P/1 – Bom Fabiane, queria te agradecer por você ter tirado esse tempinho, contribuir para o nosso projeto e pra gente começar, eu queria que você começasse falando seu nome completo, onde você nasceu e quando você nasceu.
R – Bom, meu nome é Fabiane Rodrigues Brandão Vitaz, nasci no dia 26 março de 1975 no Rio de Janeiro.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Paulo Sérgio Brandão e Ana Maria Rodrigues Brandão.
P/1 – E o nome dos avós você sabe?
R – Floripes, meu avô Conrado que já é falecido e meus outros dois avós por parte de mãe também já são falecidos: Agenor e Elza.
P/1 – E conta um pouquinho a história da sua família?
R – Nossa, não sabia que tinha que contar a história da minha família, vai ser difícil (risos). Bom, enfim, meus pais se conheceram, eram da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Vou começar pelos meus pais que acho que é mais fácil. Eles se conheceram na Zona Oeste do Rio de Janeiro, no bairro de Bangu, se apaixonaram, casaram e a gente veio morar aqui na Zona Norte. Morei vários anos na Bahia, meu pai é engenheiro, ele era muito transferido e depois me fixei no Grajaú, vivo há 30 anos no Grajaú, casei, tenho uma filha de dois anos e continuo vivendo lá porque eu amo aquele bairro de paixão.
P/1 – Deixa eu só voltar um pouco na história... Como era a infância, sua casa de infância, o dia a dia?
R – Bom, na verdade a minha infância mesmo, eu acho que as lembranças mais doces que eu tenho da minha infância são as lembranças que eu tenho como o meu avô. Apesar de eu morar no Grajaú, ter vários amigos a minha diversão era ir pra casa do meu avô e brincar com ele porque ele era um avô muito presente, ele era um pai, um segundo pai. Ele foi uma pessoa muito importante na minha vida e era uma pessoa com muito caráter e valorizes muito fixos. Apesar de muito simples era uma pessoa muito certa, honesta, todos os valores que eu tenho hoje, todos não, mas grande parte eu atribuo a ele. Eu lembro muito, quando fala a minha infância, a primeira imagem que vem na minha cabeça é do meu avô. Porque ele era muito especial, ele brincava, apesar de 70 anos, ele sentava no chão pra brincar com a gente, fazia pipoca e abria a panela pra esparramar pipoca pra gente correr atrás, coisa que só avô faz (risos), são lembranças boas que eu tenho na memória sempre quando fala da minha infância.
P/1 – E o que você gostava mais de brincar, além dessa lembrança boa do avô?
R – Ah, eu gostava muito de andar de bicicleta, de patins, eu era apaixonada por patins, adorava, gostava muito.
P/1 – Você tem irmãos, Fabiane?
R – Tenho uma irmã minha e um irmão por parte de pai.
P/1 – E vocês são da mesma faixa etária, conviviam?
R – Minha irmã é da mesma faixa etária que eu, conviveu muito comigo. Meu irmão, como é do segundo casamento do meu pai já é um pouco mais distante, apesar de que ele gosta muito de mim, se espelha muito em mim e que como ele é temporão, tem metade da minha idade, a gente se gosta muito, mas ele não foi tão presente na minha infância, eu era mais adulta quando ele nasceu.
P/1 – E esse período que vocês foram morar na Bahia, tem alguma lembrança de lá?
R – Tenho. De ir pra praia todo dia antes de ir pra escola, isso eu não esqueço (risos). Ia com um baldinho com a minha mãe, a gente ficava na praia umas duas horinhas e depois a gente tomava banho, sempre tinha um sorvete e a gente ia pra escola, é uma lembrança também muito boa que eu tenho, muito legal, a gente morava bem perto da praia.
P/1 – Que lugar vocês moravam?
R – Na Pituba, na época que a praia podia ser frequentada na Pituba. Há muitos anos atrás. Quando a gente voltou, a gente já veio direto pro Grajaú e morou no Grajaú acho que uns 30 anos.
P/1 – Em relação a escola, conta da escola lá da Bahia, contra pra gente as suas primeiras lembranças escolares?
R – As primeiras lembranças escolares, eu fui alfabetizada na Bahia e lá o abecedário é diferente, não sei se vocês sabem. Você não aprende o "L" é o "lê", "me", "ne", então é um pouco diferente. Quando eu vim pro Rio, as pessoas riam, falavam ABC. E eu vim pro Rio, estudei em colégio de freira até meu segundo grau. No meu segundo grau eu fiz uma prova, hoje em dia ainda fazem. Pra CEFET [Centro Federal de Educação Tecnológica], essas coisas. Eu fiz, na época era a Federal de Química, passei, estudei alguns anos, mas não tinha a ver comigo, eu não tinha nada a ver com números (risos), com Química, eu fiz mais pra agradar meu pai que é engenheiro, enfim, fui na onda. Fiquei um ano sem estudar, simplesmente parei e falei: "mãe, eu não posso estudar", escondido do meu pai. Escondi, falava pro meu pai que ia para a escola, eles já eram separados, mas eu não ia pra escola e não sabia o que queria fazer da vida. Um dia tomei coragem e disse: "pai, não é isso que eu quero", foi o fim pro meu pai, ele ficou arrasado, achava que eu ia ser uma grande engenheira como ele, mas não deu, foi fazer Letras. Durante a minha faculdade de Letras eu fiz estágio em Turismo, estava trabalhando em uma companhia aérea e eu descobri "é isso que eu quero fazer da minha vida". Fui fazer uma pós em Turismo, hoje em dia eu tenho a minha agência, vim trabalhar no AFS, fazendo toda a parte turística, e achei por acaso o que eu queria fazer na vida.
P/1 – E da tua trajetória escolar, teve algum professor que tenha te marcado, alguma matéria?
R – Tiveram vários professores, nossa. Uma professora de Geografia, chamada Ana Maria, marcou muito. Ela ensinou a gente a ter um olhar crítico sobre o que a gente lia, sobre as notícias, que sempre tem outro lado, nem sempre é aquilo que você lê, o que você lê é escrito por uma pessoa que pode ter uma opinião própria, ajudou muito eu ter um olhar mais crítico sobre as coisas. A Ana Maria de Geografia acho que é uma lembrança que eu tenho assim de pronto.
P/1 – Quando você era menor, você tinha algum sonho? "Eu quero ser isso quando crescer?”
R – Eu achei que quando chegasse nos anos 2000, porque os anos 2000 eram lendários. