P/1 – Luciana, então eu vou começar de uma maneira super tradicional: qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Luciana Bruzadin, eu nasci em São Paulo, capital, em 1973, no dia trinta de maio, de oito meses, (risos) nasci prematura. Eu tinha que ser geminiana, então eu fui, nasci, e tinha que ser. (risos)
P/1 – Geminiana, né? Seus pais são de São Paulo?
R – Meu pai é paulistano e a minha mãe é do interior de São Paulo, de Taquaritinga. Meu pai, quando adolescente, foi morar no interior, e lá ele conheceu minha mãe. Aí eu sou temporã, a terceira filha depois de nove anos do meu segundo irmão. E eles nasceram no interior, e quando eram pequenininhos, meus pais voltaram pra São Paulo, e eu já nasci em São Paulo. Nascida e criada na Mooca.
P/1 – Como é o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai se chama Roberto Bruzadin, e minha mãe chama Maria do Carmo Pala Bruzadin.
P1 – Você sabe a história da família da sua mãe, dos seus avós, do interior? Eles são, também, de lá de Taquaritinga?
R – São do interior. Meu avô materno, vô Pala, lutou nessa...
P/1 – Revolução constitucionalista?
R – Isso, de 30, e... Quando é que foi?
P/1 – 1932.
R – Ele lutou nessa revolução. Minha mãe tem oito irmãos, com ela, ela é a mais velha. E é aquela história, né: eles eram do interior, aí minha mãe conta que o avô dela era dono de não sei quanto, daquele bairro todo, da cidade e tal, ‘bã, bã, bã’, e aí, no fim, todo mundo... Meu vô ficou bem pobre quando minha mãe era criança. Eu sei que ele trabalhava vendendo gás e tal, mas criou, os oito filhos estudaram, a maioria é professor, e era uma família muito alegre. Ela tem as melhores recordações, assim, de férias de final de ano no interior, na casa da vó, com aquele monte de primo, de tio, de tia, todo mundo junto, aquele acampamento na sala. Então são...
Continuar leituraP/1 – Luciana, então eu vou começar de uma maneira super tradicional: qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Luciana Bruzadin, eu nasci em São Paulo, capital, em 1973, no dia trinta de maio, de oito meses, (risos) nasci prematura. Eu tinha que ser geminiana, então eu fui, nasci, e tinha que ser. (risos)
P/1 – Geminiana, né? Seus pais são de São Paulo?
R – Meu pai é paulistano e a minha mãe é do interior de São Paulo, de Taquaritinga. Meu pai, quando adolescente, foi morar no interior, e lá ele conheceu minha mãe. Aí eu sou temporã, a terceira filha depois de nove anos do meu segundo irmão. E eles nasceram no interior, e quando eram pequenininhos, meus pais voltaram pra São Paulo, e eu já nasci em São Paulo. Nascida e criada na Mooca.
P/1 – Como é o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai se chama Roberto Bruzadin, e minha mãe chama Maria do Carmo Pala Bruzadin.
P1 – Você sabe a história da família da sua mãe, dos seus avós, do interior? Eles são, também, de lá de Taquaritinga?
R – São do interior. Meu avô materno, vô Pala, lutou nessa...
P/1 – Revolução constitucionalista?
R – Isso, de 30, e... Quando é que foi?
P/1 – 1932.
R – Ele lutou nessa revolução. Minha mãe tem oito irmãos, com ela, ela é a mais velha. E é aquela história, né: eles eram do interior, aí minha mãe conta que o avô dela era dono de não sei quanto, daquele bairro todo, da cidade e tal, ‘bã, bã, bã’, e aí, no fim, todo mundo... Meu vô ficou bem pobre quando minha mãe era criança. Eu sei que ele trabalhava vendendo gás e tal, mas criou, os oito filhos estudaram, a maioria é professor, e era uma família muito alegre. Ela tem as melhores recordações, assim, de férias de final de ano no interior, na casa da vó, com aquele monte de primo, de tio, de tia, todo mundo junto, aquele acampamento na sala. Então são memórias, assim, bem bacanas, que às vezes eu sinto um pouco dos meus filhos não terem essa convivência com tanta criança, família grande, que agora a família está mais reduzidinha, assim.
P/1 – Conviveu quanto tempo com seu avô?
R – Ah, eu tive muita sorte, viu, porque eu tive os meus quatro avós até a fase adulta, praticamente. A minha vó por parte de pai morreu faz uns quatro anos, com 101 anos. Super velhinha, super saudável. Então, eu convivi a vida toda com eles, eu tive muita sorte.
P/1 – E esse seu avô nasceu lá no interior também ou ele é...
R – Não, os meus avós todos nasceram no Brasil. Nasceram em Taquaritinga, meu avô e avó maternos. A minha avó paterna nasceu na Argentina, a família vindo da Espanha, numa parada na Argentina ela nasceu, a que morreu, de 101 anos. E o meu avô nasceu em São Paulo, o italiano da parte do meu pai. Da parte da minha mãe é italiano também. (risos) São todos italianos.
P/1 – Seus bisavós vieram da Itália?
R – Os bisavós vieram da Itália e da Espanha.
P/1 – Os de parte do pai vieram da Itália? De pai, não, de mãe.
R – Sim. Eu não sei a história, por que vieram... Vieram para trabalhar, né? Como imigrantes, mesmo, naquela ânsia de construir a vida aqui no Brasil.
P/1 – E você sabe por que pararam em...
R – ... Taquaritinga. Não sei por que foram parar lá em Taquaritinga há tanto tempo, porque Taquaritinga ainda é pequeno hoje, imagina há cem anos, né? Até mais.
P/1 – E a sua vó, o que ela fazia? A vó materna.
R – Teve oito filhos. (risos) Ela era mãe. (risos) Não, ela era costureira também, fazia uma coisa muito interessante: chapéu. Taquaritinga tem uma história bacana com futebol que, nos anos oitenta, o CAT, que é o Clube Atlético de Taquaritinga, subiu para a primeira divisão, o que é um feito, assim, maravilhoso, pra pequena cidade. E ela fez um monte de chapeuzinho do CAT, aí ia todo mundo na casa da minha vó tirar o tamanho da cabeça. Os bloquinhos... Carnaval é muito legal lá, então ela fazia muito chapéu pra carnaval, e isso era bem interessante. Ela vendia roupa, fazia chapéu, mexia com essas coisas, assim.
P/1 – Você passava carnaval lá?
R – Passei muitos carnavais lá. Carnaval de rua e clube. O clube fica numa esquina, o salão do clube fica no andar superior, numa esquinona, assim, e eles colocavam trio elétrico, um caminhão de som – na verdade, né, na rua que desce, da rua do clube. Então, juntava tudo: descia pra rua, subia pro clube. Nossa, era muito legal, muito gostoso. Acabava o carnaval, estava todo mundo doente, (risos) porque era tanta agitação, assim, que ficava todo mundo esgotado.
P/1 – Tem algum carnaval específico, algum fato que tenha te marcado?
R – Olha, acho que foi trauma de gente vir falar comigo, assim, com aquele bafo de cerveja, sabe? Chegava no final do carnaval, eu falava: “Gente, eu não aguento mais sentir cheiro de cerveja”. Imagina, interior, todo mundo bebe pra caramba, né? E eu era adolescente, não tinha o hábito, ainda, de beber. Não tomava cerveja, nada. Eu falava assim: “Gente, que cheiro é esse? Não sei como esse povo gosta de tomar cerveja, essa coisa amarga!” (risos) Mas, no geral, é só lembrança boa mesmo, de coisas legais.
P/1 – E você falou que sua mãe tem muitos irmãos, oito irmãos.
R – Sim.
P/1 – E vários foram professores. Como é que era? Por que todo mundo virou professor? Como eram os hábitos na casa da sua vó, que gerou vários professores?
R – Olha, eu não sei te dizer. Porque nem meu avô, nem minha vó eram pessoas, assim, muito... Eram pessoas inteligentes, mas não eram muito intelectualizados. Mas começou. Minha mãe é professora e começou. E todos, a maioria, por um lado das Exatas. A maioria é professor de Matemática. Eu tenho tios que lecionam até hoje, minha madrinha passou a vida lecionando de manhã, de tarde, de noite. Sabe aqueles turnos, mesmo, de dar aula, sei lá, quinze por dia? E é bem interessante isso, porque, excetuando dois irmãos, o resto, seis, foram professores, mesmo.
P/1 – E a família do seu avô, Lu, por parte de pai? Seus avós por parte de pai, o que eles faziam?
R – O meu avô por parte de pai era uma figura muito legal. Ele era caminhoneiro. Ele desbravou, aí, Brasil afora, de caminhão, e montou uma transportadora lá no interior, que era da família, tal, e ele tocou isso até o fim da vida. Também morreu bem velhinho, com quase noventa anos. Porque agora a gente acha que... Meu pai já está fazendo quase oitenta, e eu acho meu pai tão jovem ainda, porque mudou muito isso, essa coisa. Eu, sei lá, quando era criança, imaginava uma mulher de cinquenta anos uma senhora, agora eu tenho 47 e falo assim: “Não, calma lá, porque mudou tudo”. (risos) Quando a gente vira referência, muda tudo, né? E ele teve essa transportadora e a vida inteira trabalhou, dirigia caminhão. Ele era pequenininho, baixinho e surdo. Era uma figura. Uma figura, figura, figura. Ele achava que era o dono da rua, então ele dirigiu até o fim da vida também, e o povo fala que, na época – super conhecido na cidade pequena –, ele subia a rua do comércio na contramão. Aí todo mundo dava passagem: “O Seu Guido subindo a rua”, tal. (risos) Pra ele não tinha regra.
P/1 – Ô, Lu, e quando ele criou essa transportadora, foi em Taquaritinga?
R – Foi em São Paulo, mas tinha filial em Taquaritinga também. Tinha algumas filiais.
P/1 – Como foi que seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Eles se conheceram na escola. O meu pai e a minha mãe, na verdade... Porque Taquaritinga tinha o grupo que eles chamam de escola, a minha mãe devia ter os seus dezessete anos, mais ou menos. Eles começaram a namorar, namoraram um tempo e casaram quando a minha mãe tinha dezenove anos. Aí, com 21, minha mãe já tinha meus dois irmãos. Porque os meus dois irmãos mais velhos – a minha irmã chama Rosana também – ... A minha irmã mais velha nasceu, e quando minha irmã tinha dois meses, a minha mãe já estava grávida do meu irmão. Olha que loucura! Então, eles têm onze meses de diferença. E aí eu vim depois de nove anos.
P/1 – Seu irmão?
R – É, meu irmão Roberto.
P/1 – Como é o nome dele?
R – Roberto também, que nem o nome do meu pai. Em casa é assim: o meu irmão se chama Roberto, e a minha irmã mais nova, que é por parte de pai, chama Roberta. É Roberto, Roberto e Roberta. Então sempre uma criatividade, assim, muito grande. (risos)
P/1 – Luciana, e o seu avô, você conviveu com ele? Ele te contava história da época que ele era caminhoneiro?
