P/1 – Soró, a gente vai começar a entrevista, fale seu nome completo.
R – Meu nome é José de Souza Queiroz.
P/1 – Quando você nasceu?
R – Eu nasci em 26 de março de 1964.
P/1 – E onde?
R – Nasci numa cidade chamada Itaporã, que fica no Mato Grosso do Sul.
P/1 – E esse apelido Soró, de onde vem?
R – Ah, esse eu ganhei quando eu tinha acho que uns 18 anos. Sei lá, eu usava um black power e era muito magrelo, e tinha uma novela que tinha um personagem chamado Soró e também tinha muito parecido. Quer dizer, mas a associação foi um pessoal do serviço público, quando eu trabalhava, que me deu o apelido. A associação era bem preconceituosa, me chamavam de baiano, e como o cara era nordestino, então colou.
P/1 – Entendi.
R – Mas não foi nada grave. E eu nunca briguei por... Acabou ficando o apelido.
P/1 – Você se identifica com o apelido? Você gosta?
R – Tranquilo. Tranquilo.
P/1 – Soró, e que lembranças você tem do seu pai e da sua mãe quando você era criança?
R – Do meu pai, eu tenho poucas, porque ele faleceu quando eu tinha 11 anos, mas tenho ainda muitas lembranças dele. Ele era trabalhador rural e vivia pegando o que eles chamavam de empreitadas, e às vezes eram longas, então você tinha que mudar, mudar todo mundo, então a gente morou em muitos lugares, muitas fazendas. E, óbvio, na roça desde criança você já trabalha também, então tinha muito essa relação com os lugares e com o trabalho dele e com ele.
P/1 – Você ia trabalhar com ele?
R – Ia. Não trabalhava tanto quanto... Mas já algumas coisas eu fazia, levar almoço. Tinha muito essa coisa de levar almoço. Levava almoço, às vezes outras coisas, às vezes pegava também trabalho, fazia tarefas... Buscar leite na outra fazenda, porque não tinha leite na nossa, então essas tarefas. Isso quando eu já tinha uns seis anos, sete anos, já fazia isso.
P/1 – E qual o nome dele?
R – Chamava Geraldo.
P/1 – Geraldo do quê?
R – Geraldo Francisco de Souza.
P/1 – Além de trabalhar e fazer essas tarefas, tinha outra coisa que ele fazia com vocês em casa?
R – Olha, a gente ia... De modo geral, a maior parte do tempo era mais isolado, porque a gente morava em fazenda às vezes sozinho. Teve umas duas que éramos a única família que morava naquela fazenda. Então a gente não tinha muito contato com muita gente, tudo era muito distante. A gente não tinha muita relação com parentes, até tinha bastante, mas eles moravam longe. E tinha um problema: meu pai basicamente roubou minha mãe, os dois combinaram e fugiram, então o casamento deles não era aceito pelo meu avô, que era uma pessoa extremamente brava, violenta, essas coisas. Então quase não tive convivência com parente. Então a gente convivia com poucas pessoas. Quando eu cheguei a morar em cidades, acho que umas duas ou três a gente morou em zonas mais urbanas, numa cidade chamada Montese, aí tinha atividades, futebol no campo, ir à igreja era muito pouco (risos). Sempre fui muito pouco à igreja, meu pai também não ia muito, minha mãe. Mas, enfim, fazíamos coisas básicas, frequentar circo uma vez por ano, porque o circo passava toda vez. Enfim, essas coisas.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho.
P/1 – Quantos?
R – Tenho mais cinco irmãos: quatro irmãs e um irmão. Inclusive, uma irmã que faleceu agora há pouco tempo.
P/1 – E sua mãe, qual o nome dela?
R – Cassilda Queiroz de Souza.
P/1 – E dela, como você descreve a sua mãe?
R – Minha mãe...
P/1 – Ela é viva?
R – É viva. É viva. É uma história muito bonita, muito forte. Minha mãe é uma super de uma guerreira. Porque, enfim, eu lembro vagamente que se tinha um sonho, meu pai e minha mãe, até um plano de vir embora pra São Paulo. Mas quando as coisas estavam meio que em preparativo, ele morreu.
P/1 – Ele morreu do quê?
R – Teve um infarto. Ele tinha um negócio chamado doença de Chagas.
P/1 – Entendi. E ele morreu nessa ocasião que estava em planos ainda.
R – Sim. Sim. Tava em ideias. E foi um baque danado porque minha mãe não trabalhava fora, não tinha outras habilidades, e a gente era meia dúzia de escadinha. Foi uma paulada. E ela sofreu muito, porque ela gostava demais. Meu pai era um cara muito legal. As poucas coisas que eu me lembro dele, ele sempre foi afetuoso, carinhoso, não batia. Uma única vez na vida, porque eu era muito abusado, eu ia buscar leite numa fazenda, que era longe, e lá tinha um menino, a gente começava a brincar lá e se esquecia da tarefa, aí atrasava tudo. Quando eu chegava à roça pra levar o negócio pra ele, já eram horas esperando. E ele vivia me ameaçando, tal, uma vez ele ficou bravo e... Mas ele arrancou um chapéu de palha e me dava com o chapéu de palha. Eu lembro que até achava graça, porque não doía nada. Mas ele ficou muito bravo. Mas ele não era violento, era supercarinhoso. Aí ferrou, porque minha mãe entrou numa depressão profunda, emagreceu, chegou a pesar uns 30 quilos, assim, uma coisa braba. Eu lembro que eram meses que a gente ficou lá e ficamos hospedados na casa de uma tia, que era irmã do meu pai. E ela mal nessa situação. Aí conseguiram acertas as coisas e... Porque aqui em São Paulo, aqui em Perus, morava a minha avó, mãe da minha mãe, com outro irmão da minha mãe, o irmão mais novo, moravam aqui em São Paulo. Não, dois irmãos, o irmão mais velho que a minha mãe e o outro mais novo. E esse irmão mais velho da minha mãe, chamado Gervásio, se incumbiu de buscar a gente, só que era muito caro o negócio, então buscar uma mulher e seis filhos, e preparar as coisas aqui, enfim, demoraram acho que alguns meses. Eu lembro que a gente até foi morar um tempo numa fazenda que meu avô cuidava lá, ou era dele. Vários trabalhos assim a gente acabava fazendo por época: colher arroz, cortar arroz. Eu lembro que na fazenda do meu avô a gente fez várias colheitas.
P/1 – Pai do seu pai.
R – Pai da minha mãe.
P/1 – Ainda pai da sua mãe.
R – Esse que era o bravo, mas depois ficou mais manso. Aliás, tadinho, bem manso. Meu tio foi buscar a gente, minha mãe foi dando uma melhorada, aí viemos cair aqui em Perus. Meu tio tinha preparado, construído um cômodo, e a gente passou a morar lá, todo mundo aboletado dentro do cômodo. E ele disse pra minha mãe: “Bom, primeiro você fica aí, se recupera, não tem que trabalhar, não tem que se preocupar com nada”. Botou a gente nas escolas, porque com 11 anos eu não tinha ainda... Eu sabia ler e escrever por ene razões, já tinha frequentado uma vez um pedaço de escola, mas, enfim, botou a gente na escola, fez jurar que a gente não ia trabalhar, que tinha que estudar, meu tio é muito bacana, esse cara. E acho que durante quase um ano minha ficou, e a gente ali, e ele segurando a barra. E minha mãe sabia um pouco de costura e outras habilidades que ela tinha, ela começou a se dedicar mais a isso, um tempo depois já tava meio forte, arrumou trabalho numa loja de roupas que tinha aqui em Perus. Daí pra frente meu tio cuidou da gente, a gente morou nessa casa durante muitos anos, mas já se independeu e ela mesma assumiu toda a casa, a despesa, a criar os filhos. Então meu tio ajudava muito, mas ela passou a segurar as pontas. E a bicha é teimosa.
P/1 – Você é o mais velho?
R – Sou. E ela é muito teimosa, uma pessoa muito determinada. Por isso que eu a admiro, porque ela saiu do fundo do poço e ganhou uma capacidade de segurar a peteca. E ela é sempre assim, sempre foi. Uma pessoa bastante mandona às vezes (risos).
P/1 – (risos)
R – Não é que ela fala muito, manda muito, ela diz uma vez e... Uma vez, não sei, briguei com ela, alguma coisa assim, eu tive um período meio delinquente também, eu a ofendi, depois eu fui pedir desculpa pra ela e ela me disse: “Olha, não aceito desculpa. Como eu não aceito, então você nunca erre. Se errar, problema seu”. É um bom ensinamento, carrego e sou até exigente com as pessoas, com meus filhos. Dessa firmeza em ser bastante contundente, mas uma pessoa extremamente humana, muito avançada para o seu tempo, porque ela é uma mulher bastante dependente, e aí conseguir isso, não tem grandes complicações, não é fã de religião. Sempre foi uma pessoa tranquila e mais prática, pragmática. E é interessante. E isso foi bom, porque criou a gente menos doido, menos cheio de parangolé. Minha mãe é muito sacada com o tempo, ela é muito moderna, eu diria. Bem moderna.
P/1 – Soró, quando você chegou aqui a São Paulo, você lembra?
R – Lembro.
P/1 – Da sua impressão?
R – A impressão muito chocante.
P/1 – Você se lembra da imagem?
R – Lembro quando a gente de ônibus, vindo do ônibus, porque é uma viagem muito longa, mas vindo de ônibus começou a entrar em partes que eram cidades, urbano, começa a ter muitas casas, essas coisas todas, e foi piorando, piorando, até chegar ao Centro, que era uma rodoviária, aí prédios. Basicamente era tudo que a gente nunca tinha visto na vida. Primeiro essa ocupação, segundo prédios, casas diferentes. Porque lá era raro você ver uma casa, então as distâncias eram muito grandes, mas é outra lógica. E uma cidade feia, muito feia. Era periferia braba. Lembro que meu tio foi buscar a gente num fusca, não sei como coube todo mundo, mas veio. Era um monte de gente e essa viagem demorou, caramba... E já essa impressão mesmo assim, a coisa ia ficando cada vez mais feia. Até chegar aqui, eram ruas de barro ainda, então ia ficando feio, feio, feio, com construções. Grande parte de Perus tava começando a lotear, então era um bairro todo cortado, em construção, aquelas coisas meio estranhas assim.
P/1 – Soró, você disse que nas fazendas que você morava eram mais vocês, a família?
R – Sim.
P/1 – E chegando aqui foi diferente? Você teve amigos? Do que você brincava?
R – Olha, assim, tinha meu tio, tinha minha avó, tinha o marido dela, um gaúcho, que era guarda noturno, trabalhava à noite, dormia de dia, e o cara era um pé no saco, minha avó era encantada por ele e também não gostava muito da gente. Fui entender depois. Minha mãe não foi criada com ela, enfim, não tinha muita relação, imagina você acolher sete pessoas pra dividir ali o... Então, de qualquer forma, muitos anos depois, depois de muitas brigas, a gente amadureceu e compreendeu um pouco o impacto pra ela. Mas era isso, ela não gostava da gente, o cara não gostava da gente. Meu tio mais novo, que a gente não conhecia também, enfim, não se posicionava, ou ficava do lado da mãe. Tinha umas famílias que também tinham vindo do Mato Grosso que morava do lado, então de imediato a relação com eles já foi... E eles acolheram, cuidavam da gente, ajudavam, tal. Engraçado que eles eram evangélicos. Mas que a gente se encantou mesmo foi com a família da dona Helena e seu Joaquim, que moravam e tinha um quintalzão do lado e tinha um centro de umbanda. Seu Joaquim era pai de santo, aquela coisa toda, e aquela negrada toda vivia ali e aquilo era um lugar maravilhoso, tanto nos dias de sessões, enfim, era sempre muito agitado, movimentado, e eram pessoas maravilhosas. De imediato, a dona Helena sempre catava a gente, cuidava. A primeira vez que a gente viu televisão foi lá na casa dela, enfim. Então a gente meio que virou adotado nessas duas famílias, e aí a gente foi tocando a vida. Brincar, fui brincar de trabalhar, porque a gente tinha que buscar água numa mina aqui na fábrica, nós não tínhamos água encanada. Depois tinha um poço por perto, enfim, tinha essas coisas, ajudar em casa, fazer essas coisas. Estudar, porque meu tio não se metia muito, mas nessa coisa ele foi bastante rigoroso: “Vocês têm que estudar. Vocês têm que estudar”. Sei lá, a gente brincava de polícia e bandido no meio do mato, brincava muito de andar pelo meio do mato, de caçar, pescar, coisas que ainda tinha bastante aqui. Fazer guerra de mamona, jogar bola na rua, não muito...
P/1 – Além dos seus irmãos, outros colegas?
R – Sim. Sim. Aí já tinha mais molecada, era uma vida bem...
P/1 – Soró, e a escola quando você... Porque você disse que ainda não tinha ido pra escola, né?
R – Pois é.
P/1 – O que você achou quando você entrou na escola? Como foi?
R – Olha, é legal que você é um bicho do mato, você não tem uma noção às vezes do impacto. Eu lembro que eu tinha algum receio, mas acho que mais o desejo e a tentação de ler. Tive que esperar quase um ano pra dar o tempo, o aniversário, enfim, era uma coisa assim. Como eu já tinha algum contato com a leitura, eu fui achando gibis, essas coisas tudo eu lia. E aqui tudo tem letra, a cidade tem... Então eu acabei aprendendo rapidamente a ler e a escrever sem ter entrado na escola. E eu tinha um gosto bom, um desejo bom de ir pra escola mesmo, eu gostava disso, sempre gostei. Mas lá que eu fui me tocar que eu tinha 12 anos e os outros alunos tinham sete, então era uma coisa muito estranha. Teve bastante choque com professores, porque era muito estranho eu daquele tamanho no meio de uma molecadinha, ainda mais eu com essa cara de bugre, metia susto. Mas eu acho que tem umas coisas interessantes dessa criação da minha mãe, da vida, a gente sempre foi muito educado, tranquilo em se relacionar com as pessoas, a gente não tinha muito esses problemas, não. E rapidamente foram virando amigos. E eu também acho que certa sacada assim, meio que: “Não, já que eu sou grande...” – então você já começa...
P/2 – A dominar.
R – É (risos). A proteger. Eu tinha uma boa turma de meninas, que era bem interessante que elas eram todas ali da Vila Caiuba, descobri isso anos depois, que elas eram todas filhas de pessoas que participavam da Comunidade Eclesial de Base, então era meio que um grupo grande. E eu me entendi muito bem com esse grupo. Eram mais meninas. Enfim, acho que no primeiro ano as coisas já estavam muito tranquilas, mas ainda era sempre uma situação estranha eu daquele tamanho. E tinha uma professora que era muito irritada, a dona Odete, irritada, mal educada, grossa, mas ensinava bem. A bicha era dedicada, tal, mas era nervosa. E acho que na condição de mais velho, comecei a dar umas encaradas na mulher. Uma vez ela até mandou o apagador lá de onde ela tava, o apagador passou voando, às vezes ela pegava cabelo, orelha, dava reguada, enfim, ainda era uma situação escolar bem estranha. Mas eu já dava umas encaradas. Mas gostava muito da escola e logo consegui ter relação com as pessoas assim. Sempre gostei muito da escola lá. E até me dava bem mesmo nessas primeiras séries assim. Depois, no ginásio, aí fui descobrir a política, foi outra história. Ou a mesma história, eu já tinha um papel ali bem...
P/1 – Soró, a gente vai chegar inclusive nessa parte, mas você falou que teve uma fase que você era mais rebelde. Você falou: “Ah, eu era um pouco delinquente, vamos dizer, mais rebelde”. Foi nessa fase, ou não?
R – Quando eu tinha uns 16, 17 anos.
P/1 – Ah, mais pra frente.
