P/1 – Então, vamos começar, seu Omar. Primeiro eu vou pedir para o senhor falar seu nome, o local onde o senhor nasceu e sua data de nascimento.
R – Pois não. Eu sou de Presidente Prudente, nasci em 11 de janeiro de 1933.
P/1 – E o seu nome?
R – Meu nome é Omar Naufal.
P/1 – Certo. E o nome dos seus pais?
R – Meu pai chamava-se Felício Elias João Naufal. E minha mãe Floriza Buchala Naufal.
P/1 – O que eles faziam?
R – Papai era fazendeiro em Presidente Prudente, além de comerciante. Tinha um comércio grande: era a Casa Naufal, junto com os irmãos. E tinha uma fazenda de café em Indiana, perto de Prudente.
P/1 – E sua mãe ajudava ele...
R – Minha mãe era do lar. Ela casou-se muito criança, com quinze anos, e com vinte anos ela já tinha cinco filhos.
P/1 – E qual era a origem deles?
R – Os dois eram filhos de libaneses.
P/1 – E seus avôs? Eles chegaram aqui quando?
R – Meu avô paterno chegou em 1895. Veio para a região de Itapetininga. Depois, papai nasceu posteriormente em Tatuí, em 1900, que era o último ano do século retrasado. E mamãe nasceu em uma cidade próxima, em Capão Bonito do Paranapanema, em 1915. Mas eles eram aparentados. Eram primos em quarto grau. Aparentados, do mesmo clã. Então o avô paterno foi para Prudente, vindo do Vale da Ribeira, em 1918. E o avô materno, o João Buchala, acompanhou meu paterno. Foram para Presidente Prudente.
P/1 – Assim que eles chegaram ao Brasil, eles foram para a Região do Vale da Ribeira?
R – Do Vale da Ribeira, é.
P/1 – E como o senhor descreveria os seus pais? Como é que eles eram?
R – Meu pai era uma pessoa muito firme, determinado, trabalhador. Porque meu avô faleceu quando ele tinha vinte e dois anos e ele tinha oito irmãos menores. A quem ele fez estudar. Fez casar até 1930. Deu dote para cada um. Então, quer dizer, ele era muito jovem para fazer isso, mas como meu avô...
Continuar leituraP/1 – Então, vamos começar, seu Omar. Primeiro eu vou pedir para o senhor falar seu nome, o local onde o senhor nasceu e sua data de nascimento.
R – Pois não. Eu sou de Presidente Prudente, nasci em 11 de janeiro de 1933.
P/1 – E o seu nome?
R – Meu nome é Omar Naufal.
P/1 – Certo. E o nome dos seus pais?
R – Meu pai chamava-se Felício Elias João Naufal. E minha mãe Floriza Buchala Naufal.
P/1 – O que eles faziam?
R – Papai era fazendeiro em Presidente Prudente, além de comerciante. Tinha um comércio grande: era a Casa Naufal, junto com os irmãos. E tinha uma fazenda de café em Indiana, perto de Prudente.
P/1 – E sua mãe ajudava ele...
R – Minha mãe era do lar. Ela casou-se muito criança, com quinze anos, e com vinte anos ela já tinha cinco filhos.
P/1 – E qual era a origem deles?
R – Os dois eram filhos de libaneses.
P/1 – E seus avôs? Eles chegaram aqui quando?
R – Meu avô paterno chegou em 1895. Veio para a região de Itapetininga. Depois, papai nasceu posteriormente em Tatuí, em 1900, que era o último ano do século retrasado. E mamãe nasceu em uma cidade próxima, em Capão Bonito do Paranapanema, em 1915. Mas eles eram aparentados. Eram primos em quarto grau. Aparentados, do mesmo clã. Então o avô paterno foi para Prudente, vindo do Vale da Ribeira, em 1918. E o avô materno, o João Buchala, acompanhou meu paterno. Foram para Presidente Prudente.
P/1 – Assim que eles chegaram ao Brasil, eles foram para a Região do Vale da Ribeira?
R – Do Vale da Ribeira, é.
P/1 – E como o senhor descreveria os seus pais? Como é que eles eram?
R – Meu pai era uma pessoa muito firme, determinado, trabalhador. Porque meu avô faleceu quando ele tinha vinte e dois anos e ele tinha oito irmãos menores. A quem ele fez estudar. Fez casar até 1930. Deu dote para cada um. Então, quer dizer, ele era muito jovem para fazer isso, mas como meu avô faleceu, e ele tinha vinte e dois anos, ele tomou o lugar de chefe da família. Depois de 1930 é que ele se casou. Os irmãos já haviam todos se casado. Todos já estavam casados até 1930.
P/1 – E sua mãe, como é que ela era?
R – Minha mãe era muito doce, dócil. Era de uma beleza invulgar. Tanto é que quando a gente morava em Prudente, ela vinha sempre para São Paulo para coser as roupas dela com a Madame Mourisca, que era uma concorrente da Madame Rosita. Então, era muito elegante, muito chique e muito doce. Tanto é que ela tinha um apelido, um codinome de Amor de Mãe.
P/1 – Ah, era um apelido.
R – Os parentes a chamavam de Amor de Mãe.
P/1 – E como é essa palavra? O senhor lembra?
R – Em português ou em árabe?
P/1 – Em árabe.
R – Em árabe? Ah!
P/1 – Não, não tem problema.
R – É omni hanune. Porque, apesar de eu ser oriundo de libaneses, eu falo árabe fluente. De frente para trás, de trás para frente.
P/1 – E quem ensinou o senhor a falar?
R – Eu aprendi com minha avó paterna. Ela tinha insônia. Eu dormia no quarto dela, enquanto meu tio estava fazendo Medicina. Para eu não dormir com as meninas, então eu dormia no quarto da avó. Então, ela tinha insônia e ficava a noite toda contando histórias para mim em árabe. Então eu fui aprendendo. Ela tinha insônia e tinha sempre uma garrafinha de pinga ao lado da cama. Dizia que era para limpar a garganta, mas não era não. Era para ela ficar meio tonta e dormir, porque não havia sonífero naquela época. Setenta anos atrás. Foi assim que eu aprendi árabe.
P/1 – Ouvindo as histórias da avó.
R – Da avó. Conheci a cidade natal dela. Dos meus avós de ambos os lados, que são da mesma cidade de origem do Líbano, que é Jdeidet Marjeyoun.
P/1 – Que é em que região?
R – No sul do Líbano, vizinho da Palestina ocupada, vizinho de Israel.
P/1 – Está bom. Mais tarde a gente vai falar disso, está bom?
R – Está bom.
P/1 – Quais que eram os principais costumes da sua família?
R – Eles traziam costumes da terra, não é? Mas vindo para o Brasil. O Brasil é uma terra acolhedora, né? Então, logo a gente tem que assimilar os costumes dessa nossa terra querida. Então, vovó fazia feijão com orelha de porco. Todas as coisas com farofa. E também, do lado dos italianos, fazia polenta. Mas a culinária árabe continuava e continua até hoje na família.