R – Ah, ele conta as histórias do quanto era difícil, né, porque as estradas eram muito precárias, então as dificuldades que passava. E o que ele gostava, mesmo, muito, era pescar. Então tem as histórias engraçadas dele, de pescaria, porque ele era muito agitado. Na verdade, o que ele gostava era da viagem, né? Sempre caminhoneiro, então ele curtia a viagem. Então, ele cismava de pescar, sei lá, em Goiás, aí arrumava alguém pra ir com ele, algum amigo, um primo meu, um tio. Chegava, imagina, longe pra caramba, às vezes dias viajando. Chegava lá e tipo, ele não esquentava no lugar, sabe? Falava: “Não, está ruim de peixe, vamos voltar”. Voltava. (risos) Tipo, o que ele curtia, mesmo, era a viagem, entendeu? Queria estar na estrada. Isso era engraçado.
P/1 – E a sua vó que você disse que veio da Espanha e parou na Argentina?
R – Então, ela nasceu na Argentina, porque minha bisavó estava grávida. Ela veio de navio, e parece que o navio parou na Argentina e ela nasceu lá. Ela foi registrada, até, na Argentina, tudo. E depois veio pro Brasil. E se estabeleceram na Mooca, já, a família da minha vó. Os espanhóis, que era meu bisavô Antônio e a minha bisavó Antônia também. Os dois chamavam Antônio. E eles se estabeleceram na Mooca, também fazia sapato, trabalhava em fábrica de fazer sapato, bolsa. Eu lembro muito das minhas tias-avós com aquelas máquinas bem grandes, bem robustas, pra costurar couro, e era bem legal. Eu brinco que o meu avô que era caminhoneiro tinha quatro esposas, porque a minha avó era a irmã mais velha, e as três irmãs dela mais novas não casaram – [essas] que moravam na Mooca –, só que eles viviam juntos. Minha vó sempre vinha pra São Paulo e ficava na casa das minhas tias com meu avô, e aí as minhas tias iam pro interior, ficavam na casa da minha vó com meu avô. Então, ele parecia um sultão, assim, porque estava sempre rodeado de quatro mulheres. (risos) Mas eram as irmãs da minha avó que nunca casaram. (risos) Que foi, na verdade, uma delas que cuidou de todos até morrer, e no final do ano passado ela faleceu também, foi a última dessa geração, que seria acima do meu pai. Agora foi todo mundo.
P/1 – Lu, aí, quando os seus pais se casaram... Quer dizer, você não chegou a morar em Taquaritinga, porque eles vieram pra cá, né?
R – Não, nunca morei lá. Exato.
P/1 – E por que eles mudaram pra São Paulo?
R – Meu pai entrou no concurso do Banco do Brasil e veio pra São Paulo, pra trabalhar aqui, numa agência daqui. E aí minha mãe também começou a dar aula aqui em São Paulo e se estabeleceram na Mooca, também, que era onde a minha vó por parte de pai já morava. Aí eu nasci na Mooca, já. Nasci e cresci na Mooca.
P/1 – Como é que era a Mooca, quando você nasceu?
R – Demais a Mooca, é um bairro maravilhoso! Fala que quem é da Mooca nunca deixa de ser da Mooca. Era aquela coisa: você brincava na rua, né? Montava rede de vôlei no meio da rua, e [quando] o carro passava, você levanta a rede pro carro passar. Então a gente tinha uma liberdade e um estilo de vida que era muito mais livre. A gente brincava na rua, tinha turma, né, que ficava na porta de casa, dos vizinhos, da galera da escola, aquela coisa de ficar na porta de um prédio, que são minhas amigas até hoje. Duas irmãs moravam num prédio, e o prédio era tipo assim, o point. Então ficava todo mundo ali na porta do prédio. Aquele ócio criativo que a gente não tem mais, quase, porque a gente está sempre com alguma coisa eletrônica, vendo alguma coisa, né? Naquela época, não.
P/1 – Morava em casa?
R – Morava.
P/1 – Que rua que é?
R – Eu morava na Rua Agostinho Lattari, na Mooca.
P/1 – É perto do [Clube Atlético] Juventus?
R – É pertinho do Juventus, dá uns três quarteirões do clube, e eu estudei a vida inteira no colégio que é grudado no clube, no José Heitor Caruso, que é um colégio estadual que dá parede com o Juventus. Ah, só coisa boa! Só lembrança boa de lá.
P/1 – Você frequentava o Juventus?
R – Ô, todo dia. Eu, com uns nove anos, comecei a fazer natação lá. E eu entrei pra equipe de natação do Juventus, então eu treinava todo dia, todo dia de manhã. Eu estudava à tarde e todo dia de manhã eu tinha treino. Fiz tudo lá no Juventus. Nossa, natação, fiz ginástica rítmica, tudo que tinha a gente fazia lá. E depois, na adolescência, curti muito piscina e show, né? Tinha bastante. Foi a época de Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor estava começando, então tinha aqueles shows muito legais no Juventus, e a gente saía da piscina e ia direto pro show. Aquela vida maravilhosa, né? Muito gostoso, bem divertido.
P/1 – Como é que era sua casa?
R – A minha casa era um sobrado geminado; tinha uma garagem que cabia um carro certinho, aí subia pro primeiro piso e ficava a sala, a cozinha e o quintalzinho. Da sala, mais um lance de escadas subia pros três quartos e um banheiro. Era uma casa bem típica de classe média, assim. Bem típica, mesmo. Não era uma casa muito grande, mas era uma boa casa, de três quartos – éramos em três irmãos. Tinha um quintal e eles fizeram uma reforma que ainda subia uma escadinha pra uma área de serviço no fundo. Era uma casa gostosa.
P/1 – O que seu pai fazia ou faz?
R – Então, meu pai tem uma história legal também, porque meu pai começou a vida dele como concursado do Banco do Brasil, trabalhou muitos anos e, em determinada fase da vida, assim, o meu avô, dono da transportadora – meu pai são em quatro irmãos homens, só tem irmãos homens – [o] chamou. Os dois já trabalhavam na transportadora. Um outro tio meu trabalhava na área de tecnologia, eu acho, e meu pai no Banco... Meu pai e meu tio que não trabalhavam na transportadora pra vir trabalhar na transportadora. Aí meu pai acabou saindo do Banco e indo pra transportadora. Mas não era a praia do meu pai, entendeu? Na verdade, agora o meu pai é produtor musical. (risos) Já desde, também... Já faz uns vinte anos, pra mais. Mais: uns trinta anos. Ele é produtor da banda Mantiqueira, e agora ele está na terceira esposa; a esposa dele também, ele está com a Nair já faz uns 25 anos, é cantora. Então eles, agora, vivem a música, né? No momento não, porque não tem show, está tudo parado, mas ele é produtor musical agora.
P/1 – Como é que ele fez essa guinada da transportadora pra ser produtor musical?
R – Bom, meu pai, desde muito molecote, assim, sempre amou jazz, música. Então, ele era daqueles que, na época que tinham as bandas que iam nas cidades pequenas, tal... E ele vivia acompanhando isso. Então, assim, ele sempre foi um apaixonado por música, um amante, mesmo, de música. E sempre foi muito boêmio, sempre curtiu a noite e tudo. E meu pai é uma pessoa muito carismática, muito fácil de fazer amizade, então ele acabou conhecendo esse pessoal da música. Ele é muito articulado, tinha muitos contatos, tudo, e começou a trabalhar como produtor. Foi uma coisa que foi acontecendo, né? Ele tocou as duas coisas paralelas durante um tempo, mas eu acho que a transportadora tirava, na verdade, o tesão dele, assim, sabe? Ele não curtia. Era uma coisa que ele não curtia, que acabava desgastando-o, e ele acabou optando pelo que ele gostava, realmente, de fazer, que era mexer com música.
P/1 – Quando você nasceu, ele estava no Banco do Brasil ou ele era...
R – No Banco do Brasil. Eu já era maiorzinha quando ele foi pra transportadora. Já devia ter uns oito, nove anos.
P/1 – E como é que ele era em casa, com vocês? Vocês escutavam muita música? Quais eram os hábitos? Como é que ele se comportava com vocês?
R – Não, meu pai também era um típico pai (risos) dos anos setenta, oitenta. Ele não era aquele pai muito... Meu pai é muito presente agora. Na época que a gente era criança, mais novo, ele não era muito presente, era aquela coisa mesmo: quem comandava a casa, quem interagia mais com a gente era a minha mãe. E os meus pais se separaram quando eu tinha nove anos, então também teve esse distanciamento natural da separação quando eu ainda era criança. Então não lembro, porque eu vejo hoje meu marido, a gente cuida das crianças em igualdade de condições de tempo e tudo. Quem estiver disponível que vai dar banho, vai ver a comida, tal. Não existe muito ‘função de quem’, é quem está disponível para, né? Acho que se meu pai me deu um banho na vida, foi muito, assim. Não tenho recordação, sabe, de ir no mercado com meu pai. Era pra coisas mais lúdicas, mesmo. Levar, às vezes, pra um teatro, cinema, que ele participava mais. Mas a coisa do dia a dia, de acompanhar escola, tudo, era mais a minha mãe mesmo.
P/1 – E sua mãe, o que ela fazia? Ela trabalhou fora, dava aula?
R – Ela dava aula. Durante um tempo ela parou, quando eu era pequena, e depois, quando os meus pais se separaram, ela retomou. Aí, também, que ela foi pra área que ela gosta, porque minha mãe se especializou em educação especial. Então, teve um período bem interessante em casa, porque tinham poucas opções de escola, não tinha inclusão de alunos especiais nas escolas normais. Era bem... Ainda é difícil hoje em dia, naquela época era muito mais. Então ela chegou a ter um grupo de alunos que ela dava aula na garagem de casa. Às vezes eu ia lá, ajudava, tal. Era uma experiência bem positiva, porque você aprende a olhar com mais empatia para as diferenças, né? Porque a gente não considera... Não é que é normal, como posso dizer? Normal. Mas foi bem interessante isso, acompanhar isso ainda pequena, sabe? Poder entender que tem crianças com dificuldades, mas que tudo pode ser trabalhado e não precisa ser naquela regrinha, naquela caixinha fechadinha. Então minha mãe usava tapeçaria pra estimular a coordenação motora deles. Ela desenvolveu horta... Então ela tem um projeto bem legal de educação aplicada, assim, com crianças especiais.
P/1 – Lu, como é que foi esse contato, quando a sua mãe começou a trabalhar com essas crianças? Como é que você percebeu que era a diferença? Como é que foi quando você entendeu? Ou, como é que você via isso antes?