R – Existia a dificuldade de emprego e eu não conseguia trabalho. Tinha essa pressão de um lado pra estudar, eu não via a hora daquilo terminar, tava atrasado, e também não conseguia trabalho naquelas condições, tipo meio período, tal. Aí eu fui ficando meio... Eu tinha um amigo, meu “amigaço” mesmo, irmão que a gente cresceu meio junto assim, e outros, mas esse mais, esse se encantou com o mundo do crime, já desde cedo, aí fumava, fazia umas coisas, mas ele era cheio de querer me proteger. Então ele mesmo me mostrou a maconha, falou: “Eu nunca fumei isso, nunca não sei o quê”. Ele era todo... Era irmão mesmo, chapa assim, mas virou bandidaço, morreu todo furado de bala, o Ricardo. Mas, enfim, tinha ali uma proximidade muito grande, um encantamento com achar essa saída, porque de fato era uma pressão muito grande pra minha idade, aquelas coisas. Eu passei um período bem nervoso. Minha mãe era muito, às vezes, compreensiva e as às vezes eu me irritava com ela porque ela era compreensiva demais. Não sei se eu queria que alguém... Acho que foi a única fase talvez que eu tenha sentido a falta do meu pai como alguém que tenha autoridade, aquela coisa bem caipira mesmo, machista, óbvio, hoje é machista. Aquela época era estranho. Mas, enfim, tinha essa crise toda, andei batendo muita boca com ela, virou um inferno um período. Tinha um primo meu que morava em Santo André, que era desses lá do Mato Grosso, e por alguma razão ele tava voltando para o Mato Grosso, passou por aqui, eu sei que deve ter rolado alguma conversa lá, quando eu vi, eu já tava com a passagem na mão e a determinação da minha mãe muito séria de que: “Pica a mula, quando você melhorar, você volta” (risos), ou então: “Arruma trabalho pra lá e fica lá”. Não é tão incomum as famílias fazerem isso. Ainda é bastante comum. Mas foi um choque bom. Eu fui, os primeiros meses era encantamento, aquela coisa, aquela vida, mas é isso, tem que trabalhar, tem que não sei o quê, aí começou a ficar ruim, porque lá era pior ainda pra emprego. Uns meses depois, eu já tava mais calmo, meu tio lá chegou à conclusão que eu já estava mais civilizado, veio pra São Paulo e me trouxe. Passou em Prudente na casa de um primo, ficamos um tempo lá, depois me trouxe. Já foi um bom castigo a viagem, que era de trem, acho que umas 20 horas. E a gente sentou. Entramos na estação, sentamos. Eu dei uma cochilada, quando eu acordei, tinha uma mulher do lado, meu tio tinha dado o lugar pra mulher, e o trem lotado. Fiquei com dó dele, dei o meu lugar pra ele. Fui dar uma volta, voltei, tinha outra pessoa no lugar, ele tinha dado o lugar. Por fim ele dormiu num canto lá e eu fui dormir num lugar que tinha grades, uma coisa de maleiro. Foi uma viagem muito ruim, cansativa, mas me deu norte na vida, voltei bem.
P/1 – Soró, você falou que quando entrou no ginásio, você descobriu a política. Foi mais ou menos isso?
R – Sim.
P/1 – Então conta pra gente.
R – Eu estudei na mesma escola então da primeira até a quarta, quinta série. Na quinta série passei a estudar à noite, deu com a essa época, já tinha conseguido trabalho. E também eu me sentia melhor à noite, porque à noite eram muitas idades diferentes, aquela coisa, então era menos pressão. E começou a ter essas matérias. E tinha um professor fabuloso chamado Fidel, que dava história, e o cara era um arraso. Ainda é até hoje, Fidelcino.
P/1 – Como é o nome dele?
R – Fidelcino. A gente o chamava de professor Fidel. Essa escola aqui, Cândido Portinari, ela sempre foi bastante diferenciada durante um grande período e tinha muitos professores, diretores, gente muito desenvolvida já em política, enfim, era uma escola muito bacana e tinha professores muito bacanas. Mas esse Fidel com a coisa da História, ah, eu chapei o coco. Compreender a história do mundo, a política. E ele era petista já, já tava... Enfim, não economizava. E eu fui me encantando. Anos depois, repensando assim, eu lembro que eu tinha um incômodo por dentro, que eu não conseguia muito compreender, e acho que ele, eu consigo entender algumas coisas, essa coisa de ser trabalhador, de preconceito e tal, fui compreendendo algumas coisas que a gente vivia e acho que começou a fazer sentido. Isso me fez começar a me apaixonar por essa área, essa coisa da política. E aí, óbvio, nessa fase, várias experimentações. Imagina, minha primeira greve que eu organizei era contra os aventais. Porque a gente tinha que usar um avental branco pra entrar na escola, e tinha um guardinha lá folgado, e o seu Jô, que era diretor também, era meio duro, mas, enfim, não levava avental, não entrava na escola. E a gente já tinha aquele discurso, porque todo mundo vinha do trampo correndo e às vezes você esquecia avental, não sei o quê, enfim. E eles sacaneando, barrando as pessoas, e puxei uma briga contra o avental. A gente começou a enfrentar mesmo. E aí eu já era topetudo de encarar o seu João, diretor, de bater boca, enfim, já tinha certo... Porque aí eu já tinha uma habilidade muito pra conversar, pra discutir, era respeitado por vários professores, porque também acho que uma coisa legal dessa coisa de eu ser diferente com relação à idade e o tempo, é que como eu gosto muito de aprender, então eu aprendia pra cacete, então não tinha o menor problema com os professores. Eles tinham respeito porque eu estudava de fato. Aí organizamos a coisa lá, um dia a gente bebendo uns vinhos saindo da escola, ia ter uma festa junina no outro dia, me aparece um amigo lá que era meio estranho, gostava de maltratar animal. Então ele tinha rasgado um gato, tirado a pele do gato, ficou só a carcaça pendurada. Ah, não deu outra, tivemos a feliz ideia de rasgar um avental e escrever no avental “abaixo os aventais”, “abaixo o João Pescoço”, que era o apelido que a gente deu para o diretor. Amarramos, penduramos o gato e amarramos de madrugada lá. No outro dia, quando abriu, chegando o povo pra festa, tava aquele troço lá, foi um auê, mas ganhamos, nunca mais usamos avental (risos). Mas passei a admirar o seu João.
P/1 – E teve adesão? Você conseguiu adesão de muitos alunos?
R – Pleno no noturno.
P/1 – Oi?
R – O noturno pleno. Eram seis ou sete classes plenas. Mas eu ainda não tinha essa noção de que iria fazer isso. Foi meio que espontâneo mesmo. Mas foi muito legal.
P/1 – Soró, eu sei que foi assim, foi meio espontâneo, mas você conseguiu adesão. Você lembra como você conseguiu essa adesão? O que você fazia? Como acontecia pra ter mesmo essa... Ainda novinho ter essa liderança?
R – Olha, hoje eu atribuo muito a um... Acho que tem essa coisa da minha mãe, da minha família, e o fato acho que de ser do interior, essas coisas. Então a questão da moral, da conduta correta, dessa coisa de a minha mãe contribuir com o senso de justiça, sem grandes... Não diferenciar as pessoas pelas coisas, mas sim por questões muito... E eu sempre fui muito exigente. Acho que isso me tornava confiável para as pessoas. E eu de fato me relacionava com os mais marginais do fundo, os da frente, não tinha problema com isso, então acho que isso. Mais a conduta. Hoje eu tenho certeza que o rigor que eu tenho com essa coisa dos valores, da ética, tal, é o que me faz ser confiável, inclusive pelos inimigos. Tenho vários inimigos, mas eles têm respeito por isso.
P/1 – E você já começou a se envolver com o movimento, né?
R – Sim.
P/1 – E aí?
R – Nessa época...
P/1 – Dentro da escola?
R – Sim.
P/1 – E fora da escola tinha alguma atividade?
R – Não.
P/1 – Não.
R – Era um sem-vergonha
P/1 – E o que você fazia pra se divertir na juventude, que já tava...
R – Então, desde pequeno lá do lado rolava muito baile de fim de semana, Sambô comia solto. Porque um dos filhos do seu Joaquim comprou uma vitrolinha, e ele gostava de música, de samba, de baile, dançava pra caramba, ele e as irmãs dele, e aí passou a dar baile lá no quintal. Então todo final de semana tinha baile. Sambô comia solto. E logo também comecei a sair com ele, aí ele me levava pra uns bailes. Tinha uns salões aqui em Caieiras que tinham baile de domingo à noite, que era um baile black bem puxado. E comecei a andar com ele pra tudo quanto é lado. Mas saía também com outros grupos, jogava bola, joguei vôlei, fiz muita coisa. Mas era uma vida comum, nesse sentido.
P/1 – Esses bailes black era um movimento, né?
R – Não, era um...
P/1 – Como era? Como você se lembra disso?
R – Era um comportamento natural da época, a negrada era chegada em fazer um samba no terreiro, então isso era comum. E aqui em Perus, inclusive, tinha alguns lugares que eram meio quilombos assim. Na própria rua onde eu moro tinha um lugar que ainda era meio que resto de um quilombo, não oficialmente, mas do estilo quilombo. Então era um quintal grande com várias casas espalhadas e moravam ali os parentes, família, era meio que uma aldeia. Então tinha vários desses lugares e nesses lugares sempre acontecia tudo quanto é tipo de festa da negrada. Eu não me lembro de vê-los fazendo algum discurso político, ou um discurso contrário, mas era uma atitude tranquilamente de preto mesmo, até porque nessa época a polícia era vermelha e preta e já era a polícia que sempre foi, talvez um pouco mais maldosa. Os caras desciam a lenha mesmo, viam um preto... Tanto é que uma vez eu me empolguei com essa história, tava dançando You Don’t Know, me encantei com a história do garfo, aí deixei crescer um black. Subi meu black, na primeira saída que eu dei, cheguei perto da praça, já tomei um enquadro. Foi pum, batata. E era assim, negrada... Muita negrada era muito boca dura e muito cara dura. Eles encaravam polícia, apanhavam, era muito acho que talvez isso, atitude de preto mesmo assim. E lá tudo ligado à umbanda, enfim, imagina.
P/1 – Você falou da umbanda, eu ia perguntar se você... Porque você não se identificou com os evangélicos, sua mãe não frequentava tanto a igreja, você se identificou? Praticou?
R – Não. Pratiquei não.
P/1 – Não.
R – Virei um captador de recurso (risos). Olha, os santos que me perdoem, mas, enfim. Foi muito interessante isso, porque era moleque ali, acho que tinha 13, 14, e aconteciam lá as sessões domingo à tarde, de sábado, tinha vários tipos de festas, né? E era o seguinte, tinha a dona Iracema, que ela era meio que a gestora lá, organizava os babados, e tem assim, cada santo tem um ritual, música, toque, uma hora pra descer, e aí tem as comidas deles, então é complexo um santo descer. E tem santo que é muito enjoado, então a Pomba Gira quando descia era o seguinte: ela tomava aquele champanha Cidra e fumava cigarro Minister com filtro. Só que a exigência dela era o seguinte, você não podia comprar o cigarro antes e deixar lá. A hora que ela descia, ela mandava e você tinha que descer correndo na padaria, comprar o cigarro, tudo tinha que ser... O champanhe. E a dona Iracema me viu, falou: “Olha, tá aqui o dinheiro, corre na padaria” – que era uns três quarteirões. Comecei a fazer isso. Com a Pomba Gira eu me dava bem, era certeza, toda vez que ela descia, eu ganhava uns trocados. Que aí ela me dava uns trocados. E tinha o Exu que só tomava pinga também comprado na hora, então eram bastante interessantes as sessões. Então eu ficava bem na porta. Assistia às vezes lá, mas nunca desenvolvi nenhum interesse assim. Não tinha tanto medo, mas não cheguei a desenvolver interesse: “Ah, quero...”. Eu já era bem descrente. Que era coisa que chamava atenção, não acreditava de fato naquilo, achava aquilo muito... Mas vivi aquilo lá, respeitava, não tinha essa noção de discutir isso. Mas não acreditava mesmo. Mas também não tinha medo. Mas tinha umas situações estranhas. Uma vez eu vi uma mulher que incorporou uma lá que acho que tinha alguma dívida, o cavalo tinha cometido algum... E eu sei que o pai de santo incorporado no outro pegou o chicote, mas desceu o chicote. Mano, que surra. Que surra. Fiquei espantado. E a mulher depois não tinha nenhuma marca no corpo, enfim, essas coisas meio estranhas. Então eu acredito que é muito delírio, não tenho essas crenças, tal, mas são coisas estranhas, fenômenos bem estranhos. Mas eu me relacionava com aquilo e me divertia muito, ia para as festas, festa do Preto Velho, feijoada, festa de Cosme e Damião. Enfim, uma vida de vários anos muito vivos, bem interessante ali.
P/1 – E em relação à política, você falou que na escola já tinha essa liderança. Fora da escola teve algum movimento?
R – Não. Vim até pouco tarde me envolver. Eu lembro que na escola a gente acompanhou várias discussões. Chegavam já algumas informações e chegavam informações principalmente de 85 pra frente, informações do sindicato, do Lula, enfim. Às vezes passava, eles nem mostravam a imagem do cara ao vivo, botavam uma foto, aquela coisa meio cabreira assim. Eu não prestava atenção na história, mas aquilo de alguma forma já mexia, deixava acesas aquelas coisas, infamado e tal. Então tinha isso.
P/1 – Soró, e de trabalho? Qual foi seu primeiro trabalho? Além... Não trabalho...
R – Além desses da roça assim. Emprego regular mesmo?
P/1 – Emprego, melhor assim.
R - Olha, assim que eu voltei do Mato Grosso, alguém, enfim, já era bastante grande essa rede de pessoas que se inter-relacionavam, me arrumou um emprego que era pra tirar um barranco, se chamava tirar barranco. Iam construir, alguém tinha que ir lá cortar barranco, arrastar terra, então isso tinha bastante. Aí me arrumaram um trampo desses, acho que foram uns três meses. De lá mesmo tinha um vizinho, um senhor português, tava construindo duas casas, eu trabalhei com ele acho que uns dois anos construindo a casa. Trabalhei mais um tempo ainda como servente de pedreiro. Depois tinha um tempo que tinha um povo aqui que ia pra rodovia fazer chapa, que eles chamavam. Pegavam os caminhões que vinham com carga, combinava, descarregava em São Paulo e você ganhava uma grana.
P/1 – E que idade você tinha? Você lembra, Soró, nesses trabalhos?
R – Não to associando muito com tempo. Não lembro. Ah, não, acho que tinha ainda antes dos 19 anos. Isso. Fiz isso, fiz um monte de coisa, limpei jardim, o que aparecia era tranquilo fazer. Arrumei um trabalho um pouco mais... Trabalhei numa fábrica de blocos aqui, eram trampos muito duros assim. Também conforme iam aparecendo as dificuldades, eu picava a mula, buscava outras coisas. Acho que todo mundo meio que funcionava assim, o desemprego já era muito forte. É que eu não tinha noção de desemprego. Então as pessoas pulavam, se viravam, enfim. Então esse era um ritmo quase que natural pra todo mundo, e eu fazia isso. Aí eu arrumei um trabalho no supermercado, trabalhei acho que um ano lá, aprendi um monte de coisa, cortar frios, pesar, essas coisas todas. E eu gostava, gostava de matemática, fazer cálculo, quanto você corta de mortadela e dá cem gramas, não sei o quê, então era divertido até. E aí arrumei um trabalho na prefeitura. Foi bem legal, com 19 anos. Acho que era contínuo, um cargo tipo serviços gerais. E era um contrato emergencial, uma coisa assim, que foi ficando, ficando. Depois até fiz um concurso e cheguei a me efetivar em outro cargo lá. Mas trabalhei uns seis, sete anos no Pronto Socorro aqui em Perus. Trabalhei em várias coisas: administração, no atendimento, no registro e entrada, chefiei almoxarifado, depois chefiei manutenção, enfim, fui me divertindo. Foi bem legal, porque nessa primeira... Eu fui ter um curso que era pra ser Introdutório, era um nome bem estranho, mas o básico era o seguinte: você era capacitado pra receber os profissionais e dar formação, como era a prefeitura, o que funcionava. Eu lembro que eu gostei muito desse curso, porque esse negócio de ensinar parece que foi a primeira vez que eu efetivamente comecei a trabalhar com isso. E eu fazia parte desse povo aí.
P/1 – Você era do Pronto Socorro aqui da região?
