P/1 – Luzia, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Primeiro, eu gostaria de agradecer por você ter vindo ao Museu e aceitado o nosso convite. E queria começar pedindo pra você falar pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Luzia Rodrigues de Dios, eu nasci no dia seis de dezembro de 61, quer dizer, daqui a três meses faço aniversario de novo, em São Bernardo do Campo.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meus pais são espanhóis, Angela de Dios Rivera e Jesus Rodrigues de Dios.
P/1 – Eles são espanhóis e vieram pra cá?
R – Sim, vieram na década de 50, como um monte de imigrantes, acreditando no sucesso do Brasil. Um chegou no Rio, outro em Santos, se conheceram em uma das indústrias Matarazzo em São Bernardo, e aí começou uma história e depois eu cheguei.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Não, não tenho irmãos. Eu brinco dizendo que, na verdade, meu sangue é 100% espanhol, meu sentimento 100% brasileiro e acho que esse mix que ao mesmo tempo que eu tenho rigor e tenho sentimento mais amigável, afável, que o brasileiro tem.
P/1 – E seus pais são de onde na Espanha?
R – Eles são da Galícia, do interior. E a gente vê hoje todo mundo falando em reaproveitamento e um monte de termos, que eles faziam pela própria guerra e pela própria necessidade, eu fui criada assim. Apagar a luz, não gastar água, não desperdiçar alimento, sempre fez parte da gente. E hoje o mundo está tão... Os valores sem valores, que esse resgate tá sendo importante olhando com o modo 2011, vamos dizer assim.
P/1 – E você chegou a conhecer seus avós?
R – Conheci. Conheci um avô em 74, quando eu fui pra Espanha. Porque eles, como todo jovem disseram: "Ah, eu vou até aquele país, depois volto". Eu também! Quando eu saí pra estudar, falei a mesma coisa e não entendia porque minha mãe chorava: "Ah, daqui quatro anos eu to aqui". Ela falou: "Eu falei a mesma coisa". Eu falei: "Ah, tá viajando". Como todo filho acha que os pais estão viajando. E depois a gente vê que cada um toma um caminho. E foi muito importante porque na escola as crianças tinham os avós, tudo, e eu nunca tinha avô e ficava sempre adotando, sempre vou pela vida adotando, acho que é por isso que eu parei onde estou, sabe? Vai adotando e vai criando vínculos.
P/1 – E como era a São Bernardo da sua infância? A sua casa? Onde é que vocês moravam?
R – Bom, pra você ter idéia, onde eu morava hoje é o jardim da prefeitura (risos). Então, era lá o terreno que eles compraram e construíram, eu tive uma infância super com liberdade, mas sempre vendo o exemplo dos dois, então, construir é possível. Meus pais já faleceram há três anos, e aí, meu pai dizia assim, quando ele chegou no Brasil já tinha crise, se ele for esperar a crise passar... De fato ele já viajou e a crise continua, então, na verdade a situação são as pessoas que criam, né? E assim foi todo o processo. Depois nós mudamos pra uma rua famosa, que é a rua da Cidade das Crianças, que hoje estão revitalizando, um espaço bem bacana, que na época era da Transamazônica, muito jovem já. Mas agora tá ficando em moda de novo falar sobre isso. Então, esse resgate é bem importante, a gente foi criado com muitos valores e a importância. Até que, quando eu tinha sete anos, eu brinco que meu pai teve uma feliz idéia de ir pra Santos, porque nós só tínhamos família lá, a referência que tinha de irmã. A gente sentia muita falta de família, então, eu brinco que por acaso eu nasci em São Bernardo, é uma brincadeira. Mas eu amo mesmo Santos e fui criada lá depois dos sete anos, aí, só saí pra estudar, efetivamente.
P/1 – E como é que foi a mudança pra Santos? De você antes ter a cidade, tal, ter a praia, como é que foi pra você passar a infância lá, o que você fazia?
R – A minha infância em São Bernardo foi sempre muito bacana, em que aspecto? A minha mãe, como mulher, e na época nem era tão comum, minha mãe sempre trabalhou fora, aí, quando eu nasci ela fez a opção pra ficar perto do filho. E a primeira coisa que eles fizeram, chegaram a um acordo, e ela saiu do trabalho. Como ela costurava na Espanha quando criança, falou: "Vou fazer disso porque dá pra criar minha filha". Eu fui criada do lado de uma costureira, e nunca quis aprender a fazer nada. Acho que com quatro anos eu sabia por até botão, eu me lembro de um vestidinho de veludo azul de uma cliente, eu enchi tanto a minha mãe: "Não pode, é da cliente", mas eu fiz um pedacinho, centímetros, e aquilo me faz lembrar isso, uma época que eu sabia fazer algo. Então, eu acho que eu fui criada por essa mulher que tinha esse espírito mais empreendedor. E até que depois, com uns cinco anos, ela decidiu comprar um espaço, uma banca de frutas no mercado municipal. Eu brinco que eu já cumpri minha época de comer de marmita, tudo, até os sete anos de idade, porque eu ia direto com ela e a gente achava o máximo vir a São Paulo toda sexta-feira no Mercado da Cantareira comprar, esse movimento dela poder criar, fazer, e sempre muito independente. Acho que isso foi uma experiência maravilhosa porque ao mesmo tempo eu conseguia estudar, eu fazia todas as atividades que todas as crianças faziam, e com muita liberdade. Só que eu não gostava de fruta, sabe? Mas em frente a essa barraca tinha uma barraca maravilhosa, acho que era de doce. E fazia ao mesmo tempo café. Antigamente, porque agora é VIP de novo, ele moía o café, eu achava o máximo preparar aquilo. Em contrapartida eu ganhava um chocolate, então, imagine em que barraca eu ficava, né? E assim foi o processo de construção. Quando mudou pra Santos, de repente a gente perdeu isso. A gente convivia com muitas pessoas, muitos imigrantes. Eu tinha um sonho de ir pro Japão porque do lado da minha mãe tinha banca de verdura e era de japoneses. Eu ficava imaginando aquelas casas lindas, eu até brincava: "Nossa, eu vou namorar com um japonês pra poder ter a garantia de poder conhecer o Japão" (risos). E quando a gente veio pra Santos, isso mudou totalmente. Mas aí, tinha o lado da família, que era uma coisa bem importante e o mar. O mar pra mim, nem é entrar no mar, mas aquela brisa, quando você sai todo dia, fazer parte do seu ritual olhar o mar, faz toda a diferença. Essa é uma das grandes dificuldades pra acostumar em São Paulo, eu sinto muita falta, mas como está a uma hora de distância, eu sempre estou muito lá. Eu vivo em São Paulo, mas eu sou de Santos eu brinco, eu sou de Santos e estou em São Paulo. Em Santos é engraçado, porque parece uma cidade tão pequena, e é uma cidade dormitório, você vai a qualquer lugar e tem um santista, é incrível. De onde prolifera tanto jovem, tanta gente aí? Mas tudo remete me àquela coisa de estar em casa, sabe o voltar pra casa? Aquela curva que faz na estrada, em especial a Anchieta que faz aquela curva e a gente vê o mar, depara com uma coisa muito acolhedora. Então, pra mim, São Bernardo foi esse movimento de conhecer um pouco o mundo de uma forma diferente, bem pequena, do trabalho, vamos dizer assim, e Santos foi minha colônia de férias, acho que é assim. Aí, fiz vários cursos, tudo movido com bicicleta, enfim, foi muito boa.
P/1 – Luzia, se você pudesse, queria que você contasse um pouquinho mais da banca da sua mãe. Como era o espaço que ela tinha, como que estavam dispostas as coisas, se você se lembra disso, dos cheiros?
R – Era muito engraçado, meu pai era aquele cara que não troca o certo pelo duvidoso, se é que posso chamar assim. "Vamos, trabalho, porque sei que no final do mês vou ter aquele valor". A minha mãe já teve sempre esse espírito, e eu acho que eu sou a mescla dos dois. Exatamente a mescla. Então, quando ela inventou isso, meu pai disse: "Não, imagina, e se não der certo, e se, e se...?" "Não, eu vou fazer”. Tanto é que ela comprou, ela que ia atrás de tudo, fazia tudo". Como era isso? Eu era muito feliz como criança porque eu gostava desse cada hora estar em um lugar, de arrumar, e aprender, autodidata, a necessidade fez isso. A fruta, efetivamente, por que fruta foi uma oportunidade de negócio. E hoje, eu adoro fruta e falo: "Nossa, quanto que eu desperdicei". E eu achava o máximo assim, ela era uma mulher bem baixinha e como todo baixinho, poderoso, invocado. Então, eu já achava o máximo quando a gente subia no caminhão e precisava alguém ajudá-la pra ela subir. Falei: "Como é que essa mulher pode ser tão respeitada se é tão assim...". Ela sempre foi minha ídala, sabe? Nesse sentido de conseguir, descobrindo. Era uma luta porque eu ia sempre pra banca de doce e ela fazendo chantagem comigo, como me atrair pra ficar ali. Como é que era? Eu olhava o tamanquinho, não sei onde numa loja, e ela me falava: "Vem me ajudar pra ver se você consegue conquistar". E sempre amei sacolas, mal sabia eu onde ia parar, em que momento da vida iria usar isso. Então, foi um grande aprendizado. E, nesse espaço tinha também, quando você fala assim o que me lembra mesmo dali, a mim me lembra mais o ambiente do que a barraca da minha mãe (risos) porque é onde eu menos parava, porque o que eu gostava é onde tinha roupas e onde tinha doces. Eu lembro que eu fazia mais amizade e por ser faladeira, ficar conversando, logo estava no meio e com as outras crianças. Gostava de ser a líder ali, as crianças não gostavam de ficar na banca dos pais, queriam brincar. A gente se reunia e ia fazer a brincadeira. E eu lembro também que perto dali tinha um clube, e daí, claro, no carnaval eu queria ir pular a matinê. E a minha mãe se reunia com as outras mães e levava a gente. Foi sempre muito, acho que se eu estivesse em casa seria muito mais isolado porque eu sempre convivi com muitas pessoas, e muitas pessoas diferentes. E por mais que meus pais fossem europeus, e até por meu pai ser mais do interior, às vezes, tinha mais preconceito, até de misturar raças porque foi educado assim, nem é porque ele era assim. Então, lá a gente convivia com todas as raças e todas as cores. Isso fez muito bem pra minha convivência na vida. No começo meu pai até achava estranho e não achava muita graça. Tinha um amigo que era português, imagine, no comércio, o que você mais tem é variedade de gêneros. E ele não achava muita graça, mas aos poucos ele foi vendo que era assim. O modo como ele foi criado, eles foram criados, era totalmente diferente, era numa aldeia, e na aldeia só vivia ele e os familiares basicamente, não tinha essa abertura, foi muito rico. Quando eu lembro, é muito bom. Eu acho que foi até a base, sem eu saber, para onde as coisas foram sendo levadas. Quando você fala do cheiro, tudo, o que eu mais lembro é da jaboticaba. Eu frequentava assiduamente durante o mês de setembro a barraca da minha mãe porque eu queria ganhar, eu ficava brincando e ela falava: "Você não pode pegar daqui". Outra coisa que eu gostava era arrumar a banca. Mas o que eu mais gostava ainda, e os clientes faziam como uma brincadeira porque eu devia ter uns cinco anos, foi de cinco a sete anos, esse período, minha mãe conta e eu lembro de um fato desses, que ela falava: "Você olha direitinho, vê se o cliente não tá pegando a mais". Lembro de uma senhora que foi pegar laranja, ela pegou 13, aí, eu virei pra minha mãe e falei assim: "Mãe, uma dúzia não são 12?", e ela fez exatamente brincando. Eu gostava muito das coisas dos números, eu gostava de por o preço, porque eu tava começando a me alfabetizar, por os números, fazer as plaquinhas, isso aí eu gostava. E saber pegar o dinheiro, se tava certo ali, se não tava, dava o troco certo, nesse parque que minha mãe me conquistava, não pela fruta efetivamente.
P/1 – E você contou que vocês iam fazer as compras no Mercado da Cantareira. Quais lembranças você tem daquele lugar, da sua viagem com a sua mãe, desse momento com ela?
R – Até hoje é muito importante quando eu vou lá ao centro e consigo ir ao Mercado da Cantareira porque aqueles corredores, ele preservou como ele era. Claro que agora tá mais varejo porque tem o Ceagesp, antes não tinha. Tinha que efetivamente ir na Cantareira, mas tem uma parte lá, quando você entra logo à direita, que ainda é essa venda por atacado, e era a parte que a gente andava. Hoje bem menor, porque agora é mais varejo. Mas me lembro exatamente assim, pegar aquele carrinho pelo corredor, acordar de madrugada, e todo mundo respeitando, já sabia o que ela queria. Eu achava o máximo isso, né? Eu gosto muito de chegar, ir no lugar e as pessoas saberem quem você é, ainda mais em São Paulo, às vezes você tá no elevador e nem bom dia dá. Eu fui criada muito com isso de saberem quem é, falar pelo nome. Então, o comércio traz uma aproximação muito interessante, quer dizer, para mim foi interessante, eu achava o máximo, sair dali, ir pegando as coisas. Depois ela separava tudo, a gente começava a puxar o carrinho, mas não conseguia. Eu ainda pequena ia de carona, e aí, vinham os rapazes, porque uma mãe e uma filha, os cavalheiros gentis ajudavam. E aí, levavam pra um espaço e no final da manhã vinha um caminhão que levava a gente pra São Bernardo pras compras. Então, o que me remete lá? Esse contato, é uma alegria. Eram quatro da manhã, mas parecia dez da manhã, porque aquele agito, aquela conversa. Por isso quando até na feira livre colocaram de não fazer os sons, eu falei: "Gente, vai tirar a característica da feira!". Tudo bem que tem coisas que atrapalham, né, mas tudo com bom senso porque é esse dinamismo que aproxima o comércio. O que faz a diferença? Por exemplo, onde minha mãe tinha a banca de fruta, era uma do lado da outra, assim como você vê no Mercado, no Ceagesp. O que faz a diferença? É o sotaque de cada um, é a maneira. Claro que a qualidade do produto, óbvio, mas mais do que isso, porque isso é o básico, é a maneira como aquilo acontece. É uma troca muito grande. E eu descobri que eu gosto disso. Quer dizer, não sabia na época o que era, o que significava o comércio. Então, o comércio representou isso, conhecer pessoas, e muito um ajudar o outro, tem muito isso. Às vezes parece que as pessoas estão muito na delas, mas está um observando o outro no sentido de ajudar mesmo. Porque estão todos na mesma situação, né?
P/1 – Você falou bastante da atividade da sua mãe. E o que o seu pai fazia?