R – Eu sabia, né, uma criança com síndrome de Down, autista. A gente já tinha contato, mas a gente não entendia muito bem como é que as famílias faziam para dar condições pra essas crianças terem algum tipo de educação, de desenvolvimento, pra algum tipo de independência, pra trabalhar, evoluir. Porque ela pegava crianças desde paralisia cerebral, com dificuldades motoras muito severas, até crianças com síndrome de Down leves, que vão, se bem direcionadas, entrar pro mercado de trabalho e conseguir tocar a vida, né? Mas foi bem interessante, assim, foi bem bacana.
P/1 – Lu, e por que ela escolheu trabalhar com essas crianças com síndrome?
R – Olha, eu não sei te falar, mas foi uma coisa, assim, que... Na verdade, acho que as coisas vão acontecendo, a gente não tem... Você tem um contato, assim... E ela acabou percebendo que era a grande paixão dela – e é até hoje. Agora ela não leciona mais, mas ela tem muito, muito, muito amor pelo trabalho que desenvolveu. Ela trabalhou na Apae [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais] um tempo. Um trabalho muto difícil que ela fez, eu fui algumas vezes com ela lá. Trabalhava lá no Pacaembu. Tem a casa que é ligada à Febem [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor], mas é para os menores que são tirados dos pais por algum motivo ou são órfãos. Ela trabalhava com as crianças especiais dessa... Como chama? Casa do Bem Estar do Menor, alguma coisa assim. E nossa, você imagina, né? Porque são crianças que não têm os pais, que estão numa instituição e com necessidades especiais. Então era bem difícil, assim, porque você acaba se apegando. É complicado, né? Eu tenho problema, tenho vontade de trazer todo mundo pra casa, tenho que tomar cuidado. Mas você ia nessa casa, tinha a ala dos pequenininhos, então a gente está costumada com criança de um ano ou dois, que não gosta muito que pega; criança gosta de ficar meio livrezinha, tal. Você ia nesse berçariozinho, as crianças pequenininhas vinham e se agarravam na sua perna. Gente, era de cortar o coração. Queria levar todas as crianças embora pra casa. Essas coisas vão dando uma lapidadinha no nosso coração, nas nossas percepções, da bolhinha que a gente vive. A gente vai saindo um pouquinho dessa bolha e vai percebendo que o mundo ao redor é bem diferente, né?
P/1 – A sua casa, como é que era? Sua mãe atendia, recebia essas crianças na garagem da sua casa, você falou, e vocês ficavam na casa? Como é que era essa convivência?
R – É, na verdade, nessa época os meus irmãos já estavam na faculdade, já não estavam em casa, e era só eu e minha mãe. Então, de manhã eu ia pra escola e à tarde ela estava lá, dando aula para as crianças. Às vezes eu ficava lá embaixo, ajudava; às vezes não. Não tinha uma obrigação com relação a isso. Mas era tranquilo, não foi muito tempo. Foi uma opção que ela conseguiu sugerir pra suprir uma demanda de crianças que não tinham o que fazer num período do dia, então ela dava atividades extras para essas crianças, né, como eu te falei, geralmente ligado a trabalhos manuais, a uma educação aplicada, mesmo. Não aquela coisa no caderno, tentar escrever, alfabetizar. Fazia todo esse trabalho, só que de uma forma lúdica. Ela usou muito ludoterapia com as crianças.
P/1 – E seus pais se separaram quando você tinha nove anos?
R – Isso.
P/1 – Por que eles se separaram?
R – Ah, eu acho que era por uma questão de incompatibilidade de gênios, mesmo. Acabavam brigando, e a relação não estava boa. Se separaram e minha mãe nunca se casou de novo. Minha mãe teve poucos namorados depois, e meu pai se casou duas vezes. Eu tenho uma irmã do segundo casamento do meu pai, que é minha irmã mais nova, a Roberta, que é onze anos mais nova que eu. E depois, quando a Roberta tinha nove anos também, meu pai se separou da mãe dela e casou com a Nair, só que está com a Nair também já faz um tempão, há mais de 25 anos. Vinte e oito anos, acho.
P/1 – Lu, e como foi que você vivenciou essa separação?
R – Olha, na época era difícil. Acho que separação nunca é tranquilo. E eu tinha uma estrutura familiar que eu tinha meus dois irmãos, meu pai e minha mãe. Bem na época que os meus pais se separaram, foi a época que os meus irmãos foram pra faculdade. Então foi aquela coisa: a casa ficou vazia. Então pra mim foi meio difícil. E a minha mãe ficou bem ‘deprê’, então eu tive meio que me virar, assim, de, às vezes, até fazer comida, tal, porque minha mãe estava... Ficou bem mal, assim. E eu sentia muito tédio, que eu falava assim: “Gente, não tem nada pra fazer. Cadê meu irmão, minha irmã, todo mundo?” E era uma fase também que tinha ainda aquela coisa de pais separados, esse tabuzinho, entendeu? Mas foi tranquilo. Logo na sequência eu fui pro ginásio e fiz o meu núcleo de amigas, que são minhas amigas até hoje. São, que eu falo, minhas almas gêmeas. Elas me salvaram, assim, com certeza, porque aí a vida começou a ter brilho de novo. Eu tinha as amigas, tal, e entrei na adolescência, né? Aí foi tudo bem, tudo ótimo. (risos)
P/1 – Lu, voltando um pouquinho, com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu, nessa época do jardim-de-infância – que chamava, na época, que era antes dos seis anos –, odiava a escola. Eu fazia um escândalo, eu mordia a professora, odiava ir pra escola, odiava. Passava com o carro na frente da escola e minha mãe fala que eu me escondia embaixo – à noite, indo pro restaurante, não estava nem indo pra escola – do banco do carro. Odiava. Aí ela me tirou, e eu entrei, mesmo, na escola, no pré-primário. Na escola lá no José Heitor Caruso, aí foi. Então comecei a estudar de verdade velhinha já, com seis anos. (risos) Minha filha foi com um [ano] pra escola.
P/1 – Que lembranças você tem do Caruso? Alguma professora, amigos?
R – Eu tenho lembranças, assim, muito vivas de lá. Eu lembro do uniformezinho do pré-primário, que era uma graça, uma batinha amarela, assim, todo mundo usava conguinha. Ah, era muito fofo isso! (risos) Era tudo muito igual, porque na escola estadual estudava, imagina, o bairro inteiro! Desde criança que morava na comunidade da Vila Prudente, até o pessoal que morava atrás da delegacia, que era mais classe média alta e tudo. Então era uma mistureba muito bacana de gente de todos os tipos. E o que eu lembro, que eu estava aqui lembrando esses dias, disso, da escola... a gente pulava o muro da escola pra andar de trólebus. Entrava no ônibus pra sair pela porta de trás pra não pagar passagem. (risos) Essas coisas que molecada faz, né, nessa fase, descobrindo a cidade. Ia até a Praça da Sé, da Mooca, e voltava. (risos) Pulava o muro pra fazer isso, pegar ônibus. E era muito legal.
P/1 – Você lembra das professoras?
R – Lembro. A minha primeira professora chamava Deise, e eu lembro... Sabe o que era uma coisa interessante? As professoras iam todas bem arrumadas pra escola. Era uma coisa, assim: uma camisa toda, sainha. Eu lembro de uma coisa muito legal que tinha na escola: um consultório. Eu sou dentista. Tinha um consultório odontológico na escola e tinha o dentista. Gente, não é o máximo ter dentista na escola? Por que não tem mais? Que absurdo a gente ir perdendo esses benefícios, que eram tão legais, assim. A gente fazia bochecho com flúor toda sexta-feira. Imagina, em tempos de covid, todo mundo cuspindo no balde! (risos) O que era aquilo? Mas era muito legal, ao mesmo tempo, né? Essas lembranças que eu tenho, assim, na verdade. Eu estudei lá até a oitava série, fui do pré à oitava série.
P/1 – Você gostava de estudar?
R – Eu sempre fui boa aluna, sempre fui muito responsável. E eu cagava de medo, morria de medo de ficar de recuperação, bombar de ano, essas coisas – mais preocupada com o tempo que eu ia perder, na verdade. Tinha aquela coisa: “Nossa, se eu ficar de recuperação, vou ter que ir mais na escola e vai demorar mais pra ter férias”. Então eu focava pra ir bem, no terceiro bimestre já estar com as notas fechadas pra não precisar estudar nem no quarto bimestre. Eu tocava assim. Mas eu acho que eu tinha, também, um pouco de facilidade. Sempre fui boa aluna. Minha mãe brinca, que ela fala que ela tinha que entrar no quarto pra pedir pra eu parar de estudar: “Vai dormir”, não sei o que. Às vezes eu ficava até mais tarde estudando. Eu curtia. Era de boa.
P/1 – Quais matérias que você mais gostava?
R – Essa também é outra coisa interessante: eu sempre curti mais as matérias de Humanas. Sempre gostei muito de História, gostava muito de Português, Literatura. Essa parte de Humanas, mesmo, poesia, e eu ia bem, porque eu curtia. Só que eu era muito boa em Exatas: Matemática, Física eu tinha muita facilidade; e fui fazer odonto [odontologia], que é Biológicas, que era o que eu tinha menos facilidade, na verdade. Então, seria mais... Me fugiu a palavra... ‘Normal’ eu ter feito Jornalismo, Arquitetura, e fui fazer odonto – graças a Deus, porque acertei em cheio na profissão que eu amo! (risos)
P/1 – Lu, nesse período, como era na sua casa? Se discutia política?
R – Sim. Meus pais sempre foram muito politizados, e eles viveram muito essa coisa da ditadura, então tem as histórias de amigos dos meus pais que foram presos, do medo todo que existia naquela época. E eu lembro muito das eleições quando o Tancredo foi eleito, indiretas ainda, na época. E a comoção que foi. Eu lembro, eu era criança. Foi em 1982, né? Eu tinha nove anos. Lembro da minha tristeza quando o Tancredo morreu.
P/1 – 1984, é.
R – Eu tinha onze. Então eu lembro da minha tristeza, assim. Parecia que eu estava vivendo aquele sonho de uma retomada, da gente sair de um período negro mesmo e começar uma história diferente. Isso tudo permeado com a coisa cultural da música, que sempre teve muito em casa. Sempre teve muito MPB [Música Popular Brasileira] em casa, muito Chico [Buarque], Caetano [Veloso], Gal [Costa], Elis [Regina]. Quando a Elis morreu, a minha mãe ficou arrasada, sabe? Foi aquela coisa, assim, muito triste. Então a gente tem essa bagagem, essa ligação da cultura com a política. Tinha tudo muito permeado, todo o protesto que vinha nas músicas e tudo.
P/1 – Você se lembra do quê? Seus pais comentavam o que em casa? Como é que você sabia que você estava na ditadura quando você era criança, adolescente?
R – Na verdade, foi antes, ainda. Eles comentavam das coisas que tinham se passado. Eu lembro da minha mãe comentar do amigo dela, que ela falou assim: “Ele foi tão inteligente que saiu mais lúcido da prisão do que quando ele entrou”. Ela conta que ele tinha um poder de capacidade mental, mesmo, de isolar o problema, assim, sabe, e se preservar. Ela fala que, quando ele saiu da prisão, saiu mais bonito e lúcido do que quando ele foi preso, na ditadura. Então tinha esse viés todo de todo mundo querer ter mais liberdade, ter uma história social mais justa, mais igual. Era nesse contexto.
