o pessoal fala: “Três você criou!” Quase da mesma idade, não é? E eu vejo gente falar que um dá trabalho, então eu não falo nada porque que dá trabalho eu nunca senti, nunca senti. Também, eles eram disciplinados, tinha horário para tudo. Então eu digo que quando tem horário para tudo, não amola. Porque come, dorme, não chora! Chora muito pouco, só quando tem fome. Aí depois, os gêmeos sempre foram muito alegres e muito unidos. Um deles é médico, ele esteve em casa essa semana que passou.
P/1 – E os outros, o que eles fazem?
R – O outro trabalha em processamento de dados,
e o Ricardo é professor de música, já teve grupo musical, já tocou, mas depois ele viu que tinha que ser professor, ele gosta de ensinar. Aliás, de ensinar eu percebi nele desde que ele tinha nove anos, porque ele sempre foi bom aluno, os gêmeos eram regulares, gostavam de brincar. Então, às vezes, eu estava muito ocupada e falava: “Ah, Ricardo, dá uma mãozinha aí para o Luiz”, foi para o Luiz. E ele era uma pessoa que mesmo que tivesse brigado, ele ia lá ensinar direitinho. E eu via ele ensinando e parecia um homem, e no fim ele gosta mesmo de ensinar. Tanto é que na escola - ele tem escola - teve um curso de harmonia que foi para músicos profissionais e todos queriam ter aula com ele. “Ah, porque ele explica a gente entende logo”. Eu não assisti às aulas dele.
P/2 – Dona Rosina, quer tomar um pouquinho de água enquanto a gente faz a próxima pergunta?
R – Eu vou tomar um pouco. Estou falando demais, não é?
P/1 – Imagina.
P/2 – Sabe o que eu queria saber, dona Rosina? Nesse tempo em que os meninos moravam ainda na casa com a senhora, em que momentos todos ficavam juntos?
R – Mais nas refeições, não é? Porque depois que cresce, cada um vai fazendo um curso, então se ausenta muito. Se ausenta muito. Teve anos em que o Luiz só ia almoçar lá para as três horas da tarde. Ainda lembro que a empregada falou assim para mim: “Nossa, o Luiz toma um litro de leite quando vai almoçar”. Eu falei: “Ele gosta muito de leite, é como eu”. Então sabe o que ele respondeu para ela? “Não fuma que com um maço de cigarro você compra um litro de leite”.
P/2 – E o que vocês faziam para se divertir em família?
R – Para divertir em família, acho que não tinha. Porque crescendo, eles tinham muitos amigos, não é? Na escola e tudo. E, na época quando estavam já no vestibular, o Ricardo sempre estudou muito em casa, e os amigos iam lá. Às vezes tinha quatro ou cinco e ele, estudando em casa. Eu não sei, quando foram crescendo o que aparecia? Os bailinhos dos jovens, não é? O que eles faziam? Até esqueci o que eles faziam!
P/1 – (risos)
R – Ah, jogavam bola na rua. Jogavam botão!
P/2 – Dona Rosina, se a senhora se sentir confortável para contar para a gente o que aconteceu com o marido da senhora, do que ele faleceu...
R – O que você quer saber?
P/2 – O que aconteceu?
R – Ele teve Alzheimer. No começo, eu percebi que ele começou a esquecer algumas coisas, mas eu não sabia nada dessas doenças que... De Alzheimer, de outras coisas, porque não tinha lidado, não é? E aí nós fizemos uma viagem e, na viagem, ele não quis desfazer a mala, deixou a mala embaixo da cama, e eu estranhei. E não queria que mexesse. E quando a gente foi sair, que o carro estava no estacionamento, ele se perdeu! Tanto é que eu vi que ele estava demorando e eu voltei para onde estava o carro e ele estava nervoso, bravo, porque não sabia onde estava. Aí eu fiquei com ele. Mas também tinha médico e eu comecei a procurar alguém que pudesse me orientar de alguma coisa. E achei. Lá na Arthur de Azevedo tinha duas psicólogas que faziam reunião para os cuidadores de Alzheimer. Então, quando eu comecei com elas tinha, comigo, quatro. Quando eu terminei, sabe quantos tinham? Trinta e cinco! E aí eles mudaram de lá da igreja para outra igreja da Vila Madalena, essa igreja que tem aí na Vila Madalena, eu fiquei lá até que elas mudaram. Mas aí a doença dele já estava muito avançada. Na época em que eu fui, ele não estava mais levantando - estava com cuidadoras. Durante um bom tempo ainda comia sozinho, mas depois não comeu mais. E mesmo no começo, que ele começou a esquecer, ele não gostava muito que eu saísse nem para fazer compras. Eu tinha que sair. Aí eu saía, e quando voltava ele estava lá com a cuidadora. Ele se aproximava de mim e dizia assim: “Ninguém falou comigo”. Até essa cuidadora foi a única que eu pedi para aquela companhia que
botava, para tirar. Porque eu via que ela ficava lá fazendo as coisas dela e não conversava com ele. Porque as outras todas conversavam, as duas que eu tive no fim, há três anos, eram excelentes. E aí, no fim, ele teve que andar de cadeira de roda, elas levarem para o banho e para a cozinha, até que piorou. Depois ficou internado no hospital, numa casa, depois lá ele ficou doente e teve que ser hospitalizado. Logo-logo, depois de poucos dias, ele faleceu.