R – Meu pai sempre trabalhou. Meu pai veio pro Brasil na época da explosão, o primeiro trabalho dele foi na Mercedes-Benz. Ele desembarcou em Santos e falaram pra ele que as indústrias estavam em São Bernardo, por isso o motivo dele vir pra São Bernardo. Então, ele faz parte dos primeiros pontos da industrialização, São Bernardo foi onde aconteceu isso, por isso hoje virou uma cidade que só tem indústria, mas é de serviço, mudou totalmente o perfil. E ele sempre trabalhou em construção mesmo. Ele era carpinteiro, depois mestre de obras, sempre ligado à construção. Então, foi ele e minha mãe que construíram a casa. Tudo o que eu me lembro do meu pai ter feito, foi ele que fez, efetivamente foi ele que fez, de construir. Encontrava de manhã e só retornava à noite. E eu convivia muito com ela, por isso que a minha aproximação com ela. Ele como todo bom pai era o lado racional, e ela aquele lado todo espontâneo. E o filho, por exemplo, quando pediram fotos, coisas assim, o meu pai achava que tudo isso aí, primeiro que já não era tãoooo normal ter álbuns de fotos assim, tinha que ser um evento bem importante. E tudo isso ela dava valor. Então, obviamente, quando a gente saía pra dar uma volta na Cidade das Crianças, por exemplo: "Você já comeu, já ta tudo certinho?", criança, queria fazer tudo, né? Eu queria pipoca, eu queria andar na Lessie, quem frequentava São Bernardo nessa época, era um dos cachorros super bonitos lá no passeio, todo mundo queria participar. É por isso que eu acabei convivendo mais com ela. Agora, ele, ele é o meu prumo no sentido do lado racional mesmo, sabe? Da vida prática. Como nós vamos fazer? E uma coisa assim, apesar dele ter ido até o primário que era o máximo na época, de 50 e pouco, pelo menos na aldeia, porque a partir dali também não tinha, então, ele sempre, ao contrário, tudo o que, entre aspas, falava pra olhar pra não ter gastos, o que eu inventasse de estudar, ele sempre achava que esse é o caminho. E sempre falava que a gente tem que ser o cidadão do mundo, não pertencer a um lugar. Então, o estudo que me levou a sempre, foi até o que convenceu a mudar de Santos. Imagina, não passava nem férias longe deles, por ser filha única e tudo o mais. Mas o estudo sempre foi meu grande aliado, no sentido de poder construir as coisas, e isso ele achou sempre muito importante. Se em alguma coisa eu fiz um caminho não muito legal, jamais foi por conta deles, muito pelo contrário, né? Foi bem... Mas acho que tudo tem um sentido, né? O que eu fiz? Na época, a gente fazia inglês, porque francês tinha escola. Música. Sempre a música foi muito presente. Eu fazia balé, dei aula pra crianças, eu fazia piano. Eu brinco que o primeiro ciclo da minha vida até os 18 anos foi esse: estudar, dar aula de música. Depois eu comecei outro ciclo, aí, eu já to no meu quarto ciclo. O segundo foi quando eu fui pra faculdade, ainda em Santos, eu gostava de Exatas, mas tinha que ser professora. Eu não queria ser professora. Aí, eu ouvi falar que tinha uma tal de computação. Não sou tão velha assim (risos), mas, não era comum, né? E só homem se inscrevia. O meu pai falou: "O que você vai fazer nesse negócio? Não é de futuro", eu falei: "Ah, mas eu não quero dar aula". Mas no fundo, mesmo, eu queria agregar isso a ter uma experiência fora de casa. E como eu sabia que o meu grande aliado era o estudo, foi esse que eu fui. Aí, eu fui estudar em Campinas, fazer Computação. Realmente, a maioria era homem, então na área profissional eu sempre trabalhei muito com homem, que eu acho bem legal. Hoje, ao contrário, eu trabalho muito com mulher, e você vê o contraste desses dois olhares, né? E fui pra fazer essa experiência e atuei durante 20 anos nessa área.
P/1 – Antes de a gente falar dessa sua ida à Campinas, eu queria que você me falasse da sua primeira lembrança da escola, o que você traz disso, como é que ela era?
R – Por minha mãe sempre trabalhar, eu fui logo pra escola. Naquela época não era, naquela época, tá ficando tão pesado isso (risos). Mas é que não era comum você com três aninhos ir pra escola, não era comum. Você ia com sete anos porque era a idade mínima pra frequentar o primeiro ano. Mas como ela trabalhava, ela queria que eu convivesse com criança. E essa minha primeira escolinha, que a minha professora é minha xará, ainda existe, só que agora, cheia de muro. Mas tinha um viveiro maravilhoso de pássaros e toda vez que eu vou pra São Bernardo eu faço um ritual pra passar ali em frente. E tinha a casinha de bonecas, era o máximo! Eu achava muito importante, ir para escola era algo... E a gente tinha o travesseirinho, à tarde tinha a hora do soninho, era o momento muito de me relacionar com as crianças e eu tenho saudades. Foi lá que eu tive contato com a música. Foram os primeiros... Eu fui três, quatro, cinco anos. O que minha mãe fazia? Essa escola era perto da banca, do mercado, então, ela me deixava lá e me buscava à tarde. E quando ela me buscava à tarde, eu ia brincar com meus amigos que também estavam saindo da escola, esse que eu falei que era o japonês e todos os outros imigrantes que eu achava o máximo, né? Cada um que eu fazia a amizade, que o pai era de outro país, eu achava que era a oportunidade de eu conhecer (risos). Ah, minha viagem! Eu gostava de coisas diferentes! E tinha um rapaz que hoje chama especial, mas pra criança não tem isso, todo mundo é normal. Acho que essa possibilidade de conviver com o diferente é que vai amadurecendo o seu olhar para a vida. Não foi nada intencional dos meus pais, nada disso, foi a preocupação de eu me integrar mais com criança.ficam O filho único tem uma vantagem, ele tem que ser bem criativo, porque ele tem que ser todas as personagens. Então, pela necessidade ele acaba desenvolvendo algumas habilidades, que quando você tem irmão é mais fácil, porque o irmão já é a personagem. E tenho até hoje, porque fiz uma mudança, o tal do desapego, tem algumas coisas que você tá me fazendo lembrar, eu guardo até hoje a minha primeira pastinha que eu acho o máximo, dos desenhos. E depois eu comecei a brincar com aquelas pastas, eu já era professora, e aquilo foi aumentando, né? O que me remete muito é assim, eu tive muita liberdade, em nenhum momento trabalhar da minha mãe foi estar separada de mim ou eu não poder ter liberdade, ao contrário, ao contrário. Desde que eu nasci até os três aninhos foi quando ela parou de trabalhar fora de casa e começou a costurar. Ali eu era mais isolada até, ali eu tive que brincar mais com minhas personagens. Então, eu achava o máximo, imagina, eu ficava esperando o cara, a hora que ele ia varrer a rua, porque era minha oportunidade. Eu já pegava a vassourinha e queria varrer a rua, eu queria era contato com as pessoas, engraçado isso, né? Então, sair de casa expandiu muito mais a minha vida. E pras crianças, dos meus vizinhos, que hoje continuam sendo meus amigos, mais de 40 anos depois, eles também achavam o máximo porque era uma mãe que trabalhava, era uma mãe muito moderna pra época. Eles achavam o máximo minha vida porque, lógico, eu vivia em aventuras, tudo isso que eu to contando eram aventuras, né? E não ir pra escola, voltar, ir pra escola, voltar... Cada dia era uma coisa diferente. Quando eu chegava pra contar as histórias era... Tanto é que a gente se reunia, imagina, os pirralhos, e a gente morava numa casa pequena. E eu queria dormir com meus amigos todos em casa, final de semana, quem não gosta disso? A gente tinha cinco anos, imagina os papos que a gente tinha, não era tanto papo pra madrugada, mas eu ficava contando as histórias e a gente queria ver o sol nascer. A gente dormia na sala porque dormia com os amigos, meu pai no quarto lá: "Tem que acordar cedo amanhã!", e a gente queria ver o sol nascer, mas nunca conseguia, porque chegava quatro da manhã a gente dormia, era um desafio, mas era um desafio tão bom que a gente vivia fazendo isso (risos)! E hoje, quando a gente se reúne, porque eu não tenho muitos amigos novos, eu tenho amigos velhos, é engraçado isso, né? Amigos mesmo, que um faz diferença na vida do outro e não precisa estar se vendo toda hora. E quando a gente se reúne, essas lembranças são tão presentes que nem a gente tinha idéia de quanto marcou, mais ou menos por aí.
P/1 – Você falou dessa sua primeira escolinha. E como foi depois a escola em Santos, e agregando outras atividades, como balé, música?
R – A gente mudou pra Santos em julho de 71. Putz, meio do ano, já é complicado pra criança, sete anos, meio do ano, mudar de escola, de cidade. Eu lembro que quando a gente pegou a mudança, era um caminhão normal, eu, minha mãe e meu pai fomos na cabine, e o cara lá dirigindo. Aí, quando pegou aquela estrada, eu vi aquela praia assim, eu falei: "Nossa!". Eu achei que eu estava de férias porque pra mim Santos tinha sempre sido férias. Aí beleza, tudo bem. Minha mãe me leva na escola. Eu já não achei graça da escola porque eu não conhecia ninguém. Aí, quiseram ver o que eu aprendi pra ver se eu podia acompanhar, tal. Ah, tudo bem. Era a Azevedo Júnior, a escola. Então, assim, não foi fácil a adaptação porque eu sentia muita falta dos meus amigos, mas eu também sou muito faladeira, né, dei sorte também com os professores, quando eu fui pra lá já tava começando a ter dois professores, porque antigamente no primário era só um, né? Na minha época já eram dois, a professora Josefina e a professora Elza; eu me lembro perfeitamente disso porque eu detestava Português, mas tinha que aprender, né? E aí, ela sabiamente fez uma gincana e quem ganhasse iria conhecer Bertioga, que era uma praia bem bacana, imagina, aí fui estudar Português, ganhei, só pra ir pra Bertioga. Então, eu também tive boas experiências que souberam de uma forma lúdica me incluir ali. Elas se empenharam bastante e essa professora em especial, Josefina, de Português, foi minha professora até o ginásio, então, ela é um grande marco da minha mudança. Aí, o que foi acontecendo? Em Santos, tudo é perto, então, eu fui tendo mais liberdade pra poder andar um pouco mais sozinha, porque o meu pai não deixava antes. Às vezes, a minha mãe, mãe sempre dá, né? Ela fica apreensiva, mas deixa. E aí, eu comecei a andar e a sentir liberdade. E uma outra coisa: ter o meu quarto. Eu não tinha o meu quarto, então, pra mim isso era o máximo! Adivinha que cor que ele era? Cor-de-rosa, obviamente. Então, o meu quarto era um mundo. Era um mundo e eu achava essa independência o máximo! Tanto é que com oito anos, que foi um ano depois, minha mãe teve um problema seriíssimo de saúde, saiu pra uma consulta em Campinas e demorou um mês pra voltar. E o que foi a minha decisão? Imagine, uma pirralha de oito anos, que ninguém ia tomar conta de mim, que eu ia tomar conta sozinha. E fiquei lá. Meu pai ficou com ela em Campinas e eu fiquei lá. E acho também que essa mudança marcou. Eu gostava desse negócio de individualidade, de eu ter meu espaço, e a vida também fez com que logo eu tivesse que exercitar isso. Que foi difícil, mas foi bom. Era até engraçado porque eu só vivia junto deles, então, imagina uma criança de oito anos querendo fazer as coisas, fazer a comida pro pai, era o máximo. E eu nunca quis aprender nada, mas eu sempre estava de olho. Acho que eu brinco que eu guardava minhas reservas só pras necessidades porque o meu pai brincava que se a gente começa a fazer, já vira a nossa obrigação, então, as pessoas não podiam saber muito o que a gente podia saber só pra não virar: "Tem-que-fazer", sabe? Tem que fazer é complicado. Então assim, a mudança pra Santos teve esse momento bacana, dessa liberdade individual, no ano seguinte, foi difícil, bemmm difícil, mas quando a minha mãe voltou foi uma alegria enorme, e aí eu comecei a fazer outras atividades. Então, tinha o conservatório que não precisava atravessar a rua, ah, então meu pai já deixou, não precisava atravessar a rua. Aí, eu comecei a fazer piano. Na verdade, mesmo, eu comecei a fazer com a minha vizinha. Eu ouvia o som, morava no apartamento de baixo e eu cismei, minha mãe tinha uma penteadeira, que hoje é tudo cool, lindo, aquela penteadeira antigona, era meu piano. Então, quando a professora começava a aula lá embaixo eu ficava lá em cima, dedilhando. E aí, minha mãe me colocou lá pra ver se eu gostava, eu gostei. Quando viu que era mais sério, depois de dois anos eu fui pro conservatório que não precisava atravessar a rua. E aí, veio a história do balé, porque eu também queria ser independente, e aí, ela falou: "Você aprende isso, você ganha bolsa de outra...". Eu sempre fui tentando como ser independente sendo dependente. As minhas trocas de estudo eram sempre assim, como eu iria conquistando mais espaço. Quando eu comecei a dar aula, já não pagava o conservatório, já ficava ótimo, porque também eu sou da época que estudar em escola particular era uma vergonha, porque a gente fazia vestibulinho. Não sou da época da Admissão – essa é mais longe – mas sou da do vestibulinho, de quando ia do ginásio pro colegial. E quando você não passava, você falava o nome da escola, putz, se era particular você falava: "Nossa, o cara foi mal". Hoje é o contrário, né? Hoje os valores estão tão deturpados que o que a gente tinha mais assim, que era a educação em colégio público, hoje acaba sendo complicado esses valores. Por isso me dá tantas saudades, de como a gente tinha coisa tão natural, vivia tão melhor nesse aspecto de valores. E assim foi indo, fui dando aula e aí, fui cada vez mais me apoderando. Aí, fui estudar inglês, sempre era em troca de. Eu queria ficar sócia do clube: "Ah, então, você tem que passar de ano". Sempre tinha o estudo. O estudo era o meu aliado para eu conseguir a minha liberdade, se é que eu posso dizer. Até que com 13 anos, meu pai tinha uma bicicleta que eu achava o máximo, cheia de sinalzinho, buzininha, que ele tinha o maior xodó e, logicamente, eu queria exatamente aquela. E ele com medo que eu caísse, nunca deixou eu aprender. Aí, eu tive que aprender com meus vizinhos na rua, bicicleta sem breque. Na época, a gente usava um tênis conga que coitado, ele era o nosso breque. E um dia eu peguei a bicicleta dele, dei uma volta e me senti o máximo, mas depois não mais porque ele descobriu e descobri que não era por aí. E fui conquistando aos poucos a confiança dele e, com 13 anos, ele me deixou ir na cidade pagar uma conta, aí eu me senti poderosíssima, né? Imagina, ir ao banco, fazer isso. Então, Santos deu muito essa base. O que eu vivi com minha mãe muito intensamente por causa do trabalho em São Bernardo, eu comecei a ter o meu espaço, de poder realizar em Santos porque ele se sentiu mais seguro. Aliás, esse foi o motivo deles mudarem, sentiram que eu teria mais liberdade e estariam mais próximos à família, foram os dois itens de mudança deles pra lá.
P/1 – E o que essa Luzia, menina, queria ser quando crescesse?
R – Ah, ela queria ser aeromoça, lógico, né!? Porque ela vivia cheia de amigos que os pais eram imigrantes, eu queria viajar! Aí, eu descobri que era uma profissão e eu não teria que pagar! (risos). Então, obviamente, eu queria ser aeromoça. Hoje eu to o dobro do tamanho, mas antes eu era mignon, quando eu tinha 17 anos eu fui ver o que precisava, não podia usar óculos, na época, eu não usava. Teoricamente, eu tava podendo concorrer, mas quando eu cheguei pro meu pai, ele falou: "Não! O quê? Filha minha viajar? Não, só tenho uma filha". E, aos poucos fui abdicando, mas eu era fissurada pra ser aeromoça, eu amo viajar, conhecer pessoas, lugares. Aí, quando eu vi que não ia dar muita trela, eu falei: "Pô, mas eu preciso voar de alguma maneira". Fui estudar fora da cidade, foi o meu primeiro vôo. Essa menina, como ela não pode ser aeromoça, ela gostava de Exatas, não queria ser professora, foi fazer Computação. E aí, começou uma outra trajetória de começar a voar sozinha, quer dizer, sempre o estudo é meu aliado, né?
P/1 – E como foi essa mudança, de alçar vôo sozinha, ir pra Campinas, uma outra cidade, um período de adaptação, de estar longe dos pais?