P/1 – E seu pai também era politizado?
R – Meu pai também. Meu pai lê muito, até hoje, assim. Muito. Dá pitacos no jornal. Toda vez vai ter um comentariozinho dele lá na Carta de Leitor, ele adora fazer, dar os pitacos dele.
P/1 – Tinha o hábito de leitura na sua casa? O que você lia quando criança?
R – Sim. Olha, quando criança, o que me ganhou muito foram os gibis da Mônica, e eu ganhei a coleção do Asterix também. Eu li toda a coleção do Asterix, eu lia toda noite. Deitava com o livrinho do Asterix e lia uma historinha. E daí peguei super gosto pela leitura. Em casa todo mundo sempre leu. Meu pai é um leitor que lê demais, minha mãe também, e meus irmãos – principalmente meu irmão –, e daí veio o gosto por ler. E é muito legal, mesmo. Mas o que me ganhou, de criança, foi gibi e o Asterix, que eu amo até hoje. (risos)
P/1 – Quando que você, na adolescência, começou a sair da Mooca e ir pra outros lugares? Ou ficava [mais] na Mooca? Que lugares que você frequentava na adolescência? Qual era seu costume?
R – Ah, a gente saía da Mooca. A gente sempre tinha algum amigo que tinha carro, né? (risos) Então, ah, a gente ia pra Pinheiros, normalmente. Aquela coisa de ir pra lanchonete, Chicohamburguer. Como era aquele outro que tem ali na curvinha? New Dog! Essas lanchonetes super tradicionais dos anos oitenta, noventa. E a gente saía. Ninguém tinha dinheiro, né, a gente ia tudo na pindaíba. Rachava lanche, refrigerante. (risos) Não tinha dinheiro, adolescente. Eu falo para os meus filhos hoje a vida boa que eles têm, que a gente ia na padaria em quatro pra mear dois mistos quentes, entendeu? Era sempre assim: dividia dois mistos quentes pra comer em quatro e saía feliz da vida. A gente saía por São Paulo, em lugares bem... Eu peguei Projeto SP, fui em vários shows, do Tóquio, vi várias coisas, AeroAnta... Aí eu já estava um pouquinho mais velha, já era anos noventa. Eu acho que tive uma típica criação paulistana classe média dos anos oitenta e noventa. Curti uma São Paulo muito legal, muito bacana. A gente andava de ônibus muitas vezes, pegava pra ir em danceteria de domingo... Porque tinha que ir na matinê, tal, às vezes era mais nova. Na Up&Down. (risos)
P/1 – Qual foi sua primeira paixão, namorado?
R – Foi na escola, lá no Carusão. Era o Paulinho, foi meu primeiro namorado. Eu sou geminiana, então hoje eu quero, amanhã eu não quero. Aí tinha as amigas. Então ele ficou, acho, que o ginásio inteiro, ele me pedia em namoro. Aí eu namorava com ele uma semana e falava assim: “Agora enjoei, agora quero só ficar com as minhas amigas. Paulinho, agora eu não quero mais namorar” (risos) Dava um pouco, eu falava: “Acho que estou com saudades do Paulinho”. Aí ele pedia em namoro de novo. Aí, às vezes, eu pedia pra pensar: “Eu vou pensar”. (risos) Porque tinha a coisa... (risos) era muito legal isso. (risos) Coitado! Foi assim da quinta à oitava série, eu namorando o Paulinho. Às vezes sim e às vezes não, entendeu? (risos) Eu acho que gerou uma paixonite crônica nele. (risos) Era época que tinha uns bailinhos de garagem, tinha coisa melhor? Não tinha, né? A gente deixava a garagem aberta, tocava, às vezes ficava a mesma música tocando o bailinho inteiro, todo mundo dançando, lenta. Era muito legal. Nossa, adolescência dos anos oitenta, noventa foi... De bairro, assim, eu acho que das melhores, mesmo. Recordações muito legais.
P/1 – Tinha essa coisa, assim, de atravessar a cidade, ir pra Pinheiros, trocar de bairro? Como era São Paulo naquela época, pra você, essa descoberta desse outro lado da Radial?
R – Então, era muito legal. A gente curtia ir na Praça do Pôr do Sol. Pra gente, ‘puta’, era uma distância, né, sair daqui... Ir da Mooca pra Lapa. E eu frequentava ACM, eu fui muto tempo acampante da ACM [Associação Cristã de Moços], então fiz muitas conexões. Como a ACM tem em vários bairros, eu fiz muitos amigos em vários bairros. Tanto que eu frequentava a ACM da Nestor Pestana... Mas tinha a ACM da Lapa e tinha a ACM de Osasco; ACM de Itaquera, ACM Norte... Então a gente acabava interagindo muito, indo na casa dos amigos ou na própria ACM. Isso eu também já tinha uns quatorze anos, mais ou menos. Eu comecei a acampar com nove, também. Foi logo que meus pais se separaram. Mas que aí eu tinha liberdade de ir, voltar, tal, eu já era mais adolescentona, assim. Era bem legal essa troca, de ver as diferenças, mesmo, dos bairros. Como que é, até, às vezes, os costumes de cada bairro. A Lapa era uma outra história, completamente diferente da Mooca, né? Até as próprias casas da Lapa, que são casarões, era bem... E, ao mesmo tempo, amigos que moravam no Centro, naqueles apartamentinhos, às vezes apartamentos pequenos, tal, e a gente convivia. Foi bem legal, bem rico isso.
P/1 – Como eram esses acampamentos? O que acontecia?
R – Acampamento era demais! Era uma semana, a sede do acampamento ficava ao redor da represa Billings, e a ACM foi a pioneira a trazer essa cultura de acampamento pro Brasil. Eles tinham, realmente, uma infraestrutura bem parecida com os acampamentos que a gente vê de fora. Eram cabaninhas de madeira; um refeitório; tinha os vestiários... Eram, vamos dizer assim, dois prédios distintos: um vestiário masculino e um feminino. Aquela coisa que hoje em dia é impensável, porque era um vão com, vamos dizer assim, oito chuveiros, e não tinha divisória. Entravam todas as meninas pra tomar banho, tudo aberto, assim, como se fosse uma parede com oito chuveiros e a mulherada peladona, tal, não sei o que. E entre um vestiário e outro tinha a caldeira, onde era aquecida a água pros banhos. E o acampamento juntava, às vezes, cem, cento e vinte crianças, era dividido por faixa etária. Separava, assim, as cabanas, e eram sete dias de muita diversão. Era muito intenso e muita... A ACM tem uma coisa de estimular os vínculos de amizade de uma forma muito legal. Então, quando acabava, nossa, parecia que o mundo ia acabar, porque como é que vai separar aquele monte de gente que conviveu sete dias intensamente, de manhã, de tarde e de noite, brincando o tempo todo? Porque são feitas atividades de manhã, de tarde e de noite, tem as refeições... É bem típico de acampamento, mesmo. Fogueira, lareira. Lá na Billings tem uma florestinha assim, que tem a trilha. Você andava na trilha, chegava numa clareira, na clareira eles faziam uma fogueira pra gente tocar violão, cantar música, fazer devocional. Eu me tornei monitora depois. Eu fui... Até a época da faculdade eu ainda era monitora. Nas férias eu ainda ia para os acampamentos. Era trabalho voluntário, não era remunerado, e a gente ia como monitor pra tocar o acampamento lá com a molecada. Era muito legal. E existe até hoje, né? Ainda é quente.
P/1 – Lu, você teve algum tipo de formação religiosa?
R – Formação, não. Assim, a família, tradicionalmente, é católica; os meus pais nunca foram de ir muito em igreja. Eu tive a minha história de espiritualidade meio que à parte, assim. Fiz Primeira Comunhão, ia na missa, lá na Mooca, tal, na época, mas nunca tive muito hábito dessa parte do catolicismo. E depois eu comecei a namorar, tive um namorado durante um tempo, que era espírita, a família era muito espírita, comecei a frequentar centro e achei legal, continuei frequentando, a gente frequenta o centro até hoje. Mas hoje eu me sinto mais, assim, universalista. Eu gosto muito do budismo, mas eu gosto de tudo, eu gosto de astrologia, de calendário maia, (risos) eu gosto muito de espiritualidade, no geral. Então, quando começa a ficar muito na caixinha, assim, eu falo: “Não consigo”, sabe? Começa a faltar, pra mim, não me completa. Então eu vejo o que serve pra mim de cada coisa, assim.
P/1 – Antes de você escolher fazer odonto, quando você era menor, você tinha aquela coisa de criança: “Quando eu crescer, quero ser...”?
R – Tinha. “Quando eu crescer, quero ser dentista”. Era engraçado isso, porque eu não tinha a menor ideia...
P/1 – Desde criança?
R – Desde criança, por causa de um dentista. Quando eu era pequenininha, na Mooca, a minha rua... (risos) O meu dentista ficava na minha quadra. Não na minha rua, mas na minha quadra. Não tinha que atravessar a rua pra ir até o dentista, e a minha mãe deixava eu ir sozinha. Você imagina? Uma criança de sete anos vai sozinha no dentista. Era Luciana sozinha no dentista. E ele era um senhor (risos) muito fofo, e aí ele fez pra mim a clássica pergunta, mais ou menos nessa idade: “O que você vai ser quando crescer?” e eu, lá, apaixonada naquele senhor cuidando de mim, falei assim: “Quero ser dentista”, e fiquei com aquilo: “Eu quero ser dentista, quero ser dentista, quero ser dentista, quero ser dentista”. Só que aí, quando eu fui para o colegial, na época da escolha, mesmo, pesou aquela coisa: “Mas poxa, eu gosto de Humanas, sou boa em Exatas. O que eu vou fazer? Vou fazer Jornalismo”. Aí meu pai: “Não, faz Direito. Precisa de uma advogada, vai fazer Direito” “Tá bom, vou fazer Direito”. Prestei e entrei. Fiquei uma semana na faculdade. Falava assim: “O que eu estou fazendo aqui?” Quando entrava, a professora falava: “Doutora”. Falava assim: “Nossa!” – eu tinha dezessete anos – “doutora do que, gente?” (risos) Aquela formalidade toda! Eu falei: “Gente, não tem nada a ver comigo”, chorando. Meu pai tinha comprado o código penal pra mim – pago, não era faculdade pública. “Pai, eu não quero, eu detestei” “Tá. O que você vai fazer?”, ele fez assim. “Odonto”. Ele falou: “Então tá bom”. (risos) Isso foi... Fiz duas semanas de Direito, praticamente uma advogada. Aí fiz turmas de maio de cursinho, em julho eu já entrei na Unep Ribeirão [Unidade Nacional de Ensino Profissionalizante], em odonto. Aí eu fiz um ano e meio em Ribeirão [Preto], depois eu transferi pra Mogi e terminei minha formação em Mogi das Cruzes, na UMC [Universidade Mogi das Cruzes].