P/1 – Mas era mais comida de festa?
R – Se era de festa?
P/1 – É. A culinária árabe. Ou era no dia a dia também?
R – No dia a dia.
P/1 – Também vocês comiam?
R – No dia a dia. Mas variava entre a culinária brasileira e a árabe. Desde há muito tempo.
P/1 – E como era a sua casa da infância?
R – Era um sobrado que meu pai e meus tios construíram em 1926. Então, num andar. Nós morávamos num andar superior, que tinha uma escada social e uma escada de serviços no lado externo. Você subia. Tinha um hall de distribuição. Tinha uma sala de música. Tinha outro hall dos quartos e depois tinha a sala de jantar. Tinha a copa e a cozinha. Era uma casa muito chique. Inteirinha forrada de tapetes orientais.
P/1 – A casa inteira?
R – A casa toda. Que eles haviam trazido com eles do Líbano, né? O da cozinha e o da copa era ladrilho. Era uma coisa que usava chamada ladrilho. Mas o resto da casa eram tábuas de madeira, né? Em todos os cômodos e a sala. A sala de visita, de música. Que chamava de visita. Tudo era forrado de tapetes orientais. Era uma casa chique. E ainda tem mais um detalhe que é essa casa tinha várias sacadas. E nas sacadas tinham três mastros de bandeira. No do meio hasteava-se a bandeira paulista. Não. Perdão. A bandeira do Brasil. Do lado a bandeira paulista e, do outro lado a bandeira síria. Porque quando eles vieram, a cidade não era do Líbano. Pertencia à Síria. É complicado, porque depois teve um tratado que aquela parte da Síria passou pro Líbano e se chamou Grande Líbano. Quer dizer, a origem é Síria, mas depois passaram a ser libaneses. Por isso que vem aquela história muito engraçada. Quando chega é turco. Depois que tem um pouco de dinheiro é sírio. E quando fica rico é libanês. (risos)
P/1 – É. (risos)
R – É turco, sírio e libanês.
P/1 – E quantos irmãos o senhor tinha? Quantas irmãs, né? Que o senhor já me contou.
R – É. Tinha quatro irmãs e eu de homem e, posteriormente, nasceu o Roberto, meu irmão, aqui em São Paulo. Então, nós éramos seis.
P/1 – Mas o senhor é o filho mais velho?
R – Eu sou o segundo.
P/1 – Ah, o segundo.
R – A Dulce, minha irmã, que é casada com o Marcondes, que vive em Campinas, é minha irmã mais velha. Ela tem oitenta. Eu tenho setenta e oito. E o Roberto, que é a raspa do tacho, ele tem sessenta e quatro anos.
P/1 – Que é mais novo que vocês?
R – É mais novo que a gente.
P/1 – E como era a cidade, na época em que o senhor nasceu?
R – De Presidente Prudente?
P/1 – Isso, de Presidente Prudente.
R – Quando eu nasci, o chão era todo de terra, né? Nem paralelepípedo havia. Depois vieram os paralelepípedos, depois veio o asfalto. Enquanto eu estava lá, até 1944. Mas o asfalto era tão mal temperado que, se você fosse atravessar a rua, grudava seu sapato lá e você saía descalço. Até eles temperarem direito o asfalto.
P/1 – E a sua casa ficava no centro da cidade?
R – No Centro, na Rua Barão do Rio Branco. Uma rua central até hoje. Mas a casa não existe mais. Eles derrubaram. Foi vendida para o Banco Brasileiro de Desconto. Sabe, aqui no Brasil para conservar as coisas é meio difícil, né?
P/1 – E quais que eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Quando eu era pequeno?
P/1 – É.
R – Jogava futebol no areião, né? E a gente fazia os passeios num bosque que havia lá em Presidente Prudente. Íamos às chácaras, acompanhados dos pais. Tinha várias chácaras. Então, o brinquedo principal era o futebol no areião.
P/1 – Que o senhor me mostrou uma foto que tinha várias crianças, né?
R – Ah, sim. Eram os vizinhos.
P/1 – Aquelas crianças da vizinhança?
R – Da vizinhança. Tinha alguns parentes no meio, mas a maioria era crianças da vizinhança. Que jogávamos futebol juntos, né? E ali era aniversário do Carlinhos Foz, que era um festeiro. Filho do médico, o doutor José Foz. Que já não existem mais, já faleceram.
P/1 – E depois, mais tarde um pouquinho, quando o senhor foi pra escola? Como que era essa escola?
R – Era o Grupo Prudente de Moraes. Um grupão que tem até hoje em Presidente Prudente. Mas eu não gostava de estudar, não.
P/1 – Não?
R – Ih, dei muito trabalho para a minha mãe, coitada. Ela ficava do meu lado e eu dormia. “Acorda, estuda!” Foi difícil para eu terminar o grupo escolar.
P/1 – O que o senhor se lembra da época de escola?
R – Ah, eu lembro que tinha um inspetor de alunos, chamado Seu Pimenta. Mas eu, como passava mal na escola, pulava o muro e fugia. Voltava para casa. E o sanduíche, o lanche era pão com banana amassada e, quando vinha pêra, maçã de São Paulo, a gente levava o lanche.
P/1 – O senhor que levava o lanche?
R – Levava o lanche, mas eu oferecia para a professora. Porque maçã, pêra, uva era muito raro. Vinha de trem aquilo. Dentro dumas barricas de serragem. Mas era pão com banana que eu comia. Amassava a banana dentro do pão e pronto.
P/1 – E o senhor ia a pé?
R – A pé. Eram uns quatro quarteirões da minha casa. Era muito próximo.
P/1 – E depois com onze anos, né?
R – Isso. Com onze anos. Papai não gostava de Presidente Prudente, porque em Prudente a água era péssima. Ele sofria muito de problemas no intestino, por causa da água. E ele gostava de São Paulo. Aí, quando foi o final de quarenta e quatro, nós nos mudamos para cá.
P/1 – Para São Paulo?
R – Para São Paulo.
P/1 – E aí vocês foram morar onde?
R – Na Peixoto Gomide, 748. A poucos metros da Avenida Paulista.
P/1 – E como que era a cidade quando o senhor chegou aqui?
R – Bom, quando eu cheguei aqui, cheguei de calças curtas ainda, né? Mas logo depois puseram calças compridas em mim. E fui estudar na escola, no Liceu Eduardo Prado, na Avenida Paulista, que era na esquina da Rua Pamplona, ao lado do palacete no Nagib Salem, que era o avô de uma cantora chamada Mecha Branca. E ia a pé, da Pamplona até a Peixoto Gomide, que é um pulinho. Mas depois meus pais acharam que o estudo era muito fraco, e me puseram na Escola Americana, no Mackenzie. Aí eu fiz a Escola Americana e dois anos do ginásio, no Mackenzie. Depois passamos, eu com as minhas irmãs, para o Pan-americano, que é um colégio que era muito chique, mas nem existe mais.