R – Aqui da região. Mas logo que eu entrei no Pronto Socorro também, aí aconteceu a grande mágica talvez. Eu fui a uma festa no centro comunitário chamado São Jorge, que tinha uma festa junina lá que era famosa, bem frequentada, uma festa muito... Uma vez por ano. Fui lá, tinha um monte de barracas dentro e um monte de jovens trabalhando. Um monte. Eram só jovens. E aquilo já me chamou atenção. E uma menina numa barraca chamou mais atenção ainda, chamava Valéria. E começamos a conversar, houve aquela identificação, depois certo interesse mesmo, era muito bacana, mas aí ela contando o que eles faziam. O que esse monte... E ela contando: “Não, a gente faz parte de grupos de jovens, tem vários grupos na igreja, a gente se reúne, discute a vida” – aquelas coisas, tal. Empolguei-me, fui a uma reunião já no outro sábado atrás da moça, de fato começamos a namorar, mas fui à reunião. O namoro durou um mês e eu fiquei 12 anos na comunidade (risos).
P/1 – (risos).
R – Andei por tudo quanto é coisa da igreja, da Teologia da Libertação. Que era uma Comunidade Eclesial de Base aqui em cima, e eles tinham vários tipos de grupos, lutas, enfim. Fui ficando por lá e aprendi basicamente quase tudo da vida, com essas pessoas.
P/1 – E o que você... Isso que eu ia perguntar, o que você aprendia lá? O que vocês faziam?
R – Tinha uns 20 grupos aqui em Perus, esse era um deles, devia ter umas 20 pessoas, 25 membros assim.
P/1 – Em cada grupo? No seu grupo?
R – Em cada grupo. Tinha grupo que tinha até mais, esse tinha um pouco menos porque já era um grupo bem chato, bem exigente. Eles gostavam de discutir política. Porque a comunidade já tinha essa característica. Interessante. Que é a que o pai e a mãe da Regina coordenam. E era um grupo mais...
P/1 – Era de uma igreja aqui?
R – Da igreja católica.
P/1 – Qual igreja? O nome da igreja?
R – A paróquia se chama Santa Rosa de Lima. E nesse período da Teologia da Libertação, esse negócio de CEBs, ou Comunidades Eclesiais de Base, dos leigos se juntarem tanto pra poder rezar, fazer celebrações diferentes que o rito exigia, mas também era a ideia do cristão engajado, encarnado, que eles chamavam, que era a ideia do cristão que era coerente com o que pregavam, por isso as lutas. E era esse exercício sempre. A gente se encontrava todo sábado nas reuniões, fazíamos várias atividades juntos, saíamos pra passear, participávamos já de reuniões, tal. E a gente discutia, era basicamente um ritual... Ah, tinha um casal adulto que era coordenador, um casal de jovem mais adulto, a Vilma e o Toni que eram coordenadores, mas o grupo que definia. Eles eram orientadores, apoiadores. E você discutia pra... Rezava, cantava, aí: “Vamos discutir a realidade. Vamos agora ler a Bíblia pelos quatro lados: econômico, político, não sei o quê. Vamos falar da vida” – aí se discutia as questões da juventude, dificuldades, as questões próprias mesmo: namoro, a criatividade. Era bem interessante. Era esse rito todo sábado os encontros e as formas. Era uma convivência muito intensa. E foi legal, porque metade desse grupo era grande parte... Aliás, quase todo mundo tinha estudado no Cândido Portinari, ou estudava, e a metade era aquela turma do primeiro ano: Claudinha, Gislene, pessoas maravilhosas.
P/1 – E tinha alguma ação, além de todo encontro, toda reunião de sábado? Vocês faziam alguma organiza...
R – Olha, tinha muita gincana, muita programação, romaria, não sei o quê. Era bem intensa a agenda da igreja.
P/1 – E na comunidade?
R – Na comunidade. Lá, a própria comunidade fazia diversas ações, tanto pra ela se sustentar e construir, quanto pra fazer discussões. Eu lembro que tinha o grupo de loteamento, o grupo da favela. Surgiu uma favela aqui do lado, a gente passou lá anos apoiando. Então eram vários tipos de ações. Tinha o que tenho o maior respeito e acho que é um grupo feminista por excelência, que eram os clubes de mães. As mulheres se reuniam nas quintas-feiras, faziam várias coisas, enfim, mas elas discutiam a questão da mulher, e eram incríveis, mulherada porreta. E elas coordenavam um serviço que era CJ, pra trabalhar com amparo às crianças. Elas basicamente sempre dominaram a comunidade, a maioria era mulher. Então tinha esses grupos, essas atividades. Estava se estruturando mais Pastoral da Juventude, outras pastorais, Pastoral Carcerária, pastoral não sei o quê, tinha pastoral pra tudo quanto é coisa. Mas o pessoal não saía muito daqui. Eu lembro que quando eu descobri a Pastoral da Juventude, que eles chamavam de setor, que juntava aqui Jaraguá, Perus, aí eu me encantei, na época todos lá eram vermelhos até o cabelo, um grupo bom, inclusive um grupo aqui de Perus. Aí os outros jovens do meu grupo já não eram mais... Não foram... Quase todos eles hoje são pessoas comuns, ninguém chegou a muito longe. Vários participaram de muitas coisas, mas eu encantado por política, organização, enfrentamento, fui entrando. Cheguei acho que até a Pastoral Nacional, essas coisas.
P/1 – Então, conta como foi. Como você foi chegando, ampliando?
R – Então, tinha aqui pra dentro... Teve uma cena engraçada antes de eu entrar no grupo, que acho que já era 82, que essa coisa da política, uma vizinha fez uma reunião na casa dela pra apoiar um... (interrupção devido ao cachorro). Então você tinha me perguntado...
P/1 – Como foi sua trajetória mesmo desde a Pastoral da Juventude, como você...
R – Então, nessa coisa que foi mais pela porta da igreja, dessa igreja que tinha essa proposta libertária, enfim, eu me encantei bastante. Encantava-me bastante, na verdade, ser contra a toda ordem. As comunidades, elas eram uma afirmação meio que: não precisamos do padre. Porque a igreja tem essa autoridade hierárquica, aquela coisa toda, então era uma ação assim. Então tudo que era coisa a gente questionava ou contestava: “Ah, só o padre toma o vinho e só ele come aquela hóstia grande”. E lá a gente fazia: “Não, vamos fazer pão, todo mundo come o pão”. E rodava uma garrafa de vinho, todo mundo bebia o vinho. Então qualquer coisa que era pra afrontar o que era arcaico, enfim, autoridade, tal, a gente fazia. E era muito esse discurso, essa vivência de os leigos serem protagonistas da sua história, era um ambiente muito assim. E como eu já não tinha muita relação com igreja, nunca tive muito essas coisas, não tinha feito primeira comunhão, enfim. Acho que batizado eu fui, mas comunhão, não. Então nunca me interessei muito pela paróquia, pela igreja, pelas coisas eclesiásticas aí. Então eu vivia muito nas comunidades e no fundo da igreja. Porque no fundo da igreja, você entra, tem a sala das pastorais, os encontros, não sei o quê, então eu frequentava muito lá, e a igreja mesmo, não. O padre sempre reclamava: “Pô, você só entra na igreja pelos fundos e tal”. Uma vez eu tive que ir a uma missa, aí tinha que comer a hóstia. E eu sabia que eu não podia comer, porque eu não tinha feito a primeira comunhão, então você não pode tomar as... Aí resolvi, que já fazia uns cinco, seis anos que eu tava frequentando, era ativo, falei: “Ah, já tô mais que batizado como cristão, vou comer a hóstia, pronto”. O padre deu, depois conversou, falou: “Não, sinta-se...”. Eu falei: “Tá bom”. Mas era muito esse ambiente. Tinha essas perspectivas e as conexões pra fora, porque o período das Diretas, essa coisa tava muito forte no Brasil, e aqui dentro de Perus era muito particular, tanto as próprias comunidades, as coisas que elas faziam, quanto as próprias histórias que já tinham aqui.
P/1 – Particular como? Conta um pouco.
R – É muito de Perus. É um pessoal muito amarrado em lutar em coisa pra Perus. Então sustentação das ocupações, enfim, defesa de favela, Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Eles tinham muita articulação aqui dentro de Perus e lutando por Perus, por coisas de Perus. Era muito forte isso. E outra coisa que me chamava atenção é que eu morava aqui, e dali da onde eu morava você enxergava a fábrica o tempo todo, dentro da fábrica, e essa rua que tem aqui em cima da estação, esse platô, então todas as manifestações da fábrica, ou grande parte dela, já no final do período dela assim, eu assistia de casa. Então era muito curioso você ver gente deitava na coisa e os tanques querendo passar. Então aquilo dava um... E era interessante que o pessoal vinha todo de branco, e eram mulheres, filhos, não sei o quê, e o que eles adoravam era deitar na frente desse portão. Chegavam ali, já deitavam lá, os tanques não podiam passar, ou a polícia, enfim. Então tinha muito, acontecia muito. Às vezes isso... E quando eu me conectei com a comunidade, quase todo mundo que era ligado aos Queixadas, essa história toda, sempre foram de dentro da igreja. E comecei a me inteirar e entender o que era isso, tal, inclusive a desgraceira do pó, que era muito violenta, era muito pó de cimento que caía no bairro inteiro. Não é, Benê? Benê que sabe disso.
P/1 – A fábrica funcionava?
R – Ainda funcionava. Ela fechou em 83, 84.
P/1 – E os Queixadas, fala o que é esse movimento.
R – Os Queixadas é uma história bem longa. Em sumo, na fábrica...
P/1 – É. Sintetizando.
R – Tá bom. A fábrica, que funcionava desde 26, nos anos 50, com a chegada do Abdalla, os enfrentamentos se acirraram, se acirraram e foi o resto da vida os trabalhadores enfrentando as mazelas do Abdalla e das questões trabalhistas. Final da década de 50 já eram enfrentamentos brabos, porque o cara era cão chupando manga, eram enfrentamentos muito de dignidade mesmo, porque era afetado isso. Então o povo que trabalhava na fábrica frequentava, por exemplo, um bar que tem aqui perto da esquina, se juntavam muito ali, ou na praça, as assembleias eram na praça, tal, e aí, não sei por que cargas d’água, resolveram fazer um motim, alguma coisa meio sem ter o sindicato, aquelas coisas. Resolveram fazer o motim, o negócio pegou, aderiu, e eles já faziam um movimento meio com barulho, enfim, do jeito que eles eram assim, mulher, filho. Alguém deles falava assim: “Ah, vocês se parecem...” E começaram a enfrentar brigas e a ganharem, porque eles tinham uma tenacidade, uma vontade de ir para o pau, que era impressionante. Era chamado os “Pé de Cana”, que eram os que frequentavam o bar, tomavam cachaça, que foram criando a revolta. Um deles falou assim: “Ah, vocês se parecem queixadas”. Que é um porco do mato, que eu conheço muito bem desde a minha infância. No Mato Grosso, no mato, nessas coisas, você cresce, tem vários medos que são colocados e tem medos muito concretos, um deles se chama queixada. Toda recomendação... O bicho que mais mete medo é o queixada. E toda recomendação, porque ele é incontrolável, ou eles se controlam, autocontrolam, então toda recomendação é assim: se você tiver andando e vir uma manada de queixada, fique um quilômetro deles, não se mexa, fique longe. Porque se os bichos resolverem te atacar, um abraço pra você, porque os bichos não param enquanto eles não... E eles atacam em bando. Então tinha isso. Então eu cresci morrendo de medo, já vi várias vezes queixada, via de longe, aquela coisa, você já parava e esperava a boa vontade deles em comer, andar e sair. E fui conhecer essa história depois. Então como eles se tornaram queixadas? Foi por conta dessa história, dessa associação com os porcos que se juntam em bando, eles atacam e não param enquanto não... Tem essa resistência, essa firmeza. Passaram a se chamar Queixadas. Depois chegou o Mário Carvalho de Jesus, que veio ser advogado do sindicato, e o Mário vinha das pastorais e de um movimento humanista, foi pra França, passou um ano em fábricas ocupadas, que era um movimento do pessoal ligado a Gandhi, a não violência, ao Martin Luther King, esse período aí do final dos anos 50. E o Mário trazia pra cá uma proposta de estratégia de resistência, que era a tal da não violência ou da firmeza permanente. Eles acharam a não violência fresco demais, pra quem carregava cimento e comia pó de cimento, e carregava pedra, aí resolveram de chamar de firmeza permanente, porque era a mesma lógica. Porque o não violento não é você não ser violento, bravo, é você não cair na armadilha da arma do outro. Então a violência é dele e ele domina. Eu não domino, então eu não vou pela... Mas é da firmeza permanente. É isso que ganha qualquer parada, você ser firme o tempo todo e não desistir, é isso que faz o outro... Que é basicamente a história do Gandhi, daquela insistência e afirmação até conseguir a independência, tomando pau, mas assim, os caras não desistiram. E conseguiram derrubar o inimigo, porque ele mesmo vai se... Então essa era a lógica. Eles adoraram isso, até porque era bastante... E eles eram mais cristãos, então eles não se entendiam muito com o PCzão, com o sindicalismo. Acabou criando aqui em Perus um baita de um núcleo da não violência ligado ao Sindicato do Cimento. E como o Abdalla oferecia toda a parte da formação de estimular que os caras tinham que toda estar brigando e indo para o pau, então eles usaram muito dessa estratégia. Então eles iniciaram a greve em 62, que durou três, ou quatro meses. Depois eles foram todos demitidos, aí entraram na justiça, e enquanto o processo durou até 69, eles permaneceram em greve, eles não voltaram. E aí permaneceram em movimento, fizeram greve de fome, passaram todos esses anos lutando até 69, quando eles ganharam na justiça o direito à reintegração. E todos os dias parados. Sete anos de dias parados, por isso a gente considera uma greve de sete anos. Esses são os Queixadas, e por conta da fábrica, relacionado à fábrica.
P/1 – Eu perguntei do movimento porque pelo que eu entendi da história de vocês tem uma relação, futuramente vai ter uma relação.
R – Profunda. Profunda. (breve intervalo)
P/1 – Soró, pode ir contado conforme for vindo as lembranças, como você desse movimento todo conheceu a Quilombaque, ou as pessoas da Quilombaque?
R – A Quilombaque...
P/1 – Mas conta a história.
R – Tá bom. É, porque é uma história bastante longa no meio entre essas duas coisas.
P/1 – Isso. Isso.
R – Assim tava um pouco Perus. Então era isso, é um movimento fábrica, os trabalhadores, e porque foi durante muitos anos num bairro onde a fábrica chegou a ter em torno de mil e cem trabalhadores. E o bairro de Perus sempre foi pequeno. Então basicamente todo mundo vivia em função da fábrica, ou a fábrica em função do bairro, e todo mundo tinha um parente ou tinha alguém trabalhando na fábrica. E também esse jeito e a igreja, tal, de modo que todos os conflitos e todo o período da década de 50 pra cá da história da fábrica sempre foi muito entremeada. Então as coisas saiam da fábrica, eram no bairro os conflitos, as brigas, que até hoje já existe uma divisória bastante clara e ainda gera muita treta entre os Pelegos e os Queixadas. Aqui em Perus tem um grupo que se organiza, a gente se organizou do lado de cá retomando a luta pela fábrica e eles criaram um grupo do lado de lá chamado Amigos de Perus. Lá se encontram basicamente as mesmas pessoas que têm esse pensamento que poderia se dizer assim mais pra direita. E do lado de cá, sempre os Queixadas. Então essa divisória ainda existe até hoje. Dos muitos conflitos graves de rua, de vida, de comerciante não vender comida, eles passaram fome, foi muito complicada essa greve deles.
P/1 – De sete anos?