R – Bom, como eu não sabia se iria passar no vestibular, e pro meu pai não ficar estressado antes da hora, eu não contei nada. Não sei se eu vou passar. Eu fiz o vestibular. Na época, pra fazer Campinas, a gente tinha que vir em São Paulo, descer na Estação da Luz, pegar um ônibus. A Estação da Luz é outra... São Paulo é cheia de pontos bacanas. Descer na Estação da Luz e pegar um ônibus pra ir pra Campinas. Eu não sabia nem onde era Campinas, não tinha noção. Eu só vi no negócio do vestibulinho que era a cidade mais próxima, nos livros, e que tinha o que eu teoricamente queria. Eu falei pro meu tio, escondido, que morava em São Paulo, como eu chegava em Campinas. Eu vim passar um fim de semana, ele me indicou onde era, me levou lá na Estação da Luz e eu parei. O cara falou: "Aqui é Campinas", "Legal" "Aqui é a rodoviária" "E onde que faz o vestibular?" "Lá na Dom Pedro, na estrada" "Bacana". Foi assim, não tinha noção do que era. E em paralelo, eu estava prestando em São Paulo também. Porque se eu não passasse, pelo menos estava em São Paulo. Mas eu não queria estar em São Paulo, porque daí estaria com os meus parentes, não era essa a minha viagem. Aí, quando eu passei, foi em janeiro que a gente soube, logo nos primeiros dias de janeiro, tinha passado o Réveillon com a família, a gente estava na Praia Grande, na época a gente chamava de Long Beach City (risos), porque não tinha asfalto, não tinha nada. Então, era o mááááximo pra gente ir pra lá. Eu comprei o jornal e vi que eu passei. Bom, todo mundo já tava meio preparado, menos o meu pai que não tinha noção do que estava acontecendo. Eu falei: "Pai, eu passei na faculdade!". Ele ficou suuuper feliz. E eu falei: "Só que tem uma coisa, pai, é em Campinas". Meu pai: "Onde?". Ele conhecia Campinas porque minha mãe tinha estado internada lá. "Campinas, pai, mas é perto". Tinha dois dias pra fazer a matrícula, aí, minha família falava: "O tio não vai deixar, não vai deixar". Mas o estudo sempre foi o meu aliado, e ele disse: "Vai". Aí, muito bem, fui lá sozinha. Eu falei: "Putz, agora meu pai vai andar atrás de mim". É engraçado isso, como na verdade a gente nem tem noção do que eles confiam, porque eu imaginava: "Ele não vai me deixar ir sozinha". Fui, descobri onde era a faculdade, e aí, tinha que morar lá, né? Vai morar onde? Descobri que lá no centro tinha um internato..., – que internato que nada, pensionato! “O que é isso, Luzia? Tá ficando doida?” – pensionato, moravam as meninas, eu fui lá ver como era. Dividia o quarto, imagina, nunca tinha dividido nada assim, foi uma experiência meio estranha, dormir com... Tinham quatro beliches no quarto, dormir com pessoa que você nunca viu? Aí, cheguei em Santos e falei: "Pai, consegui assim, assim", "Onde você vai morar?". E em nenhum momento ele veio pra ver, confiou totalmente. Até que um mês depois essas quatro meninas do quarto, ficamos amigas, e moramos numa república, e depois disso ele apareceu.
(Troca de fita)
P/1 – Você estava contando que vocês foram escolher a casa, foram pra uma república e seu pai, apesar de ter deixado com certo receio, nunca duvidou da sua capacidade de escolha...
R – E foi, foi o máximo. Depois que a gente já estava há um mês nessa república, eles foram lá. Ele adorou a cidade, aí, ele queria morar lá. "Não pai, não é uma boa ideia! Acho melhor o senhor ficar em Santos porque eu vou me formar logo e vou voltar logo pra Santos". Porque eu queria viver o meu espaço, né? E a relação foi maravilhosa, porque tudo o que era muito assim, por receio, por proteger, ele me surpreendeu, e a toda família. Isso é uma coisa que eles contam até hoje. Primeiro ele ficou meio assim porque era tão rígido, mas é o que eu falo pros meus primos: "O aliado é o estudo. Tendo o estudo, você vai. Ele vendo que você está se empenhando, fazendo, vendo resultado". E ele nunca cobrou nada nesse sentido. Engraçado, não podia ser aeromoça, mas estudar fora da cidade em uma profissão que ele achava que era só de homem podia. Muito engraçado isso. O que foi Campinas? Foi aquele momento assim, ele tava lá e eu tinha que me bancar, mas eu dependia. Aí, comecei a fazer estágio. Primeiro fui trabalhar no CA, no Centro Acadêmico da universidade, porque eu queria estar perto dos estudantes e descobri que podia vir uma grana. Ah, ótimo, já ia economizar. Eu ia pra Santos só de 15 em 15 dias pra poder economizar. No primeiro ano de faculdade, graças a Deus, criaram um ônibus direto pra Santos, já foi o máximo, né? Não tinha que ir pra São Paulo, no ritual da Estação da Luz. Era o Cometão, bendito Cometa, nos ajudou pra caramba. E em Campinas não tinha praia, esse foi um grande obstáculo. Então, pra eu ir pra universidade eu ia esperar o ônibus que demorava porque ele passava num bairro chamado Taquaral. Taquaral é onde tem um mini, mini, mini, Parque Ibirapuera, ou seja, é um lugar onde tem um lago, e onde tem água. E eu esperava o ônibus lá só pra sentir a presença da água. Realmente, isso fez muita falta. Claro, meus pais, óbvio, mas em segundo lugar o mar fez muita falta. E eu sou branquinha, nunca fui de ficar bronzeada, mas o mar fazia parte, o cheiro da água, tudo. Então, eu tinha certeza que quando eu me formasse, pra Santos eu não ia voltar porque, o que tinha lá? Tinha ou dar aula ou trabalhar em órgão do governo. E meu pai sempre falava que tinha que ser o melhor, trabalho seguro, mas eu sempre fui meio avessa e nunca... "Lá vou trabalhar em quê? Em Trafético, no Zip que eram as empresas que tinham na época. Ou navegação. Então, falei, "Não, meu ponto vai ser São Paulo, porque em São Paulo eu vou estar perto deles e perto da praia". E assim eu construí, na época da faculdade eu fui fazendo estágio, tudo, mas muito certa de que eu ia me formar e vir pra São Paulo. E aconteceu isso mesmo. No final de 85, eu me formei, aí vim de férias pra Santos e meus tios moravam em São Paulo, vim pra cá. Na época ele tava até montando uma empresa e eu falava: "Pô, como é que eu vou minimizar?". Porque tudo é um gasto, por mais boa vontade, é sempre um incômodo. Mas eu fui super bem recebida e como ele tava montando a empresa, eu era a recepcionista da empresa, e nessa hora eu procurava as empresas, mandava o meu currículo e assim eu fiquei durante dois meses, ajudando ele, e ele me ajudando, até que eu arrumei o meu trabalho, na minha área, e fui na área de Informática durante 20 anos.
P/1 – E em Campinas? Como é que você se virava, onde você ia fazer suas compras, como era o comércio de lá? Você sentiu alguma diferença com o de Santos, com o trato pessoal?
R – Eu acho que eu tenho muita sorte também nos lugares e nas pessoas que eu conheço. Então, por exemplo, em Campinas eu morava perto da rodoviária, por quê? Primeiro porque não tinha que pegar ônibus e já economizava uma grana, estudante tem que pensar nisso. Segundo que a Rua Culto à Ciência era uma rua muito conhecida pelas turmas anteriores às minhas como a rua dos estudantes, encontros de estudantes aconteciam lá, não era um point, mas era um lugar bacana dos estudantes frequentarem. Tinha o barzinho lá, então, era perto da cidade perto da rodoviária, e perto do mercado onde fazia as compras, porque a gente ia tudo a pé, né? Fazia as compras. E eu sempre curti, pela minha criação, feira, tudo o que é contato. Eu não gosto muito das coisas sem contato. E lá tinha o mercado também, os mercados sempre me acompanham, ou eu vou atrás deles, não sei (risos). Então, de sábado a gente ia fazer nossas compras da república e também as meninas com quem eu morava vinham de... Uma, o pai era dentista e vinha de São Paulo, beleza. Mas as outras duas moravam em fazenda, em sítio, então, elas trouxeram uma riqueza que, elas me chamavam de a urbana que não conhecia nada. Bom, eu fui conhecer pé de jaboticaba lá, pra mim jaboticaba dava na feira, obviamente, né? Quando eu fui pro sítio dela na época de setembro, e elas me mostram o pé, falaram: "Agora você tem que subir, porque a graça é subir" "Eu?????" "Tá vendo, esse pessoal urbano não sabe nada". Eu ficava lá embaixo (risos) esperando cair a jaboticaba e eles lá em cima curtindo. Foi muuito legal conhecer esse outro lado, porque eu conhecia a jaboticaba lá na banca. Eu falo da jaboticaba porque era o único elemento que eu adorava e adoro. Aí, quando eu vi que dava em árvore eu falei: "Gente, eu não imaginava que isso dava em árvore". E aí, também conheci a história do abacaxi, fui conhecendo várias... A bucha que a gente toma banho, nossa, onde é que dá a bucha! Eu passava e nem sabia o que era aquilo. É engraçado isso, né? Eu conhecia o produto pra vender e fui conhecer a origem dele. E aí, claro, o pessoal do interior e criado no campo, traz muito aquelas compotas de mamão, e não sei o quê, foi lá que eu fui conhecer essas coisas, eu conhecia a fruta, então, fui conhecer de onde ela vinha e como podia transformar em doces. Também vocês estão fazendo eu me lembrar disso agora, porque eu nunca tinha parado pra pensar que tudo tem uma ligação, mas a gente não compreende no momento. A gente está vivenciando, agora, quando a gente para pra lembrar o caminho, tudo faz relação. E engraçado que a gente volta pras mesmas coisas, em situações aparentemente totalmente diferentes, você volta pro mesmo núcleo. E por exemplo, por eu gostar de tudo quanto é feirinha, lá tinha, no Cambuí, a feirinha hippie, tudo quanto é feirinha e relações com pessoas eu tava sempre envolvida e lá tem bastante disso, em Campinas. Agora, claro, mudou muito, mas na época que eu morei lá, era..., sabe aquela cidade grande, mas que conservava o estilo do interior? Então, era bem enriquecedor e os meus amigos eram todos do interior, exceto essa de São Paulo que não se adaptou, voltou pra São Paulo, exatamente porque não gostou desse ritmo mais do interior. E eu já achei o máximo, porque lá foi onde eu fui aos grandes shows, comecei a curtir mais músicas, porque eu era mais música clássica, eu conheci um povo totalmente diferente e fui conhecer outro tipo de música, também me remete a isso, essa liberdade, a leitura. Eu fui fazer Exatas porque não gostava de ler, a verdade era essa. A grande verdade da Exatas é porque eu achava o máximo fazer as equações, aquelas coisas e não ficar lendo. E aí, com esses amigos me deparei com a leitura, e hoje o que eu mais gosto é de ler. Então, veio um outro lado que eu não tinha. Foi um complemento bacana que eu não tinha, as coisas foram se complementando, me dando oportunidade. Por exemplo, na época que o jovem curtia rock e não sei o quê, eu tava lá com a minha música clássica, tava em outro mundo. Eu fui conhecer esse mundo desses outros tipos de música quando eu fui pra faculdade. Porque aí, tinha sempre o violão, as pessoas se reuniam, eu fui conhecer também um outro lado que pra eles era normal, mas pra mim era uma grande... Então, foi uma experiência muito grande a faculdade, nesse sentido também, de outras relações. Por exemplo, era até engraçado, em Santos, eu convivia com todo mundo que não fumava, em Campinas todo mundo fumava, até nisso era contraste. E eu nunca tive vontade. O pessoal saía pra beber e eu era a única que tomava suco (risos), putz, até que no último ano da faculdade, na saideira, o pessoal falou: "Não, pelo amor de Deus", aí eu tomei a minha cerveja. E era legal porque, ao mesmo tempo, que eu era diferente pra eles e eles pra mim. A gente se gostava muito e isso que eu acho legal, né? Por exemplo, ia nos bailes, nas festas, pessoal bebia, aí, eu ficava lá. Eles gostavam porque eu ficava sóbria e ia ajudar. E no dia seguinte, eu podia contar o que aconteceu, então, foi um contraste, era estranho mas ao mesmo tempo interessante, de ver assim, quantos mundos diferentes e a gente convivia muito bem, acho que isso é bem bacana. Acho que morar lá foi muito enriquecedor. O estilo é diferente, começar a trabalhar lá, lá foi onde eu comecei a trabalhar a parte profissional, e também onde eu vi que era o final da brincadeira, que era vida adulta depois que eu saísse de lá.
P/1 – E quais foram os estágios que você começou a fazer lá? Como é que foi depois do CA? Como você já foi direcionando pra sua área, pro trabalho da computação, o que tinha de inovações tecnológicas, como é que era esse trabalho de computação, o que se fazia?
R – Olha só, eu fui fazer Computação, nunca tinha visto computador. Aliás, eu e ninguém, porque na universidade o main frame era uma caixa de mil segredos, e só a universidade tinha. Eu fui de fato conhecer quando os minicomputadores, quando a tecnologia, começou a abrir no Brasil pras empresas nacionais e aí montaram um CPD (Centro de Processamento de Dados) dentro da área. Quando eu vejo hoje meu afilhado, pequenininho, vai lá, já entra em tudo. Eu tive que percorrer todo um caminho e hoje ele faz click. Eu falo: "Gente do céu, como é que pode!?". E eu que ainda tive acesso. Foi assim, descobrir, era da época do cartão, alguns não conhecem. Porque demorou muito pra tecnologia [vir], mas quando eles apoiaram as empresas nacionais também houve um avanço. No trajeto da faculdade, eu saio do cartão praquele disquete grande que hoje a gente nem pode falar isso, tá numa relíquia. Ainda guardo um porque adoro coisa de museu, no sentido assim, não de uma coisa parada, mas de que: "Pô, é história, tem um significado ali, é importante". Então, nesse aspecto eu tenho alguns apegos ainda do meu "museu". Por isso que quando eu vou a algum lugar que vem essas coisas eu falo: "Nossa". Foi uma mudança grande, a gente, no primeiro ano da faculdade, você tinha aula de Lógica. A primeira experiência era como trocar um pneu. Eu falava: "Caramba, eu passei na faculdade pra...". Nem tinha carro, não tinha nem noção, eu sei que carro tinha quatro pneus e um step, no máximo. "Caramba, estudei pra isso?". Era a Lógica. E hoje eu vejo que todo mundo deveria ter aula de Exatas, não pra desenvolver a técnica, mas pra desenvolver o raciocínio. Eu percebo que o grande ensinamento foi desenvolver o raciocínio lógico, que aí, independe da área que você vai atuar. E eu comecei: "Onde que eu vou começar a fazer estágio?". No CA foi o primeiro momento que era pra poder ajudar, não me sentir tão dependente. Depois era o Ciee (Centro de Integração Empresa Escola), que ainda existe, era onde a gente ia fazer os estágios. E o que tinha? Caixa Econômica Federal, era praxe na minha época fazer Caixa Econômica Federal (risos), era o primeiro que dava chance e a gente ia lá fazer. Na época da poupança que era de três em três meses, eu ficava, putz, uma fila enorme, e aqueles senhores. Sempre tive muito, no fundo, era muito contato. Depois, eu fui fazer estágio da Prodesp, que aí, vim até fazer o exame aqui em São Paulo, tudo, que era o Processamento de Dados. Aí, efetivamente, eu comecei na minha área, então, passei do cartão pro disquete, pro disquete menor e a fita. Então, assim, a minha geração teve o contato e muito rapidamente começou a ver essa mudança, que é quando estavam investindo nas empresas nacionais. E daí pra frente eu sempre atuei na minha área. Quando eu vim pra São Paulo, eu fui para um fabricante, comecei dando suporte, que era exatamente a parte técnica e a relação com o cliente, então, sempre tive as pessoas e a parte técnica. O olhar hoje, hoje eu brinco que eu sou a usuária final, última, que é assim, como é que pode ter todo esse contato? Porque uma das coisas que começou a me questionar, inclusive na relação profissional, foi que quando eu comecei a atuar, exatamente, as pessoas, as empresas... Eu tava fazendo parte disso. Estavam começando a substituir pessoas por máquinas. Por quê? Todo processo era a mão, a gente ia lá informatizar e eu percebia que quando eu ia no outro mês, já não via aquela pessoa. Então, essas coisas também foram me incomodando, eu falava: "Poxa, que profissão é essa que eu to ‘eliminando pessoas’?”. E num primeiro momento é visto "Como vamos economizar?". A informática foi bem vista, vamos economizar. Vamos automatizar pra economizar. Só que aí, ó onde nós estamos hoje, né? Passou por globalização, por todos os momentos, e como isso está totalmente desequilibrado. Desequilibrado. E as pessoas continuam aumentando, e como isso tá desequilibrado. Essas questões sempre foram caminhando comigo.
P/1 – E como é que você foi lidando com todas essas questões, como morar em São Paulo, com esse seu trabalho com Processamento de Dados, com Informática...