P/1 – Como é que foi a época de cursinho?
R – O cursinho era uma vagabundagem, pra ser honesta. Tem que ser honesta, né? (risos) Era muita vagabundagem, o cursinho. O meu colegial foi muto forte, eu fiz colegial no Etapa. Era muito rígido, então eu já tinha uma base muito boa. Eu ia meio pra cumprir tabela, mesmo. Não tinha muita consciência, assim, das coisas. E foi bem divertido, eu fiz cursinho no Anglo ali da Tamandaré – também outra coisa bem típica de paulistano de classe média. (risos) Aquela coisa que eu sou, a típica paulistana de classe média. (risos). Foi uma fase boa também, mas foi rápido, porque logo... Fiz alguns meses, só, e logo já entrei na faculdade.
P/1 – E quando você passou na faculdade, lá na Unep, que você mudou de cidade, saiu da sua casa, né, como foi essa mudança?
R – Foi bem... Eu tinha dezessete anos, tinha acabado de fazer dezoito, na verdade, e fui pra Ribeirão. Puta, cidade muito legal. Imagina isso em 1991! Ribeirão Preto era incrível! Muito, muito legal. No começo morava numa pensão. Era meio difícil, porque era um cômodo com dois beliches, uma divisória que não ia até o teto, que separava a cozinhazinha – uma micro cozinha, com uma geladeira e um fogãozinho, tal –, que a luz era em comum. A luz da cozinha ficava no meio, ali, do negócio. E odonto era período integral. Então eu ficava o dia inteiro na faculdade, e eu tinha que estudar à noite. E as meninas que moravam comigo na pensão faziam outros cursos meio período, então elas queriam dormir cedo e eu tinha que estudar. Então eu meio que fazia uma cabaninha, assim, no beliche, com o abajur pra dentro, aquele calor de Ribeirão Preto! E o abajur na minha cara, assim. Eu ficava estudando ali, na moita, sabe? (risos) Mas foi pouco tempo, porque logo eu juntei umas amigas, a gente alugou apartamento, foi morar em república, e foi uma experiência muito legal também, essa coisa de aprender a conviver com pessoas de costumes diferentes e você aprender a cuidar. Primeiro: você, com dezoito anos, ir atrás de uma locação, de alguma coisa que você vai alugar, essa coisa toda burocrática, né? Eu nunca tinha alugado nada, nunca tinha passado por isso. Você buscar uma coisa, ter que alugar e tem que ver preço, condições, ir atrás de contrato... E foi bem legal.
P/1 – Tinha festinha na república? Como é que era a vida em Ribeirão?
R – Era muito boa, porque festa direto, né? Em casa não tinha muito, porque apartamento, tinha toda aquela restrição de horário, barulho, tudo, mas tinha a galera que morava em casa, sempre rolava umas festas muito legais. E Ribeirão é muito barzinho, muita música ao vivo em barzinho. A gente curtia muito essa coisa de sentar no barzinho e ficar ouvindo música, violãozinho. Era o que a gente fazia, era muito legal. E sair pra dançar, rolava muito sertanejo na época, também. Foi na época do Zezé di Camargo e Luciano: “E, nessa loucura...”. Você imagina Ribeirão Preto? Era demais! (risos) Era bem na época dessa música. (risos) Época do axé também, quando surgiu Daniela Mercury. Ah, a gente curtiu muito lá, curtiu demais. Só que eu fiquei um ano e meio lá. Eu fiquei um ano muito bem, aí nos últimos seis meses que eu estava lá, eu comecei a não me encaixar, não sei o que aconteceu. Aquela coisa da vida, mesmo, de você falar: “Nossa, não é aqui que eu tenho que estar”, e começou a me dar uma coisa. Nossa, eu andava na rua, assim, via um carro de São Paulo: “Me leva pra São Paulo”. Sabe quando você fica viajando? “Me leva pra São Paulo”. Detestei meu último semestre lá, e aí, uma super amiga minha, que é minha amiga até hoje também, que fez cursinho comigo, entrou em Mogi pra fazer fono [Fonoaudiologia], e ela já tinha cursado um ano e falou: “Lu, o ano que vem eu vou morar em Mogi. Eu não vou ficar indo e voltando de trem, porque está muito cansativo. Se você quiser, transfere pra Mogi, que a gente vai morar”. Porque eu não queria voltar pra São Paulo, eu queria continuar tendo essa vida de morar em república numa cidade do interior, e aí eu falei: “Tudo se encaixou”, e foi perfeito, porque a minha turma de faculdade lá de Mogi são meus irmãos até hoje. Não consigo imaginar minha vida sem ter tido o convívio que eu tive com eles, e que continuo tendo. A gente tem uma turma ainda de, pelo menos, uns vinte, trinta amigos que se correspondem sempre e que a gente se encontra. E as famílias interagem, e a gente vai viajar junto e tem toda essa comunicação da profissão também, essas trocas todas de tudo que a gente precisa, de respaldo, de conselho, de opiniões, desabafos, tudo. Então a comichão que me deu em Ribeirão fazia sentido, assim. Eu precisava, mesmo, ter ido pra Mogi e ter me encontrado lá.
P/1 – O que mudou de Ribeirão pra Mogi? O que pegava, mesmo, em Ribeirão, que te fez mudar? Porque Ribeirão era faculdade gratuita, né?
R – Não. É ‘Unep’, não era ‘Unesp’.
P/1 – Ah, tá.
R – Era paga também. Era muito subjetivo o que eu estava sentindo. Nada aconteceu. Eu sempre fui uma pessoa muito fácil de fazer amizade, eu tinha muitos amigos, eu conhecia todo mundo, tinha uma vida ótima, morava bem, com pessoas legais, tudo, mas não estava mais me encaixando. Sem motivo nenhum, mesmo. E eu fiz todo o movimento. Fui lá, pedi transferência, fui pra Mogi, tive que fazer a adaptação, porque já tinha cursado um ano e meio, então voltei meio ano, perdi um pouquinho de tempo nisso, mas pra mim foi a melhor escolha que eu poderia ter feito, com certeza.
P/1 – Como é que é a faculdade de Odontologia, as matérias? O que você gostava mais?
R – A faculdade é bem legal, porque ela tem muito dessa parte, né, que obviamente a gente tem que ter toda essa parte teórica, de entender todo o funcionamento do corpo, fisiologia, microbiologia, essa parte básica, né, e já, logo no segundo ano, a gente começa a ter muitas aulas práticas também. Então é bem legal, porque você começa a entrar em laboratório de anatomia, a mexer com materiais dentários e aprender a lidar com todo esse arsenal que a Odontologia usa. Você imagina que de 25 anos atrás pra agora, já mudou. O que a Odontologia evoluiu nesses últimos 25 anos foi uma coisa, assim, gigante! Era muito legal. Era bem puxado, porque era aula de manhã e de tarde. No terceiro ano a gente tinha aula inclusive de sábado, o dia todo. Era um curso bem puxado. Mas era muito legal, porque a gente acabava... Você fica com aquele convívio muito grande com a turma. Então eu tenho muito... Eu preciso muito dessa coisa social, assim. Eu tenho essa coisa social muito grande, né, de dividir, de fazer as coisas junto. Eu tenho essa característica. Então pra mim era bem bacana. Eu sempre gostei muito de tudo, na verdade, porque tem as matérias que você não curte muito, mas no geral eu, no terceiro ano já, naturalmente, tive uma facilidade grande pra tratamento de canal. E eu sou endodontista hoje em dia, especialista em tratamento de canal. E foi uma coisa muito natural, não foi uma coisa pensada. Aquela coisa que você tem aquela facilidade que dá aquele: “Ah!”. Você vai, já mete a mão e já faz direitinho e, quando você vê, fala: “Nossa, pra mim é tranquilo”, e você vê todo mundo se descabelando pra fazer e você faz com facilidade, sabe? Então, a parte de endodontia, que é o tratamento de canal, foi o que eu me encaixei, se encaixou em mim, não sei. (risos) Mas é engraçado, porque eu sempre tive fama de – fama, tá? – estabanada. Minha mãe falava assim: “Meu Deus, você vai ser dentista! Como? Você vai derrubar tudo dentro da boca dos pacientes”. Eu falo assim: “Não, mãe, eu não sou tão estabanada assim”. (risos) E, no fim, até que eu mando bem. (risos)
P/1 – Você começou fazendo estágio? Qual foi seu primeiro trabalho? Foi estagiando?
R – Foi legal isso também. No quinto ano eu tive contato com uma dentista que tinha um consultório super bacaninha, porque recém formada, a gente geralmente começa a trabalhar nos buracos, né? Eu trabalhei em muitos. Mas quando eu estava no quinto ano era uma parceria, pode ser de um consultório ou de uma clínica, com a faculdade existe uma parceria pro estágio. Então, eu comecei a estagiar nesse consultório no quinto ano, mas na verdade eu já fazia atendimento, mesmo. Principalmente tratamento de canal, porque a dentista não fazia. Então, no quinto ano eu já passei todo trabalhando alguns períodos que eu tinha, livre, da faculdade. No quinto ano era mais tranquilo, mais clínica, eu ia pro consultório e já atendia. Então foi legal porque, quando eu me formei, eu já tinha uma ideia da rotina, já sabia como funcionava o consultório, porque é muito diferente o que a gente vive numa clínica odontológica na faculdade, numa clínica universitária, que é aquela coisa: um monte de equipo, professor supervisionando, o paciente já vem triado. Então, a gente vai seguindo, são disciplinas separadas, né? Então, é um outro esquema. Você chega no consultório, é outra história: tem toda a parte administrativa. É muito diferente, né? E você faz tudo, né? Não é uma coisa que é separadinho, né? Agora é só periodontia, agora é só restauração, agora é só canal, agora é só cirurgia. Não. No consultório mistura tudo, né? Então, foi uma experiência que me deu... eu já saí, quando formada, entendendo como que funcionava o consultório, já sabendo como fazer, né? E aí também fui trabalhar, já trabalhei muito em periferia, no começo. Era bem legal também, porque deu uma boa bagagem de atender... uma coisa engraçada, assim, a coisa da comunicação: “O que você está sentindo?” “Sinto gastura” “Gastura? Mas dói?” “Não, doutora, não dói. Eu sinto gastura”. Falei: “Gente, o que é gastura, meu Jesus amado?” Aí que eu fui entender que gastura é tipo assim uma aflição, né? Aí, a próxima pessoa que vinha falava: “E aí, o que você sente? Dói?” A pessoa falava: “Não, não dói” “Já sei, você sente gastura, né?” “Isso, doutora, eu sinto gastura”. (risos) Aí eu já virei a melhor dentista, porque eu sabia o que era gastura, entendeu? (risos) É interessante, porque a gente aprende, né: “Eu estou com problema aqui na presa”. Falava: “Gente, presa?” Você sai da faculdade toda com a nomenclatura toda certinha, né? Primeiro molar, superior, canino. Tá, presa é o canino. Queixada é o molar. Aí você aprende, (risos) faz uma outra faculdade ainda, né? Foi aí que isso só acrescentou, com certeza.