R – De sete anos. Então as tretas iam para o bairro também. E o Abdalla tinha uma influência, porque ele tinha uma associação comercial, alguma coisa, então ele meio que também mandava no bairro e muita gente obedecia. Então: “Ah, grevistas não têm crédito”. Naquele tempo funcionava muito essa coisa da caderneta, você ia comprando, anotava na caderneta, pagava no final do mês, então uma espécie de crédito. Aí se cortava o crédito, então as tretas com os comerciantes, e o povo também entrava. As mulheres dos Queixadas nas feiras, nos lugares, sofriam acusações de abandono dos filhos, se ofereciam pra criar os filhos. Olha, foi muito dolorida essa história. Não é tão bonita, do ponto de vista humano, porque teve situações de médico porque era ligado à fábrica se recusar atender moradores. Porque era comum, só a fábrica tinha médicos. São Paulo, você só ia achar médico depois da Lapa. E era aquele médico. Só que o médico resolveu não atender quem eram os Queixadas, do lado dos Queixadas. E acho que teve morte, enfim, teve situações muito doloridas mesmo, que extrapolavam à fábrica. Por outro lado, é uma experiência muito amarrada, então Perus até hoje é muito amarrado. E todas as outras lutas que vieram depois, as lutas sociais, sempre tiveram essa característica muito amarrada. Por exemplo, o Benê, o Benê era um pouco mais pra direita, isso que a gente não concorda o caminho de chegar às coisas, mas é aquilo, na hora que fecha em algumas coisas, fecha, não tem essas distinções, não. Então é muito fácil a gente conseguir se juntar em termos de entendimento nesse sentido. Não com os do lado de lá. Tem alguns do lado de lá que até tenho orgulho, tem o avô de uma menina que a gente conhece que faz teatro aqui, que mora aqui perto, e eu sempre desço por aqui. Um dia eu tô descendo, ele tá lá olhando pra um lugar assim, ele me encontrou, eu o cumprimentei, ele falou assim: “Você sabe que prédio era aquele?”. Eu falei: “Sei. É a escola”. Foi a primeira escola que teve aqui, tal. Ele falou: “Poxa, olha só como tá acabada”. Aí começou a falar nessas coisas, Perus e tal. Aí ele falou: “Você sabe que eu sou Pelego, né?”. E ele tem orgulho de ser Pelego, e vamos para o embate mesmo, então tem essas coisas. Mas é isso, sempre foi meio que um ovo, e essa experiência, eu acho que Perus ficou muito isolado durante muitos anos, então criou uma característica... Todo mundo até chama de cidade, outros aqui queriam que se transformasse numa cidade, mas sempre teve essa coisa meio... E com os movimentos, as pessoas, as famílias. Perus tem muitas famílias, tem essas coisas de nomes, e de linhagem, tem famílias imensas, meus Bortoto aqui, acho que metade de Perus é Bortoto. Então essas coisas são muito fortes.
P/1 – Soró, e você viveu desde quando você veio pra cá sempre aqui, ou você saiu, voltou?
R – Não, saí.
P/1 – Que época?
R – Saí acho que em 92. A gente viveu todas essas coisas. No bairro, fizemos todo quanto é tipo de luta, a gente criou até Centro Cultural aqui.
P/1 – Então fala um pouco disso, do que você participou.
R – Tá bom. Então, nessa vida minha política no bairro, acho que essa relação com os Queixadas e com a história, que eu já me apaixonei logo, e várias lideranças deles: João Breno, Tião, sempre foram da igreja e eram de comunidades. Então a gente conviva e eu adorava conviver com eles, aprender muito com eles.
P/1 – Você se lembra de uma situação que você... Pra ilustrar mesmo como era essa ação de vocês assim, desses movimentos. Que tinha muita relação com a igreja, com esse grupo que continua forte, teve alguma situação assim que você possa contar pra gente? Que você falou: “Criamos o Centro Cultural”.
R – Sim. Porque, então, a gente tinha até uma vidinha razoável. Tinha um cinema aqui, além desse cinema antigo. Tinha um cinema aqui, talvez era a única coisa cultural e de domingo, eu lembro que cheguei a frequentar várias vezes, a gente ia, e fecharam o cinema. Fechou. Eu lembro que nessa época, não lembro agora exatamente o ano, mas a gente ficou revoltado e começamos essa discussão de não ter cultura, não sei o quê, ganhou um boom assim, e de repente se juntou lá. Tudo basicamente em Perus se chama reuniões de assembleias. Dali nasce um movimento. Foi curioso, porque juntou... Acho que era a coisa mais estranha do mundo que eu já vi pra discutir um Centro Cultural. Acabou virando um Centro Cultural, mas tinha jogador de voleibol, time de vôlei, outro de não sei o quê, enfim, tinha um que era florista, era todo tipo de gente que tava lá e aí criamos um Centro Cultural com essa multidiversidade, gays, tinha de tudo. E acabou virando a ideia de um Centro Cultural e dessa ideia de a gente mesmo prover arte, cultura, tal. Então a gente fez muita exibição de cinema, exposição de orquídea na biblioteca, era basicamente quase tudo na biblioteca. Então criamos esse Centro Cultural, ele funcionou intensamente durante uns quatro, cinco anos, tinha um jornalzinho, era bem ativo. Eu tinha essa vida assim... Eu fui até porque eu jogava vôlei, aí o povo: “Ah, tem uma reunião que tem que ir todo mundo”. E era o time de vôlei. E lá eu descobri a Regina, a mulher do Mário Bortô, que me deu um texto que era do Gil, falando sobre cultura, como cultura transformava, tal, e eu chapei o coco de novo. E acabei no centro assumindo essa coisa da luta pela cultura. Desde então eu tenho uma clareza e um investimento nessa coisa da área cultural. Também outras coisas assim interessantes aqui, quando a Luiza se tornou prefeita, eu era petista, a gente dirigia o partido, enfim, aí eu participei de várias... Tudo que eu acabei entrando na vida, eu fui até onde... Enfim, militante partidário, nada acho que era muito suficiente, não era aquela coisa de ter cargo, mas é a experiência, o aprendizado, não ter medo de assumir responsabilidades, sempre tive essa coisa meio mandona e meio de assumir as cosias, então você acaba conquistando. E aí fui até dirigente municipal do PT, participei de ordenação de muitas campanhas, até porque todo petista tinha que participar mesmo, vender estrelinha, tal. A gente fez isso. E sempre meio com essa coisa meio basista e muito Perus. Era engraçado que o PT tinha várias tendências, vários grupos, tal, não sei o quê. E o engraçado que aqui em Perus, elas todas estavam representadas, tinha núcleos da Convergência Socialista, tinha não sei o quê, mas esse fenômeno de se fechar em torno de Perus. Inclusive, no próprio partido, em documentos que às vezes tinha diretrizes mais locais: “Ah, não, afetou Perus” – aí se fechavam todos. Então sempre foi muito interessante esse jeito. E eu sempre fui apaixonado por esse jeito aqui, vivi intensamente aqui tudo quanto é coisa, de festas, beber, namorar, a minha sempre foi quase tudo. Eu não sou esse quadrado que só faz política. Então eu vivo... E pra mim, assim, da pessoa mais comum, singela, ao mais... É isso, é o que a pessoa tem. Então eu sempre fui muito aberto pra isso, porque talvez lá nessa coisa da escola eu me relacionar tranquilamente com as pessoas. E aí fizemos muitas coisas aqui. Mas uma delas importante foi que quando a Luiza ganhou, e a Luiza... Pode registrar essas histórias, né? A gente era muito basista de núcleo, defendia ideia do partido de massa, aquela coisa, e tava num momento muito intenso, e aí o PT começou a... A direção do partido, ou uma parte da direção, começou essa ideia de: “A gente precisa ter um programa, estratégia”. E começou uma discussão lá que ia ser: “Ah, precisamos ter um candidato que seja mais palatável pra classe média”. E eles chegaram à conclusão que o Plínio de Arruda Sampaio então, que era da igreja, da universidade, era um cara... E não era um cara radical, muito pelo contrário, ele era o cara ideal pra ser candidato a prefeito em 88. Obviamente que todas as bases e nós achávamos que quem devia ser era a Luiza Erundina, porque a Luiza Erundina era a porreta que segurava todas as lutas, vinha enfrentar coisa de favela, tal. A Luiza Erundina já tinha essa coisa. E o partido recusou, enfim, alguma coisa. Aí houve uma rebelião, a gente participou dela, liderou, e conseguimos na convenção derrotar o Plínio e enfiar a Luiza goela abaixo da direção do partido. A direção do partido olhou pra todo mundo e falou: “Então já que vocês querem assim, fodam-se, se virem”. E insuflou mais ainda, tanto é que a Luiza foi eleita na base da vontade pessoal, militante, de cada um. Eu lembro que aqui em Perus, a gente nunca conseguiu fazer isso na vida, e depois disso, nunca mais. A gente fazia casa em casa, fizemos acho que duas vezes durante a campanha. Casa em casa, estação, no boca a boca. Então a Luiza Erundina foi eleita em São Paulo por conta dessa insurgência de base. E obviamente que aí quando ganhou o governo, a direção ainda falou: “Queremos fazer desse jeito”. Ela falou: “Não, eu não vou fazer desse jeito, vou fazer do que jeito que a gente...”. E foi uma ideia de falar: “Bom, vamos ter que defender e carregar o governo nas costas e na unha”. Então eu lembro que a gente discutiu aqui, assim, quem ia ficar no movimento popular, quem ia para o governo. Decidimos todos os cargos de todo mundo, da regional, enfim, em todos os lugares na periferia de São Paulo aconteceu assim. E nos conselhos... E a gente sustentava o governo discutindo com a população, enfim, foram muito intensos os três primeiros anos da Luiza, porque foi carregado e sustentado. Depois de um ano e meio, ela não deu conta, não aguentou, teve que abrir pra direção e a direção remontou o governo do jeito que ela queria. Mas esse primeiro período com Paulo Freire como secretário de educação, a Marilena Chauí como secretária de cultura, era tudo nosso, o que a gente queria. Depois remodelou e ela perdeu o comando do governo. Mas aí surgiram coisas muito importantes. Uma delas, que foi a Marilena que trazia, que era a ideia do resgate da memória das lutas sociais. Ia adotar lá a técnica da memória oral com a Paola e tal. E começaram um processo com um movimento que era muito forte, que era o movimento de saúde da zona leste. Nessa época de movimento social, essas coisas, a gente tinha esses olhares, admiração e o respeito. Zona leste sempre foi... E começou um processo de resgate da memória, eram muitas mulheres dos movimentos, dos núcleos. A gente tinha movimento de saúde aqui, até participei um tempo, mas não era tão forte quanto zona leste. E a gente se encantou com isso. E a Marilena desde o começo já falava dos queixadas, que ela conhecia o pessoal, o Mário Carvalho, tal, e aí entraram nessa de fazer o resgate da memória da fábrica, dos trabalhadores queixadas. E óbvio que aí já os conhecia, enfim, tive uma convivência e aprendizado fenomenal, muitos anos com o João Breno. Minha escola de formação humana, política, foi impressionante. Mário Carvalho, então tinha essa... E me empolguei, participei durante um ano do processo de resgate da memória oral que era basicamente isso, ia trazendo os trabalhadores, conta história, puxa o fio, vem. Então toda terça-feira o povo sentava lá e tome conversa, e o povo gravou, escreveu livros, tal. Tanto é que acho que dois meses depois já começava a ressurgir a história do Centro de Memória e de Cultura, que era uma ideia que eles tinham lançado já em 50. Que eles tinham um movimento de tornar a fábrica autogestionária. Quando o Mário Carvalho chegou das fábricas ocupadas na França, já incendiou essa história de eles se apropriarem da fábrica e tal. E já tinha todas essas ideias: construir condomínio, escola, faculdade, não sei o quê. Os queixadas e a Frente Nacional do Trabalho compraram, inclusive, um grande terreno aqui perto da Brasilândia, que era a ideia de construir um condomínio e uma faculdade da não violência, tal. Não virou. Hoje tem um Centro Cultural lá, mas, enfim. Eles tinham ideias muito grandiosas. Então na memória começou a vir à tona tudo isso, imagina, aqueles velhinhos se incendiando, porque contar essas histórias tão intensas da vida deles era uma coisa... E já foi acendendo a luta. Aí já: “Ah, vamos fazer o tombamento”. Começou o processo de fazer o processo todo pra tombamento, e aí foi legal porque acho que deu um dos primeiros tombamentos que foi material e imaterial. Então se tombou o patrimônio em Perus, mas se tombou a luta, e todas as coisas que são significativas: o sindicato... Enfim, nasceu dentro desse processo. Então em um ano, quando terminou o registro da memória, já tava o tombamento encaminhado, tanto é que no final do governo da Luiza, ela veio fazer a festa de entrega do tombamento. Aí tinha um problema, nós petistas temos um imaginário às vezes maior do que a realidade permite, todos nós achávamos: “Ah, é o Maluf que vai vir, não sei o quê”. Não deu outra, a gente ganhou de lavada. Não sei se era o Suplicy que ia ser o candidato, tal, com isso tava tranquilo. Mas, enfim, a gente acreditava muito que ia ganhar, era certeza. Fizemos um governo popular, não sei o quê, certeza. E algumas coisas foram ficando devagar e não andaram, porque tinha o tombamento e tinha a desapropriação. Bom, enfim, o resultado: tomamos maior cacete do Maluf, um cacete bem dado mesmo, e tudo caiu por terra, depois nunca mais conseguimos condição pra desapropriar a fábrica. E aí a luta permaneceu durante esses anos todos, que tem momentos que é mais forte e tem momentos... Então nos últimos anos a gente recuperou, ela teve um período intenso, tal.
P/1 – Continua essa...
R – Mas é uma luta contínua.
P/1 – Continua pra desapropriar...
R – Sim. E transformar num Centro de Cultura. Hoje incluímos nos projetos universidade, enfim, outra lógica, mas continua a luta intensa, depois vai se encontrar com a Quilombaque, que é importante, mas, enfim, voltando lá ainda. Então tem esse lado de registro importante, e de outro lado, eu fui meio que desencantando com a política partidária, tal, porque uma moça uma vez escreveu... Eu tenho essa formação mais humana, cristã, tal, e uma moça uma vez escreveu assim: “Quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha?”. Que discutia a questão da afetividade, da grosseria e do machismo que tinha na esquerda. E era uma coisa impressionante, porque a gente tinha ideia de que a gente era já revolucionado, que a gente já era mudado, a gente não era racista, não preconceituoso, não era nada, era muito impressionante, coisa de doido, mas, enfim. E esse texto da moça, que era mais ligado ao movimento popular, tal, fez tuim na minha cabeça. Sempre contando com essas divergências, não sei o quê, fui me afastando um pouco, me desencantando, tanto é que eu saí do PT em 93. Vim aqui no núcleo, fiz minha despedida, o meu rompimento, e já era por uma questão da ética. O importante que isso foi me levando pra outras reflexões. Eu trabalhava em alguns organismos, trabalhei para o Conselho Mundial de Igrejas. Que a gente tinha um trabalho aqui que era de assessoria para os movimentos sociais na área de comunicação e planejamento. Então me encantei desde esse tempo do planejamento e comunicação. A gente assessorava os grupos e também fazia serviço, a gente tinha um mimeógrafo eletrônico, que era o máximo, desenhava o negocinho, botava lá, imprimia, saía o jornalzinho. Fizemos muito isso. Então a gente fazia isso pra região inteira ligada ainda um pouco à igreja. Eu acho que a minha veia pra captador de recurso, pra essa área já... Eu lembro que teve uma época que lançaram assim: “Ah, precisamos de uma Bíblia que seja mais própria da pastoral, da linguagem pastoral”, tal. Todo movimento na igreja se criou uma Bíblia, que é uma Bíblia azul chamada Bíblia Pastoral, que toda linguagem, interpretação dela, já vem com os quatro lados: econômico, político, tal. E como era uma conquista, a gente precisava bombar. E aqui na região e na igreja tem assim: todo setembro é o mês da Bíblia. E é uma coisa que acontece. E aqui a gente falou: “Não, tudo tem que virar manifestação”. Então criamos uma campanha que os grupos, cada comunidade, o grupo passava refletindo durante um mês, depois se encontrava numa grande romaria, que às vezes você encontrava gente vinda do... Fizemos lá na COHAB [Companhia Metropolitana de Habitação] que vinha gente da Brasilândia não sei o quê, várias caminhadas. Iam se encontrar, aquela coisa maravilhosa. E pra celebrar isso, fomos buscar a Paulinas, a Editora Paulinas, um contrato que era para baratear a Bíblia. Porque tinha uns caras que falavam assim: “Bíblia de católica tem cheiro de poeira... Bíblia de crente tem cheiro de sovaco e Bíblia de católico tem cheiro de poeira”. Porque eles batiam nessa coisa que tinha que ler a Bíblia. A gente era muito pastoralista e lia pouco a Bíblia. Aí fizemos essa campanha, coordenei essa campanha, vendemos Bíblia pra caramba, barateada, enfim, inventamos lá essas coisas. E fizemos vários encontros em setembro maravilhosos. Então eu trabalhava muito com isso e aí comecei a sair para o mundo por conta do Conselho Mundial de Igrejas, encontrar com coisas ecumênicas...