P/1 – Que era onde?
R – Era na Rua Visconde de Ouro Preto, que é uma travessa.
P/1 – Sim, da Rua da Consolação.
R – Que é uma rua que faz uma curva, né? Aí fiquei até terminar o ginásio lá, no Pan-americano. Mas depois aconteceu o seguinte. Nós mudamos para a Vila Mariana, na Rua Apeninos. Aí fui estudar no Colégio Bandeirantes. Onde fui terminar o colegial no Colégio Bandeirantes. Depois, Glaucia, fiquei cinco anos sem estudar.
P/1 – Quando o senhor terminou o colegial.
R – Quando terminei o colegial. Fiz vestibular para a escola de Direito. Não entrei. Fiz para a Escola de Medicina da USP. Também não entrei. E parei. Fui trabalhar. Fui vender, fui ser vendedor de caxemiras do Moinho Santista. Eu era um moço muito elegante, sabe? E a Companhia Vera Cruz de Cinema vivia correndo atrás de mim para eu ir fazer um teste. Mas eu fugia que nem o diabo foge da cruz, porque ser artista naquela época era sinônimo de pouca vergonha. Mas o Tarcísio Meira, que é meu amiguinho de mocidade, driblou a família e tornou-se artista.
P/1 – E como é que a Vera Cruz descobriu o senhor?
R – Não sei, eu era muito elegante. Eu andava na Rua São Bento, sempre muito bem trajado. Pois eu era um vendedor de caxemiras e eu era, acho que bem afeiçoado. Eles corriam atrás de mim: “O senhor não quer fazer um teste?” Eu falava: “Não!” Imagina um descendente de libaneses e ser artista. Uma pouca vergonha. Antes tivesse aceitado. Eu estaria na televisão, né?
P/1 – E como que era a Rua São Bento naquela época?
R – Ela era não é muito diferente da atual. Antigamente, acho que há muitos anos, quando a gente mudou para cá, já não tinha mais bonde na Rua São Bento. Só no Largo São Bento. Então era uma rua normal, como é até hoje. E o prédio do Moinho Santista era na esquina do Largo do Café, que eu acho que continua lá. Depois de passar cinco anos, eu resolvi voltar a estudar. Aí fui fazer o cursinho para Odontologia. Porque a minha irmã é dentista e meu cunhado é dentist, o senhor Nhonhô Marcondes, dentista. Eu falei: “Vou fazer Odontologia, porque pelo menos eu estou dentro do contexto da família, não é?” Mas aí, para fazer Odontologia, eu fiz vestibular que também não passei. Aí eu fui para Araraquara, onde havia 75 vagas para 76 candidatos. Que eu pensei que era lógico que eu talvez entrasse. Era escola do Governo do Estado, a UNESP, e lá fiquei por quatro anos.
P/1 – E como é que foi a sua vida lá?
R – Fui um aluno excelente. Eles me convidaram para ser assistente de Odontopediatria. Mas eu não quis ficar, porque eu sou o filho mais velho de uma família descendente de árabe e papai não ia aceitar que eu ficasse morando em Araraquara. Como ele já tinha mudado de atividade, era um marchand de tapetes orientais.
P/1 – Vamos voltar só um pouquinho. Lá ele era fazendeiro e comerciante. Quando eles chegaram a São Paulo, o que ele veio fazer?
R – Ele veio para cá. Ele continuou cuidando dos imóveis dele em Presidente Prudente. Posteriormente, ele teve uma agência de automóveis em Ourinhos. Mas aí não deu certo, porque tinha que ficar naquele ir e vir. Aí ele se lembrou que, no Oriente, os meus avôs lidavam com tapetes orientais. Ele começou a trabalhar com tapetes persas aqui em São Paulo e ficou conhecido como rei dos tapetes orientais.
P/1 – E ele tinha um comércio onde?
R – Tinha um comércio na Vila Mariana mesmo.
P/1 – Sim.
R – Na Vila Mariana.
P/1 – Aí o senhor estava dizendo que o seu pai não permitiu que o senhor ficasse em Araraquara.
R – Que eu ficasse em Araraquara. Ele falou: “Não, você vem para cá.” Aí eu montei um consultório na Praça Osvaldo Cruz. Um consultório dentário muito chique por sinal, com todos os aparelhos, raio-X, sala de próteses. Mas, como o negócio dele dos tapetes ia de vento em popa, e ele já não era mais criança. Isso por volta de 1970, ele tinha setenta anos. Ele disse: “Você vai ter que vir trabalhar comigo.” Então eu comecei a trabalhar com o meu pai. Com os tapetes.
P/1 – Aí o senhor abandonou o consultório?
R – Abandonei o consultório. Posteriormente, quando ele ficou bem idoso, eu trabalhei. Eu tive um consultório na Vila Mariana, na Amâncio de Carvalho, perto da Tutóia. Ali eu trabalhei como dentista por 30 anos. Mas, ao mesmo tempo, eu lidava com tapetes. Porque eu sou, além de marchand de tapetes orientais, eu sou um restaurador de tapetes. Eu restauro tapetes orientais, Gobelin, Aubusson. Já trabalhei para o MASP. Fiz restauração para o Emerson Fittipaldi, para a Argentina, para muita gente. E dei depoimento na Rádio Eldorado. Apareci na televisão dando depoimento sobre restauração e venda de tapetes.
P/1 – Mas, seu Omar, vamos voltar só mais um pouquinho.
R – Pode voltar.
P/1 – E lá em Araraquara, como que era a sua vida lá? Como foram esses anos de faculdade?
R – O curso era totalmente diurno. Das sete da manhã às seis da tarde. Você não tinha chance de trabalhar. Então eu morava em uma república, junto com o meu primo-irmão, mais dois rapazes. Um do Rio e outro do interior. Tínhamos uma república. Estudávamos Anatomia, Fisiologia, um horror de Patologia. É um curso espetacular da UNESP de Araraquara. Mas nos dias de folga, num final de semana, a gente ia pro footing. No centro da cidade.
P/1 – Hum, e como é que era?
R – Onde os rapazes ficavam todos enfileirados e as moças passeavam para lá e para cá. Aí tive várias namoradas, né? Uma que é a Déia Nigro, uma moça que era de Gavião Peixoto. Uma que era a Neusa Arruda, de Piraju. Mas eu não estava muito afim, não estava amadurecido, né? Eu tinha quase trinta anos, mas não tinha amadurecido para um casamento, para um compromisso mais sério, né? Aí, depois terminei o curso, vim pra São Paulo, já com trinta anos. Você sabe que já não é mais fácil se engajar com uma moça. Uma porque é baixa. Outra porque é alta, sabe? E depois, quando eu tinha trinta e seis anos, trinta e cinco, não, eu tinha trinta e três anos quando fui. A primeira vez que o meu pai me levou para o Oriente. Nós fomos juntos.