R – Quando eu me formei, eu sabia que não queria ficar lá, acabou o estágio na Prodesp: "E aí, vamos renovar?". Eu falei: "Não, vou pra Santos". Vim pra Santos, fiquei lá dois meses, janeiro e fevereiro, aí, vim pra cá pra esse meu tio que tava montando uma empresa, fizemos essa troca, eu como recepcionista fazendo meu currículo, minhas coisas. E comecei a trabalhar. Nossa, o máximo, né? Mais uma vez uma sorte, na Avenida Paulista. Achava o máximo, pra quem mora em São Paulo, trabalhar na Paulista, eu ainda acho o melhor lugar. E era bem ali perto do Center 3, um must assim. E a coincidência: eu sempre trabalhei em empresa que a matriz era no Rio de Janeiro. E uma das pessoas que eu fui fazer entrevista, tal, depois quando eu fui no primeiro dia era uma pessoa com quem eu trabalhava na faculdade, que estudou comigo. Engraçado isso, né? A gente fez estágio junto, porque eu fui contratada pelo gerente e nem sabia, era uma área nova que ia abrir, a matriz era no Rio e eles estavam montando a filial em São Paulo. Aí, poxa! O pessoal ia apresentar e eu já conhecia, foi mais fácil ainda, foi bem bacana. Foi um desafio, mas foi bem bacana. E estar lá na Paulista, eu achava o máximo sair, pegar o ônibus ali, morava ali perto. Depois de um tempo eu queria ter meu espaço, porque chega de incomodar as pessoas. E é engraçado como isso refletiu nos meus primos porque na época eles tinham cinco, seis, sete aninhos, era uma escadinha. E até hoje, como essa época que eu vivi lá marcou porque eles achavam o máximo. Eles eram meus alunos porque eu tinha que dar palestras, então eu os punha lá pra treinar. Eles lembram muito disso, e a gente brincava muito junto, então, eles têm uma referência boa do que é trabalhar porque acho que eles me viam feliz e acharam que trabalhar é legal. E eu falava: "Tá vendo, por isso que a gente tem que estudar". Foi uma coisa que marcou também na vida deles, então, quando a gente se reúne hoje diz: "Pô, aquele tempo que a gente convivia junto foi bem bacana". Mas depois a gente queria alçar vôo, né? Aí, fui alugar um apartamento, mas não tinha grana pra alugar um apartamento. Aí, uma outra amiga da praia apresentou uma amiga, na reunião na praia. "E aí?" "Ah, to morando em São Paulo, quero ficar lá, mas não tenho grana" "Eu também, vamos dividir?". Aí, a gente dividiu um apartamento, meu tio foi o fiador, do lado do Metrô Vila Mariana, também, mais uma experiência. E a gente não tinha NADA, absolutamente NADA. E a gente ia lá na Rua Domingos de Moraes, no comércio, fazer as compras, e pra economizar a gente trazia a pé. Por exemplo, comprava um sofá de bambu e trazia na mão. "Pô, não tá com vergonha?". Eu não tinha vergonha, quando você é jovem você é desprendido de tudo, não tem nada a ver. Eu falo que a gente nasce tão puro, vão colocando um monte de coisa dentro da gente e tem que tirar, ou parar nos ólogos, né? Os psicólogos da vida. E foi começando a montar. Era uma quitinete, aos poucos a gente foi dividindo, cada um ia comprando uma coisa e, dois anos depois, eu já não achava mais graça morar em dois, já queria morar sozinha. Acho que é fase, né? Na faculdade moramos em quatro, depois em duas irmãs, depois não queria mais república, aí, vi que São Paulo era mesmo meu canto. Eu só trabalhei em duas empresas, eu sou uma pessoa que sempre fica muito tempo, igual você vendo aquilo sendo criado, as duas empresas sempre do Rio, então realizei o meu "sonho de viagem" porque sempre viajei muito a trabalho. Também consegui realizar a minha ideia de ser aeromoça, na verdade, que era pela troca da viagem, realizar na minha área mesmo. Então, isso foi uma coisa bem bacana e em épocas maravilhosas, que eu não sentia tanto perigo esse olhar quando a gente viajava, não era tão mais sério como agora, era tudo mais suave. É da época do Rolim, esse Comandante Rolim, ele estendia no vôo das dez pras oito, que é o bendito que caiu, sorte que eu não tava naquele dia, ele estendia o tapete, imagina. A gente achava, pra jovem, aquilo o máximo. Está trabalhando na sua área, você ter acertado, porque nem sempre que você faz uma escolha, que a gente a fazia sem conhecer, e dizem que tem que ser pra vida inteira, né? Então, sempre gostei muito. Aliás, eu sempre faço o que eu acredito muito, é como estar relacionado com alguém ou qualquer coisa. Quando aquilo realmente não dá, eu não consigo. Vai que a gente não tem outra chance, não to a fim de ficar de DP (dependência), ter de repetir o ano, vamos conhecer coisas novas.
P/1 – E pra onde eram essas viagens, sempre ao Rio? Ou você chegou a conhecer outras cidades?
R – Pro Brasil inteiro, como a gente trabalhava na área de suporte, era pro Brasil inteiro. Mais especificamente pro Rio porque a matriz era lá, e eu AMO o Rio de Janeiro. Era na época que ainda podia ir na Rocinha tranquilo, ia à Paquetá, tudo. Via o por do sol na Oscar Niemeyer. Sempre foi assim, o trabalho sempre foi relacionado com o prazer, sempre foi uma coisa muito bacana. Então, conheci muito o Brasil. Aliás, nas opções que eu tive de férias, eu nunca saí fora, exceto quando eu fui com meus pais pra a Espanha, porque aqui sempre me atraiu muito, então, pô, nem conheço onde eu moro. Em especial a Bahia. A Bahia é um celeiro, porque a Bahia tem frio, tem calor, é incrível aquele Estado. Eu sempre voltava, por exemplo, eu não sou uma pessoa que conheço muito o Sul porque o Sul era mais água fria e o meu negócio era água e as pessoas. Então, eu sempre acabo me levando pra conhecer o Brasil, especificamente o Brasil, e quem começou tudo isso foi o trabalho que me possibilitou. Por exemplo, ia fazer viagem, essa viagem sempre terminava num passeio, maravilhoso, né? Ia pra Curitiba, eu ia para na Feira das Flores (risos), sempre consegui agregar as coisas bacanas.
P/1 – E Luzia, você tava falando que algumas das questões de relações humanas, de uma necessidade mais social sempre foram aflorando, como é que você chegou a dar uma guinada na sua vida, entrar num outro ciclo, como é que foi esse processo?
R – Então. Em 96, eu vinha totalmente realizada, mas sempre olhando essas coisas de tem a minha atuação e a pessoa que não tava lá, o meu papel na vida mesmo, assim. E em 96 a minha mãe teve um segundo momento muito difícil de saúde, então, a gente, de novo, isso faz te puxar exatamente pro que é a vida, o que é que a gente tá fazendo com o nosso dia a dia. Então, as questões de realização pessoal ficaram cada vez mais latentes, tipo assim, será que eu vou ter tempo de fazer? Sempre fica aquela. A gente vai se envolvendo no dia a dia, embora eu sempre tive uma vida muito legal porque eu vinha pra São Paulo na segunda e ia embora na sexta, então, eu não tinha o estresse. O pessoal falava: "Parece que você ganha tanto!". Mas eu percebi que as pessoas tinham o estresse da cidade e eu não tinha. Era muito bom, eu vinha na segunda, ia na sexta, era uma vida leve. Era uma vida em São Paulo leve, o que já não era comum. Isso já era um diferencial. Eu sempre olhei muito esses valores, o que isso tá fazendo em mim. E quando ela teve esse problema sério de saúde que a nossa vida teve uma outra mudança,e eles toparam vir pra São Paulo. Porque era um momento que ou eu tinha que ir pra Santos ou eles pra cá, e aí, em momento algum eles foram, porque às vezes os pais são meio egoístas, falam, a gente tem que ir pra eles, não, eles criam pro mundo. E eles falaram: "Não, nós vamos pra lá. Queremos ficar juntos, mas você tem a sua vida". Puxa, eles me ajudaram muito. Então isso, cada vez mais ver a família presente porque eu viajava bastante e aquilo voltou de novo a recolher, a família e os valores. Aí, ficou mais latente a parte social, o semáforo me incomodando, todas essas coisas de atuação errada ou certa, às vezes, a gente queria fazer o melhor. Até que em 2001, e com a gravidade da doença dela, fez com que eu ficasse mais com eles, fiz a opção. E aí, eles me ajudaram muito porque foi nessa época que eu era gerente de uma empresa de informática, área de suporte, que a gente atendia 24 horas e um gerente ligou que teve um problema lá. E eu achando, vamos lá pra resolver o problema, tudo. Aí, no final, depois que saiu daquele estresse, tá tudo bem, ele falou: "Ainda bem que você está sempre lá pra atender porque a gente fica mais tranquilo". Na hora, eu fiquei com uma bronca dele, não falei nada, só pensando: "Eu to achando que eu estou bem tecnicamente e o cara achando que meu apoio moral que fez diferença. Então, não to atuando na área de informática". Aí, eu fui percebendo, não sei se eu fui percebendo ou eu fiquei atenta, vários clientes falando a mesma coisa. Ei, então, espera aí, se eu quero tanto esse lado social, o que eu to fazendo aqui? Aí, todo mundo achou uma loucura porque eu tava numa área bacana, mas a minha inquietação em não ter satisfação de acordar e fazer algo foi maior do que qualquer coisa. Então, não tive crise de 30, nem de 40, nem nada. Na verdade, eu acho que assim, eu brinco na minha teoria, quando eu estiver com Deus é que eu vou saber, né? Mas a gente devia nascer velhinho porque tem a sabedoria da vida e o corpo, imaginou, aquela sabedoria e a cada dia o corpo melhorando? Ia ser maravilhoso, porque às vezes a gente perde parte da nossa vida muito pra fora, pro outro, porque a nossa cultura é essa, o que você vai ser, o que vai fazer, estudar. O outro. Então, ao meu ver, a gente perde muito tempo, podia otimizar algumas coisas e acaba sofrendo às vezes. Eu resolvi largar tudo porque não tava mais me satisfazendo e passar por um sabático, que depois descobri que o nome é sabático, nem sabia que tinha nome. Em 2001, começaram as multinacionais a falarem muito que davam pros funcionários o sabático. Eu falei: "Ai que bom, eu não to doida, tá vendo como isso é normal, há uma reciclagem". Porque é onde você sai do seu dia a dia, eu não conhecia nem o bairro em que eu morava, eu não sabia que tinha um monte de coisa perto do Parque Ibirapuera, não conhecia nada. Eu não conhecia o mercado local. Bom, eu detesto shopping, eu gosto de loja de bairro. Então, eu não conhecia e falei: "Gente, eu moro aqui há 20 anos e não conheço nada, isso não é natural". E foi aí, que durante esse período eu comecei a olhar, porque você está no seu dia a dia e você se deixa levar, fui, comecei a olhar e ver que... Passei numa banca de jornal, andando a pé, porque eu não andava, e vejo lá falando de ONG, nunca tinha ouvido falar de ONG. E um trabalho social, e eu pensei: "Nossa, isso pode ser até um trabalho?". Aí, fui interagir o que era. Eu brinco que eu comecei tudo de novo, porque pelo menos quando eu estudava a gente tinha que estudar, fazer estágio muita vez grátis pra gente provar, pra conseguir um espaço. Hoje em dia já mudou muito. Então, eu comecei a fazer isso, falei assim: "Bom, deixa eu interagir e ver o que é". E comecei a ver que daria pra agregar os meus saberes, relacionar com o meio ambiente, que é uma coisa que me incomodava, e com as pessoas. E fui nesse percurso todo, aí, fiz curso na USP, em vários lugares, pra ver o que era, e fui parar na Casa do Zezinho, que é a entidade que eu atuo há muitos anos como voluntária, desde 2002. E fui parar lá porque, acho que essa minha inquietação. Ela falava de autonomia de pensamento e eu queria saber quem é que tava falando sobre autonomia de pensamento porque eu gosto muito de liberdade. A liberdade tem um custo alto porque é uma responsabilidade danada. Mas é maravilhosa. E essa Casa do Zezinho, como o trabalho todo deles de educação é via arte, eles apareciam muito na TV, em exposição e eu ficava curiosa, mas nem tanto. Até que um dia eu fui a um workshop do Marcelo Tas que ele falava de relações e tecnologia, que era exatamente o conflito que eu tava vivendo. E quem ele põe lá no filme? Um monte de pequenininhos, tudo na sala, laboratório de informática. E eram crianças da onde? Da Casa do Zezinho. Eu falei: “Caramba! De novo essa casa”. Foi aí, pra vocês terem ideia, nem internet eu tinha. O pessoal falava que realmente eu era de outro mundo. Foi aí que eu fui numa lan house, porque pra mim sempre a tecnologia tem que ter função, ela por ela. Por exemplo, como eu trabalhava na área de Informática, eu não precisava da Informática de sábado e domingo, então, não tinha função pra mim. Depois que eu passei por esse sabático, e que eu quis começar de novo a interagir com esse mundo que eu não tinha mais acesso, aí eu fui numa lan house do lado de casa, onde eu criei meu primeiro hotmail, porque ele fazia sentido. E lá que eu entrei no site da Casa do Zezinho e vi a autonomia de pensamento. Eu falei: "Bom, eu vou conhecer". Liguei lá, quando me falaram o endereço eu falei: "Caramba, eu nunca passei, nem sei onde fica, não sabia nada. Falei: “Bom, não vou de carro, vou fazer um curso de imersão”. Aí, vi como pegava o ônibus não sei o que lá, bom. Desci errado, desci diretamente na favela, que era uma baixada onde tem um córrego, a gente vê aquele córrego cada vez menos de tão construído que é, e hoje a gente tem uma porta ali, se você não sabe, não sabe nem que ali tem uma favela. E eu cheguei lá e falei: "Gente, agora me dei mal". Fui perguntar, o que eu vou fazer? Aí, tinha uma banca. Você tá vendo? Essas bancas estão sempre perto de mim. Tinha uma banca de frutas ali na rua. Eu perguntei onde era a Casa do Zezinho, o cara apontou bem assim e falou: "É lá onde tem aquele lápis, lá é a Casa do Zezinho". Eu falei, "Gente, se eu tiver fôlego pra chegar lá". Cheguei lá morrennndo de sede, acho que eles mais me acolheram porque eu tava com muita sede (risos). E estavam preocupados porque eu falei que ia chegar numa determinada hora e depois desse ritual todo cheguei bem mais tarde. Aí, fui conhecer a casa, fiquei encantada. Aí, só as pessoas conhecendo, a gente falar... Ah, uma casa que não tem tranca, você ouve falar o quê? Que as crianças, e a gente via escola, parece presídio escola, tudo cheio de grade, vai no recreio tem grade, tudo grade. Lá começa que não tem tranca, aí, você vai olhando, aquela quadra cheia de verde. E eu pensando no meio ambiente, andando e pensando: "O que eu vou poder me oferecer pra que aqui, no que eu vou poder ser útil?". E tudo pintado, muita cor, o símbolo é o arco-íris, então, muita cor. Uma alegria as crianças, aquilo vai te contagiando. E é isso que eu acho interessante, nada em lugar nenhum é preconcebido, e ir aberto. Porque quando você vai com aquilo focado, não consegue ver tudo, e tem que ser onde sente, até que abre uma portinha. E eu vi lá uns tapetes lindos e falaram: "Aqui tá acontecendo a oficina das mães, que acontece aos sábados". E continuei o ritual. Aí, fui chegar na sala da presidente, ela é muito rápida, claro, a demanda é muito grande. Então: "Você veio aqui pra quê? Você já conheceu e aí? O que você acha?". Eu falei: "Acho que pela minha experiência, talvez na área de captação de recursos". Na época nem tinha área de captação de recursos, eles estavam fazendo uma total reformulação na casa de gestão, nossa, eu entrei também num processo muito bacana. A Casa sempre teve muita credibilidade pela sua Pedagogia. E eu entrei bem no momento onde eles estavam fazendo toda uma reformulação de autogestão, porque cresceu, né? Pra você ter idéia, cada sala tem seu comitê, que vai fazer suas reivindicações junto à presidente. Então, imagine. E a área de captação não tinha ainda. Eu achei que eu fosse ser melhor aí, ou marketing, porque eu já fui falando, eles falam assim, que eu cheguei muito adiantada, que eles tinham essa visão, mas que eu não tava no momento da Casa. Porque eu cheguei e falei assim: "Olha, eu vim falar em projetos sustentáveis e desenvolvimento local", final de 2002. "Vamos fazer mapeamento", cheguei lá com meu discurso, porque eu queria entender como era aquilo pra ver o que a gente poderia contribuir. E vê hoje, né? Passados quase dez anos, é o mote, né? O mote falar em sustentabilidade e desenvolvimento local. E a Dag falou assim: "Nos interessa, mas nós estamos num momento... Você quer ser voluntário?". Eu falei: "Quero. Mas eu entrei numa sala lá e vi uns tapetes...". E eles me contaram que em 2001, um ano antes, eles atendiam de segunda a sexta e essas crianças ficavam na rua aos sábados. E falaram: "Pô, precisamos fazer algo", e criaram, na época chamava "Fim de semana com Arte”, hoje se chama "Arte na Periferia", pra fazer o papel de lazer, o papel cultural, aos sábados. E começaram a ver que várias crianças não vinham, mas foram entender porque às vezes o pai achava que não era importante, que tinha que fazer uma tarefa em casa, enfim, algo não adequado à idade pelo pensamento da Casa. Então, a Casa falou: "Como é que a gente vai atrair?". Ela criou uma oficina, aquilo não podia não ter nenhum pré-requisito rígido porque era pra atrair as pessoas e não era uma capacitação, vamos assim dizer, e com a técnica do amarradinho, que é o resíduo, que hoje se chama resíduo, antes chamado lixo, de tecido, e dava nozinho. E como lá tudo é movido à arte, os jovens desenhavam e com a doação do tecido faziam aquela coisa maravilhosa, um trabalho maravilhoso. Você não sabia se era mais bonito o avesso ou o direito. Eu fiquei encantada, e aí, a Dag, tia Dag como conhecida, falou: "Você se identificou lá, vá lá". Aí, eu tava lá no marketing, no coiso, e com o pezinho lá. E fui acompanhando, durante seis meses eu ia aos sábados também, comecei indo dois dias, depois passei a três dias, e depois virou sete dias e a gente vai entrando naquele mundo de possibilidades, muito difícil, mas de possibilidades de real transformação.