P/1 – Conselho Mundial?
R – Conselho Mundial de Igrejas. Eles tinham um programa que chamava Missão Rural e Urbana, e o que eles faziam? Nessa época era ainda bastante forte a coisa dos financiamentos vindos da Europa para as lutas sociais. Eu mesmo trabalhei acho que uns cinco anos num projeto de educação popular, e na verdade era só... Eles me pagavam e pagavam pra eu fazer articulação política. Então nesse tempo era muito importante essa coisa de você ter agentes liberados que viviam intensamente produzindo e fazendo organização e formação. Então pra gente era uma honra.
P/1 – Mas quem financiava? A igreja?
R – Tinha uns fundos europeus, tinha várias organizações...
P/1 – Mas era uma ação da igreja?
R – Passava quase tudo por dentro da igreja e chegava às pastorais, aos grupos sociais, tal. Era bastante grana que chegou durante um bom tempo. Depois quando a União Soviética caiu, eles passaram a reinvestir tudo lá naquela faixa entre eles e a União Soviética, que gerou aquele monte de país pobre. Pra evitar que eles invadissem a Europa, todos os recursos humanitários etc. foram pra lá e aqui secou. Caíram muito os grupos, organizações. Nessa época já tinha umas organizações interessantes, CPV [Cruz Vermelha Portuguesa]... Eram grupos muito fortes, Sedes Sapientiae, ligada àquela universidade lá. Enfim, isso me permitiu, o fato de eu estar nessa conexão me permitiu então começar a viajar pela América Latina, porque os grupos de trabalho se encontravam, os movimentos financiados. E dentro desse arco do pessoal ecumênico tinha de tudo. E tinha um trabalho que era muito impressionante, que chamava Prostituição e Direitos Civis, que era a Gabriela Leite, que é a partir do Rio, que o Instituto de Estudo da Religião tocava, e começou a dar um bum, começaram a organizar uma Associação de Prostitutas no Mangue, o negócio pegou, porque eles pegaram dinheiro pra fazer política de explicação, o que era AIDS, aí elas iam pra rua à noite distribuir camisinha.
P/1 – E você participou diretamente desse momento?
R – Sim, porque aí era um colegiado de vários movimentos, da Colômbia, do Peru, e aqui no Brasil em vários lugares. E esse dos direitos civis, aí se espalhou pelo Brasil essa coisa de criação de associação de prostitutas. E tava muito a coisa da AIDS, então essas conexões foram muito interessantes. E eram vários tipos de trabalhos, os mais amalucados possíveis, favelas, tal. Essa discussão... Enfim, fui para o Rio para um encontro que era pra discutir a comunicação nos grupos do submundo e como acontecia a questão das comunicações. E o seminário foi lá em Petrópolis, foi organizado assim: cada um desses grupos, skatistas, torcida de futebol organizada, rapper, gays, todo mundo lá, foram três, quatro dias assim, relatos e falas. E escutar e um monte de gente, pastor, padre, agente pastoral, enfim, era uma festa. Quem abre o seminário? A Conceição, que era naquele momento a presidente da Associação das Prostitutas do Mangue. E ela começou a contar e aí não tem muito jeito, ela vai contar o que é o que ela tava fazendo e vai contando o que é a prostituição, o que é a vida dela, enfim… Teve uma hora que eu notei que era um burburinho, uma coisa que se mexia, as pessoas ficavam meio que se mexendo na cadeira e tal, não sei o quê, isso me chamou a atenção, mas não sabia o que era. De repente eu me vi também me mexendo e aí tinha a ver com as coisas que ela ia falando. Nesse dia foi muito legal, essa autoconstatação que fala assim: “Pô, eu não sou revolucionário coisa nenhuma, não sou não preconceituoso, não sou não machista”. Porque aquilo embrulhava o estômago. E daí até o fim foi só... E o povo via no seu linguajar, no seu mundo... E a ideia era bem essa mesmo. Foi muito maravilhoso esse momento. E aí eu descobri que tinha que... A gente tinha que estar em constante processo de transformação. Fez sentido pra mim uma coisa, um princípio que os Queixadas têm muito forte, que é: “Você não luta por um mundo que vai chegar depois. Pra você chegar a esse mundo, você começa a transformação aqui e é pelas pessoas”. Então você está em transformação. Então você não luta por um... Ele chamava de “o homem novo”. Você não luta pelo homem novo, você se transforma num homem novo e esse homem novo constitui um mundo novo. E então essa coisa de a gente aprender, em ser crítico, enfim, me fez toda diferença no mundo. Ainda bem que eu não caí nessa esparrela de achar que eu sou sagrado, revolucionado e tal. Eu sou um ser bastante contraditório. Mas isso permite o exercício de você se rever. Toda vez que eu me encontro com alguma coisa, alguma situação, e eu sinto algum incômodo corporal, eu sei que aquilo de alguma maneira tá... E aí eu já repenso. Muito legal essa experiência.
P/1 – Muito bom, Soró. Deve ter acontecido outras coisas, inclusive na tua vida particular. Você continuou estudando?
R – Não. Teve um período que eu terminei o colégio, tal, tava na pastoral, tinha um período que... Não tinha como entrar na faculdade, era...
P/1 – Você fez o colegial?
R – Fiz.
P/1 – Fez?
R – Fiz. Fiz um ano de Propaganda em Marketing, um técnico aí de Desenho de Propaganda e Comunicação, depois fiz Desenho Técnico, terminei fazendo três cursos, mas terminei o colegial. E acabei não indo fazer nenhuma dessas coisas. Aí então não tinha acesso à faculdade. Não existia. Ou você pagava uma puta grana pra PUC, que eram poucas, enfim... Eu lembro que essa história de a gente traquinar com o outro mundo. O grupo da pastoral da região ganhou uma casa pra usar aqui no Jaraguá, dentro do santuário. E ali é uma congregação absolutamente direitista, alemã, uma coisa horrorosa, os caras andam de batina preta durante o dia naquele calor. Então eles são desses, os Schusters. Só que eles cederam lá um imóvel, e aí era a sede da pastoral. Então a gente se encontrava lá para as discussões, para os cursos, formações, a gente fazia tudo lá. E óbvio que a gente passou a sair sexta à noite das escolas e cair pra lá. Eram umas 40, 50 pessoas da coordenação. E a gente vivia todas essas coisas maravilhosas, que eles achavam um horror. E tinha um padre lá, que era responsável, ele vivia falando: “Um dia eu pego vocês. Eu aposto que vocês transam aqui”. E não podia, era de um lado mulher, do outro, homem, tal, enfim, e a gente era, afinal de contas, religioso. Sempre que ele chegava, a gente sacava, todo mundo se desmontava, cada um ia para seu quarto, tinha essas coisas. Eu tava falando isso porque a gente chegou a fazer alguns planos, desde desviar dinheiro do banco, porque um trabalhava no Bamerindus na época, um menino, planos assim maravilhosos. Fomos treinar... Teve uma hora que a gente achou que ia pra luta armada mesmo, aí um dos nossos meninos lá, o Bico, tinha feito Exército, entendia de arma, aí levou um 22 pra gente treinar tiro na mata. Enfim, vai vendo. E numa dessas a gente fez um plano de como acessar e garantir a faculdade. Qual era o plano? Porque quase todos nós, as congregações queriam que a gente virasse padre. A gente entrar, porque aí você entra, estuda, faz uma faculdade de Teologia, depois valida com Filosofia, pode até validar História também, mas, enfim, pra igreja são esses dois: Teologia e Filosofia. A gente faz, porque você estando no seminário, primeiro que você já tem uma vida lá protegida e garantida, e segundo que se você só faz o voto definitivo pra ser padre, você ainda pode recusar até acho que oito anos depois, tem um tempo lá que você não... O plano era assim: entramos, e não queríamos entrar pelos pobres brasileiros, queríamos entrar pelos Schusters. Por quê? Porque a Filosofia era feita na Alemanha, e pra gente, pô, o universo da filosofia, Alemanha. Então fizemos esse plano, resolvemos acho que cinco ou seis entrar pra congregação dos Schusters pra garantir a faculdade. Depois acho que ia ser muito feia a questão, fomos desistindo. Teve outro plano mirabolante, que era uma família muito grande, que tinha vários irmãos que moravam lá em Taipas, pobres, desgraceira, mas eram vários militantes ali e tal. E aí fizeram um plano familiar, assim, participou, a gente montou uma ideia de comunidade e depois também eles tiveram esse plano familiar que era o seguinte: todos eles iam juntar caquinhos e dinheiro pra pagar a faculdade de um, quando ele completasse dois anos na PUC, no Estado você já podia entrar dando aula. E entrar dando aula como substituto, essa coisa, tal, tinha muito substituto, ele já ganharia assim, três, quatro, cinco vezes mais do que qualquer um de nós ali ganharia. Ele entraria, aí esse dinheiro ia botar mais um ou dois irmãos na faculdade, não sei o quê. E eles fizeram esse plano. Todos eles hoje são...
P/1 – Ah, fizeram?
R – Alguns já são doutores. Mas todo mundo foi pra faculdade baseado nesse plano. E até hoje como família eles têm essa lógica. E aprendemos isso fazendo junto. A comunidade não deu certo. A gente fez o desenho da casa, uma casa redonda, aquela coisa toda, chegamos a comprar um sítio aqui em Cajamar, e aí eu saí, acabei saindo, depois o sítio não deu certo.
P/1 – Agora, Soró, a gente pergunta, você continua estudando? Quer dizer, dentro de uma instituição escolar, porque fora você estudou muito. Você lia muito, né?
R – Então, nessa época acabando não indo pra universidade, tinha aquele discurso: “Ah, nós somos ferrados, ninguém...”. Então tinha muito essa coisa. Alguns foram. Eu mesmo não fui nesse período.
P/1 – E como você conheceu...
R – Fui uns anos depois. Ah, então, eu fiz Teologia. Cheguei a fazer, mas era Teologia numa universidade da igreja. Fiz dois anos, também me desencantei muito da igreja.
P/1 – Ah, sei.
R – Aí, acho que perto do ano 2000, eu cumpri um desejo que era entrar na ESP, na Escola de Sociologia e Política.
P/1 – Você entrou?
R – Entrei. Estudei lá dois anos, depois tchau. Aprendi bastante. Tinha umas coisas que... Porque entrar essa área de estudo e autoestudar e estudar, eu sempre estudei muito. Esse período assim das militâncias, etc. e tal. Estudar era uma coisa que tinha a ver com a sua integridade ideológica. Se você não estudasse, você tava traindo... Então a gente estudava muito.
P/1 – É. É nesse sentido que eu falei.
R – Então, nesse período dessa coisa mais humanista, tal, eu comecei... Foi um pouco parando essa coisa do trabalho da igreja, e um grupo que trabalhava na prefeitura, na Fabes, na Secretaria de Assistência Social, me convidou pra dirigir a implantação de um negócio que no governo da Luiza chamava Centro de Convivência... É. Centro de Convivência. Que era pra implantar um na Vila Zat e tinha outro aqui em Taipas. Eram dois na região e aí eles me convidaram pra participar dessa equipe pra montar um mapa. E aí eu me encantei com... Em 86, a gente fez parte dos grupos de coleta de assinatura, de indicação de leis pra Constituinte, tal. E eu naquela época já me aproximei um pouco do pessoal ligado ao Direito da Criança e do Adolescente, que era um movimento muito forte. E comecei a me encantar com essa área da coisa do direito, mas eu ainda era muito revolucionário, então a questão era economia, arma etc. Criança, pobre, essas coisas... Enfim. Mas eu comecei a me encantar, porque comecei a me encontrar com essa realidade das crianças e isso impactou. Fui trabalhar nesse centro. A gente implementou o Centro de Convivência Luiz Gonzaga Lua, lá da Vila Zat. Lá fiz um trabalho de resgate da memória (risos). Porque esse aprendizado aqui, em todo lugar você tinha que fazer isso. E lá tinha... Era um bairro feito de uma ocupação, do pastor, então...
P/1 – Por que você acha que tem que fazer... Você foi pra lá e resolveu fazer esse resgate da memória. Qual a importância, Soró, nesse teu trabalho de tanto...