P/1 – Sim, e como é que foi essa viagem?
R – Porque o meu pai era brasileiro, mas em 1904 meu avô levou meu pai com tio Vitório e a tia Jamile. Voltou para o Líbano e ficou lá até 1914. Quer dizer, papai passou toda a infância dele no Líbano estudando. Estudou lá na escola Russa. Estudou árabe. Estudou inglês. Mas ele chamava-se Felício. E o irmão que nasceu, chamava Vitório. Então, quando chegaram lá, os meninos davam risada deles. Falavam: “Chegaram os macacos do Brasil.” Porque Brasil era tão distante que eles achavam que era uma terra de macacos. Então, não sabiam falar nem Felício nem Vitório. Eles choravam, quando falavam: “Chegaram os macacos do Brasil.” Porque eles sabiam falar português, né? E, aí, precisou traduzir o nome do meu pai para o árabe, para Sud. E do Vitório, para Nasser, que Nasser em árabe quer dizer vitorioso.
P/1 – Ah, entendi.
R – Então a tradução estava mais ou menos certa. Felício de feliz. Sud é um nome árabe que quer dizer feliz também. Aí ficou tudo bem até 1914, quando começou a Segunda Guerra. Aí voltaram para o Brasil outra vez. O vovô com seis filhos e vovó ficou presa lá, com mais três filhos até terminar a Guerra em 1920.
P/1 – Por que ela não conseguiu?
R – Não conseguiu. Ele vinha. Ia voltar para o Vale da Ribeira e ainda não estava bem estruturado. E ela tinha os filhos pequenos. Ele achou melhor deixar ela lá.
P/1 – Ah, ele deixou ela com as crianças menores lá.
R – É. Com os parentes. Com a vizinhança. Mas ele não sabia que ela ia demorar tanto tempo para vir.
P/1 – Quanto tempo depois ela conseguiu?
R – Depois de seis anos, né?
P/1 – Em seis anos ela conseguiu.
R – Isso, em 1920. Ele já estava começando a ficar adoentado. Porque ele caiu do Trole. Trole era uma carruagem. E bateu a cabeça numa cerca e teve um coágulo sanguíneo. Aí ficou tratando desse coágulo com o Doutor Seng e o Doutor Aydar, aqui em São Paulo, mas eles não sabiam lidar para remover o coágulo. Então ele morreu em 1922. Lá em Presidente Prudente com uma dor de cabeça horrível, sabe? Então, hoje em dia, as pessoas, se você bater a cabeça e tiver um coágulo sanguíneo, eles sugam e resolvem o problema. Mas antigamente era muito difícil.
P/1 – Aí a sua avó ficou aqui, com todos os filhos.
R – Com todos os filhos. Viúva, né? Em 1922. Papai era o filho mais velho.
P/1 – Sim, e por isso ele assumiu.
R – Assumiu a família toda. Só foi se casar em 1930 com mamãe.
P/1 – Entendi. Não, daí o senhor estava falando da sua viagem...
R – Ah, da minha viagem. A minha viagem é muito interessante. Papai falou: “Vamos ao Líbano. De lá, nós vamos ao Irã, à Pérsia.” Ele falou: “Vou ver a cidade que eu passei a minha infância.” Aí nós fomos ao Líbano.
P/1 – Nós era quem? Você, seu pai e quem mais?
R – Só.
P/1 – Só.
R – Eu e papai. Mas é complicado lá. Porque nós tínhamos parentes tanto do lado de papai quanto do lado de mamãe. Então é costume, quando você chega a Beirute, comprar um horror de doce, de guloseimas. E levar às famílias no interior, onde eles vão recepcionar a gente. Então, quando chegamos lá em 1966, vinham nos cumprimentar desde as seis horas da manhã até dez horas da noite. Porque eles conheciam a família, né? Aí ficamos um tempo no Líbano. A Doha, ela morava na casa do meu tio avô materno. Mas eu achei que ela era muito novinha. Porque no Oriente, as moças não desabrocham como num país tropical. Perdão. Não desabrocham depressa. Então eu achei que ela tinha treze anos. Então papai falava: “Olha, Omar, olha a filha do Alfredo, que moça bonita. Você está solteirão. Você é negro, ela é branca.” Eu era moreno, né? Por causa do Brasil, de tomar sol. “Ela é branca. Você fale com o Alfredo.” Alfredo era o meu sogro, que havia morado no Brasil. Falava português e o pai dele falava português. O meu tio avô, porque tinha morado aqui em Capão Bonito, Itapetininga. Depois voltaram.
P/1 – E Doha também falava português?
R – Não, só sabia falar casamento, sapato, mala. Só. Não sabia nada. A maioria dos parentes do meu avô Buchala estavam no Brasil e não no Líbano. Então, aí o papai falou: “Está na hora de ir para o Irã para comprar os tapetes.” E nós fomos para Teerã. Para o Oriente. Para o Mar Cáspio. Compramos tapetes. Mandamos para Beirute e, depois de Beirute, despachávamos para nossa firma. Que se chamava Omar Khayyām, que é um poeta persa. Aí nós fomos para a Europa, eu e papai. Para a França. Para a Alemanha. Para a Inglaterra e viemos embora. Dois anos depois.
P/1 – Mas o senhor chegou a falar com o pai da Doha?
R – Não, só falava português com ele. E com a Doha. Doha era um nome muito estranho para mim, era dificílimo. Aí eu não estava bem de árabe, fluente ainda. Eu falava em inglês com ela: “What's your name?” Aí, dava uma volta e esquecia o nome dela, que era dificílimo. Doha era uma coisa muito difícil. Aí voltamos. Dois anos depois. Já estava com trinta e cinco para trinta e seis anos. Estava cansado da minha solteirice, sabe? Mamãe falava: “Omar, não está na hora de você se casar?” Papai era safado. Ele falava: “Ouvi falar que você tem amante. Com filhos. Traga essa mulher com as crianças.”. “Não tenho amante com filhos, pai.” Aí, deixa eu ir mesmo comprar os tapetes na Pérsia outra vez. Vi aquele montão de dólares. E viajei. Mas antes de viajar, falei para a minha mãe: “Está vendo essa moça? Doha. Eu vou para lá e vou me casar com ela.” Ela não acreditou. “Mas é isso que vai acontecer.” Foi em 1968 que eu vim para o Líbano. Doha já não tinha mais cara de treze anos. Ela tinha dezenove. Tinha mudado. Ficado moça. Foi aí que eu conversei com o meu sogro. Pedi licença para namorar Doha. Porque lá é tudo. Sabe. Não é como no Brasil. É tudo cheio de cerimônia. Mas como ele era meu amigo e falava português, ficou muito contente. Aí nós começamos a namorar. Namoramos quinze dias e casamos em quinze dias.