P/1 – Lu e você atendia nesses consultórios, quando você se formou, da periferia? Que lugares eram esses? Que periferia era essa?
R – Eu trabalhei em Guarulhos, chamava São Marcos o bairro. Pra você ter uma ideia, a avenida que eu trabalhava era asfaltada. As transversais eram de terra. Era, já, bem perto do posto da BR que fica ali na Trabalhadores, sabe? Eu saía numa quebradinha ali do posto BR, andava um pouquinho, já estava no consultório. Era bem simples, mesmo, assim. Mas é bem interessante, porque as pessoas vão com o dinheirinho direitinho, assim, sabe? É bem diferente de como a gente trabalha hoje em dia, porque é uma coisa que, hoje em dia, você trabalha com horário marcado, indicação, piriri pororó, no prédio, que a pessoa se identifica e sobe. Lá era uma coisa aberta, uma porta aberta, que entra quem precisa. Então, assim, a gente nunca sabia muito como ia ser. Hoje eu cumpro minha agenda, lá eu cumpria horário. Entrava às oito e saía às seis e, nesse período, eu ia atendendo quem chegava. E, no começo, as pessoas perguntavam: “Cadê o dentista?” pra mim, né? (risos) Eu era uma menina: “Cadê o dentista?” e eu falava: “Tô aqui, sou eu”. (risos) Uma menina baixinha, né? Gente, o que essa criança está atendendo aqui? Eu me formei com 22, 23 anos. A gente ainda é muito cruzinho, né? Mas aí passa a cara de pau e já: “Sou eu, vamos lá, vamos cuidar dessa gastura aí, que tá tudo certo”. (risos)
P/1 – Lu e depois de Guarulhos você começou a atender aonde?
R – Bom, vamos lá! Aí eu trabalhei um tempo na Parada de Taipas também, era um lugar, assim, também bem afastado, um pessoal bem simples e depois eu fui trabalhar numa clínica enorme, convenião, assim, em Santo André. Aí, de lá, o dono da clínica tinha a clínica particular dele, menorzinha, mais elitizada, assim, pacientes particulares, tal que, como eu já fazia endodontia, em 2000 eu já comecei a cursar a especialização, foi bem no momento que ele estava montando o setor de especialidades dentro da clínica dele. E aí ele me chamou pra tocar a parte de tratamento de canal na clínica dele. Então, eu trabalhei no convênio um ano e meio, mais ou menos, que era bem puxado, entrava às oito e saía às oito, eram doze horas. Eu ia almoçar às três da tarde. Atendia de meia em meia hora. Era pauleira, assim. Muito pauleira. Só que foi muito bom, porque rapidez de raciocínio, de diagnóstico, de agilidade, assim, me ajudou muito numa época boa, porque eu estava com muita vontade, né, de aprender e fazer, então era uma riqueza de casos muito grande, né, então me ajudou muito a enriquecer todo o meu raciocínio diagnóstico e tudo, né? E de aprimorar minha agilidade nos procedimentos, na parte técnica. Então, ganhava pouco, mas valeu muito como experiência profissional, assim, como evolução profissional, né? E aí, de lá, aos poucos, eu fui galgando o meu caminho até alugar um lugar pra mim e trabalhar pra mim mesma, né? Ainda faço muito o que a galera chama de odonto delivery, né? Como eu faço tratamento de canal, eu vou no consultório de colegas fazer, atender os casos específicos de tratamento de canal. Que é legal também, porque você sai do seu ambiente, vai pra um outro lugar, todos são meus amigos, todo mundo colega, amigo, alguns amigos mesmo e é um esquema que é estipulada uma porcentagem do valor total. Então, é bacana, assim.
P/1 – Onde que é seu consultório hoje?
R – É na Alameda Santos, pertinho do metrô Brigadeiro eu estou, agora. E é bem legal, porque eu estou bem pertinho da casa do meu pai. É que agora, na época da pandemia, não rola mais, mas eu tinha o bem bom de ter almocinho na casa do meu pai sempre, chegava lá e tinha comidinha fresca, de casa, não precisava comer na rua. Então, muita mordomia, né, tinha. E poder ter esse contato mais constante, né, de estar com meu pai e tudo. Minha mãe mora no interior, voltou pra Taquaritinga. Desde que meu avô faleceu, minha mãe voltou pro interior. Minha mãe e minha irmã mais velha moram no interior de novo. A gente continua indo pra Taquaritinga também.
P/1 – Lu e como é que você encontrou a Turma do Bem?
R – A Turma do Bem que me encontrou! (risos)
P/1 – Como é que você foi encontrada?
R – Olha, foi assim, Rô, muito legal: eu tenho esse bichinho, né, que eu falo que quando pica o bichinho da coisa de você trabalhar na parte social, depois que pica, é difícil você se desvencilhar. Tem uma amiga de Mogi, que fez faculdade comigo, que trabalhava num posto de saúde lá. Um bairro muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito pobre, assim. Muito pobre. E ela se envolveu muito com a comunidade de lá. Muito. Ela se envolveu demais. E ela, com essa coisa de internet, Facebook, começou a fazer algumas campanhas: pegava foto do menininho que tinha problema e precisava de uma bota ortopédica, assim e assado, a família não tem condições, piriri pororó: “Vamos fazer vaquinha, vamos comprar a botinha” e aí eu fui, eu com as crianças pequenas, nessa coisa: eles usam roupa duas, três, quatro, cinco vezes, ficam pequenas, sobra roupa. Então, sempre, a cada dois meses, era muita coisa que eu tinha pra doar. Eu comecei a ir pra Mogi e aí acabava pegando doação de amigos: “Gente, tem a galera”, me envolvi com esse trabalho da Renata, não tem nada a ver com a Turma do Bem. Só que aí, né, essa coisa que eu estava indo, ia sempre pra Mogi, estava já meio que bem engendrada ali naquela comunidade, a ajudando bastante, ela falou: “Lu, vai ter uma triagem odontológica aqui em Mogi, a Mega Triagem”. E uma outra amiga nossa da faculdade, que é a Rô, que é a Roberta, sua xará... sua xará não, xará da minha outra irmã. Você é Rosana. “A Rô, que é a coordenadora, precisa de ajuda. Você não quer vir ajudar?” Falei: “Com certeza”. Aí a coisa tomou uma forma, por que o que aconteceu? Aí comecei a praticar a caridade dentro da minha profissão, usando todo potencial que eu tenho dentro da minha profissão. Então, assim, foi muito encaixe, sabe? Assim, quando fala: “Ufa! Poxa!” E aí eu fiz essa Mega Triagem, ajudei e ela falou: “Mas você não é voluntária da Turma do Bem?” Falei: “Não sou”. Ela falou: “Então se inscreve pra ser”. Eu me inscrevi. E aí eles começaram a mandar paciente, porque assim: o que eu considero o grande ‘pulo do gato’ que o Fábio teve, o Fábio Bibancos, quando idealizou a Turma do Bem, é a coisa da gente atender no nosso próprio consultório. Você poder fazer, ter essa triagem e receber o paciente triado no seu consultório, pra você adotar, é muito legal. Porque eu poderia: “Tá, eu vou fazer caridade e vou numa instituição que tenha, lá, o consultorinho, vou lá atender essas crianças dessa instituição”, que é super legal também. Só que aí você vai um período por semana, é uma coisa que você tem que se deslocar, ir pra outro lugar onde vai ser o consultório diferente que, normalmente, não vai ter todo o aparato que você está acostumada, a sua secretária, as suas coisinhas, o seu material. Então, poxa, a criança vem aqui, eu atendo no meu consultório, do jeito que eu gosto, como eu gosto, com as minhas coisinhas. É muito fácil, na verdade. E você consegue fazer muito mais, porque não te onera tempo, principalmente, entendeu? Nem que numa agenda de uma semana, você ter três, quatro horários que você destine a um trabalho social, ele some naquilo, assim. Não é uma coisa que você fala assim: “Ai, ai”. Não. Aquilo lá pulveriza no geral e o impacto positivo que você está gerando é muito legal, porque a criança fica com a auto estima elevada, que ela está num consultório limpinho, bonitinho, né, com tudo ajeitado, ela é bem recebida. Então, tanto crianças, quanto as mulheres que a gente atende, que é do programa da Apolônias do Bem, que são as mulheres vítimas de violência, têm um espaço onde eles conseguem dignidade, entendeu? Tratamento digno, com cuidado. Não que nos outros lugares não sejam, não é isso que eu estou dizendo. Eu estou dizendo só que, pros dentistas que, às vezes, têm um pouquinho de resistência de fazer um trabalho social pensando que isso vai onerar muito o tempo dele, o custo dele, não onera. É super possível, viável e muito legal, porque muda o olhar de toda a sua equipe pra você: sua secretária te vê diferente, as pessoas do prédio sabem o que você faz. Isso tudo gera uma aura de coisa boa que te envolve, que é muito legal, porque as coisas têm mais sentido. Então, as pessoas trabalham vendo sentido no que estão fazendo. O propósito, né? Então, eu sei que é chavão, mas eu vou falar: “Quem ganha mais sou, eu tenho certeza”, entendeu? Quando eu ajudo, quem sai ganhando mais sou eu. Por tudo que envolve isso. Inclusive naquele tapar aquele buraquinho, daquela angustiazinha que a gente sente, todo ser humano. Aquela coisa inerente, que eu acho que a gente demora a saber onde estão esses buracos todos dentro de nós, assim e acaba, muita gente não dorme à noite, direito, tem que tomar remédio pra dormir e tanta gente com depressão, se medicando muito, que eu acho que é um pouco desse buraco existencial aí, que falta, um pouquinho, as pessoas tentarem encontrar seu caminho dentro da sua potencialidade, o que ela pode fazer dentro dos seus dons, né, que realmente vai gerar um impacto não pro eu e pro meu, né, porque você fazer pra você e pro seu, pro meu filho, pro meu pai, é uma coisa; agora, você fazer realmente pra ter um impacto que é pro outro, é aí que o buraquinho tapa um pouquinho e você sai um pouquinho daquela angústia, daquele vaziozinho que eu sei que muita gente sente, assim. Não que eu não sinta, que eu tenho ainda muitos vazios pra tapar aqui, ainda tenho que fazer muito, mas confesso que eu tive momentos, assim, de sentir um prazer muito grande. Lembrei até de uma coisa engraçada: tem uma série que chama Lúcifer, que é o diabo, né? Ele vem morar em Los Angeles e aí ele faz o bem. Ele é altruísta. Numa situação ele fala: “Ah, nossa, é isso que sente quando a gente faz o bem? Nossa! Se todo mundo que usa droga soubesse disso, o tráfico de drogas ia terminar”, porque dá um barato. Quando você faz uma coisa que você vê que você gerou, realmente, um impacto positivo na vida de uma outra pessoa que não tem nada a ver com você, que foi totalmente desprovido de qualquer interesse, dá um barato. A coisa é bem legal, assim. Eu aconselho a todo mundo (risos) usar essa droga (risos) do altruísmo. (risos)
P/1 – Lu, o que é o projeto Apolônias? É um projeto dentro do Turma do Bem?