R – Olha, eu acho que essa relação muito forte com Perus, com essa coisa da memória, da importância. Ter participado dessa coisa, eu sempre... E ter, obviamente, sido estimulado por professor de história e tal. Então pra mim isso fazia todo sentido as pessoas não viverem sem essa coisa de não ter a história. Então todo lugar meio que naturalmente você já vai... Para as pessoas resgatarem suas histórias, compreenderem porque elas estão ali, quem são elas, tal. Era muito Paulo Freireano e também, ao mesmo tempo, tinha essa noção da importância da integridade da memória e da história. Fui pra essa área, depois acabei indo trabalhar num Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente como educador. Você ia encontrar família em que queriam prender a mulher, porque a mulher dava pinga para os filhos, pra aquele monte de filho. Você ia lá pra crer, enfim, tá maltratando criança. Você ia compreender a desgraceira que a mulher tinha que trabalhar, criar seis filhos, não sei o quê, criando. Mano, tem uma hora que você dá um pouquinho de cachaça para o bicho apagar, porque ele não tem jeito. Então essa compreensão da vida na periferia, dessas dificuldades, eu acabei muito tendo. E participei muito tempo e acabei me empolgando com isso. Houve, em 91, houve formação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança. Participamos do processo da construção e da aprovação do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], depois da implantação dos Conselhos de Direito. E pra gente, a grande arma fenomenal se chamava Conselho Tutelar. Que é. É uma puta de uma arma. E o estatuto é uma planta de recidadanização do país. É um conjunto muito interessante de uma visão e de garantia de direito. E aí, obviamente, quando veio a eleição dos Conselhos Tutelares eu me candidatei, era um dos candidatos, aí fui eleito por aqui pela região. Aquela história de a Luiza perder e o Maluf ganhar, adivinha o que ficou parecendo um Frankenstein? A legislação municipal de implantação. Era uma coisa... Porque todo mundo tachava que ia continuar depois. Com quem que a gente vai dar de encontro? Com o Maluf. E o Maluf falou: “Danem-se vocês” (risos). Comemos o pão que o diabo amassou, minha filha. Era duvidoso se tinha salário, se não tinha salário, se tinha sede, se era obrigação da prefeitura, se não era. Eu sei que assim, passou um ano lutando, acho que um ou dois conselhos tinham sede, chegou a ter alguma condição pra poder começar a trabalhar. Salário, nem pensar. Acho que quase no final do ano passaram a pagar uma ajuda de custo, algo assim, tipo, 150 reais hoje. Mas até lá a gente passou fome. E óbvio que a gente tava na frente da comissão. Que eram cem conselheiros na cidade, criamos uma comissão e era muito trampo, Ministério Público, não sei o quê, corre pra lá, corre pra cá. Então passei a viver mais no Centro, me afastando um pouco de Perus. Acabava vivendo muito isso lá. Um dia a gente tava na Câmara, numa reunião, essas de comissão, essas coisas toda, aí baixa um pessoal correndo falando: “Ah, tão fazendo arrastão na Sé”. A gente sabia de meninos de rua da Sé, daquela coisa, tal. “Tão fazendo arrastão na Sé.” Descemos nós com a nossa autoridade. A gente tinha uma folha de papel escrita que você era do Conselho Tutelar e autoridade, então você tinha, enfim. Vamos nós com a nossa folha de papel (risos) correndo pra Sé um bando de conselheiro. Chega lá, é aquela cena dantesca, absurda. Que a polícia cercava todo o entorno da Sé, o entorno largo, até a João Mendes, aquela coisa, tal. Cercava, cercava as bocas, nas ruas vinham as motos por dentro da Sé espirrando a molecada, que eram muitas crianças que ficavam por ali, e deixavam só duas ruas. Quando chegava ao fim da rua, tava o caminhão com a carroceria aberta e ia tocando que nem gado essa molecada pra dentro do caminhão. Levavam 200, era uma coisa assim... Levavam para o SOS Criança. Eu sabia das coisas, mas ver isso, acho que foi chocante demais. E a gente começou a se incomodar demais com o absurdo que era isso. Começamos a fuçar. Nessa época tinha muitas organizações que atuavam lá, Pastoral do Menor e várias outras. Era muita gente atuando e não conseguia resolver aquele troço. Conheci uma pessoa, até depois vou botar ela na foto, a Márcia Dias, que era daqui da Freguesia e já trabalhava um pouco na área... Com a psicanálise, com a saúde mental, enfim. Tinha uma boa experiência a Márcia. E é até hoje uma pessoa incomodada, que arruma encrenca. Ela é encrenqueira. E começamos a pensar muito e a sonhar o que era aquele sonho do Estatuto, vamos derrubar a Febem, vamos... Era uma coisa, um momento muito maravilhoso e essas contradições todas. A gente começou a curiar assim, por que tanta gente? A Fúlvia Rosemberg fez uma pesquisa de quantas crianças estavam na rua ou não. Porque se falavam nove, em 10 mil, 30 mil, não sei o quê. E ela fez uma pesquisa definindo: quem ficava na rua dormindo por certo período de contagem davam mil crianças na rua, que eram moradores de rua. E mais dois, três mil que vinham durante o dia. E a gente começou: “Por que não dá certo? Por que não tira? Por que não sei o quê?”. E acho que ela tinha feito um cálculo assim: se pegasse todo o dinheiro investido nessa área, dividisse um pouco pra cada um, acabava. E eles tinham aquela ideia de que ia pra rua porque era pobre, por causa a pobreza. E a Márcia, muito sagaz, falava assim: “Bom, se é a pobreza, deveriam vir todos os grupos”. Por que esses vêm e os outros não? Inclusive às vezes da mesma família uns vão e outros não. E por que esse monte de gente e não dá certo essa porcaria? Enfim, começamos a chamar as organizações, porque aí tinha essa possibilidade, chamar as organizações e perguntar e tentar entender. Nenhuma organização se falava ou se entendia. Cada uma era... E o que era pior, a molecada fazia o próprio circuito. Então ia lá, tocava o puteiro, era expulso de lá, ia para o outro e tal. Então tinha gente que dava roupa, dava comida, comida de dia, à noite. Então era uma coisa meio... E essas coisas começaram a chamar atenção e ela trazia um pouco essa coisa da antipsiquiatria, e apresentou um sujeito... As falas de um sujeito chamado David _____________ que falava da dificuldade de desenvolvimento emocional etc. como um fator que leva a delinquir e tal. E a gente se impactou com aquele sonho de autoridade, a prefeitura tava mudando lá do Ibirapuera a sede pra cá para o Parque Dom Pedro e a gente imaginando o que a gente ia fazer com aquele mega complexo no Ibirapuera. Então a gente ia juntar a cidade inteira, os conselheiros, porque a gente pode convocar profissionais, pode convocar o que a gente quiser. Íamos convocar o Exército, arrastar tudo quanto é moleque da rua, tirar da rua, enfiar lá dentro. Convocar todos os profissionais, porque o SOS tinha um negócio chamado entrega de pizza. Fazia esse arrastão, levava pra lá, eles identificavam, os educadores nas peruas saiam devolvendo nas casas, nas periferias, e no outro dia tava toda molecada de volta lá. Então por isso que era entrega de pizza. E o nosso sonho então era: só sai de lá quando tiver uma situação absolutamente construída, com a família, não sei o quê. Tínhamos esses delírios. E vários delírios. Porque eram situações cotidianas muito chocantes que se viviam ali. A pior delas era assim, todo mundo trabalhava durante o dia, tinha gente que tirava criança da mão de policia, era um... O dia inteiro aquilo dali era um... Isso era muito animado. Quando chegavam seis horas da tarde todo mundo acabava seus trabalhos, vinha embora, e a molecada ia ficando. Eles se juntavam tudo na escadaria da igreja da Sé e danava a cheirar esmalte, que o esmalte tava na moda naquela época, e aí era aquela droga... Você sair dali e ir embora era foda. Enfim, acho que a gente se juntou, eu a Márcia e o Sérgio, que a gente passou a ter uma relação muito intensa, e no final do ano falamos: “Puta, não vai rolar Conselho Tutelar, não sei o quê”. Com esses delírios todos, aparece uma senhora rica que ninguém queria conversar com ela. Ela já tava andando um tempo no circuito falando com várias organizações. Ela queria organizar algum almoço na Praça da Sé, alguma coisa. E o povo dos movimentos de defesa da infância, naquele tempo era: não converso com polícia, também não converso com a elite. Nós somos trabalhadores, então não tem essa conversa. A mulher aparece cheia dos ouros, aquelas coisas todas, ninguém queria saber da mulher. Numa dessas reuniões, um cara falou: “Olha, veio aquela mulher chata aí. Márcia, você não quer... Já que você é da elite também...” – a Márcia tinha sido rica durante um tempo, enfim – “Não quer conversar com ela? Dá um...”. A Márcia me entra numa conversa com essa mulher, em cinco minutos ela sai, ela falou: “Fodeu” “Que você aprontou, Márcia?”. Ela: “Vamos correr. Vamos todo mundo pra casa hoje, vamos virar a noite”. Ela tinha dito pra mulher que a gente tinha um grupo e que a gente tinha uma proposta de trabalho experimental, que era fazer uma grande ocupação, levar toda molecada pra lá, enfim, um grande acampamento e ali começar a produzir as diversas ações de reparação. Ela dizia que tinha um grupo, que tinha um projeto, e deu até o custo. Era quase final de novembro e eram 300 dólares por mês, uma equipe acho que de 12 pessoas, 300 dólares no mês. Desenhou lá um acampamento, o acampamento tinha que ter de tudo, comida à vontade, não sei o quê, médico, ambulância, o diabo a quatro, porque a mulher tinha muito dinheiro. E essa Márcia é um rato pra essas coisas. Em cinco minutos ela saiu com isso. Aí corre nós pra numa noite escrever um projeto, porque não tinha nada disso. A gente tinha um monte de delírios, tal. Escrevemos um projeto, que acho que tinha umas duas páginas, baseado nesses fundamentos, a questão da agressividade. Enfim, começamos. A mulher arrastou todo mundo pra lá, batalhão de polícia, o diabo a quatro ela arrastou pra lá. Era um terreno lá no Ibirapuera, imenso. Pedimos um circo, ela mandou um circo daqueles grandões, de lona, e abrimos o dia com palhaços, não sei o quê, foi um... Combina com o pessoal que tinha um albergão, que eles se encontravam, aí de manhã pegava o ônibus, já descia com os da rua. Já descia lotado o ônibus. Dia da inauguração. Nós combinamos tudo, vai ser assembleia, os conflitos a gente senta pra conversar, nada de violência. Chega o ônibus, nossa senhora, desceu o inferno. Eram muitos jovens de 16, 17 anos, tinha uma concentração muito grande, e era um horror. Desceram quase cem. Tava lá tudo bonito, uma geladeira cheia de Coca Cola, o buffet, as cadeiras, tal. Conseguimos falar dois minutos e meio. Eles sentaram e a Márcia falou assim: “Olha, não entendemos porra nenhuma de menino de rua. Estamos aqui pra aprender e construir um caminho junto com vocês”. E foi só, porque aí virou...
P/1 – Nossa!
R - Detonaram o lugar. Comeram. Foi um horror.
P/1 – E era pra durar quanto tempo isso?
R – Devia durar até o Natal. Era a proposta. Criamos a ideia então de construir um reino. Conforme as atividades, essas coisas, iam construindo coisa pra montar um reino. Essa Márcia é muito abusada. Porque a mulher tinha dinheiro, ela pediu um pinheiro, acho que devia ter uns 25 metros o pinheiro. Levaram. Os bombeiros foram lá pra subir, pra botar os enfeites e as coisas que eles fizeram com atividades pra enfeitar a árvore de Natal. Enfim, era um reino. O circo. Tinha rei, tinha tudo. E fomos construindo isso, as músicas, tal. Só que no quarto, quinto dia, óbvio que essa história de sentar e conversar não deu certo de jeito nenhum. Você conseguia conversar talvez dois minutos. Demorava uma hora pra juntar e dois minutos pra conversar e a coisa já desandava. Eles começaram a se envolver com essa história do desafio de construir junto e nos ensinar o que era.
P/1 – Mas quem ensinar?
R – A molecada.
P/1 – Hum.
R – E foi rolando uma relação, eu sei que tinha empregado pra cuidar do banheiro, tinha outro pra cuidar da cozinha. Eles foram meio que tomando, cuida do banheiro, não sei o quê. Uns já queriam ficar lá, porque eles tinham que voltar, aí dá pra acampar lá, fomos deixando. A gente terminou a experiência com 20 dias, perto do Natal.
P/1 – Vinte dias?
R – Foi muito intenso. Foi muito absurdo. Quem treinou música com eles era a banda da Polícia Militar, aí eles tocavam jazz, enfim. Era a polícia junto, começou meio que virar um paraíso irreal ali, ou surreal. Terminou, todo mundo chora, aquelas coisas. A gente passou um bom Natal com os nossos 300 dólares, porque há muito tempo a gente não via dinheiro. E o choque foi: “E agora?” Só que o coronel, na carrada que dirigia a polícia do Centro, o comando do Centro, eles tinham um levantamento e ele fez o seguinte levantamento: no período em que essas crianças estavam lá, a criminalidade na Praça da Sé, roubo etc., que era absurda, caiu a quase zero. Virou na imprensa, não sei o quê, e o projeto ganhou uma... E agora? Bom, todo mundo, Salim Curiati, todo mundo falou: “Não, vocês têm que... Vocês podem continuar?”. Nós sentamos mais sossegados, fizemos um projeto já mais... Que era um negócio lá na Praça do Carmo, ali perto da Sé, negócio que eles transitavam, e conforme o processo e a vinculação, aí você vai construindo saída, enfim.
P/1 – Soró, deixe-me só...
R – Tá.
P/1 – É que gente vai precisar daqui a pouco concluir, então eu preciso que você venha daí até Qui...
R – Chegue à Quilombaque. Nossa, só da Quilombaque já é muito.
P/1 – Não, porque cada experiência que você foi trazendo, a gente quer perguntar muita coisa (risos).
R – Tira onda, viu? Eles tão tirando onda porque eu falo demais e eles adoram quando eu sou cortado. Entendeu? É o prazer deles (risos).
P/1 – Porque pra nós, eu teria mais... Eu quero dizer assim, a gente gostaria de continuar e esmiuçar isso que você tá falando, que são experiências muito ricas e de coisas importantes e necessárias hoje.
R – Sim. Sim.
P/1 – Então cada coisa que você vai falando, surgem várias perguntas, mas a gente não vai conseguir explorar tudo isso. A pergunta que eu ia te fazer em relação a essa experiência, mesmo que você não conte toda, como que se desenrolou? Você falou que teve uma situação que foi se transformando, que você percebeu, pelo jeito, como lidar, como fazer um trabalho com essas...
R – Sim. Sim.
P/1 – Então, é isso que eu queria que você falasse.
R – Então, esse desencanto que a revolução e não sei o quê, e de repente sair desse universo onde você pensa macro e trabalhar numa situação tão absurda...
P/1 – Isso.
R – Eu tinha essa coragem revolucionária, mas juro que nas duas primeiras noites pra chegar ao dia de chegar aquela molecada, olha, deu dor de barriga, aquela coisa toda. E no dia foi mais pavoroso ainda. E mete medo. Então a minha convicção revolucionária ficou abalada. Mas essa coisa do encantamento e tal, e toda ideia lógica que a Márcia trazia, essa coisa, funcionando, dando certo, eu me encantei com isso. Que era uma coisa você sair da macro política pra micro política em zero condição. Sem menino de rua... Era o absurdo do absurdo. Mas me senti desafiado a embarcar nessa e aí desse trabalho a gente construiu todo um referencial na cidade a respeito do que é vínculo, afeto, de que a área social tem que se libertar, enfim.
P/1 – A gente quem?
R – A gente se encontrou nessa... Construímos essa organização chamada Associação Beneficente Santa Fé.
P/1 – E quem era? Você, a Márcia...
R – Eu, a Márcia e o Sérgio. Depois virou uma organização grande, chegou a ter cem funcionários. Hoje ela ainda existe lá. Mas a gente começou a entrar nesse campo e enfrentar esse tipo de coisa e a desenvolver o atendimento mesmo. Vivemos lá nesse acampamento por um ano e pouco e não tinha fiscalização, justiça, nada, a gente fazia o que bem entendia. E uma hora, o marido da mulher roubava muito dinheiro, roubou o negócio da loteria, tal, e teve que picar a mula. E a Lília também. E aí nós (risos)... Aquela beleza de ganhar em dólar. Trabalhar naquelas condições duras, mas ganhar em dólar, ter tudo o que a gente precisava, ambulância, palhaço. O que a gente queria, a gente tinha. Enfim, voltamos à pobreza e à miséria. Como tinha essa relação muito comunitária lá com a molecada, eram mais de cem crianças... Não, isso depois, no outro período, que a gente veio, foi fazer o projeto, aí o Maluf: “Olha, quem não tem metodologia da prefeitura, não pode trabalhar na rua”. Não existia metodologia da prefeitura. E a gente não pode implementar o projeto do jeito que a gente tava, tinha previsto. O que a gente fez? Falou: “Bom, se não pode montar a estrutura, a gente vai pra rua”. E aí montamos uma Kombi com umas mesas, material, não sei o quê. A gente ia pro meio da Praça da Sé, montava lá e a molecada ia chegando. Construímos lá um universo, até onde podia com BO, onde não podia, porque a polícia invadiu o lugar, então a molecada ficar lá drogada ou com algum roubo, atrapalhava. Então criamos certa zona mágica ali, todo dia a gente chegava lá, desarmava, tal, montava com a molecada. E ficamos vivendo ali trabalhando com eles, durante um bom tempo com eles. Depois uma criança morreu, porque eles dormiam na rua, aquela coisa, tal. Aí eles se desarvoraram todos, que tinha que ter um lugar. Não tinha nessa época nenhum instrumento na cidade de dormida. Esse Coronel, que ajudou a matar os 111, a gente não sabe até hoje se ele queria limpar a imagem dele, ou se de fato ele queria... Mas ele era comandante do CPA/M-1, ele falou: “Olha, tem um galpão ali do metrô, da construção do metrô, a gente pode montar um albergue lá. Então eles sobem, dormem lá, jantam, tomam banho, dormem, no outro, dia eles voltam pra rua”. Era o que dava pra fazer naquele momento que era inverno. Falamos pra molecada. Todo mundo quis ir. Aí em um mês a gente foi expulso de lá, porque virou um inferno a ali a Vergueiro. Era moleque cheirado cola pulando no meio da rua, aquela coisa, um inferno. Roubava os comerciantes. E juntava a molecada e descia pra cozinhar no Batalhão da Polícia. E era o maior barato você entrar com a aqueles caras lá. Porque eles apanhavam todo dia da polícia, e aí a gente entrava lá e ainda pegava a comida dos caldeirões, os caras tinham que... Porque era o coronel que tava mandando, então problema seu, você tem que obedecer. Vivemos essa intensidade, aí não deu certo, tinha que sair de lá. O coronel falou: “Olha, eu consigo mudar a estrutura do galpão pra um terreno”. A Lília tinha um terreno, a gente montou esse barracão lá no Ibirapuera. Chamamos a molecada: “Quem quer descer?”. Com uma perspectiva de moradia, enfim, de sair da rua e a pessoa ter moradia. Descemos um dia a pé da Sé até o Ibirapuera com 116 moradores de rua, meninos e meninas. E ocupou. Aquilo lá virou uma coisa do outro mundo. (risos)
P/1 – Depois você vai... Precisamos um dia pra você...
R – O interessante é que esse aprendizado... Criamos a organização, durou vários anos. Ainda existe. Eu que saí dela em 2005.
R/1 – Ainda existe?