P/1 – Nossa, em quinze dias?
R –É rápido. Quinze dias. Lá não pode namorar. Não é como aqui que você pode pegar uma moça e ficar saindo com ela. Principalmente na aldeia. Nesse entrementes, eu fui para o Irã. Fiz minha compra de tapete. Mas tem pormenores. Lá tem pormenores do dote. Que você tem que dar para a noiva.
P/1 – E como é?
R – O dote é o seguinte. O chefe da família. Você fica lá para pedir a mão em casamento da moça. Posso continuar falando?
P/1 – Pode. Por favor.
R – Então na hora do dote. Eu me embasbaquei. Porque minha mãe, nem meu pai não acreditavam que eu fosse me casar. E eu não estava sabendo nada de dote. Então, o vovô, o avô dela, que era o dono da casa, chefe da família, falou. Eu pedi a mão da minha mulher em casamento. Não foi muito fácil. Ele falou: “E agora, o dote.” Falei: “Meu Deus, o dote!” Aí me embasbaquei. Então ele falou comigo em português. Porque ele havia morado aqui. Ele falou, tratou-me de neto: “Meu neto. Você pode falar português.” Aí ficou mais fácil. E ele perguntou: “E as jóias que você vai ter que dar?” “Olha, vovô, a Doha quando chegar ao Brasil comigo, a minha mãe vai oferecer todas as joias para ela.” Mas não tinha nada disso. Minha mãe não estava sabendo nada disso. Mas como eu tinha levado muitos dólares para comprar tapetes, já não era mais criança. Peguei e fui a Beirute e comprei um monte de jóias. Esparramei joias para todo mundo. Para os padrinhos. Para as madrinhas. Então foi dado o dote.
P/1 – Então o dote é distribuído entre toda a família?
R – É. Para os padrinhos e madrinhas. E principalmente para a noiva e o pai e mãe da noiva.
P/1 – Mas o padrinho e a madrinha também têm que receber?
R – Tem que receber um presente. Faz parte do casamento. Então foi isso que aconteceu. Aí nós fizemos a lua de mel em uma semana. Num hotel, que é o mais chique até hoje de Beirute. Chama Le Vendôme. Depois viemos para o Brasil. Pegamos o avião. Aí começou a vida.
P/1 – Aí como é que foi a vida?
R – A vida… A chegada foi o seguinte: minhas irmãs, meus parentes olhavam a Doha meio de soslaio. Porque há muitos anos que não vinha um parente do Líbano. Então eles olhavam para ela como se fosse um ET. (risos). Mas ela é muito sabida. Ela percebeu. Aí, ela não falava português. Eu coloquei professora particular para ela. Ana Maria Matias, que ensinava português através do inglês. Porque Doha fez o ginásio, colegial numa escola inglesa. Então foi fácil. Ela foi aprendendo devagarzinho. Com a empregada. Vendo a televisão. E logo, logo ela aprendeu. Hoje ela é um azougue da língua portuguesa. Ela lê Cecília Meireles. Lê todos os autores brasileiros, né. Ela é muito inteligente.
P/1 – E onde vocês foram morar quando chegaram?
R – Fomos morar numa casa que era da minha família, na Rua Basílica. Hoje Hildebrando Tomás de Carvalho. É uma propriedade que o meu pai tinha vazia. Anexa à casa que ele morava. E mamãe, como sabia que Doha era aparentada e não tinha muita experiência, foi muito carinhosa com ela. Minha mãe era tida como tia. Era prima irmã do meu sogro. E para Doha era como tia Floriza. Mas o Alfredo, depois de dez meses nasceu o meu primeiro filho. Nasceu rápido. Ela se incumbiu bem do papel de mãe. Depois veio o Ivan. Depois veio a Dúnia.
P/1 – E como foi o nascimento do seu primeiro filho?
R – Foi lindo. Foi na Pro Matre Paulista. E o Alfredo nasceu muito bonito. Com cabelo vermelho. Já tinha cabelo vermelho. Foi muito bonito. Aí as tias vieram falar: “Menino homem.” Lógico que era menino, era homem. Então foi ótimo o nascimento do Alfredo. Foi uma festa. Tem outros detalhes. Quando nós chegamos foi encomendado um almoço no Buffet Fasano.
P/1 – Sim. Que ficava onde naquela época?
R – Na Avenida Paulista.
P/1 – No Conjunto Nacional?
R – No Conjunto Nacional. Então foi encomendado o almoço no Buffet Fasano. Mas no meio desse almoço, tinha um peru enorme. E a Doha quando viu aquele peru enorme, ficou assustada. “Meu Deus do céu, que bicho grande!”
P/1 – Ela nunca tinha visto?
R – Não. Peru daquele tamanho, não. Tinha visto carneiro recheado à moda árabe. Mas o peru era imenso. Cheio de frutas. Foi muito interessante o almoço do Buffet Fasano.
P/1 – E pelo fato dela ser libanesa, a comida na sua casa era diferente da comida na casa da sua mãe?
R – Não. Era igual. Tem a cozinheira em casa. Ela já começou a fazer feijão e etc. Tinha cozinheira. Tinha passadeira. Todas aquelas coisas que havia antigamente. Tinha chofer para o carro. E a primeira cidade que a Doha foi visitar aqui do Brasil foi Jacareí. Falei: “Doha, enquanto não estão vindo os convidados para cumprimentar a gente, eu tenho que ir a Jacareí tratar de um negócio, você vai comigo?” Então chamamos um chofer que nos levou ao Vale do Paraíba. Em Jacareí. Muito bem. Estava um dia muito quente. Então o chofer. Doha não falava português ainda. Eram os primeiros dias que nós tínhamos chegado. O chofer falava para Doha: “Sol ou sombra?” Se ela queria ficar no sol ou na sombra. Ela foi e acertou. Falou: “Sombra.” Muito bem. Eu tratei e ela ficou um pouco com o chofer. Tratei do meu negócio. Aí falei: “Aqui tem uma churrascaria. Vamos almoçar nessa churrascaria.” É novidade, né? Mas as churrascarias antigamente, Glaucia, não eram incrementadas como as de hoje. Tinha o churrasco, saladas.
P/1 – Como era antigamente?
R – Era mais simples. Embora fosse talvez a melhor a churrascaria da cidade. Aí chegou a hora do espeto de carne. Eu falei: ‘“Doha, pega esse espetinho e molha nessa farinha”. Quando ela molhou na farinha e foi comer um pedacinho de carne, ela falou: “Omar, você está dando areia para eu comer?”. Eles pensaram que farinha fosse areia. Falei: “Não é não areia”. Hoje é a maior farofeira. Faz farofa que é uma beleza. Mas a primeira vez, né. Estranhou o mamão papaia. Estranhou. Achou uma coisa muito mole. Hoje não. Hoje está habituada com a nossa culinária. E ela é um azougue na culinária. A Doha. Faz cuscuz. Faz toda comida brasileira.