P/2 – E como foi para a senhora depois?
R – Olha, eu vejo... Tudo que eu enfrento, tudo, me preparo para tudo. Eu fui aprendendo, durante todos esses anos a gente aprende. Nada de se desesperar e nem ficar chorando, que tudo é normal. E lembro do meu pai, quando minha avó ficou de cama, que ela foi atropelada, aliás, quando ela faleceu eu era menina, tinha... Era adolescente. E que eu fui falar para o meu... Estava em casa e ele já sabia que ela estava no fim, aquele dia ele não foi trabalhar, então eu fui falar para ele como ela estava e chorei. E aí ele falou para não chorar, para não chorar que aquilo é normal e que a vida vai em frente. Meu pai também, tudo que aprendeu na guerra, passou para a gente, Porque meu pai, no fim da guerra, quando terminou, eles ainda matavam muitos. Ele fugiu num trem turco, acontece que os árabes falam árabe, e turco e armênio também. Mas aí, os guardas falaram... Ele estava com farda dos turcos e eles falaram para ele falar em turco e para falar lá umas palavras que costumam falar e ele sabia, então não mataram, senão ele tinha sido morto lá no trem. Então, muita coisa ele ensinou. Ensinou a não depender um do outro! Porque lá na casa do meu marido, depois eu acabo vendo a diferença, o meu marido, que era o mais velho dos homens, que tinha que fazer tudo para as irmãs. Tudo era ele.
P/2 – E depois do falecimento do seu esposo... Qual o nome do seu esposo?
R – Salim Jacob Breim.
P/1 – Depois do falecimento dele, que cuidados a senhora teve com a senhora? O que a senhora fez para a senhora?
R – Ah, eu tive que ir aprendendo. Aliás, a gente vai aprendendo durante! Durante, você vai aprendendo. E mesmo através das pessoas que você conhece, você vê quem que se desespera, quem não é capaz de fazer nada. Eu, apesar que ainda tenho que aprender, mas não fico sem fazer nada. O que dá para fazer, eu faço.
P/1 – E o que a senhora faz hoje?
R – Hoje só costuro. Estou costurando, faço um pouco de tricô, se eu tenho vontade de comer alguma coisa que a empregada não sabe, eu faço. Eu fazia para o meu marido quando ele nem falava! E quando ele comia, ele percebia só. Então ele falava: “Bom”. Mais nada. Quer dizer, ele comia uma coisa que ele gostava.
P/2 – Tipo o quê? Qual prato?
R – Bom, eu lembro que ele falou muito isso uma vez que fiz feijão branco, e também fazia comida árabe - abobrinha cheia, quibe, berinjela. Se bem que agora está muito difícil a berinjela. Às vezes, agora, eu tenho vontade e faço um pouquinho só para mim, porque ninguém come. Não tem ninguém para comer! (risos)
P/1 – Quantos netos a senhora tem?
R – Netos? Eu tenho cinco e uma adotiva, porque um dos filhos gêmeos tem uma filha só e essa filha cresceu, porque ela tem diferença de nove anos com a irmã, então cresceu, casou, foi morar como hoje faz e teve uma menina, então ela diz que eu sou a bisa, mas ela não aparece em casa! Não aparece. Então, minha casa vivia cheia de gente, quando meu marido estava bom. Depois que fica doente, cada vez vai ficando pior, não aparece ninguém, nem os seus familiares, não aparece ninguém, nem toca o telefone.
P/1 – E bisnetos?
R – Bisnetos tenho duas nos Estados Unidos, que eu não conheço - uma está com sete e outra está com cinco. E tenho os dois da neta, não é? O que está com três e o outro, um mês. E essa menina da Mariana, que está com nove anos, não é? Então são esses. Agora não está para nascer ninguém!
P/1 – (risos) E no Natal ainda junta a família para comemorar o aniversário da senhora e o Natal?
R – Nós vamos lá na casa da minha irmã, cada uma faz um prato, só que os mais recentes às vezes as esposas não querem ir, não junta mais como juntava. E os vizinhos lá da minha irmã adoram ver quando está todo mundo reunido, porque lá tem uns quinze metros de terra, gramado, e em volta está cheio de prédio. O pessoal dos prédios vê e eles falam assim: “Ah, que vontade de ir lá”. Até minha neta, quando era pequena, que ela viu a foto, ela tinha quatro anos, ela disse assim: “Vó, eu quero ir nesse clube!” (risos)
P/2 – Dona Rosina, a gente está quase terminando, tem alguma história que a senhora queira contar e que ainda não contou para a gente?
R – Ah, você tem que perguntar, porque eu vou falar... Que eu estava falando outro dia com a... Como é o nome dessa moça que me trouxe?
P/1 – Estela.
R – Então... Ela falou: “Tem história para contar”. Eu não percebo que é história, mas que eu me lembro de coisas desde os quatro anos, eu lembro muita coisa de pequena. E por isso que estou estranhando, porque dos meus irmãos ninguém lembra dessa idade. E mesmo eu tenho conhecidas que falam que dos cinco, seis anos, nem lembram! Eu me lembro de muita coisa.
P/2 – Tem alguma coisa que a gente falou, dessa idade, que a senhora não contou para a gente? Que a senhora lembra?
R – De pequena?
P/2 – É.
R – Quando morava na cidade, não é? Não. Que eu me lembre, eu gostava de ir até o Largo São Bento, é menos de um quarteirão, não é? Porque eu gostava de ver a Igreja São Bento quando toca as horas e que são dois padres que batem o martelinho, eu gostava de ir até lá. Ia comprar bala na rua Boa Vista, que tinha lá uma lojinha Sönksen, eu nem alcançava no balcão e ia lá pedir bala. E que, aos domingos, quando era pequena, ainda lá, a minha prima, que morava pegado e era maior, levava a gente para assistir missa, ou na Igreja Santa Efigênia ou na Igreja São Francisco. A gente atravessava tudo aquilo, ia a pé e gostava. Então, eu assistia à missa e, à tarde, um dia tinha teatro - que as crianças participavam do teatro - e outro domingo distribuía bala, sacos de bala na saída. Tanta coisinha, coisinha que para a gente passou, eu fico lembrando essas coisas que eu acho que estou com a memória boa. (risos) Acho que estou com a memória boa, acho que estive com a visão boa até pouco tempo! Mesmo assim, eu posso andar, não é?
P/1 – A senhora gosta de viajar?
R – Não, eu já viajei um pouco. Quando meu marido estava bom. Mas agora não dá para viajar, não dá para andar! Se bem que quando eu viajei, eu via gente andando na cadeira de roda com acompanhante, mas eu não quero fazer isso não. A acompanhante tem que ficar à disposição o tempo todo... Sei lá se ela faz alguma coisa para ela, mas...
P/2 – Dona Rosina, a gente está caminhando para o fim da nossa conversa. O que a senhora achou de vir contar sua história hoje para a gente?
R – Ah, eu gostei. Eu gostei porque nunca pensei que essas coisas viessem à tona, de lembrar. Lá na ladeira, sabe o que eu me lembro? Quando veio pela primeira vez o zepelim, que ele passou lá e ficou parado sobre a nossa casa, ficou uns dias lá e foi embora. A única vez que eu vi. Era tudo diferente. Os aviões eram pequenos e eu sonhava em ser comissária de bordo! (risos)
P/2 – E a senhora chegou a voar?
R – Sim.
P/2 – Como foi sua primeira vez?
R – A primeira vez eu fui para o Rio, em quadrimotor, não é? Depois de casada, meu filho que pagou a viagem, uma delas eu fui para os Estados Unidos com um grupo de amigas, que nós éramos oito, que era o jogo do pontinho. A gente estava sempre em oito, por causa do jogo. Viajei com elas e conheci Nova Iorque e fui até Punta del Este, que tem tudo como era antigamente, no tempo dos caubóis. Depois eu fiz uma viagem com meu marido, que meus filhos pagaram, para as ilhas do Caribe. Aliás, quando eu fui para Nova Iorque, nós paramos em duas ilhas do Caribe, eu conheci duas. Depois, a outra vez, eu conheci outras duas. A gente faz um passeio de Miami até as ilhas e fica três dias no navio, muito gostosa essa viagem. Come lá e tudo. Até minha amiga perdeu o passaporte e tivemos que ir ao consulado. (risos) E na volta, ele vai num dia. Para ir, leva três. É. Eu fui três vezes de navio. Mas as últimas duas foram em navio muito bonito! Grande, quatorze andares. Porque aquela primeira não, era um navio pequeno.
P/2 – Então, só para a gente concluir, o que a senhora achou de contar sua história aqui para a gente?
R – Eu gostei. Eu gostei porque também é uma oportunidade de estar em contato com outras pessoas, nessa idade é difícil.
P/1 – E eu tenho mais uma pergunta só para a gente finalizar. Quais os seus sonhos para o futuro?
R – Para o futuro eu não tenho sonhos. Para o futuro eu digo sempre que é o dia de hoje. Tudo que eu faço, eu não sei se vou fazer amanhã. Às vezes alguém me convida para ir à casa dela depois de um dia ou dois dias e eu digo: “Só te falo no dia”. Porque não vou programar antes. Tenho que estar ciente de que a vida é assim. Não sou pessimista. Nessa parte, eu acho que sou muito realista.
P/1 – Então está bom, dona Rosina. Muito obrigada por contar sua história aqui para a gente!
R – Eu que agradeço.
P/2 – Foi uma delícia ouvir a senhora! Muito obrigada.
R – Eu gostei também de vocês.
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