P/1 – Tia Dag é a presidente da casa?
R – Então, a tia Dag é a presidente fundadora. Ela é pedagoga há mais de 30 anos e ela sempre atuou na Educação com a exclusão. Por algum motivo de exclusão, desde refugiados ou dificuldade de aprendizado, tudo o que excluía a criança. E quando ela conta, que há 17 anos, que é onde tá a Casa, era pra ser a casa dela. Que lá não tinha asfalto, que eram tipo sítio. Tanto é que um dos parques ali que agora a prefeitura voltou a tomar conta, tem uma nascente. Aí, você fala: "Como é que pode você viver hoje sob cimento, basicamente". E ela, com o marido, falaram: "Bom, vamos morar aqui que é mais tranquilo e mais perto de onde a gente atua". Não conseguiram morar porque imaginem, há 17 anos, um casal andando por lá, chamou atenção das crianças, aí, as crianças já se aproximaram, começou com seis, 12 crianças e ela não conseguiu morar. E aí, chamou os "loucos do bem", os amigos, ela também uspiana, os amigos que compartilhavam, porque eles vêm da geração de 60, 70, dos valores, de reivindicar, se uniu a esses cinco amigos que estão sempre juntos e que vivem pela Casa. Ela fala assim que não dá nem um leão nem pro segundo, não é o presidente que criou e tá gerindo. É exatamente ela, com todo esse corpo principal, que são os primeiros amigos que se reuniram, eles full time são da casa. Tanto que ela brinca, agora não é mais o sonho dela, cada um de nós acaba, através do sonho dela, compartilhando o seu. E esse é o motivo que eu to lá, só tem sentido eu estar lá enquanto eu puder compartilhar também o meu sonho. E que bom que tem a ver com o que a Casa, afinidade com o propósito da casa, que é o ser integral.
(Troca de fita)
P/1 – Luzia, antes de você falar das suas primeiras atividades lá, você chegou a comentar na sua fala das atividades adequadas pras crianças. Que atividades são essas? O que a Casa oferece? Quais são esses primeiros projetos que você entrou e que ela tinha?
R- Então, todo movimento na Casa e a missão dela é Educação. Porque realmente, e não é o dizer, é de fato o dia a dia, a transformação através da educação, que é a missão da casa. Como ela faz isso? Ela é reconhecida como educação informal. Por quê? Por exemplo, tem alguns pré-requisitos pra frequentar lá, acho que é bacana saber isso. Primeiro, é pra quem é de baixa renda. Segundo, é ter alguém responsável porque lá não é um abrigo. Se ele passa a tarde lá, de manhã ele vai pra escola e depois vai pra sua casa. Terceiro, é estar na escola. Se não está, tem todo um trabalho da assistência social, da equipe dos educadores, mediadores, pra que isso aconteça. O que acontece lá? Quando ele entra, como eu já falei, desde a porta não tem tranca. Todo movimento de educação lá é via arte. Ele tem o prazer. Tanto é que quando vocês forem à Casa, conhecer lá, quem apresenta a casa são eles, são os Zezinhos, aliás, pra mim o nome e o logo Casa do Zezinho, (risos), que aquilo mesmo onde está o sol (e ela mostra a camisa): Casa é pra ele se sentir seguro, teoricamente, mesmo depois que montou nossa família e tal, se a gente teve uma boa infância, sempre o porto seguro nos lembra a casa dos pais, nas situações mais difíceis, tal, aquela coisa do aconchego. No caso, então, Casa é pra se sentir em casa. O arco-íris é o símbolo da metodologia criada pela presidente fundadora, que começa com os pequenininhos, hoje com seis anos, da sala Violetas, e vai até a sala Coração com 21 anos. O Sol, exatamente esse contraste dessas cores, o neutro, e Zezinho na verdade é uma releitura, uma brincadeira, uma homenagem, ao Carlos Drummond de Andrade que fala: "E agora, José?", uma interrogação. E agora, José? Onde eles vão morar, questiona. A Casa do Zezinho é com exclama, assim: É agora! É a sua vez, é primeiro mundo, vamos trazer o melhor. Esse é o movimento da Casa. Por exemplo, ele não tem lá o: "Agora vamos ter aula de Matemática", por exemplo, ele vai pra uma das oficinas, cada um tem sua sala, e meio de hora em hora eles vão pra suas oficinas porque eles têm muita energia. Então, lá onde tem aquela cadeirinha, fica um de costas pra o outro, não é nada disso. Sempre todos se olhando, é uma outra forma. Então, ele vai na padaria, só que pra ele fazer a receita, ele tá fazendo o Português, porque tem a receita, ele tá fazendo o cálculo, que é a Matemática, ele tá fazendo a Química, que é a mistura, então, tudo lá é muito lúdico. Ele vai pra Oficina de Mosaico, a oficina de mosaico não tem a função de fazer um quadro lindo, ela tem a função de trabalhar a coordenação motora, o raciocínio, então, tudo na Casa é muito lúdico. Ele vai pra música, que aí, eu brinco que vai desde o hip hop até o violino, pra desenvolver o quê? Raciocínio. Tudo é pra desenvolver o ser. Na verdade, a Casa está sempre em busca do Ser. O que é isso? Eles são apresentados pras oficinas e os mediadores, educadores, lá a gente explica que é o todo individual, é o todo, mas o olhar é sempre pra cada um, porque cada um é único. Então, através da demonstração, ou na Música, ou no Desenho, porque não fala assim: "Senta aqui, vamos conversar". Não é isso. Através de como ele se expressa, o educador vai saber qual é a necessidade que ele ta querendo dizer, de uma outra forma. E isso fica muito claro quando você vê os desenhos, pra gente que não tá sabendo a história de cada um. E aí, ela vai atrás do sonho dele, então, o que ele quer fazer? Hoje, o que eu acho o máximo? Hoje, já mais de 30% dos educadores e atividades da Casa são por ex-Zezinhos, não é o máximo? A Casa é deles! E a idéia é que seja toda deles. Então, por exemplo, um educador, o Didi, por exemplo, que dá capoeira, ele é um ex-Zezinho. Ela falou: "Ah, você quer continuar aqui? Então, você vai fazer faculdade de quê?". A princípio ia fazer Pedagogia, depois fez Educação Física, hoje é educador. E tem muitos casos. O Agenor, ele adora desenhar, então, foi fazer Artes Plásticas, fez experiência fora da Casa, o educador. O Neném, mas o Neném tem quase dois metros de altura, o sonho dele era ser escritor, hoje ele é um escritor, ele deu aula na escola que ele foi expulso. Então, tem milhões. E a pessoa pra falar melhor sobre isso seria a presidente, mas é isso que atrai: é o poder de transformar. Então, assim, em cada movimento da Casa você vê isso, desde a forma como a criança te recebe. Porque a criança é um ser autêntico, né, gente? Isso que é o maravilhoso, ou é ou não é, não é aquela coisa: “'vamos fazer de conta que”. Então, em cima disso a Casa vai... Por exemplo, hoje tem uma das meninas que queria ser astronauta, tá estudando Física em São Carlos. Pra mim, isso é a missão da Casa, é apresentar, porque fala assim: "Mas é lá na periferia, na comunidade, a pessoa não gosta de música clássica". É lógico, ninguém foi apresentado. O dia que lá no Campo do Astro, que é bem onde tem a comunidade mesmo, as crianças chegaram lá, tocando, eles nem sabiam, porque foram pra fazer uma foto para um livro, as pessoas foram se aproximando. Porque o natural do ser humano é ter essa curiosidade, até pra depois dizer: “Gosto ou não gosto”. Então, é isso que me atrai na Casa. E o meu trabalho lá, que é de formiguinha, é com as mães das crianças e com a comunidade. Porque a Casa entende que, se a mãe... Quando falo em mãe a gente já tá até em geração de avós. A gente também tá montando uma historinha dentro dessa experiência com as mães, né? E que legal, os pais também estão vindo. Então, na verdade a gente fala assim, que tem dois pré-requisitos, no nosso caso, a partir de 18 anos, que tem o olhar de ter um empreendimento, um negócio social e ser ser humano. A gente não trabalha com raça, cor, e é muito assim porque muitas vezes tem pessoas, o que é normal, parece que quanto mais próximo a gente mora, menos a gente conhece, e como começaram a oferecer as oficinas, começaram a aproximar pra entender melhor o filho e hoje... No ano passado, foi tão engraçado! Um Zezinho veio matricular a mãe dele, eu achei o máximo! Porque a mãe dele tava muito em Casa, ele falou que a mãe dele tava triste. Quando ele veio bater lá na oficina pra falar comigo, porque eles são demais, né? Eu me senti, quando eu cheguei lá, um bicho na faculdade, sabe quando tem o veterano e o bicho? O Zezinho, que são as crianças, o veterano, e eu o bixo. Porque a vida fez com que acelerasse tanto uma experiência que eu me sentia o bixo e eles os veteranos. Aí, achei que fosse alguma pegadinha, mas que nada! Ele falou: "Eu quero matricular a minha mãe. Que curso tá tendo aí, tia?" "Ah, tem essa oficina, essa aqui, parara". Aí, ele falou assim: "Mas a minha mãe precisava fazer uma oficina porque ela fica muito em casa, ela está muito triste. E ela vem me buscar. Então, já podia fazer". Eu olhei e falei assim: "Tá bom, traz a sua mãe aqui amanhã", "Amanhã eu vou trazer". Esse menino levou a mãe dele, e matriculou a mãe dele. Eu achei isso maravilhoso porque é um trazendo o outro, eles se falando. Então, quando eles voltam pra casa, um tem maior compreensão do outro. E isso faz total diferença porque na maioria dos lares as mulheres são as provedoras. Quando eu falo mulher é avó, na maioria das vezes são as avós. Então, na nossa oficina hoje tem de 18 a 70 e poucos anos. E essa troca é maravilhosa, né? Como o 18 tem a falar, que o 70 é importante. E lá a gente também trabalha o sonho. Então, por exemplo, na oficina de costura, é muito engraçado. Ou você tem muito novo, porque agora é moda fazer moda (risos), ou você tem a idade em que algum momento da vida ficou ali e não pode realizar, então, ela vem pra uma realização. E por que a gente tem essas oficinas? Exatamente pra mãe estar melhor e o filho estar na Casa. Quando essa oficina é aberta, ela é aberta pra ela conhecer, ou é pra realização de um sonho que ficou lá atrás acumulado, mas a gente brinca assim: "Guarde o dia de hoje, vamos ver como é que você se saiu. Que diferença faz em você?”. No fundo, embora seja dada a técnica, a gente tá falando em formação e desenvolvimento humano. Por quê? Ganhar, todo dia você vai ter que ganhar pela sua vida, pra sobreviver, todos nós somos assim. Então, o que ele precisa é de mecanismo interno, porque o problema tá ali, mas a sua atitude mudando, você passa a olhar de uma outra forma. Porque por exemplo, quando aparecem mais lá com mais idade, eles falam: "O que a senhora vai fazer lá? Já criou a gente". Ela é discriminada dentro da própria família. Então, ela já fala: "É mesmo, né? Já criei tudo, já to criando neto, pra que eu vou fazer alguma coisa?". E aí, a gente diz: "Esse momento é seu.". Começa assim a história, usando as técnicas, né? De postura, coisas que eles vão... Isso que eu acho bacana, o projeto não foi assim, não foi a Casa, não fui eu, é e será isso. A demanda da comunidade é que vai trazendo. Então, acho que assim, um caminho pra um maior sucesso é com essa estabilidade. Porque se eles não querem, porque eles têm que se apresentar, porque eles sabem que existe. Se apresentou e gostou e gostou, aí, a gente vai atrás do que eles estão demandando. Então, por exemplo, nesse momento a gente tem um outro sonho que é ter Informática, porque no momento de gerir o seu negócio, pô, vou lidar com sócios, preciso saber como vai vender?, fazer o pedido?. E elas estão super felizes, mas não foi a gente que falou: "Vai fazer", elas sentiram que, pro negócio delas andar melhor, pra elas não serem enganadas, precisavam conhecer. Então, o que a gente faz na verdade é dar um insight de necessidades, aí, teve mãe que por causa disso começou na Informática e viu que a dificuldade não é aprender a informática, mas a dificuldade de ler estava dificultando, então, agora ela quer se inscrever pra estudar. Não foi a Casa que disse: "Vai ter curso pra...", não é nada disso. O movimento natural delas é que vai direcionando. Agora, isso é um trabalho a longo prazo. E normalmente os projetos dos patrocinadores, tudo em um ano e não existe... Se a gente tá falando em transformar, a possibilidade de transformar, se transformar, para transformar, é uma coisa a longo prazo. Por quê? Porque as pessoas chegam adultas e estão descrentes porque não servem mais. Eu brinco assim, que o adulto é mais difícil no sentido, de que tem tanta coisa aqui dentro que até conseguir limpar um pouco pra ele deixar algo fluir é um caminho grande. Porque já falaram que ele não serve pra nada mesmo, o que ele vai esperar? Ele já fez tudo. Então, ele já entra lá achando que não serve pra nada, mesmo. Então, a gente acessar isso, tem que estabelecer a confiança, e a confiança é com a convivência. Então, é um desafio, mas é um desafio maravilhoso quando eu vejo uma mãe que nunca tinha pegado o metrô ou ônibus sair do bairro e hoje ela se identificou com a área comercial do grupo, e foi muito engraçado. A três semanas atrás a gente foi a uma feira no Anhembi, e eu toda preocupada, porque pra sair do Capão Redondo, até o Anhembi, é sair do extremo da Zona Sul pra ir pra Zona Norte, e ela: "Não, Luzia, já sei mais ou menos, é aqui que eu vou". Puxa, isso na verdade a gente tá falando em transformar. E esta mãe tem três filhas, uma delas que tinha três aninhos, que hoje tem oito aninhos, que acompanhava a mãe e a gente trabalha com reaproveitamento, então, não jogar, como reaproveitar, ela falou: "Não joga fora porque depois nós vamos inventar alguma coisa, tem que levar pra ela". Ela articular isso, eu acho que a Casa vai ter mais condição de ter sucesso pra sua missão. Por quê? Porque eles estão se falando, ao se falarem começam a respeitar. Quando vai o Toca Zezinho, que é a orquestra, fazer uma apresentação, e coincide da gente estar expondo o trabalho das mães, a primeira coisa que eles vão fazer vai ser ver se o da mãe dele tá lá. E o filho, que a mãe não tá, ele chega em casa e diz: "Po mãe, o trabalho da mãe do meu amigo tava lá, você não faz oficina, não tá lá". Quer dizer, acaba gerando uma energia de mudança ali, de achar que é bacana. Por exemplo, nesse momento os jovens que fazem parte do Projeto Século XXI, que é especificamente de 15 a 21 anos, que é pra esse olhar pra fora, pro olhar já pro trabalho, nesse sentido de dar subsídios pra ele ter esse olhar, eles decidiram formar um grupo. E como tudo lá é arte, o grupo chama de costumização, costumize. E eles estão começando com silk, e olha que barato, aí, vieram conversar comigo na semana passada, porque agora eles estão efetivamente formando o grupo: "Luzia, nós estamos sabendo que vocês estão com oficina de costura, formando um novo núcleo, então, que tal?". Eu falei: "Que ótimo! Porque hoje eu mando silkar fora. Já pensou você fazer?". Semana que vem a gente vai participar de um evento que é cliente do grupo das mães e vai fazer um evento na empresa dele. E a gente conta de tudo o que acontece na Casa, pra ver onde ele se interessa e o que é bom, pela mãe ou pelo filho, não importa, a área que se interessa. Ele chegando lá é o importante. Ele falou: "Eu queria fazer um kit com umas cocadas pra por na embalagem que vocês estão fazendo". Aí fui lá, teve Gastronomia, e aí, vão fazer. Então, tá existindo isso, e isso está sendo levado mais pra comunidade, que isso no fundo é o meu objetivo de desenvolvimento local. Então, qual é a minha função lá? Cuidar de projetos que tenham a ver com olhar de negócio social. Na verdade a gente falava empreendimento, aí, empreendimento começou a falar tanto no mundo das universidades, que às vezes o cara pensa que a gente tá bolando o que é. Falei, pera, deixa eu tentar agora