R – Sim. A Turma do Bem é uma ONG que tem a maior rede de voluntários especializados do mundo, porque nós somos quase 18 mil dentistas voluntários. Então, é uma ONG de voluntários com a mesma especialidade, né? E ela tem dois programas, que é o Dentista do Bem, que é onde a gente adota adolescentes de onze até os dezessete anos, que a gente entende que um adolescente que está, principalmente, perto de conseguir o primeiro emprego, se você conseguir viabilizar a boca dele pra isso, ele está lá com todos os dentes bonitinhos, sem dor, se comunicando bem, saudável, ele vai ter uma possibilidade de conseguir seu primeiro emprego e muitas vezes esse jovem que consegue o primeiro emprego impacta na vida da família dele, positivamente. Ele ajuda a família dele a subir um degrauzinho. E daí a coisa pode conseguir tirar... muitas famílias saem de uma situação de vulnerabilidade através desse adolescente que consegue o primeiro emprego. Então, o foco do Dentista do Bem é esse adolescente. A Apolônias do Bem é o atendimento oferecido pras mulheres vítimas de violência. Porque, o que acontece, Rô? Quando uma mulher é espancada, sofre uma violência física, normalmente é no rosto. E os dentes, muito comumente, são afetados. Perde o dente, estoura a boca. Porque é ali que vai, né? É panelada, é martelada, é soco, chute, é na boca. A gente não sabe o motivo, talvez seja até que é por onde a pessoa se expressa, né, então você quer brecar aquela expressão de alguma forma, né? Então, eu acredito que possa ter esse mecanismo. E as mulheres ficam com essa sequela no rosto. E o que acontece? O que o nosso Estado oferece? Um apoio médico, jurídico, psicológico e às vezes até de dar curso pra essas mulheres que vão atrás de alguma casa assistencial, que vai atrás de ajuda, que denuncia, porque menos da metade denuncia, né? Só que elas não têm nenhum apoio odontológico. Não existe nenhum programa que reabilite oralmente essas mulheres. Então, a Turma do Bem: “Poxa, como faz uma mulher que perdeu os dentes da frente pra conseguir um emprego? Onde você vai arrumar emprego?” É muito difícil. Realmente, você debilita socialmente a pessoa. Ela fica sem possibilidade. E isso gera um aumento desse ciclo de violência, né? O ciclo não se interrompe. Porque a mulher fica totalmente dependente, às vezes, muitas vezes, do agressor. Ela não consegue sair desse ciclo, porque ela não consegue um emprego, ela está com a auto estima muito baixa, toda vez que ela olha no espelho, ela vê aquela marca estampada da violência que ela sofreu e ela fica sem dignidade, ela não sonha. É uma mulher que não sonha em fazer um curso, ter um emprego, juntar um dinheiro pra fazer uma viagem, ela tem vergonha de beijar na boca, ela é uma pessoa que não vai atrás de conseguir outras relações afetivas. É um problema muito sério. Porque isso reflete na família toda, né? Porque a mãe, você sabe, principalmente aqui no Brasil, o pilar da família é a mãe. Nas classes sociais mais baixas o sustento da família é a mãe. A base da família é a mãe. Então, você é uma mulher que está totalmente debilitada, enfraquecida, sem forças, sem sonho, sem dignidade, você enfraquece toda uma família. Você termina com aquela família, aquelas crianças todas. E quando você reabilita essa mulher e ela consegue voltar a sorrir, a se comunicar e ela passa batom e ela tem essa coisa de retomada de brilho, de esperança e ela consegue fazer uma entrevista de trabalho e consegue um trabalho e isso tudo transforma a vida dela, da família e a gente sabe que, nessas comunidades, as pessoas se ajudam. Então, assim, é um efeito dominó que vai acontecendo ali, de melhora, né? De pulverização, ali, de uma história que pode melhorar, pode ser melhor, pode dar bons frutos. Sendo que, se ela não tiver cuidado, apoio nenhum, fica muito mais complicado, muito mais difícil, né?
P1 – Lu, como foi quando chegou, assim, o primeiro caso, assim, pra você? Como é que você ficou? Como é que isso mexeu com você? Você lembra da história que foi, da mulher que chegou?
R – Sim. Eu tenho, já, uma coisa de ter uma empatia, sensibilidade, assim, meio natural pra mim, de ser acolhedora, né? Eu tenho essa característica, né? Mas é uma coisa que eu tive que, na verdade, fazer um treinozinho com a equipe toda: “Gente, vai vir uma mulher vítima de violência, ela vem de longe, nem sei de onde ela vai vir direito. E você explica direitinho como chega no consultório, pra pessoa não se perder. Quando chegar, você recebe a pessoa”, porque elas chegam com vergonha, às vezes e num ambiente que elas não estão... meu consultório é legalzinho, entendeu? Fica num prédio legal, num bairro legal. Então, elas saem de uma realidade, pra ser atendidas, que elas não estão nem entendendo bem se isso está acontecendo de verdade ou não, entendeu? “Será que ela vai me atender, mesmo?” Tem desconfiança: “Será que isso é verdade? Será que ela vai me atender, mesmo? Por que será que estão querendo me ajudar?”. Tem, rola. Até a pessoa ficar à vontade e entender que você está ali, de fato, pra ajudar, que você vai reabilitar e falar que ela vai ter os dentes de novo e vai ficar bonita, vai ficar funcional e tudo, é um processo, né? Então, foi bem legal. A primeira que eu atendi foi a Dona Claudete, ela tem até uma deficiência nas pernas, por causa de espancamento, ela anda de bengalinha. É uma senhora, ela estava sem as próteses. Depois que eu coloquei as próteses nela, assim, ela remoçou vinte anos. Não foram dez. Vinte. Tem foto dela de antes e depois, que é inacreditável a transformação, sabe? E ela é, agora, uma pessoa porta-voz, assim, das mulheres. Ela vai em programas, dá entrevista, tudo, porque ela conseguiu sair do ciclo de agressão e retomar a vida. Não é garantia de nada, né? Que a vida vai ser boa. Mas pelo ela terá uma possibilidade. Você tira a pessoa da impossibilidade, né? Ela, agora, pode, tem as possibilidades, não está mais com aquela debilidade que ela estava. Mas o caso que mais me tocou foi de um adolescente, na verdade. Foi o Lucas. Ele chegou no consultório já era bem grandão, assim, tinha uns quinze anos, era bem alto, moreno, um menino lindo. Só que os dentes dele, Rô, os da frente, assim, todos, todos, todos, todos, todos, todos, todos assim, muito, mas muito destruídos de cárie. Muito. Tudo, assim. Um estado, assim, muito deplorável. Muito. A mãe dele falou que ele nasceu com uma síndrome, não chegou a ter aquela linha, fenda labial. Tem uma pseudo fenda labial, mas ele tinha uma assimetria, tem um dente a mais, algumas sindromezinhas desconhecidas, mas que gerou um problema até na calcificação dos dentes dele, por isso até essa facilidade dele ter cárie. E ele cresceu com esse problema. Então, foi um menino que sofreu bullying a vida inteira. Tanto é que, quando ele chegou no consultório, ele era carrancudo, não falava bom dia. A mãe dele falava assim: “Fala bom dia, Lucas. Agradece à doutora”. Ele era bem cara fechada, mesmo. E eu refiz todos os dentes dele, assim. Então, você pega uma foto dele do que ele era e depois uma foto de nós dois abraçados, com aquele sorrisão, gente, é incrível! E uma coisa que me tocou muito, que a mãe dele falou assim: “Ele saiu da escola”. Falei: “Ah, não acredito”. Ela falou: “Doutora...”. Ele olhou pra mim e falou assim: “Mãe, se eu for pra escola de novo, eu vou acabar matando alguém”. Então, você imagina um menino de 15 anos querendo, com aqueles hormônios todos, adolescente, saudável, bonitão, sabe, sofrendo muito, todas as rejeições possíveis e imaginárias, por causa dos dentes dele, porque realmente era muito comprometedor. Muito. Assim, reabilitar o Lucas, pra mim, foi um presente de vida, poder ter feito, sabe? Ainda não está terminado. Agora ele precisa fazer uma parte... só que, assim: voltou pra escola, foi pra outra escola agora, né? Mudou de escola, vida nova, dentes novos, voltou pra escola e ele chega no consultório sorrindo, me abraça, me beija. É outro comportamento. É outra história, assim. Então, o Lucas, de fato, foi o caso que me pegou, assim, porque eu sei que, pra ele, a coisa, o buraco estava bem embaixo, assim. Estava difícil.
P/1 – E algum caso, assim, que te marcou? Deve ter sido vários, você recebe muitos casos, assim, mas que a pessoa chegou e te conta qual foi a violência que a mulher sofreu.
R – É, na verdade, assim...
P/1 – Elas chegam contando? Teve alguma que chegou te contando?