P/1– Então. O senhor levou sua esposa para Jacareí. Daí voltou e teve essa festa para apresentar ela para os parentes no Fasano.
R – Acho que demorou um mês para as visitas que vinham conhecê-la. Acho que foi mais de um mês.
P/1 – E quando nasceu o primeiro filho? Pelo fato de ser menino. Tem algum costume especial?
R – Tem um costume assim: o primeiro filho ou filho varão, o pai perde o prenome dele. Eu me chamo Omar. Então passam a me chamar de Pai do Alfredo. Tal a importância do filho varão. Abu, que é prefixo em árabe, quer dizer pai. Abu Alfredo. Se bem que Alfredo é um nome alemão. Meu sogro chamava Alfredo, mas não é um nome árabe. Então eu sou Abu Alfredo.
P/1 – Assim que o senhor passou a ser chamado? Depois que o Alfredo nasceu.
R – É assim que eu passei a ser chamado. Até hoje muita gente me chama de Abu Alfredo. Por causa do primeiro filho varão. Se vier mulher e não vier filho homem...
P/1 – Aí continua chamando Omar? Não.
R – Aí como o caso do pai da Doha, que teve só filhas. Três filhas. Então o Alfredo era chamado de Abu Doha. Que não é normal, mas como ele não tinha filho varão, chamavam de Abu Doha. Também chama quando não tem filho homem.
P/1 – Que é o avô do Alfredo.
R – Então chamavam de Abu Doha. Pai da Doha. Porque ele não tinha filho homem.
P/1 – Abu Doha. Entendi.
R – Ele não tinha filho homem. Filho varão.
P/1 – O costume normalmente é continuar chamando Alfredo?
R – É. No meu caso é. Abu Alfredo. Se eu não tivesse filho varão. Tivesse a Dúnia, iam me chamar de Abu Dúnia. O Abu é um prefixo que quer dizer pai.
P/1 – Aí vocês foram morar na Vila Mariana. E nessa época o senhor estava vendendo. Comércio de tapetes e não estava mais como dentista?
R – Não. Ainda não. Mas posteriormente eu voltei a ser dentista. Quando meu pai ficou idoso, eu voltei a ser dentista. Exerci a profissão lá na Vila Mariana. Mas continuei trabalhando com os tapetes.
P/1 – Como era que o senhor desenvolvia essa atividade de venda de tapetes, o senhor vendia diretamente? Como era?
R – Para as pessoas. Para as famílias de relacionamento do meu pai quando ele era fazendeiro do Doutor José Maria Whitaker. Para o pessoal lá do norte do estado.
P/1 – Como se dava esse comércio? Eles chamavam o senhor?
R – Meu pai já era muito conhecido. Então vendia para o pessoal do Bradesco.
P/1 – E vocês que iam buscar os tapetes?
R – Era a gente que trazia do Irã.
P/1 – Então o senhor foi várias vezes?
R – Não. Eu fui duas vezes, porque depois nós tivemos um contato que eles despachavam os tapetes para nós sem precisar ir. Mas numas dessas idas eu fiquei em Beirute uns seis meses onde eu tinha um escritório de tapetes. Depois eu já fui dez vezes ao oriente. Já voltei dez vezes para o Líbano e para a Síria.
P/1 – E como é feita essa escolha?
R – Tem os grandes bazares. Os grandes bazares, você vai e escolhe. Você tem que ter guia de importação, porque senão não entra. Você perde os tapetes. Tem que tirar com o Banco Central a guia de importação para você poder receber os tapetes.
P/1 – Mas foi o seu pai que ensinou o senhor a fazer essa escolha dos tapetes.
R – Foi. Perfeitamente. Foi meu pai. E ele, como contei para você, conhecia.
P/1 – O senhor estava contando que virou até restaurador de tapetes.
R – Sim. Até hoje eu restauro tapetes.
P/1 – E como o senhor aprendeu esse ofício?
R – Eu aprendi com uma senhora húngara que me ensinou. Mas eu já tinha noção porque minha avó, no Líbano, restaurava tapetes. Ela tinha na casa dela um fosso, sabe? Lá na casa do meu avô. Que está vazia no Líbano. Do meu avô paterno. Tinha um fosso que ela punha os pés dentro e puxava o tapete na altura do assoalho. Ela sabia restaurar. A minha avó. Mais precisamente foi com a minha avó que eu aprendi a restaurar.
P/1 – Ela começou a ensinar o senhor?
R – Me ensinou um monte de coisas. Além do árabe, me ensinou um monte de coisas. Até plantar a mandioca, no interior: “Corta a mandioca e pisa aqui”. Mandioca nasce fácil. Era uma mulher maravilhosa e a minha filha tem o nome dela: Dúnia. Dúnia em árabe quer dizer universo, mundo.
P/1 – E depois sua filha nasceu muitos anos depois.
R – Dúnia nasceu. Entre o Alfredo e o Ivan tem três anos. Entre o Ivan e a Dúnia também tem três anos.
P/1 – E vocês ainda estavam morando na vila Mariana.
R – Na Vila Mariana.
P/1 – Na Vila Mariana. E agora quando o senhor veio morar aqui e o senhor estava me contando.
R – No Planalto Paulista?
P/1 – Não. Na sequência o senhor foi morar onde?
R – Na sequência eu saí para a Fradique Coutinho. Porque a Doha tinha a irmã, a tia aqui em Pinheiros, na Alves Guimarães. Então nós viemos para ela ficar junto com a tia paterna. Viemos morar. Abandonamos a casa lá que ficou só para depósito de tapetes. A casa grande que a gente morava. Ficou a firma Omar Kayan com os tapetes e nós viemos morar na Fradique Coutinho.
P/1 – E como que era o bairro?
R – Da Fradique?
P/1 – É. Quando o senhor veio morar aqui?
R – Era parecido com agora. Eu me lembro que na Rua Fidalga tinha uma panificadora onde a gente ia, não é verdade? E recebíamos sempre a visita da tia da Doha, que mora na Alves Guimarães. A irmãzinha não tinha chegado do Líbano. Ela chegou em 1980.
P/1 – A irmã mais nova?
R – A irmã mais nova que mora aqui. Que é livre docente de Árabe da USP. A irmã mais nova. A outra mora no Canadá. A outra irmã. São três meninas. E depois porque eu não me acostumei na Vila Madalena.
P/1 – Porque o senhor não se acostumou?
R – Eu tinha certa prevenção, porque todas as vezes que voltava de carro e vinha passava na Cardeal Arcoverde. Tinha que fazer o Pai Nosso na frente do cemitério. Porque está todo mundo enterrado lá. Pai, mãe, avó, bisavó, irmã.
P/1 – No Cemitério São Paulo?
R – No Cemitério São Paulo. Depois falei: “Meu Deus. Estou cansado de fazer Pai Nosso.” Cada vez tinha que parar com o carro e fazer Pai Nosso. Falei: “Não vai dar. Vamos voltar para a Vila Mariana.” Porque eu morei muitos anos na Rodrigues Alves. Na Vila Mariana. Então voltamos para lá.
P/1 – Aí o senhor foi morar onde? Quando o senhor saiu da Vila Madalena o senhor voltou?
R – Para a casa lá.
P/1 – O senhor voltou para a casa onde morava antes.
R – O casarão onde morava antes. Então lá. Aí mudou tudo. Eu fui morar num apartamento. Veio o inventário do meu pai. Precisou dividir aquelas casas todas. Fui morar num apartamento na Rua Tutóia. Ali morei por dezoito anos. Ali perto eu fui dentista por quase trinta anos. Depois vendi o apartamento e vim morar no Planalto Paulista. Onde eu moro há onze anos. Numa casa. Mora eu, o Alfredo que ficou solteiro e a Dúnia e a minha mulher. Elas têm um Buffet. Tem uma cozinha industrial que faz encomendas de culinária do mediterrâneo para fora. Chama-se Walima. Saiu até esses dias no Prazeres da Mesa.
P/1 – E quais são as suas comidas preferidas árabes?
R – A minha realmente é uma comida chamada dafim, que é arroz com grão de bico e frango. E charutinho de folha de parreira. Kibe é indispensável. Kibe cru. Kibe de bandeja. E o tal de tabule. Que é uma salada verde que é muito fácil. Por exemplo. Eu tenho horror à rúcula. Rúcula eu não como.
P/1 – No tabule não vai rúcula?
R – Não, não vai. Vai um monte de salsinha. Um montão. Menos hortelã. Um pouquinho de tomate vermelho picadinhos. Cebola. Eu não sou bom de culinária, mas o tabule é feito com mais salsa e menos hortelã. E um punhado de trigo que tem que misturar. Mas só pode ser o óleo, o azeite você só coloca na hora de servir, senão ele murcha. E também tem outra salada interessante na culinária libanesa que se chama fatuche. Onde você coloca pão torrado junto. Sabe? Com as verduras. É uma culinária muito saudável, né? Saudável. Tem muita verdura. Que mais que eu posso contar para vocês?
P/1 – Então, o senhor falou que depois o senhor retomou a atividade como dentista.
R – Como dentista, mas ao mesmo tempo continuava restaurando tapetes. Chegou um ponto que eu falei: “Da Le der moncher ance?”. Não sabia se ia para lá ou para cá. Aí me aposentei como dentista e continuei trabalhando com tapetes. Fui consultor de tapeçaria oriental de um escritório chamado Renato Magalhães Gouveia por muito tempo. Um marchand de arte, que hoje acho que quem toma conta é o filho. E é uma coisa que eu gosto. Demais. Eu mesmo restauro com as minhas mãos, embora eu tenha gente que faça. Que lave. Porque o tapete depois de molhado ele é muito pesado. Recentemente restaurei tapete para o Doutor Adib Jatene, que é vizinho de vocês. Agora estou restaurando para um oculista. Professor Suel Abujamra. Estou restaurando. E tem muitas famílias brasileira que me chamam.
P/1 – O senhor falou que restaurou para os museus também?
R – Para o museu MASP. Aí restaurava os gobelins e os aubussons do século XIV, muito antigos.
P/1 – Fora o ensinamento da sua avó. Como é passado esse conhecimento?
R – Eu sou muito engraçado. Eu, quando mocinho, vendia caxemira. Eu fiz um curso de tecelagem, na Rua Piratininga. Mas eu sempre tive boa habilidade manual. E tinjo as lãs quando preciso. Na cor exata para poder fazer uma restauração perfeita. E coisa que eu gosto. Gosto de fazer. Sempre me chamam. Gente conhecida. Os filhos dos filhos.
P/1 – Desde quando o senhor faz isso?
R – Ah. Sim. Desde quando a gente veio. Desde 1960. Quantos anos já. Quarenta, cinquenta. Mais de meio século, não é verdade?
P/1 – Sim. E essa foi uma atividade que o senhor sempre teve junto com a venda dos tapetes e mesmo quando era dentista?
R – Sim. E mesmo quando era dentista. Então era engraçado, porque às vezes eu estava trabalhando no consultório e tinha que entregar um tapete. Então eu ia de branco entregar o tapete na casa do fulano, que era gente tudo conhecida. Aí o guarda da guarita falava: “O doutor pode entrar aqui, no elevador social.” Mas quando eu não estava de branco, a turma falava: “Entrada de serviço.”
P/1 – E era o mesmo serviço.
R – Era o mesmo serviço.
P/1 – O que eu queria…O senhor estava falando também das modificações que o senhor viu acontecer na cidade.
R – Sim. Onde morava só tinha um edifício. O Edifício Regina. Na esquina da Brigadeiro. O prédio está até hoje.
P/1 – Na Avenida Paulista, quando o senhor chegou?
R – Na Avenida Paulista… Eu nem mesmo tenho certeza, mas eu acho que já tinha esse prédio, que está até hoje. A casa do conde Francisco Matarazzo, na esquina da Pamplona. Que eu me lembro que logo que nós chegamos, a Dona Feli Matarazzo, que é Filomena Matarazzo, que é mãe do senador, o casamento dela. Então a casa ficou toda coberta de toldos verde e todo mundo veio chegar à chegada da Dona Feli Matarazzo para o casamento. Que a festa foi lá. E tem o Parque Siqueira Campos, onde o Roberto, meu irmão, nasceu. Ele era pequenininho e eu levava ele passear no parque, na frente do MASP. Sem falar para você das vesperais de carnaval que tinha no Trianon.
P/1 – E como eram?
R – Era uma coisa linda. Os vesperais. Os salões embaixo desse platô que tem. Não tinha o prédio do MASP. Ali entrava o salão e tinha as vesperais de carnaval. Quando a gente era mocinho. Era muito lindo. Todas as músicas da época. “O seu cabelo não nega, mulata.” Aquelas músicas todas. E a gente frequentava as vesperais de carnaval no Trianon. Depois vieram outros carnavais. O Cine Odeon. Ali era para adulto na Consolação. Vieram os corsos na Avenida Brasil. Que os carros eram carros abertos.
P/1 – E na Vila Mariana. Também o senhor viu o bairro mudar muito nesses anos que o senhor morou lã?
R – Mudou. Porque construíram muitos prédios. Primeiro, antes de morar nas casas do meu pai, na travessa da Rodrigues Alves, nós moramos alguns anos numa rua muito chique chamada Morgado de Mateus. Pertinho do Instituto Biológico. Mas depois meu pai comprou, a gente construiu na travessa da Rodrigues Alves duas casas grandes. Uma onde eu morei e a outra que ele morou. E tinha mais um apartamento da família na Rodrigues Alves. Tinha outro na França Pinto. Aí veio o inventário e nós éramos cinco e as casas eram quatro. Aí atrapalhou o negócio. Atrapalhou, mas deu tudo certo.