colocar eu no Terceiro Setor, tentando falar uma língua do segundo, de negócio, só que é um negócio social, baseado em três pilares: no social, que é a base de tudo, no meio ambiente, e no econômico. Então, a gente apresenta, que não fomos nós que criamos, a gente compartilha, e se a gente for pegar a origem da economia solidária, ela vem de uma necessidade pós-guerra, tudo é gerado por mudanças, né, e a mudança faz a gente também sair daquela acomodação, então, ao mesmo tempo que é estranho, ela faz você sair daquele estado em que você está, a gente confia, segue, que é possível apresentar o que eles chamam de economia alternativa, que se a gente for pensar hoje em dia não é tão alternativa, porque tem muitas coisas que hoje... A gente brinca assim, existe o informal e o ilegal, né? Haja vista o programa que o governo tá criando pra incentivar exatamente porque sabe que é onde tá a maior população concentrada, e não é por mal que ela atua de uma forma ou outra, mas é porque o país não está preparado pra receber esse trabalho das pessoas, né? Então, a gente trabalha o quê? "Ah, vocês são capitalistas?". A gente não é político, nem nada, no sentido assim, como viver melhor? Eu tenho que estar melhor, morar em um lugar melhor, pra tudo ficar melhor, então, eu brinco assim, não é a gente mudar da onde vive, é transformar melhor onde mora. Porque as pessoas já estão nos extremos, pra onde ela vai voltar? Só se for pra cidade dela porque a maioria é de migrantes. E pra cidade dela, muitas vezes ela prefere passar dificuldade aqui porque aqui, pela televisão, tem um mundo de ilusões (risos) que, às vezes, onde ela morava nem tenha televisão, ela não tinha essa ilusão, mas agora ela viu e quer ter. Então, como a gente tentar, junto disso, levar os valores, os valores da importância de quê? De olhar o outro. Por quê? Na favela, não é nada diferente do condomínio, porque a gente pega o elevador e, às vezes, o cara não fala bom dia, na favela também, eles se conhecem, mas não se falam. Eu brinco assim, tem problemas, dificuldades, que são de origem econômica, mas a maioria é das relações. Então, meu grande papel, acho que é passar e voltar da ponte, que é aproximar os dois lados pra eles se conhecerem, que como essência temos a mesma necessidade. E aí, não é Filosofia, nada desse papo, é de fato, quem quiser vivenciar uma experiência vai sentir isso. A Casa recebe muitos estudantes de fora, por exemplo da Alemanha. Lá tem a faculdade a Presidente já foi fazer várias palestras lá, que tem a faculdade da Psicologia Social, no sentido assim, de Assistência Social. Lá eles têm a faculdade e não tem onde vivenciar porque não tem a favela, aqui não tem a faculdade e tem a necessidade. Então, eles vêm fazer o TCC aqui, porque lá não tem onde experimentar. Então, o que tá mudado? São os valores, né? E é isso que a gente coloca. Mas não coloca assim: "Hoje é democracia", nada disso. Existe o Laboratório de Criatividade, a gente vai conversando, como tá conversando aqui e conforme elas vão sentindo necessidade e segurança, elas vão se colocando. E aí, as coisas vão se rearranjando. Por exemplo, agora que eu estou aqui com vocês, eles estão lá vendo como vão resolver um pedido, então, eu estou me afastando cada vez mais pra elas assumirem todas as caixinhas de um empreendimento, que elas até brincam falando: "Ah, agora a gente até entende porque o presidente diz que tudo demora aqui". Porque a gente é um grupo pequeno e tem que ouvir todo mundo e ouvir dá trabalho, todo mundo tá com tanta emergência que não dá tempo de ouvir. Então, esse processo, eu acho que faz a grande diferença. Então, qual é o nosso indicador de resultado? É como ele entrou na oficina e o que aconteceu depois? Não necessariamente ele tem que fazer parte desse grupo, porque se dali ele montou, como eu já tinha até comentado, tem gente que montou seu negócio de costura na sua Casa, o outro dali abriu pra ele arrumar um trabalho, mas ele foi com outro olhar, de que ele pode, que é possível. Isso pra gente é o grande indicador de resultado. Ele se colocar, saber em quem vai votar, ele saber que se ele ouvir um não, não é bem assim, porque ele tem seus deveres e direitos. Então, no fundo, o grande movimento é esse. Porque, às vezes, o pessoal fala: "Poxa, tem que formar um grupo grande". Eu falo: "Aqui, não é pra replicar nada que já existe". O que quer dizer isso? Não é pra gerar emprego, o que quer dizer isso? Pra vocês terem idéia, esse grupo que é o GMACZ, que é Grupo das Mães Amigas Casa do Zezinho, que é piloto pra gente ter vários empreendimentos, ele é baseado em quê? Tudo o que elas aprenderem, e retornar de valor é pra elas, nada vai pra Casa. Mas a gente tem lá no estatuto, e tem um grande sonho, como é que elas retribuem hoje? É o que eu falo, a gente tem que fazer dinheiro sem dinheiro. Porque sempre fala assim: "Se eu tivesse eu faria não sei o quê...", se eu tivesse, e aí vai a vida. Então, como é essa política do sem dinheiro fazer dinheiro? O que eu tenho que posso contribuir? Por exemplo, elas na oficina, com 1.500 crianças e jovens, sempre rasga uma roupa, sempre acontece alguma coisa, né? Então, elas prestam serviço sem cobrar, é uma forma delas estarem ajudando, uma comtrapartida, a Casa sem necessariamente ser em dinheiro. E assim que a gente vem construindo, com possibilidades a gente pode fazer isso. Agora, é um grande desafio porque a gente tá falando em investimento, falar em investimento pra quem não sabe se vai estar à noite em sua casa, ou o que vai comer, é o grande desafio. Então, a gente tem uma linha tênue entre o ideal, que a gente acredita, que as pessoas também acreditam, se estão lá compartilhando também acreditam, e o real, que é a necessidade básica de sobrevivência. Esse é o grande desafio diário. O que tá acontecendo com o grupo? Por estarem falando agora em sustentabilidade, reaproveitamento, ele tá criando mais visibilidade. E qual é o objetivo, e que bom que as pessoas estão falando, né? Pra ouvir o que a gente tem a falar. Isso ficou tão marcado que em 2006, durante dois anos, elas fizeram uma feira na Paulista, ao lado do antigo Banco Real, maravilhoso o espaço lá. E lá vai muito turista. Era 2006, foi se aproximando um alemão e as mulheres: "Não estou entendendo nada". Eu falei: "Ele tá no nosso país, vamos ver". Aí ele viu, tinha uma sacolinha de mercado lá, uma sacola feita com sacolinha plástica. Na hora ele já falou o que era, e a gente tentando falar ali pros nossos compatriotas e não consegue, porque não estavam antenados naquilo. Então isso hoje... Aí, abriu portas, por exemplo, teve uma feira de Meio Ambiente pra elas irem na USP, as alunas perguntaram se podiam ir na USP. Gente, é muito louco, mas é real, porque é um mundo que não existe. "Claro que podemos. Não só vamos como vocês vão expor, montar um espaço". E agora elas olham isso com mais naturalidade, e o que é legal, elas não se iludem, porque vai em um lugar bonito vai vender tudo, a gente trabalha muito isso pra não gerar decepção "ah, não fui aprovado". E elas já estão em um momento, às vezes quando vai alguém assim, e fala: "Ainda bem que não comprou, né? Se a pessoa não tinha boa energia". Ah, meu, ouvir isso de quem tá precisando da grana é algo de fato que nos mobiliza a continuar cada vez mais no sonho.
P/1 – E como é que funcionam essas vendas? Como o dinheiro é distribuído? Você estava falando lá fora da relação entre cooperativismo e como é a atividade delas, ou desse grupo de mães hoje?
R – Quando eu cheguei lá em 2002, que tinha começado a oficina um ano antes, eu ouvir falar assim: "Ah, porque a cooperativa". Pô, eu pensei, nossa, que legal, o que tá faltando é por no lugar certo pra vender. E marquei na delas, uma palavra tão comum. Aí, tivemos uma reunião pra saber o que era a cooperativa. Na verdade, era um sonho que tinham falado, que era pra ter um negócio. Aí, eu falei: "Bom, vocês estão a fim de ter alguma coisa, então, a gente vai estudar". E aí, foi quando a gente fez parceria com o Sebrae e algumas empresas e assim, o que a gente pratica lá? A gente compartilha o que é a cooperativa, o que é autogestão, que é você estar lá espontaneamente. Compartilha os valores. Porém, na prática, no Brasil, pro segmento que as mães atuam, é inviável juridicamente. Elas estão mapeadas, reconhecidas como uma economia solidária no Senaes, que é a Secretaria Nacional de Economia Solidária, faz parte, acredita nisso, defende isso, pratica essa economia, mas juridicamente ainda é inviável, no sentido de ser uma cooperativa. Hoje, cooperativa que a gente vê no Brasil como sucesso é quando você tem uma empresa que foi falida, faliu a empresa, os funcionários assumem a empresa porque tem o conhecimento, essa dá certo. Ou agricultura familiar, que eles praticam e vendem ao seu redor. De serviço e produção ainda é uma coisa inviável, então, o que aconteceu? Depois de vários treinamentos formou-se esse grupo que chama GMACZ, que o carro chefe hoje, que veio moldando ao longo dos anos, porque como eu falei, começou lá numa oficina que não tinha pre-requisito, que era pra aproximar, e isso foi capacitando, formando, e hoje o carro chefe são bolsas e sacolas com reaproveitamento. Desde o garfo japonês, que é o hashi, entrando agora o filhinho mais novo, a garrafa pet, o saco de cebola, tecidos, banners. E a outra linha é a linha de serviço. O que é essa linha de serviços? É a venda por encomenda. Este é o foco do grupo. Porque a venda a varejo, todo mundo vive sem uma bolsa, né? Não vai comprar uma bolsa todo dia, e como você vai continuar falando pras mães: "Vamos incentivar que é possível, vocês são talentosas", é a venda por encomenda. A gente trabalha muito com a parte de brinde. Por que isso? Porque ela sabe exatamente quando vai começar o trabalho, vai finalizar e vai ganhar. E isso vem de um processo de construção, ninguém falou. Muitas vezes, com ansiedade até eu falo: "Pô, vamos sair divulgando". Mas não, quem define o andamento são elas, a gente tá servindo. Por mais que a gente queira que aquilo se modifique, cada um tem o seu timing, então, a gente tem que, esse é o balizador, senão, nada acontece. Se elas não sentirem que é, e que depende delas, trazer pra elas isso. Elas não fazem parte de um grupo, dentro de um projeto, elas não são funcionárias da Casa, nada disso. Então, é também diferente falar isso pra uma população que está acostumada que alguém mande nela, então, já começa essa coisa diferente. "Então, tá bom, qual é o tamanho do seu sonho, é ganhar um real, ou o quê? Então, você vai se formar pra ganhar um real". Quanto tempo você vai dedicar do seu dia pra ganhar um real? Você começa a... isso é uma estranheza enorme e ela vem montando. Por exemplo, hoje, se ligar lá agora, provavelmente tem mãe que não tá lá porque tá com o filho, então, elas montam os seus horários, mas elas sabem que lá elas só funcionam como coletivo. Então, quando a gente sai, a gente não vem falando de nenhuma mãe, a gente vem falando do grupo. E aí, começou também. Tudo o que vende, começou sempre assim. Vendeu. E aí, vai voltar tudo pra você? Aí, se voltar tudo pra ela o dinheiro gastava, aí, não tinha como fazer outra encomenda, aí não tinha como vender. Aí começou: "Ahhhh, vamos criar um caixinha". Foi tudo assim, um processo. Foi não, está sendo, todo um processo. "Precisamos abrir um caixinha" "O caixinha vai ser de 20, de 30, de 10?". Conforme elas foram se formando e conseguindo produzir mais, elas foram vendo qual que tinha que ser essa relação. E essa batalha que a gente vem, e por isso agora tem a Informática, graças, conseguiu de fato um patrocinador tendo esse olhar ampliado como a gente entende, pra que elas comecem a fazer as planilhas. Na semana passada elas começaram a mexer no Excel, imagine! Cada uma tem seu e-mail, isso é demais né? E o que é bacana? "Ah, é até legal, ela tem um e-mail, mas não tem computador". Ah, pode ser mesmo, lá no grupo existe um comunitário, que está estruturando pra ser comunitário, mas fora isso, a Casa administra toda uma ação, o A Gente Transforma no ano passado junto com o Rosenbaum, vários estudantes, várias empresas, eles reformaram parte de um campo, que é a única referência de lazer que eles tem, quando chove alaga, mas é a única referência, fizeram pátio, pintaram as casas, e construíram a biblioteca. E lá colocaram um Laboratório de Informática aberto à comunidade. Então, de fato ela tem, e é isso que eu to dizendo, que o que a Casa propõe um curso e depois diz: "Se vira". Não, ela propõe toda uma lógica, agora, obviamente, cada um vai se ele tiver a vontade e o desejo. Mas ele não é: "Ah, aprendi isso e não sei onde vou usar". Não, ela tá junto, então, ele tem toda uma continuidade pra que aquilo tenha possibilidade de se realizar. Por isso o parceiro com o Microcrédito, né? Por quê? Porque fez o curso, bacana, "Bacana, fiz o curso. Então, agora, eu posso vir aqui, mas se eu tivesse uma máquina...". A gente faz uma conta básica, bem básica. Uma barra. Todo mundo compra roupa, então, sempre tem uma barra pra fazer. O zíper pra trocar. Uma barra, bem por baixo, é cinco reais. Então, a gente faz uma conta assim: "Será que você consegue fazer quatro por mês?" "Ah, quatro, imagine!". Tudo 20 reais, com 20 reais você consegue pagar sua máquina, então, é aquela política, sem dinheiro fazer dinheiro. Como é possível. E aí, vão se aproximando esses parceiros que compartilham dessa mudança. Porque não adianta também, como ela vai fazer sozinha? Não existe isso. Existe compartilhar as possibilidades de que é possível, é real. E vai agregando, por exemplo, chegou um momento em que elas queriam fazer um curso de costura. Mas a gente não tinha tanta máquina. Mas aí, a professora, que foi contratada, educadora na época, a Rai, que foi contratada pra fazer o amarradinho, aquela oficina pra aproximar, ela é costureira há muitos anos. E a Casa conseguiu um curso no Senac. Aí, pelo desempenho dela em patchwork, que não é nada tão simples, e pelo projeto, a Singer doou máquinas. Então, tudo foi sendo construído, apesar de não ter patrocinadores, ter ações pontuais, mas nunca desistir do sonho. Só que a gente sabe que dinheiro por dinheiro, ele não vai fazer nada. Agora, se você tem uma comunidade que está a fim, tem um bom projeto, ele agiliza, e muito, o processo. Porque ele dá aquele gap, que é que quando não tem, você faz com o que você pode da melhor forma. Então, a gente tá num momento agora, eu fico feliz quando terminou agora a oficina de patch, um sonho antigo de ter, e as mães acabaram e falaram: "E agora Luzia? A gente não pode ser igual àquele grupo GMACZ?". E é isso que a gente quer estimular, que virem vários núcleos. E aí, um fala com o outro. Por quê? Porque também é assim, não é porque eu não fui bem numa oficina, que eu sou um péssimo profissional! Então, o que acontece na Casa, uma outra coisa diferente? Aproximação não é por habilidade técnica, que seria muito mais fácil, aí une, um sabe fazer, o outro sabe vender e pá. Não. São mães, mães e pais. Então, por isso você tenta ter várias oficinas pra ver aonde ele vai se entregar da melhor forma, então, não há exclusão. Ele automaticamente, se ele não compartilhar dessa comunhão, no sentido de todo mundo junto, ele sai. Então, eu brinco e falo que lá não tem espaço pra umbigo, se o cara pensa nele, só nele, que ele faz tudo assim, não é ruim, nem bom, apenas não é o que a Casa tá compartilhando como um processo de transformar.