R – Não. Assim, abertamente, não, de como foi. Elas contam muito sobre as formas que os agressores fazem pra elas não irem fazer o atendimento. Então, assim: “Ai, doutora, desculpa, eu não vim”. Tem muito cancelamento de consulta. Você marca, ela não vem. “Ele pegou meu celular, sumiu com meu celular, ele pegou meu cartão do passe único, eu não tinha dinheiro pra vir”. Muitas vezes eu dou o dinheiro da condução: “Guarda esse dinheiro, esconde com você, pra você poder voltar”, entendeu? E elas conseguem. Então, assim, é uma coisa que quem atende tem que ter essa flexibilidade, né, de entender que muitas vezes a mulher não vai não é porque ela está negligenciando o trabalho, porque muita gente fala: “Ai, tudo que é bem fácil, a pessoa não dá valor”. Não é isso. Na maioria das vezes é porque é colocado um monte de dificuldades pra ela estar ali. A maioria cuida de filho, de neto e tem toda aquela dificuldade da vida da mulher que a gente que tem uma vida mais confortável já tem tanta dificuldade, uma mulher que vive numa situação dessas, a dificuldade é muito potencializada, né? Então, na maioria das vezes, é super justificável as faltas, os atrasos e, de fato, assim, a gente ter essa sensibilidade de entender e falar. Na verdade, quando não vai, eu fico preocupada, eu falo: “Ai, meu Deus, o que será que aconteceu?” Porque a gente nunca sabe qual vai ser a reação de um marido, irmão, pai, quando vê que a pessoa está florescendo de novo, né? A gente não sabe como vai ser, qual que é esse mecanismo todo dessa patologia social, que é da violência contra a mulher, né? Que é uma coisa que eu sempre penso que o homem tem que ser tratado também, né? A mulher tem que ser tratada e o homem tem que ser tratado também, porque é uma doença social, assim, muito arraigada e que se perpetua, né? Porque uma criança que cresce num ambiente desses, entende que amor é isso. E é assim que ela vai expressar depois, na vida dela adulta, nos relacionamentos dela. Porque é o que ela aprendeu. Porque é o que ela viu a vida inteira. Então, isso tudo tem que ser olhado e tratado, pra gente sair dessa doença social que a gente está, né? Poque nós somos o quinto país em feminicídio no mundo. É muita coisa, né? Eu sou uma pessoa que eu não divido muito: Brasil. Pra mim é o mundo, a Terra, né, está com muita violência, né? E a mulher sempre sofreu muita violência. Então, assim, por quê? De onde que vem isso? Por que essa necessidade de controle, né? Porque eu acho que é uma necessidade de controle, de posse, que tentam exercer, sempre, sobre a mulher e que acaba tendo essa dinâmica de violência. Então, acho que isso tem que ser olhado, tratado e eu sou muito grata de poder estar fazendo isso, estar trabalhando com isso. Eu sou apaixonada pela galera da Turma do Bem, assim. Pelo pessoal ali que vê as necessidades e fala: “Vamos cuidar dessas mulheres? Olha como está, olha esse buraco aqui, olha o tamanho desse buraco. Vamos ver o que a gente consegue fazer?” É pouco. A gente atendeu quanto? Mil e cem mulheres até agora. É pouco, mas é muito. São mil e cem mulheres, né? Uma já seria legal. Mil e cem é bem legal. Faltam milhões? Faltam, mas existe caminho, é possível e é necessário, principalmente. É muito necessário a gente cuidar dessa doença social que a gente vive. E quando você consegue que a mulher saia desse ciclo, você desfez o ciclo de violência. É um a menos. E, por aí, é uma menina a menos que vai ver a mãe achar que é normal apanhar do namorado. Achar: “Eu merecia, eu estava com um decotezinho maior. Eu bebi um pouco, fiquei meio vulgar”. Muda isso, né?
P/1 – Lu, olhando a sua trajetória que a gente pode ficar aqui dias e dias, você é uma excelente contadora de histórias, se você tivesse que mudar alguma coisa na sua vida, você mudaria alguma coisa?
R – Mudar, acho que não, né? Acho que até pela minha própria crença de evolução, né, que eu acho que tudo que a gente passa, a gente tem que viver, mesmo, que é pra conseguir construir em cima disso, não mudaria, não. Eu sou muito, acredito muito na inspiração, porque eu acredito que eu escolhi ser dentista por inspiração, porque não foi por influência de ninguém, no sentido de que ninguém da família era dentista. Eu não era uma pessoa que ia muito ao dentista, então não era uma coisa que eu tinha muito contato. Eu nem sabia direito o que era, pra ser honesta, assim. A minha experiência da Odontologia era muito do que foi feito na minha boca, só. Não tinha uma coisa de acompanhar o dentista. Nunca tive isso. Mas, assim, eu tenho certeza que é onde eu exerço meu potencial maior, como profissão, assim. Onde eu sei que eu gosto de fazer, tenho prazer em fazer e eu faço bem, eu curto o que eu estou fazendo, porque quando você faz com amor, mesmo, que você curte o que você faz, você curte estudar aquilo, né? Você quer saber sobre aquilo. E aí, quando entrou o social nisso tudo, aí a coisa ficou mais completa, né? Ficou completa, de uma certa forma, né? Então, eu me sinto muito realizada. Então, eu não mudaria nada. Principalmente porque eu vejo aqui que, no Brasil, a gente tem uma coisa na Odontologia, muito interessante, assim: eu considero, não sou só eu, a Odontologia brasileira uma das melhores do mundo. Tanto na parte de pesquisa, científica, como na parte técnica e na parte humana. Só que a gente tem um buraco gigante, porque ela, a Odontologia, é muito elitizada. Então, esse potencial todo científico, técnico, humano, fica restrito, muito. Porque a gente está aqui em São Paulo, né, Rô? São Paulo é outro lugar fora do mundo, né? No mundão Brasil. Então, a Turma do Bem está no Brasil inteiro, em vários países da América Latina, em Portugal. Então, pulverizar esse trabalho social, essa coisa, poder oferecer essa Odontologia que existe, que é tão bacana, tão desenvolvida, tão maravilhosa, pro geral, é muito legal, entendeu? Faz muito, todo o sentido. E é tão importante e tão necessário! Então, por isso que eu não mudaria nada, não.
P/1 – Você tem esse contato com outros países, outros lugares da Turma do Bem? Tem um intercâmbio? Como é que você vivencia isso?
R – Ah, a gente acaba conhecendo, né, porque nos nossos encontros, a gente tem todo ano, esse ano não vai ter, o que a gente chama de Sorriso do Bem, que é uma semana de cursos, palestras, festas, onde os voluntários se encontram pra ter, até, uma evolução humana, né? Porque as palestras são incríveis, todas. Então, a gente acaba tendo contato com o pessoal do México, de Portugal e é muito legal. É bem legal, sim, entender mais ou menos como funciona em cada país, que é diferente, né? É bem bacana.
P/1 – Lu e quais são seus planos pro futuro? Seus sonhos, planos.
R – Difícil isso! Não faço muito planos, Rô, sou meio... até tenho me cobrado muito, isso, sabe, de ter mais planos. Eu tenho uma filha de onze anos e um de nove, então a gente fica tão focado neles, nessa fase, né, como eles estão crescendo, se eles estão bem, saudáveis, felizes que, na verdade, o meu plano está sempre mais voltado pra minha evolução pessoal, assim, de autoconhecimento, de adquirir mais paz de espírito, de ficar mais em paz comigo mesma e, pra mim, assim, na verdade, o que eu gostaria era de poder ajudar mais. Então, acredito muito que a prosperidade é pra todo mundo, que o ser humano tem um erro muito grande de sempre estar com medo, né, da carência da coisa, em vez de estar aberto pra essa abundância toda que a gente vive, que é a nossa natureza. Então, eu estou cada vez mais focada em concretizar isso dentro de mim, sabe? Estar, cada vez, mais consciente disso. Então, eu acho que os meus planos pro futuro são mais interiores, (risos) do que exteriores.
P/1 – Lu, o que você achou de contar a sua história de vida pro Museu da Pessoa?
R – Ah, foi muito legal! Eu não imaginava que vocês faziam esse tipo de trabalho. E eu nem sei se eu sou interessante, (risos) mas essa é a minha vida, eu fui bem honesta em tudo que eu falei e, de fato, assim, eu tenho total consciência e muita gratidão que a minha vida é muito boa e isso me dá mais gás ainda pra poder retribuir, sabe? Porque, de fato, eu vivi uma ótima época, vivo ainda, eu tenho muitas possibilidades de conhecimento e de conexões, que é uma coisa que me alimenta muito: as minhas conexões, amizades, minha rede de conexões. Eu sinto muito essa interdependência, eu vivo muito essa interdependência, sei o quanto somos interdependentes e acho que até por isso que faz tanto sentido pra mim fazer um trabalho social, né? Porque senão seria mentiroso eu acreditar na interdependência, vê-la e fazer só por mim, só pelo meu, né? Então, achei muito legal, Rô. Fiquei muito feliz com o convite, muito lisonjeada da Turma do Bem ter me indicado. (risos) Eu acho que deve ter histórias de vida muito mais interessantes que a minha, (risos) da menina classe média da Mooca. E é isso. A gente só não falou de esportes, mas tudo bem, a gente pega pra gente falar... (risos)
P/1 – O que foi, Lu?
R – A gente só não falou muito de esportes. Que eu tive a minha fase de surfista e de capoeirista também.
P/1 – Ah, então conta! Que fase foi essa? Como foi?
R – Ah, também outra coisa muito legal da vida, né? Quando eu era adolescente comecei a namorar. O meu primeiro namorado sério era surfista. Aí comecei a surfar, aí passei também anos noventa... se deixar eu surfo até hoje, né? Agora, com as crianças, fica meio complicado. Uma brincadeira, só, Rô. (risos)
P/1 – Não, como você aprendeu a surfar com ele? Que praia vocês iam?
R – Puts, a gente circulava de Praia Grande, que ele tinha casa, que eu brinco que a Praia Grande é a melhor escola pra surfar, porque você tem que, pra atravessar a arrebentação, vai 45 minutos só de remada, porque é lá atrás. Então, trezentas mil ondas na cabeça, até conseguir varar a arrebentação, mas aí, depois, litoral norte, né? Que é Maresias, Camburi, Ubatuba. Outro tipo de praia, outro tipo de onda, que o Brasil é maravilhoso pra isso. Litoral de São Paulo idem, né? Acho que a gente tem um litoral muito lindo, muito legal, muito diverso. E, como toda menina dos anos 90, eu surfava de more bug, né? (risos) Então, os meninos me chamavam: “Lá vem ela com chicletinho”. É demais, um esporte muito, muito, muito legal. Porque é um esporte meditativo também, né? Que a hora que você está lá atrás, que você fica lá esperando a onda, é uma coisa tão meditativa! Porque é silêncio. A galera conversa também, mas tem aqueles momentos de silêncio. Todo mundo olhando pro fundo, esperando vir a série e é um esporte, assim, realmente, de muita conexão com a natureza, com como funciona o ritmo das coisas, né? Então, eu sou muito feliz de surfar, também. Uma coisa muito, muito legal.
P/1 – E a capoeira, Lu?
R - (risos) Capoeira foi outra paixão na minha vida, assim, muito grande. Eu já estava na faculdade, morava em Mogi, vinha pra São Paulo pra fazer capoeira. Tinha a turma da capoeira e todo mundo fazia capoeira e surfava. Então, a gente era uma family também, porque a gente treinava durante a semana a capoeira e final de semana ia todo mundo pra praia em turma, a mesma da capoeira. Ia todo mundo. Sempre tinha alguém que tinha casa na praia. Tinha dois, três que tinham casa na praia e cada final de semana a gente ia pra casa de um. Aquela turma: 15, 20 na casa. Passava o final de semana inteiro surfando e jogando. Era muito saudável, na verdade, né? Porque tinha, tomava cerveja, tal, bararã, mas não foi uma adolescência, juventude de noitada, sabe? Porque tem que acordar cedo pra ir surfar e tal. Tinha festa, óbvio, imagina! Jovens saudáveis, todo mundo ia pra festa, mas não era uma coisa... era equilibrado. Foi bem saudável. Sou bem grata das escolhas que eu fiz nesse sentido. (risos) Foi bem legal.
P/1 – Lu, quero agradecer em nome do Museu da Pessoa, da Trip, da Colgate, essa entrevista deliciosa!
R – Obrigada, querida! Foi um prazer pra mim, viu? Te fiz rir, né? (risos)
P/1 – Bastante.
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