P/1 – E hoje em dia qual atividade que o senhor faz? O senhor é restaurador?
R – Sou restaurador. Marchand de tapetes orientais. Eu vendo, compro e restauro. É lógico. Eu faço isso com o auxílio do meu filho. Do Alfredo. Do meu filho mais velho. Que ele dirige para mim. Nós vamos junto. Porque o tapete é uma coisa pesada. Tem que puxar. Pôr o tapete para verificar os estragos. Os rombos, né? Então eu trabalho junto com o meu filho mais velho, o Alfredo. Ivan tem outras atividades. E a Dúnia faz eventos junto com a mãe.
P/1 – Quais que são seus sonhos hoje?
R – Sabe. Eu sou pouco sonhador. E sou persistente. Eu não desisto fácil. Recentemente eu fiquei no Líbano por cinco meses. E fui atrás da herança que o meu avô deixou lá. Mas tem uma dificuldade. Eu não sou, eu não tenho cidadania libanesa. Embora eu fale árabe fluente e minha mulher seja libanesa. Muito menos o meu pai, que era tatuiense, não tinha cidadania libanesa. E muito menos meu avô. Porque quando meu avô veio morar aqui, no Vale da Ribeira, ele precisava de um documento e ele falou para o cartorário: “O senhor faz um documento para mim de identidade.” Ele falou: “Como é o nome do senhor?” Ele falou: “Atala Naufal.” A cabeça do homem do cartório pirou lá em Itararé. Nunca tinha visto aquilo lá. Aí o avô teve que mudar o nome dele. Lembrou que o pai chamava Elias e o avô chamava João. Então invés de Atala Naufal, passou a chamar Elias João. Então não tem nada no consulado libanês que prova que nós somos libaneses. Tem um caminho que eu sei. Eu tenho que ir para o interior ver os meus primos irmãos. Que o pai deles, irmão de meu pai, era o único que tinha o nome no Líbano. Tio Mansur. Então eu tenho que voltar ao Líbano para tentar reaver todas essas terras e a casa que está vazia, do meu avô paterno que deixou lá no Líbano. Esse aí é um sonho meu. E eu vou voltar. Vou voltar. Porque eu passei muito bem esses cinco meses lá. Mas aí minha mulher achou que eu não ia voltar mais. Então mandou minha filha me buscar. Falou: “Chega, volta.” Aí minha filha Dúnia foi atrás de mim. E adorou o Líbano. Viu toda culinária recente libanesa, porque houve uma modificação. Visitou todos os grandes hotéis. Conheceu os chefs de cozinha no Líbano. Mas ela ainda quer que eu vá com ela para Petra, para Jordânia, para Damasco. E nós vamos voltar. Então eu tenho sonhos. Eu sonho. Sabe? Essa é a melhor coisa da vida da gente. Não se manter apagado, inerte. Na frente da televisão. Não é o meu costume. Eu durmo muito cedo. Eu durmo com as galinhas e levanto com os galos. Eu durmo às oito horas e levanto às cinco da manhã.
P/1 – E assim desde sempre?
R – Eu sempre fui assim. Sempre dormi cedo. Acho que por isso que eu tenho saúde. Eu estou com setenta e oito anos já e eu acho que eu estou inteiro ainda.
P/1 – Sim. E seu Omar, como é que foi contar a história da sua vida aqui para a gente?
R – Foi um prazer imenso. Nossa. Nem estou acreditando. Eu fico muito grato. Eu estou sempre pronto para falar da minha pessoa. Embora eu ache que eu não seja lá uma pessoa excepcional, não é verdade? Mas eu vi São Paulo crescer, mudar. Participei dos eventos. Da festa do quarto centenário. A começar por aí...
P/1 – Ah, o senhor participou da festa do Quarto Centenário. Como é que foi?
R – Foi linda. Você ia para a cidade, os aviões jogavam aquelas estrelas prateadas. Foi muito bonita a festa do quarto centenário.
P/1 – Que a lembrança que o senhor tem mais forte é a chuva de prata?
R – De prata. Que eu tenho mais forte. Que era no Viaduto do Chá. Aquele era a coisa mais linda do mundo. Então para eu vir aqui nessa ONG tão importante é um prazer muito grande. Eu posso ficar horas e horas falando de detalhes da minha vida, etc. Sem falar daquele conto que eu falei das moças papudas.
P/1 – Conta essa história.
R – Que eu não consegui, que não publicaram né?
P/1 – Como é essa história. O senhor escreveu?
R – Muito interessante. Papai com uma parte dos irmãos e o vovô viveu por quatro anos no Vale do Ribeira de Iguape. No sertão de Itararé. Mas lá o sal não era iodado. Então todo mundo tinha problema de bócio. As mocinhas. Os adultos tinham problema de bócio. Então as mocinhas, o que elas faziam? A simpatia para o papinho desaparecer. Elas amarravam uma fitinha vermelha no papo. Então todas as moças tinham essa fitinha vermelha amarrada no papo. Nos finais de semana tinham os bailes. Onde tocava o xote, polca. E outras danças da época. E as moças iam lá com seus vestidos de chita rodado, né. Mas tem um detalhe. Quando dança faz um esforço físico, o papo chia. Faz um barulho. (risos). Quer dizer. Só as moças que eram bonitas que tinham papo com a fitinha vermelha amarrada no papo. Sinal de simpatia. Por isso que eu escrevi: As moças papudas.
P/1 – Quem te contou essa história?
R – Papai, papai. É. E sempre quis ir com ele. Porque esse lugar que eles viviam chamava Rio da Várgea. Que é errada a pronúncia. É Rio da Várzea. Existe até hoje lá no Vale da Ribeira. E eu estou sempre para ir lá ver onde eles viveram. Meu avô lá criava porco. E hoje é uma região que criam porcos. Acho que é uma região propícia. Tem muita banana no sul do estado. Depois de lá que eles abandonaram. Vieram a cavalo para Assis e lá meu parente mais velho, Tio Gilbran falou: “Elias, vai lá para frente que estão abrindo uma cidade”. Era Presidente Prudente. Em 1918. Mas aí foi a história das moças papudas. Muito curiosa. Talvez eu não. Eu escrevi direitinho. Mandei para um departamento do Estado de São Paulo. Mas ou eles não leram ou… escrevi muito bem, sabe? Os vestidos de chita rodados no baile. As danças, né. Mas eu vou tentar ainda escrever. Eu gosto de escrever.
P/1 – Agora o senhor contou a história.
R – Contei a história das moças papudas por causa do sal que não era iodado. Então aparece o bócio. Hoje o nosso sal é iodado.
P/1 – Obrigada, seu Omar.
R – Obrigado a você. Tive muito prazer.
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