Troca de fita
P/1 – O que eu queria que você colocasse, com toda essa sua vivência e com essa carga de trabalho no desenvolvimento local e com esses trabalhos de sustentabilidade, eu queria que você explicasse pra gente como é que funciona, ou o que caracteriza uma economia solidária, ou esse comércio solidário?
R – Então, quando a oficina começou, não foi pensado: "Ah, vai ser uma economia, vai ser isso", foi sendo mostrada através da demanda. Quando elas quiseram se profissionalizar, foi a demanda. E aí, a gente pensou assim: “Se a gente quer isso tudo reunido...”, eu que cheguei, eu nem conhecia o que era economia solidária, na verdade eu acho que a gente pratica os três princípios básicos porque eu fui criada assim, eu fui criada por pessoas que vieram da guerra, então, falar em social, falar em meio ambiente e econômico, são valores inerentes, não tinha nada desse papo, né?, fazia parte. Então, quando a gente começou a falar: "Bom, o que vocês querem?" "Querer ficar perto dos filhos, uma coisa justa", "E está legal onde vocês estão morando?" "Não, não tá", "Explica por que não tá legal", "Ah, porque não tem onde respirar...", nanana, e aí, chegou-se a comum acordo, que todo mundo achou que o social, ambiente e econômico faziam parte. E aí, foi falado: "Isso que vocês estão falando tem um nome, é uma alternativa a um tipo de economia. E se vocês têm um objetivo e querem que melhore, então, a gente tem que começar pelo local, como fazer isso? A gente começa internamente, cria forças, formação, e aí, começa o processo". Assim começou a história, porque elas queriam ter o seu horário, que não é o perfil, isso também uma coisa muito importante, cada um grupo tem uma vocação, e não é a gente que vai dar vocação pra eles, não vai querer que vai induzir que vai fazer o copo se não tem nada a ver com vidro, não tem nada a ver. "Pô, mas vai vender pra caramba", mas não é a vocação do grupo. Então, a gente trabalha muito, por isso que eu falo assim, que é a gente, eu, pra minha experiência diária lá, é um grande autoconhecimento, porque a gente é cheio de paradigmas, coisas, mas você é testado diariamente pra ver se o que de fato você fala que é, você é. Então, meu tratamento terapêutico, vamos dizer assim, em vez de ir pra um, nada contra nada, o meu caminho, invés de ir pro consultório, eu fui pra comunidade. Porque ali, diariamente, você é avaliado, você internamente. E elas a mesma coisa, quando a gente começa a falar elas gostam, mas ao mesmo tempo é diferente, porque, "não, mas carteira assinada", porque o máximo que pode ter é o registro em carteira, e eu falei: "Mas, você sabia que você pode ser autônoma?" "Autônoma, o que é isso?". A gente começou a fazer esse trabalho, mostrar, através delas, que elas vêm falando. Então, hoje tem mãe que paga: "Eu sou autônoma". Acho o máximo isso. E aí, o marido fica tranquilo porque ela não está mais perdendo tempo, e eu também, porque ela tá lá. Porque a aposentadoria... Porque é o grupo que está dentro de um projeto, qual é a ideia? Elas são a semente pra terem autonomia de se organizarem onde elas estejam. Então, a Casa acabou sendo uma incubadora. Acabou criando uma metodologia e sendo uma incubadora. Porque a gente também enxerga que a necessidade dali, se você for atravessar o outro lado do rio, já é outra. O que é bom pra um, não necessariamente é o que o outro quer. Então, a gente acabou criando, com as mães, uma metodologia e ser uma incubadora. E aí começa, ah, muito bem, fez o produto. Onde e como a gente começou a sair? A credibilidade era da Casa. Quando a Casa tinha algum parceiro que fazia algum bazar, convidava e a gente ia. Fomos arrumando outras feiras, sempre com o currículo da Casa (risos). E hoje, o que é legal é que já tão chegando via as mães, isso é maravilhoso, né? A mãe já conseguindo pra casa. E aí assim, vendeu. Elas se reúnem, ganha quem faz. A teoria é linda, né, divide tudo igual, faz tudo igual. No grupo, e no perfil de trabalho que a gente faz, não acontece isso. A gente até tentou por isso numa encomenda, fez tudo aquilo, e depois as mães chegaram e falaram: "Luzia, não dá". Porque tinha outra que falava: "Bom, já que eu vou ganhar igual...". Entendeu, né? E desmotivava a outra que tá ali acreditando. Então, a gente falava: "Tá legal, então, você vai ganhar de acordo com o seu sonho. Se o sonho é ganhar mil, você vai fazer por ganhar mil. Se o seu sonho é um, vai fazer por ganhar um. Você vai ficar contente com um e o outro com mil". Então começou assim. Virou um produto e vendeu, então isso é o que a gente chama de investimento. Investimento é a formação delas virar um produto e vender. Por isso, preparar e fomentar que elas façam por encomenda. Porque uma venda à varejo, hoje vende, amanhã, não. Aí, chegou lá o dinheiro, divide-se, cada um o que fez, o que vendeu. E é muito interessante porque hoje já tem, por exemplo, tem mãe que não se identificou na máquina, e a que se identifica na máquina não gosta de vender. Mas você tem que vender, né? Eu brinco assim, no começo todo mundo tem que fazer tudo, como uma empresa, conforme ela vai tendo estrutura, tem alguém pra fazer o café, tem alguém pra atender, alguém pra vender. Hoje tem que fazer desde o café. Primeiro atrair pelo produto, aí, vai fazer o café, servir bacana, ir lá vender e aí, vai. E tem mãe que tem essa habilidade, por exemplo, de vender, a outra não gosta. E como elas fazem? Se ela está lá vendendo, ela não tá produzindo, concorda? Como ela vai ganhar? Elas criaram um mecanismo, cada uma faz um produto e dá pra ela, então, existem formas de sem dinheiro fazer dinheiro. Porque, como você vai dizer que a mãe pode ganhar... Esse grupo ainda não tá nesse nível: "Ah, então você, como venda, vai ganhar 20%". Porque uma venda à varejo pode vender ou não, então, se você dá o produto que é a fonte que ela tem ali condição de fazer, você tá dando possibilidades iguais, de quem tá dentro e fora. Então, é assim que a gente vem exercitando diariamente esse processo. Agora, como qualquer lugar, ter dinheiro não é fácil, né? Dinheiro gera desconfiança, gera quem tá levando vantagem, por isso tentar ser o mais transparente, e por isso está saindo aos poucos as coisas minhas e elas fazendo, por isso a Informática e tudo o mais. Por quê? Porque também às vezes o cara acha: "Eu que fiz, o outro vai ganhar porque vendeu?". Todo mundo lá tem que passar por todas as áreas pra entender a importância de cada área. Porque quando ele entende a importância, ele vai saber que não é fácil ir vender, que dá trabalho ir comprar, consultar pra economizar, né? E ele só vai sentir isso quando ele vivencia.
Troca de cd
P/1 – A gente estava falando do que compõe também a economia solidária, de como ela pode ser feita. Pode ser assim nessa forma que vocês trabalham, que trabalha com as características do cooperativismo, mas numa associação e tal, e também tem outras formas.
R – Então, faz parte dessa economia alternativa, se é que podemos falar assim, alguns processos, que variam muito com a característica e o lugar em que ela está. Então, tem a feira de trocas. Essa maneira de estimular o que não é mais necessário pra você pode ser pra mim. Então, como você conceber isso? A nossa preocupação está em que eu vou trocar, oferecer como troca. Por quê? Porque o público que a gente trabalha tem a necessidade básica primária a ser atendida, desde a sua moradia à comida. E não há como um cara fazer um lindo produto se ele não se alimentou, é ilusão. Também, a gente não tem como falar assim: "Vamos produzir tal coisa", se onde a gente está geograficamente não comporta aquilo. Então, o grupo participa e já participou de feiras de trocas, quando tem esse olhar, que a gente não tá estimulando mais ainda o capitalismo, que também isso é uma coisa, a troca é uma coisa nova pra todos se agregarem, não é pra que possa ter desde o alimento, calçado, que possa ter cada vez mais diversidades que aí gera uma troca não por uma simples troca, mas por uma coisa que seja necessária, né? Então, tem algumas experiências nisso. Também tem experiências, e o Banco de Palmas, muito conhecido, com a moeda local. Então, isso tem muito a ver, e o que define claramente ter sucesso nisso pra mim, é onde você tá localizado. Se eu to num lugar mais afastado, e eu tenho essa economia, o meu comércio é mais distante, eu preciso sobreviver do que está mais próximo, esse movimento se faz mais naturalmente. Agora nós estamos no meio de uma metrópole, onde é difícil, até pra manter o grupo nesse sentido que é possível, a gente tem três concorrentes básicos ali, que estão diretamente ligados na economia que são: primeiro lugar a faxina, porque ela vai tirar aquele dinheiro limpo sem ter que investir nada no seu tempo pra mudança. Isso que eu to falando é totalmente diferente de outro grupo, que tá em outro local. Se o cara tá mais afastado e não consegue ganhar nenhum real, se tiver uma possibilidade de ganhar um real, ele aumentou em 100% a margem daquele dia. É totalmente diferente. Nós estamos falando de uma cidade que tem os semáforos aí que, às vezes, o cara vai mais rápido no semáforo do que nesse projeto de transformação. Então, como a gente aliar isso a onde a gente tá geograficamente? O segundo concorrente é a falta de saúde. Não adianta também a gente ficar falando em coisas ideais com necessidades tão próximas batendo. E com isso a gente vai testando o que se adequar melhor à vocação daquele grupo dentro desses valores. Moeda local. Pensando nisso, a gente vem e veio com os sonhos, como é que a gente pode provocar de fato uma moeda local e uma feira de trocas? Fazendo núcleos diferentes, com serviços diferentes. Porque trocar uma bolsa por outra bolsa, eu não to fazendo troca no sentido do que é necessário pra mim vai ser pra você, a gente vem na formação de outros núcleos e o que a gente mais quer agora é o que vai mexer com alimento, que ele comece também com a saúde, se melhorar, e aí, ele vai na horta. Por quê? Porque aonde a gente tá tem comércio local, que não é enorme, mas que vai ser bem produtivo pelo que as pessoas vão poder produzir. O que quer dizer isso? Quer dizer, poxa, é muito mais interessante praquela mercearia, ao invés de ir no Ceagesp, que eu gasto grana, não pode tal veículo, poluo, parãrã, pãrãrã, ele ter um alimento orgânico do local dele chegando fresquinho. Então, é isso que a gente tá vendo a tentativa de montar núcleos diferentes. E o GMACZ é o grande piloto pra pessoas acreditarem que é possível, então, ele vai estar lá no segmento de bolsas, vai ter outro com a garrafa pet, vai ter outro que é o da horta. E tudo começa com ele se autotransformar, não é mágica, a partir do que ele vai vivenciando que faz diferença. E ali, naquela região, tem mais de 500 mil habitantes! Então, tem muita coisa. E aí, sim, vão estar amadurecidos no sentido da gente poder até chegar numa moeda local, ir numa feira de trocas efetiva, de troca por necessidades básicas sendo atendidas. Então, esse é o caminho que vem. E a gente falando, quando no centro da cidade estão fazendo uma feira de trocas, e a gente sempre fala: "Você tem que vivenciar, porque a pessoa só vai saber se é por ali ou não se ela sentir". Aí, elas falam: "Mas Luzia, nós vamos trocar uma bolsa por outra bolsa?". Aí, ela falou: "Não, é melhor eu ficar na oficina porque se eu vender essa bolsa, eu vou ter o dinheiro pro meu alimento". Então, a gente vem trabalhando, mas a ideia, porque só vai fortalecer o local quando a gente tiver vários núcleos. Aí, que ótimo que a gente possa se unir com outras organizações que tenham outras atividades diferentes, né? E que isso venha agregar e valorizar o grande vizinho que são esses 500 mil habitantes. Então, eu acho o máximo, eu vejo lá uma floricultura, todo mundo pega as coisas tão lindas, e o adubo é com agrotóxico. Pô, será o máximo que a gente possa conseguir fazer isso no núcleo e que ele possa atender. Todos vão estar felizes. A Zona Sul tem outra característica, ela não tem mais área física. Então, como a gente criar coisas que possam atender às necessidades levando-se em conta a geografia? Como? Fazendo parcerias. E acima de tudo com o comércio, que pode ser um grande aliado, sabendo como conduzir. Porque um vira cliente do outro, porque na verdade, o que ela ganha ela gasta ali, ela vai na padaria, ela gastou ali. Então, também é importante que elas tenham grana pro próprio comércio se desenvolver. E atrai mais coisas. É que tudo cresce. E é assim que a gente lida com essa questão de como fazer, sempre colocando e vendo pessoas falando o que existe, pra eles decidirem o que elas acham melhor. Como que, por exemplo, num desafio que a gente teve a anos atrás, em 2003, 2004, não me lembro, no Sebrae. O último exercício era assim, elas já estavam danadas porque era final de ano e a gente falava: Vamos de sábado e domingo. Porque eles levaram o curso pra lá, porque eles não levam, quer dizer, fizeram todo um trabalho acreditando, e a gente tinha que fazer a nossa parte. Bom, e aí, falaram, não falaram dessa maneira, mas era assim: "Imagina, vocês vão abrir um empreendimento hoje que tem que dar lucro". Professor pirou, "não é pra isso que elas estão aqui de sábado, Luzia, como elas vão fazer isso? Se elas soubessem como gerar dinheiro, elas já estavam aqui, né?". Eu falei: "Não sei, vamos lá". Dividiu em grupos: “cada um vai ter que criar um negócio”. Aí, claro, o mais rápido era comida, aí, uma tinha o ovo, outra não sei o quê, criou uma tapioca. Outro, criaram cinco negócios, cada um foi lá. Primeiro elas, "Ah, é possível se cada um contribuir", isso é troca. Ah, é possível. Fizeram o produto. Aí, tinha que vender, porque o final do dia tinha que chegar com lucro (risos). Com retorno, não é nem lucro, é o retorno. Bom, aí, saíram em grupos. Eu lembro que eu lá como coordenadora, eu vou junto, né? E elas: "Não Luzia, pode deixar que a gente vai". E eu que nem a mãe que fica assim: "O que será que vai acontecer, será que vai desmotivar agora de vez?". Nossaaaa, todo mundo, todas, voltaram com a cesta vazia. E aí, descobriram que tem cabeleireiro, aí descobriram o que tem no local. Então, não chega e diz: "Hoje vamos fazer um levantamento do mapeamento do entorno", não tem esses papos, tem assim, como que na vivência. E elas viram, acho que foi o ponto que mostrou mais: "É possível". E até pra poder enfrentar a família, chegar em casa e falar assim: "Ah, você perdeu o dia inteiro lá?", porque é assim, né? Assim como as crianças ouvem, os adultos também ouvem. "Perdeu o dia inteiro lá?". Mas é possível, é possível. Então, em grande resumo, o que a Casa acabou naturalmente pela necessidade é propondo assim, "É possível mudar DESDE QUE a gente tenha as condições básicas pra isso". Então elas têm que estar, como ser, melhores. Porque elas vêm totalmente desacreditadas de tudo.
P/1 – E Luzia, eu queria perguntar pra você em relação ao bairro, à Zona Sul, ao seu olhar de lá. Como que você, que primeiro desceu do ônibus no ponto errado, olhou aquele lugar, de atravessar a ponte de uma certa maneira, como é que você vê o bairro hoje, o que ele tem, como é que ele é?