R – Existe. Não tem mais esse fogo revolucionário. Porque a gente acreditava piamente na ideia de que assim, a questão da agressividade tem a ver com o vínculo, então você não pode expulsar. Se você expulsa, você não tem o trabalho. E agressividade tem a ver com isso, mas depois de um tempo ela vai amainando e aí... Então a gente tinha que aguentar seis, oito meses de agressividade brava, e expulsão não tinha. A gente não podia expulsar. Não queríamos, não é que não podíamos. A gente acreditava muito... Então era muito barraco, muita briga, muita faca, muito... Enfim, aqueles horrores. Uma vez fomos fazer uma assembleia que era um cara que tinha batido na mina, que não sei o quê, aí aquela coisa, uma hora pra juntar, junta todo mundo dentro do galpão, de repente veio o tal do cara, ele arrancou... Porque é tudo modular, você monta. Eles desmontavam aquilo. Parecia um lego, o casarão. Refazia sala, que é tudo parede montável. O cara me vem com um caibro desse tamanho no meio da assembleia pra dar na menina. Então, assim, foi muito aprendizado você fazer mediação de conflito no meio do fogo. Não é contando vantagem, mas assim, um com o revólver aqui, outro com revólver querendo se matar e você lá tendo que na conversa conseguir, porque a gente acreditava na porra do diálogo. Mas isso deu pra gente aprender muito a questão do repertório de linguagem. Como você pode conversar se você não tem linguagem? E a Hannah Arendt vem e arrebenta a cabeça dizendo assim: “Quanto menos palavra, mais violência, mais física é a relação”. E aí fomos descobrindo na cultura, de novo a cultura volta, essa coisa de propor imaginário, de estimular. Porque a molecada, os grandões, até hoje é um fenômeno que você acompanha lá, você senta pra ler história infantil e conto de fada, são os marmanjos que ficam lá babando, né, Fofão? Essa coisa da arte, da cultura, sempre teve acompanhando e virou uma ferramenta, e a questão da mediação da gestão do conflito. Porque não é só mediar e apaziguar, é compreender toda a lógica, o tamanho, de onde começou o conflito, pra onde vai, o significado, enfim. Então essa ferramenta eu domino, porque passamos 15 anos fazendo isso e é uma metodologia.
P/1 – Quem tá aqui com a gente tá rindo, mas eu tô falando e tô repetindo, essa tua experiência, desses 15 anos, seria bem importante a gente fazer outro momento com você e desmiuçar isso.
R – Sim. Porque ela tem tudo a ver. Essa perspectiva do conflito da arte tem tudo a ver com esse encontro com a Quilombaque.
P/1 – Isso. E eu acho assim, você tá contando justamente porque tem a ver com esse encontro, mas eu tô repetindo que seria importante a gente em algum momento ouvir mais você sobre tudo isso, sabe? Detalhes mesmo. Então fala agora do encontro.
R – Só pra terminar passando, porque depois eu vou dar uma foto. Eu conheci a Valéria, minha companheira hoje, brigamos pra caramba, mas a gente tinha um apego pelo trabalho, a gente trabalhou muitos anos juntos antes de se casar. E continuamos trabalhando juntos.
P/1 – É a companheira até hoje?
R – Sim. Sim. Faz mais de 20 anos que a gente tá junto, andando, fazendo coisa, inventando arte, moda, briga. Depois que a gente casou e teve filho. E aí com ela, um momento a organização queria se livrar dos adolescentes. Porque adolescente dava muito problema e era problema sério, problemas graves. Mas tinha um novo grupo na Santa Fé, teve várias histórias, mas queriam se livrar dos adolescentes. Eu era defensor nato do adolescente. Quanto mais delinquente, melhor. Porque o _____ dizia assim: “Esses que estão delinquindo, eles estão vivos. Os chapados...” – e a gente conhece muita gente chapada nas instituições – “Esses são mais complicados”. Então a gente gostava era dos que botava pra fora. Porque esse dá vida, dá pulsão, tem... E aí queriam expulsar e a gente meio que se rebelou. A prefeitura disse que tinha que dividir o casarão em três lugares: Casa das Mães Adolescentes, Casa das Criança e Casa dos Adolescentes. E queriam nessa limpar, se livrar dos adolescentes. Rebelou-se. Eu me rebelei, né? E aí eu: “Não, então tá bom, você quer montar uma Casa de Adolescente?” – que já tava pulsando – “Vocês montam lá”. Ficou dois na Vila Mariana e a gente na Indianópolis, lá na puta que pariu. Mas ganhamos a Casa do Adolescente. Comecei montar minha equipe. Tudo que eles não queiram, eu tinha que montar a equipe com que eles não queriam nas outras duas casas que eram mais show. E a Valéria, a gente queria empurrar, porque eu não suportava trabalhar com a Valéria, até hoje a gente não trabalha mais de uma hora junto, dá fogo. Eu queria empurrá-la pra Casa das Mães, que eu achava que era um trabalho muito melhor, tal. Ela veio um dia, sentou na reunião e falou: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Eu já tinha uma vez demitido ela, porque eu era superior dela e ela não foi embora. Entrou lá e fomos realizar acho que uma coisa impressionante, que foi construir uma casa pra adolescentes. Um lugar de adolescente, de autonomia. Tudo isso que a gente fica imaginando, ou fazia, a Valéria, eu, a gente pôde exercitar e realizar ali. Só que a gente era muito treteiro com Deus e o mundo Raimundo. A gente arrumou briga com todo mundo, promotor, polícia, tal, fomos processados. E num momento político, no enfrentamento, tinham que fechar alguns abrigos, e óbvio que o nosso foi escolhido pra ir para o pescoço. Perdemos a tal da casa da juventude. Fiquei muito decepcionado com a organização que eu tinha fundado e que fazia. Tentei muita conversa. Durante muito tempo a gente tentou. Um tempo. Um dia eu falei: “Não dá mais”. Sem nem avisar, catei meu computador, minhas coisas, gravei tudo que tinha, que era da organização lá, e fui embora. E nunca mais nos falamos, eu e a Márcia. O Sérgio, um dia até cruzei com ele, mas nunca mais... Porque eu considerava uma traição ideológica, filosófica. Eles baixaram a mão e a defesa na hora de defender a Casa da Juventude, então foi uma coisa impressionante. E eu tinha acabado de ganhar um prêmio de tecnologia social baseado nessa perspectiva, nesse trabalho, no trabalho da escola ambulante que a gente fazia na rua. Porque o trabalho do abrigo, ele era... A rua não se desconectava. Então a gente tinha um trabalho na rua que chamava Escola Ambulante, que trabalhava com arte, com cultura, enfim. E a gente ganhou um prêmio como tecnologia e tinha acabado de ganhar um prêmio também da Camargo Corrêa, Instituto... Um trabalho bem legal lá com as meninas do Neca, de 200 mil reais. Eu acho que é burrice, mas, enfim, eu fui embora e larguei o dinheiro e tudo lá. Catei minhas coisas, fui embora e nunca mais voltei. Eu tinha acabado de ter um filho. “Não, vamos casar.” Ela engravidou, aí: “Vamos casar”. Tinha acabado de nascer o Pedro, já tinha a Ana Clara, que era da Valéria com um cara lá, aí beleza, nós dois desempregados, com filho, com não sei o quê, morando no centro da cidade. Que eu morei em vários lugares, mas no centro da cidade eu morei muito, no Bixiga, no Arouche, em tudo quanto é lugar. Tinha essa coisa, falamos: “E agora? Vamos fazer o quê?”. Eu tinha esse desejo de voltar pra Perus, sempre, nunca dormi nesse desejo. E tinha aquela discussão, falava: “Aqui na cidade a gente tem isso, pra criar criança no apartamento, aquelas coisas toda”. Coisa que educador gosta de ficar discutindo. “Então, tem muitos recursos artísticos.” A gente sempre acreditou nisso, que criança tem que brincar, tem que ter acesso à criatividade. É o fundamental. E lá eles tinham esse acesso, mas não tinham relações de vida comunitária, tal. Dava até pra ter. No prédio, 90% eram travestis, aquele mundo ali, bem no Arouche. Tudo bem, mas não tinha outros lastros. E eu malandramente fui cutucando pra: “Não, em Perus, nós temos pertinência, comunidade, parentes, avós, tios, tal”. E essa situação... Vamos voltar pra Perus. Eu sempre tive uma convicção que eu... Enfim, me embrenhei nessa coisa. Como diz uma amiga minha, a Célia: “Depois que você adquire consciência, ela nunca mais te larga. Você não se liberta mais”. Então eu vou morrer lutando. Não me via voltando pra cá, ainda mais em Perus, com essa história toda, e levando uma vida comum, de cidadão cotidiano que pensa em comprar carro, casa. Eu larguei o emprego da prefeitura e fui trabalhar autônomo há muitos anos, há 20 anos, e até hoje. É meio complicado, mas é minha liberdade. Eu faço hoje o que eu quero, o que eu escolho, o que eu acredito. E ainda consigo às vezes ganhar dinheiro e viver disso. Nunca mais tive que pedir amém pra nenhum patrão. Enfim, convencemos, vamos pra Perus. Mas então, periferia, e eu vinha aqui várias vezes por causa da minha mãe, essa coisa toda, e tava em festa aqui a praça com o pancadão. E eu cheguei, aquela coisa, degradação absoluta. E visivelmente jovens sem referência, sem lugares. Essa experiência de eu viver aqui, ter grupos de jovens e tal, eram lugares onde esses jovens de alguma maneira se identificavam, então você tinha um... E a visão ali... Conhecia muita coisa da rua, Cracolândia, tal, a visão ali era deprimente. Eu falei: “Caramba!” Fui conversar com várias pessoas que eu conhecia e tal, e todo mundo tava... Ou acabou, ou tava desanimado. Era bem deprimente a ideia. Ah, não sei. Aí tinha essa Ana Clara, a filha que tinha quatro anos, olha que besteira, fui trazê-la um dia pra ver minha mãe. Passa ali: “Olha, aqui é a praça, o rio”. Contei a história do rio, tal. E ela daquele tamanho olhando, falou: “Que rio fedido”. Que ideia. Que assim, tem muita gente aqui em Perus que é apaixonada por Perus, e acaba até esquecendo esses detalhes. Minha filha falou: “Que rio fedido. Tem que limpar o rio”. Eu falei: “Não, nós vamos limpar esse rio um dia”. Mas não enxerguei mais essas raízes, essas perspectivas, tal. Mas tem que fazer um trabalho com jovem, não sei o quê, porque tinha essa memória, mas não tinha estrutura. Os CJs tinham fechado, enfim, era uma coisa muito estéril. Eu gosto dessa cena mesmo, que foi um dia desses passando, o povo, a muvuca aqui descendo a estação, passo, quando eu passo da praça, no outro lado da praça, que era meio escuro, abandonado, escanteado, tem uns malucos com tambor, outro de palhaço, outro subindo na árvore pra subir na perna de pau. “Que coisa é essa?”. Eu via sempre os cartazes “Comunidade Cultural Quilombaque”, mas eu não queria nem graça com a igreja mais, e aí eu associava comunidade, então deve ser algum grupo de jovens, alguma comunidade, então olhava, mas não queria muita... Passei e vi essa cena. Em um dos dias a Valéria, acho que encontrou com a Tami, e conversando aquela coisa toda, a Tami: “Não, projeto, e não sei o quê”. Aí a Valéria falou: “Meu marido faz projeto, trabalha com esse negócio de captação de recurso”.
P/1 – Com quem ela encontrou?
R – Com a Tâmara.
P/1 – Quem era Tâmara?
R – Tâmara era uma das fundadoras da Quilombaque, junto com eles no grupo percussão, atriz, palhaça, enfim. Hoje acho que mora pra Pernambuco.
P/1 – Sim. E aí?
R – Mas tava aqui, encarnada aqui. Aí fica, vai, rola ou não rola, rola ou não rola. Um dia a gente desce aqui na pracinha com os meninos, de domingo assim, demos de cara com a Tâmara e o Jaimico, que tava por aí hoje, o Jaime, e aí: “Ah, então vocês são vocês e vocês são vocês e não sei o quê”. E aquela conversa sobre projeto, a Tami falou: “Não, já vamos lá, que o pessoal tá reunido lá ensaiando”. Viemos aqui, era um barraquinho ali bem fuleiro, cheio de máquinas velhas, uma coisa assim. Eu entro, dou de cara com aquela cena, eles todos sentados, um aqui, outro tomando cerveja, os tambores, que acho que era o momento que eles estavam... Já chapei o coco ali. Trocamos umas ideia ali, basicamente dessas coisas, falei: “Não, então tá bom. Vamos sentar e ter uma conversa mais aprofundada”. Marcamos uma reunião com esse daí. A Jana...
P/1 – E ela te trouxe pra que, afinal? Porque já existia a Quilombaque?
R – Já existia. A Quilombaque já tava... O que tinha descido pra cá era o refúgio, que era o trabalho com os tambores e a marchetaria. Vocês estavam fazendo aqui a marchetaria. A sede ainda era lá na garagem, na casa da mãe deles. Então eles faziam os ensaios aqui e no Recanto. Porque fazia oficina lá no Recanto e fazia os ensaios aqui. E tinha essa história de elaborar projeto.
P/1 – Elaborar projeto pra?
R – Captar recurso. Eles tinham feito um projeto sofrível. Muito sofrível. Um ano eles não conseguiram, no outro, eles tinham conseguido, tava na vigência. Mas eles queriam... Acho que se empolgaram com essa história de captar recurso, queriam fazer projetos, tal. Era essa a conversa da Tâmara. Quando bateu essa questão, os mesmos caras, palhaços negros, era uma turma empolgante. Eu fui conversar com eles lá na sede num dia de semana, eles começaram a contar as desventuras deles, que afrontaram aula, que fugiram na perua, que não sei o quê, um monte de coisa assim. E eu na minha cabeça fui olhando, falei: “Caraca, Queixadas”. Perguntei pra eles: “Vocês conhecem a fábrica, os Queixadas, essa coisa toda?” “Ah, passando, tal”, eu falei: “Mas vocês são Queixadas, cara. O jeito como vocês funcionam, essa coisa anárquica e muito treteira. Gente a fim de briga”. Eles contavam e davam risada como o povo ficava apavorado quando eles apareciam. O jeito que eles sacaneavam. E eu me interessei muito por eles aí e falei assim: ”Bom, então tá bom”. Eu ia cobrar essa coisa, tal. Eu falei: “Não, eu quero fazer um projeto, mas é o seguinte, eu quero tá junto nessa”. Passamos a discutir essa coisa, como é que se organiza pra captar recurso, essa coisa, tal. Eu falei pra eles: “Olha, então, precisa criar uma organização, uma estrutura que funcione, esses detalhes de pensar”. Eles me contam que já tinham tentado isso uma vez e que eles saíram na porrada lá, tinham tido o maior... Não deu certo. Desistiram por enquanto, mas podiam voltar nisso. “Ah, vamos pensando.” A gente terminou a conversa por ali. Fui embora. Uns dois dias depois, acho que numa quinta, não sei se você ou Dedê me liga: “Olha, já marcamos a reunião pra sábado. Você vem”. Fui. No porão lá. Acho que deviam ter uns 30 pretos lá. Uma coisa assustadora. Tem até uma foto que eu separei da... Como era o nome dela? A que luta boxe? A que faz a plus size hoje?
P/2 – A Lu.
R – A Lu. A Lu, cara, tem um braço que eu acho que dá dois do meu assim, ela lutava boxe. Mas assim, a negrada, uns caras grandes, tal. Sentei lá e eles: “Vamos fazer a organização”. Falei: “Putz, ferrou. A hora que sair um pau aqui, mano. Só de olhar pra luz, cara, tô ferrado”. E vão e não sei o quê e discute. E saiu de lá uma estrutura, um virava presidente, não sei o quê. Eu achava que o Dedê que falava mais, eu falei: “Não, o Dedê é o líder aqui. O povo o elege como presidente”. Você já vai mapeando os conflitos, que eu já sei fazer isso muito bem. Aí o povo elege o Fofão (risos).
P/1 – Quem é o Fofão?
R – O Fofão é esse daí, o Cleiton.
P/1 – Esse... Como?