R – Mudou muito. Cresceu. O lado bom e não tão bom, né? Primeiro, as pessoas estão assumindo mais o lugar, tirando aquela coisa de ter vergonha. Já acho que é o primeiro ponto bacana. A mídia tá começando a ir não só pra falar de tragédia, outra coisa bacana. Começando a olhar que tem valores, valores culturais, artísticos, de todas as áreas. Então, acho que é a primeira coisa pra pessoa falar: "Opa!". As pessoas não querem mudar de onde elas moram, isso é bem importante. Porque só a partir do momento em que ela reconhecer que ali é importante pra ela, ela vai ter coragem de começar a lutar pra melhorar. Enquanto ela se sentir um itinerante, daqui um tempo eu vou ser mandado pra outro lugar porque vai demolir, sei lá o que vai acontecer, ela nunca pertence a nada. E se ela não pertence a nada é indiferente se aquele córrego tá cheio ou não tá porque... Você entendeu? Eu lembro que quando eu cheguei na Casa, cheguei em outubro. Aí, em janeiro, a Dag, a presidente, dava umas quatro horas assim, ela vinha com um apito lá, eu não entendia nada o que era aquilo. Ela olhava o céu e vinha com o apito. Eu falei: "O que será que é isso aí? Esses códigos". Por quê? Porque ela sabia que ia chover, pra dispensarem as crianças, pra elas chegarem o mais rápido, porque a maioria mora na beira do córrego, pra suspender as coisas e não perder. Olha que louco! Entre aspas, era normal as crianças saírem pra não perder. Então, o que eu olho de grande movimento? Primeiro, as pessoas começaram: "Não, aqui é meu lugar", já é um avanço enorme. Dois, tem muitas empresas por ali, então, qual é a intenção? "Vem cá, vamos ser parceiros", fica um pondo um monte de grades, vamos ser parceiros. E por que isso? Porque se a gente for pensar na quantidade de pessoas, na população, é muito mais populosa a população depois da ponte do que antes, né? Eu to falando ali onde a gente tá, em mais de 500 mil habitantes. Ali. Tem vários que vocês vão conversar, vão ver como é. Então, eu vejo assim, o número um é o acesso, e as pessoas começando, muito lento pra demanda, né? Porque, poxa, conheci um lugar lá, às vezes, você acha que conheceu a pior história: "Não, agora eu to vacinada", e não é verdade. A outra é sempre pior. E tem um lugar que não tem água potável. Aí, a gente tem que ouvir que muitos recursos não vêm pra São Paulo porque o IDH é mais alto. Então, tem que ir pro Norte e pro Nordeste. Eu não tenho nada a ver, eu AMO Norte e Nordeste, eu acho que tem que ir pra onde precise, se é Norte, Nordeste, Sul, Sudeste, é onde precisa. Você pode imaginar? Não é igual a energia que fez o tal do 'gato', né? O natural não é ninguém ter nada escondido, não é o natural. E na água, não tem gato pra água, sabe? Você tem noção do cara depender de alguma coisa, chegou ali, e não tem. Nós estamos falando onde o IDH é mais alto do país, e é nosso vizinho e a gente não sabe. Então, a outra coisa que eu vejo boa, as pessoas começaram a começar a olhar que existe o outro lado da ponte. E aí, tem a ponte do Tietê, não é exatamente a que vai depois da João Dias, mas Tietê, Pinheiros, e quantas pontes têm por aí? Assim, acho que essa é a grande mudança. Os meus próprios amigos achavam que eu era muito louca, "Pô Luzia, tem tanta ONG perto da sua casa, pra que você vai arrumar pra cabeça?". Não é arrumar pra cabeça, é aonde toca o seu coração, né? Não é papo de Filosofia nem nada disso, é papo de acreditar. Porque tem horas que você chega e fala assim: "Meu Deus". Eu fui a um evento que a gente participa, a Casa, há três anos, que fala sobre reuso da água, tudo que está ligado com reaproveitamento, que agora convida o grupo também porque trabalha com isso. E as pessoas jogando o copo descartável no chão. Um evento que é direcionado pra isso. Então, quanto trabalho a gente tem que fazer pra chegar? Mas não existe outra maneira, alguém vai passar pras crianças. Por exemplo, eu até brinco assim, eu não tenho filho, não tenho irmão. Se eu me mantiver até onde der, mas não é por aí. O que incomoda a gente é exatamente, como é que a gente recebeu e o que tá acontecendo, porque não é bom pra ninguém, a gente não anda em São Paulo, não é verdade? Existe uma ilusão também na grande metrópole. O cara vai trabalhar porque vai ganhar, aí, você põe lá no papel, o que é ganhar? Qualidade de vida é ganhar, né? E não é teoria. Ó o ar que nós estamos respirando, é sobrevivência. Já foi o tempo de falar em teoria, bonitinho, não é isso, é sobrevivência. Então, põe lá, tem gente, e vocês sabem o que eu estou falando, tem gente que gasta quase quatro horas pra se deslocar desde acordar até chegar no trabalho. Como esse cara vai render? Aí, se chegou atrasado ainda é mandado embora, enfim, tem um monte de coisas. Como a gente pode compartilhar? Bom, outra coisa que não tinha depois da ponte, agora os shoppings quase são setorizados, né? Ele quase define uma cidade dentro da Grande São Paulo. Por exemplo, o pessoal fala assim: "É, tem que se divertir", lá tem um shopping, que é o Shopping Campo Limpo. Quem é que pode ter acesso? "Vai a pé". Já melhorou, né? Porque tinha que ir no centro, já não dava pra ir à pé. Mas a que preço? Porque não pense que os mercados, o custo na periferia é mais barato do que no centro, é o mesmo preço. Então, imagine quais são as dificuldades pra tentar essa lida. Mas o que a Casa coloca? Porque existe muito a cultura do Assistencialismo, né? Existia, esperamos que mude. Claro que em um primeiro momento tem que ser assistência mesmo, se ele está sem comer, sem a condição básica, vai fazer o quê? Nada, porque ele não vai nem te ouvir. Ele até tá querendo, mas ele não consegue raciocinar. Daí, a você virar um programa de governo no sentido de, através daquela bolsa você decidir o que você vai comer, quando vai comer, até quando, não né? Esse é o outro lado que a gente tá falando assim: “É possível, ou vai ficar dependendo”. Porque as pessoas não gostam, né? Cada um gosta de ir ao mercado e comprar o que quer, não ser obrigado a comer o que dão e quando dão. Eu acho que a gente está falando em valores.
P/1 – Luzia, o que você tirou de aprendizado nesses quase dez anos de Casa do Zezinho?
R – Ahhh, eu tirei que eu to engatinhando, que a Dag é uma pessoa muito corajosa, porque, imagine, eu fico assim em um núcleo tão pequeno, imagine a cabeça dela, e de tantos que fazem. Porque existem muitas pessoas fazendo coisas bacanas, só que não são divulgadas essas coisas. Porque na hora que elas forem divulgadas, elas vão criar um tamanho, que aí, aquilo vai ser bom e, às vezes, pode não ser interessante ser bom (risos). Então, eu vejo assim, uma responsabilidade diária aumentada porque cada pessoa que está ali, você fala assim: “Nossa, o que você tá representando, o que ela tá depositando de confiança em você?”. E a gente tem as mesmas fragilidades de todo mundo, nada de diferente. Pra mim, essa decisão foi muito difícil, porque uma coisa é você sair do escritório, legal, numa área bacana e outra coisa é assim, nada na vida é grátis, então, eu tive que mudar totalmente o meu esquema de vida. Mas, pessoalmente, é o que me enriquece. Mas eu também preciso viver, obviamente, porque senão... Uma vez, eu escutei isso lá na Casa, e eu pensava assim, na minha ignorância: "Imagina, eu chegar lá com um carro, vai achar que a gente tá...", na minha ignorância, de ignorar o assunto. Vai dar a impressão que a gente vai querer mostrar uma coisa assim. E eu vi um negócio assim: "Você tem que vir e mostrar que é possível mudar, porque pra se tornar com a mesma dificuldade, em que eles vão se inspirar que é possível mudar?". Aiiii, me deu um alívio. Poxa! E hoje, esse mesmo carro que me acompanha, as mães já tratam como delas, porque quem mais usa são elas. É só pra dizer assim como às vezes a gente vai com um monte de pré-conceito. E eu lembro que a primeira chamada que eu vi lá, quando eu fui conhecer a Casa (risos), na minha ignorância. "Então, aqui, ah, são crianças carentes?". E a educadora disse: "Que a Presidente nem passe por aqui agora". Eu falei: “Gente o que aconteceu?”. E está totalmente certa, carentes somos todos, porque senão psicólogo morria de fome. E aí, a gente vai aprendendo, como a gente faz, por questão de cultura mesmo, que a gente foi educado dessa maneira. Como a gente vai se distanciando e criando um monte de guetos. E o que, ao mesmo tempo, é engraçado. O que aconteceu na Zona Sul? Muitos foram excluídos, foram parando. Outros também foram excluídos porque também foram perdendo trabalho, famílias que eram "estruturadas" foram perdendo trabalho. E qual é a diferença de vulnerabilidade? Nenhuma. Esse cara que teve mais condição pode fazer uma troca maravilhosa com o outro. Às vezes, a pessoa fala assim: "Não, não pode se juntar". Tem que se juntar. Senão, a gente só faz gueto. E essa mistura, por que é maravilhosa? Porque um sempre tem a trocar com o outro, e aí, eles vão quebrando, eles, o pré-conceito. Não sei se estou sendo... Porque por exemplo, a gente começou assim, só podia atender mães de crianças da Casa do Zezinho, que é por isso que nasceu. Aí, você foi vendo que tinha gente da comunidade querendo entrar, mas como a gente não tinha um patrocínio, é difícil. A gente não queria abrir uma expectativa e depois não atender com qualidade, que aí também não adianta nada. Foi resistente, mas eles foram insistindo, e espera aí, começamos a olhar diferente. Esse cara da comunidade pode ser o que vai alavancar, a chamar, esses que não estão vindo porque já estão descrente de tudo. Então, essa mistura é muito importante. E aí, eles vão vendo como faz diferença. Por exemplo, se tirou a pet dali, já não encheu mais o córrego onde eu moro. "Ó que legal, quem é que fez isso?" "Ah, foram as mães, tem um projeto". A gente acabou de fechar uma parceria, que é isso que eu falo de desenvolvimento local, lá tem uma... É tudo enorme, tudo pequenininho, né, então, é um mundo que se esconde ali. E eu vendo cada vez mais que esse é o meu objetivo, cada vez mais ir onde estão as pessoas, que hoje elas chegam na Casa do Zezinho, e a gente tá indo, criando condições pra poder ir. E aí, eu descobri numa reunião, que eu faço parte do conselho do meio ambiente. Então, eu fazia parte na Vila Mariana, que é onde eu morava, tinha que defender, né? Só que aí, eu só vou dormir na minha casa, hoje eu ando lá no Capão, então eu falei: "Eu vou começar aqui", e eu comecei a atuar como conselheira do meio ambiente lá, porque lá é onde eu intensamente vivo a necessidade que as pessoas colocam. E aí falaram, "Ah, tem uma cooperativa", mas nunca achava, porque lá é uma história que só conhecendo. Só quem conhece que te leva lá. E aí, as mães falando assim: "Pô, nós precisamos de tal garrafa e não tem". Fomos lá nessa cooperativa, olha que máximo, gente, a política "sem dinheiro faz dinheiro". As mães precisavam de um tipo de garrafa, pro cara que faz a reciclagem, ele precisa só do montante, porque vai xiii, compactar. E estabelecemos uma parceria na semana passada. A gente separa do jeito que eles precisam e eles separam do jeito que a gente precisa e faz uma troca. Isso é desenvolvimento local. Então, um começar a olhar o outro, e o ver que aquele que não é importante pra mim pode ser pra você, e como a gente se rearranja. A gente pega essas grandes mansões antigas demolidas, vale a maior grana, não vale? Eu quero dizer assim, como que o que é velho, parece que é velho não é velho, ele tem uma história ali, ele é importante. Então eu acho que, nesse aspecto, a relação tá melhorando, e eu me sinto cada vez mais comprometida e cada vez que bate alguém lá, uma responsabilidade muito grande atrás.
P/1 – Luzia, pra começar a encerrar, qual é o seu maior sonho?
R – Aiii, o meu maior sonho é: Que se formem esses núcleos diferentes de acordo com a habilidade que se manifeste neles, e eles melhorem a qualidade de vida deles. E é possível, é esse o maior sonho. Não existe um sonho, né? Porque pra chegar nesse maior sonho são muitos sonhos no caminho! Agora, a gente tá pondo que esse grupo se sustente no sentido integral da palavra, e fomentando outros. Mas o que tá sendo bacana? Ele tá usando aquele como espelho. Eu acho que no fundo esse é o papel da gente lá, ver que o outro começa a se perceber, e quando ele se percebe, se ele pode fazer eu também vou conseguir um caminho. Eu acho que é a grande mudança.
P/1 – E você gostaria de deixar registrada alguma coisa que a gente não tenha comentado, que você gostaria de falar?
R – Nossa, eu queria agradecer pela paciência. E que bacana a iniciativa, que eu fiquei surpresa, de inserir no meio do tema comércio todos os tipos de economia. Não sei se todos, mas os tipos bem conhecidos, e isso acho que serve pra nos estimular, e assim como a gente tem váááários, não somos o primeiro, nem o segundo, vários grupos fazendo esse movimento. Que são movimentos de formiguinha, mas quando eles começarem a criar corpo, de um reconhecer mesmo, e não só imaginar que aquilo é uma alternativa pro momento de necessidade maior, a gente possa estar começando um novo caminho.
P/1 – E o que você achou de ter participado aqui, de ter contado um pouco da sua história, dessa sua experiência aqui pra gente hoje?
R – Eu achei uma responsabilidade danada porque uma coisa é eu chegar aqui e falar do grupo, sabe? Outra coisa, vocês fizeram um resgate meio que parece que tudo o que eu também fiz que era desconexo, né, fez toda uma linha. Imaginava eu que ia estar com um grupo, mães de costura? Imaginava eu? Que aquilo que eu vi a vida inteira seria importante. Então, faz sentido, e aí faz todo o sentido eu ter trabalhado na área de informática, tudo isso foi um grande caminhar pra saber aonde que é a ferramenta importante. E dar subsídios pra que você possa estar num mundo que aparentemente você acha que não tem nada em troca, pra você trocar, né? E você fala: "Não, tem habilidades que dá pra gente trocar, sim". Então, acho que vocês fizeram, mais do que falar do grupo, resgatar até para ver se os meus paradigmas estão corretos, e esse desafio diário.
P/1 – Então, você gostou?
R – A princípio é meio difícil porque falar da gente, a gente vem preparada pra uma coisa, mas acho que vocês, esses dois motivos, um de como é importante colocar isso em um olhar que às vezes não é de todo mundo, né? Não é verdade? Porque o tema comércio seria bem mais fácil ir para outros lados, pra outros caminhos, numa cidade como essa. Então, estar reconhecendo, ainda mais vindo de uma ONG... Porque às vezes quando fala que é uma Organização Não Governamental, acha que a gente não é sério, existem sérios e não sérios em tudo quanto é área, acho que esse espaço, também pra enaltecer no sentido de colocar, apresentar. Porque as pessoas, muitas vezes ouvem falar, mas não sabem o que é. E como não sabem o que é, deixam de lado. Então, eu acho que é uma oportunidade das pessoas se aproximarem, e tenho certeza que ao percorrer o livro, vão se reconhecer em histórias, e as que não se reconhecerem em alguma história vão falar: "Nossa, isso está acontecendo aqui! E é do lado da minha rua e eu não estou sabendo! E eu tenho algo pra compartilhar.". E nada dessa história que é bonzinho, nem ecochato, nada disso, apenas porque todo mundo quer viver melhor, né? Não necessariamente viver melhor é se abdicar, se isolar, no sentido assim mais espiritual, mas é ser íntegro, e aí, está ligado tudo. Então, isso que eu acho que me deixou surpresa, o que eu vou falar? E ao mesmo tempo, vocês me fizeram voltar pra ver se eu to alinhada com o propósito e ver que na verdade, não pensado, que veio lá de trás. E quando falaram isso ontem, a foto, uma coisa que seja significativa, eu falei: "meu, o que será que é significativa?". A gente pensa no outro, o que será que é significativo pro outro no tema de comércio. Na hora que eu encontrei a Lia eu falei: "Gente, vixi!".
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