R – Que era quietão. O Cleiton. Era o Fofão. Mais quietão. Falei: “Tem alguma coisa errada com esse povo”. E vamos. E muitas tretas, fofoca, coisas das histórias deles, tal. Mas ali amarrei meu rabo e nunca mais sai. E fui assumindo esse papel de trabalhar esses aspectos de gestão, administração, capacidade de leitura política, enfim. É um pouco o meu papel na comunidade até hoje. Mas esse foi o início.
P/1 – Soró, você já era uma organização com CNPJ, essa coisas, ou você formou junto com eles depois? Teve alguma...
R – Formamos junto.
P/1 – Mas foi a partir...
R – O negócio demorou. Um ovo que demorou pra... Olha. Desde então eu falo: “Não, você tem que criar mecanismos e possibilidade, acesso, tal”. Mas demorou até 2011 pra efetivar o estatuto, o registro, aquelas coisas todas. Porque era devagar. O negócio ia, não ia, vai, não vai, refazia a ata, enfim, demorou muito tempo.
P/1 – E qual a importância que tinha institucionalizar desse jeito? Porque gera um...
R – Porque nessa parte da sustentação, das políticas e fomento e tal, a maior parte dos recursos só é destinada ou chega através de organização jurídica. Eles são de um movimento muito de coletivos, informais etc. e tal. Então pra você acessar a ________ você podia acessar como pessoa física. Então pra acessar esses recursos, pensar uma organização, o trabalho que eles queriam fazer no bairro, já tinham toda essa visão. Escolheram o recanto porque era uma zona de alta vulnerabilidade, tinha coisa com os ritmos. Tinha essa coisa toda e tinha que pensar então numa luta, numa estrutura. Eu sugeri pra eles um desafio, não sei se vocês se lembram disso, mas: “Olha o pessoal em Perus tá morto, tá cansado, tá desanimado etc. e tal, e vocês aqui pegando fogo. Então um papel é a gente reascender no bairro”. Nesse período de procurar aqui, eu e a Valéria, a gente foi a um Fórum, que tinha um Fórum lá de desenvolvimento local, dos três eixos e tal, que funcionava. E era um povo, nossa senhora, rachado em três, quatro, que brigavam, tretavam e nunca saía nada e nunca nada andava. Chegamos lá, eu e a Valéria um dia, falamos assim: “Olha, que tal juntar recurso? Porque essa experiência no centro, nessas articulações, a gente tinha... É juntando que você possibilita. Junta caco daqui, dali”. Propusemos. Saímos de lá como uns ETs. “Que história é essa de juntar todo mundo, as forças, um pedaço daqui.” E um pouco desafio pra eles era assim, revitalizar desse ponto de vista afetivo, emocional, esses velhos... Outra questão que me angustiou demais, e aí o meu investimento e a minha dedicação de trabalho, tinha a ver com eu reencontrar esses velhos aí. O João Breni já tinha morrido, mas encontrar o Tião, o seu Oliveira, todos os velhos, Dona Maria Velci. Todas essas grandes lideranças que estavam há 50 anos em luta aqui e com quem eu aprendi muito, encontrar muitos deles doentes com depressão. Doenças que visivelmente tinham características... Tinham a ver com a depressão e tinham a ver com esse desencanto todo. A gente lutou pra construir um país, um mundo. Imagina agora como eles estão, que só piorou. Mas já tinha um desencanto dessa coisa assim, sei lá, o que a gente conseguiu, não conseguiu. E muito desanimado, porque toda essa estrutura da igreja despencou, essa coisa toda. Então eles não tinham mais utilidade. Muita gente doente, eu falei: “Não, resgatar essa memória, valorizar essas pessoas, é também um modo de tirá-las dessa depressão”. Então esse compromisso, essa relação com esses velhos mestres que eu conheço vai durar até o fim. E juntar essa coisa desse fogo deles e vamos botar fogo, incendiar e tal. E essa é uma das maiores vitórias que eu tenho muita honra de ter conseguido.
P/1 – E você faz parte da Quilombaque hoje?
R – Faço.
P/1 – E você faz parte de coração e tem função especifica aqui?
R – Sim.
P/1 – Qual?
R – Eu digo que eu cuido do desenvolvimento institucional. Essa parte de ajudar a produzir conteúdo, a pensar formação, a pensar estratégias, planejamento estratégico, essas coisas todas. E de um desafio, esse da convivência, porque esse pra mim, eu sempre tive claro, as grandes ideias etc., mas que morriam por conta da dificuldade das pessoas de conviverem umas com as outras, isso é fatídico nos grupos, eles se desintegram com muita rapidez. Como eu vinha dessa coisa da experiência de vinculação, de afeto, dessa coisa da gestão e mediação de conflito, então essa visão eu tinha e achava que poderia contribuir nisso. E sempre tive muito claro, se conseguir ficar junto, a ideia anda, senão a ideia morre. E ver grupos que acabaram de pegar financiamento e acabarem.
P/1 – E aqui você via como? Vê como isso que você acabou de falar? Na Quilombaque?
R – Olha. Tudo é muito circunstancial às vezes. Mas acho que esse princípio de delinear muito bem o que é atitude. A opção pela atitude, não por títulos, ou por clubes. Isso já era muito forte, não fui eu que trouxe. É desse movimento coletivista na cidade que se relaciona muito pela atitude e não tanto pelo discurso. Na atitude correta, enfim. Então tem uma firmeza nisso. É muito forte. Eles aqui muito mais forte ainda, já tinham isso. Na época chamava Os Ramelões, né? Os que ramelam.
P/1 – Depois eles vão contar essa parte.
R – É. Tinha Os Ramela, tal, não sei o quê, então já era um grupo que já tinha muito essa coisa da atitude. E que tinha muito a ver... Parecido com os queixadas, essa coisa toda. Então as mediações passavam por aí. E acho que assim, valorizar isso como um valor, eu entendia que isso era a sustentação de um grupo. Primeira regra pra conseguir ter um grupo e pra construir uma organização, você precisa ter essa capacidade de lidar com os conflitos. Fiz muitos exercícios. O fato de eu ser mais velho etc. e tal, que eu abuso de vez em quando, bastante, mas me dava certa autoridade. Eu tenho muito boa relação com os pais deles. O Roque gosta de mim e tal, aquela coisa. E também nunca me encantei com essa coisa de não ter noção da minha idade e do meu tempo. E essa experiência de trabalhar com autonomia, com autonomização, eu consegui aprender, a saber em que momento você reduz, tira o pé, como você permite que o outro seja ele. Então é muito disso. Tanto o meu pensar político, quanto físico e energético, é diferente muito dos deles. Mas eu consigo esse papel de educador, eu consigo ter essa paciência e consegui respeitar o espaço e o processo do outro. Eu convivi nesses anos todos aqui com muitas coisas que eu falava: “Já sei onde vai dar. Não vá por aí”. Mas você tem que mediar muito isso para o outro viver a experiência também. Então não adianta. Eu também já fui jovem desses de sair arrebentando o mundo, e eu sei que esse fogo... Então você também tem que permitir o outro... Então o meu papel era meio que ficar por perto, aquela coisa. Mas é também de garantir e preservar que eles tenham essa experiência, o amadurecimento, ele vai também nascendo da... E ajudar nessa reflexão do processo. Então eu sou um educador. Então é isso que eu faço. Mas já fizemos muitos exercícios aqui, de expulsar gente. Já expulsei gente daqui à beça assim. Assembleia, discussão, debate, não sei o quê, rolos...
P/1 – E a relação, Soró, com os que estão fora, ou com a comunidade, ou com Perus? Porque a gente já tá terminando, então só tenta fechar com essa...
R – Acho que um ponto importante, que é assim, desde o começo, e essa compreensão eles também têm e a gente tem, de que construir... Que o acesso à cultura não é só... O não acesso não é só por questão econômica, mas também por falta de linguagem, compreender o que é teatro, é importante, o que isso tem a ver com a sua vida, enfim. Nessa leitura e... Então nós nunca construímos uma ideia que tinha muito na esquerda, enfim, nos undergrounds... Aquela coisa: “Vamos fazer um centro cultural para as pessoas virem”. Nós nunca construímos a ideia de um lugar esperando que: “Olha, agora vocês têm arte e cultura. Venham”. Já tinha essa ideia da arte de intervenção. A gente vai lá à porta. E eles gostavam muito de fazer cortejo, essa coisa. Então nunca trabalhamos com a ideia de: “Olha, tem agora aqui, centro cultural maravilhoso. Venha população”. Não vem. Não estamos com essa expectativa. A nossa expectativa é que esse quilombo, essa circulação, e que a gente vá fazer arte na rua, nas praças, nos lugares, tal. Pra ir criando esse público também. Então não temos essa expectativa que as pessoas... Você chama um filme aqui, as pessoas vêm e lotam. Não é essa intenção e nem tem essa expectativa, senão ele se frustraria. O tipo de arte e abordagem que se propõe às vezes é muito distante da compreensão das pessoas, então você tem que ter um processo. Então acho que isso... E num determinado momento, por conta dessa coisa do parque linear, da ameaça de suprimir a gente daqui e tal, das reflexões estratégicas, uma delas que a gente tirou naquela época, acho que faz uns quatro, cinco anos, é que a Quilombaque precisava ser defendida pela comunidade. E que a gente atingia um público que vem da cidade inteira, de outros lugares e tal, mas de Perus mesmo, muito pouca gente. Então a gente precisava aprofundar isso. E a partir daí a gente começou a estreitar e constituir melhor essas relações. Criamos a Universidade Livre e Colaborativa, esses trabalhos de articulação no bairro que a gente chama hoje de polos dinâmicos dinamizadores, as duas ocupações, biblioteca, a praça. A gente, acho que passou a ser mais conhecido num viés institucional, porque a gente passou a trabalhar e tratar muito melhor essa questão da importância... Eu sempre sou um rigoroso defensor disso, que a gente não crie guetos, em todas as áreas, nem guetos, nem... Enfim, aqui a gente trabalha com a questão da juventude, negros, mas não temos aquele discurso que é só preto, ou só mulheres que defendem mulheres. E também em relação ao conhecimento, não desenvolvendo esse preconceito de falar: “Não, nosso conhecimento nos basta”. A gente tem trilhado muito esse caminho das relações, das parcerias, de conseguir integrar outros conhecimentos, mesmo os vindos da universidade. E sempre tivemos uma postura muito autônoma nesse sentido de falar: “Nós temos capacidade”. Isso era uma coisa muito forte desde o início. Essa teimosia de falar assim: “Queremos, precisamos disso, temos direito disso”. E aí não vem, você vai lá e faz. Fala: “Não, vamos fazer de qualquer jeito, tal”. E esse fazer virou um ato político. Um ato estratégico político. Porque a gente vai lá e desmonta em dois palitos qualquer discurso e se diferencia da discurseira onde todo mundo fala a mesma coisa. Do Maluf, ou não sei o quê, tem os mesmos discursos. Então essa coisa do fazer define e diferencia. Então essa pegada que já tinha, que tem, com a qual eu me identifico bastante, é uma coisa muito mais forte hoje, muito mais sofisticada, nossas construções. A gente tá criando um movimento na cidade, criamos leis, aprovamos leis, enfim, tudo dentro dessa ideia de autonomia, de inverter a lógica como se olha pra periferia e pra juventude como incapaz, como problema. A gente inverter essa expectativa e essa lógica afirmando capacidade. Então todas as nossas experiências nesses anos todos têm sido essas. Não tem desafio que não nos agrade (risos). E se for pra fazer uma luta política, aí que a gente faz com mais gosto ainda. Então esse espírito juvenil, contestador, em mim continua com a mesma idade que ele sempre teve. Só o corpo que vai. Mas como eles são compreensivos comigo, e eu sou meio folgado também, eu não faço nada. Não carrego mais nada. Mas já carreguei palco, não sei o quê. Nossa senhora.
P/1 – Soró...
R – Outra vez em Osasco, a gente desmontando um palco cheio de ferro, não sei o quê, a gente levou um caminhão pra Osasco para o mutirão, um frio desgraçado, não podia nem pegar no ferro. E a gente ainda tinha que desmontar aquilo tudo, encher o caminhão, vir aqui, descarregar o caminhão. Era uma doideira assim que só pra jovem mesmo.
P/1 – Soró, a gente terminou, infelizmente. Então tem muita coisa ainda que você só começou a contar, então a gente vai pegar...
R – Ah, acho que só da Quilombaque, o plano de desenvolvimento local que a gente vem traçando, que hoje ganha uma elaboração bastante definida, melhor definida, e que a gente tá contribuindo com a cidade, acho que é muita história só entorno a Quilombaque. Mas foi essa a minha história de volta pra Perus, meus filhos foram criados aqui. São pessoas que tem acesso à arte e à cultura, que não teria na periferia, e tem. A Quilombaque é esse lugar. E essas crianças minhas, as dos meus amigos aqui, são criadas num ambiente onde há multiplicidade...
P/1 – Agora, essa... Só essa. Teria que ser muito sucinto pra responder, mas essa relação com esse grupo que tava no pancadão, e você se fortalecendo, ainda continua do jeito que era antes, ou teve alguma diferença?
R – O funk ganhou alguma organicidade, seja para o lado do crime ou para o lado do próprio espetacularismo comercial, mas também sofreu muita repressão e foi afastado para os cantos.
P/1 – Mas tem conversa entre vocês e esses jovens?
R – Só pra bater... Enfim, a gente tem uma conversa com a Liga do Funk de esse ano selar essa relação funk e esse universo aqui. Porque a Liga do Funk já tem trabalhado mais essa coisa de retirar determinadas coisa do funk, como o olhar pra mulher, determinadas posturas política e ideológicas. Com quem a gente sempre debateu com o pessoal do funk aqui. Porque eles reclamavam: “Ah, por que só a gente que não cai pra dentro, não faz nada na Quilombaque, tal, não sei o quê?”. E a gente sempre discutiu essa coisa da postura, do olhar, da visão sobre a mulher, sobre a questão da violência, da apologia ao crime, que a gente não faz de jeito nenhum. Não podemos ficar gritando assim: “Somos contra o crime”. Mas não fazemos apologia nem de discurso, nem de operacional em relação ao crime. Pra gente, a questão da violência e da marginalidade é algo muito sério e que a gente não vai se alinhar. Mas isso não significa a capacidade, porque a gente vive aqui, como se relaciona. Mas conseguimos até hoje ter uma independência em relação ao crime e o seu poder financeiro etc. e tal. Basicamente, a gente é pobre, passa fome, mas diz: “Não, muito obrigado”. Passando fome, mas não aceitamos nem abrir a conversa para o crime, ou qualquer outro tipo de dinheiro, de... Vários já vieram: “Ah, faz a emenda assim, só que devolve um milhão aqui, e um milhão é pra você”. Então a gente não abre campo pra esse tipo de conversa. Temos um orgulho danado de sermos pobres, mas honrados (risos).
P/1 – (risos).
R – Adoro essa parte, cara. Muito louca essa parte. Mas construímos nossa personalidade, nossa identidade, baseada na dignidade, na conduta. Então hoje meu maior orgulho, assim, é que os jovens aqui nesses grupos sociais, políticos, do bairro, etc. são extremamente respeitados como pessoas capazes. Os próprios professores deles dizem: “Nossa, tô aprendendo com...”. Então eles são respeitados, não são mais temidos. Também são temidos, Em qualquer lugar que a Quilombaque chega, ela apavora, não tem jeito. Na secretaria, no movimento. Quer chamar pra porrada, eles chamam a Quilombaque pra ir na frente. E a gente não perdeu essa característica, mas ao mesmo tempo ganhamos reconhecimento intelectual, da capacidade da inteligência, da sensibilidade, de ter capacidade de lidar com as coisas complicadas e escondidas. Isso a gente não tem problema com as hipocrisias. Mas, fundamentalmente, essa imagem de que a arte, o que eles fazem, as habilidades, as capacidades, são maravilhosas, tal, são respeitadas hoje. Então não se olha a categoria jovem, problema, maconheiro, não sei o quê. Olha-se o artista, o educador fundido. Então essa conquista, eu acho que na relação do bairro, eu acho maravilhosa assim, eu acho que é necessário e fundamental.
P/1 – Muito bom. Terminamos assim, sem terminar, certo?
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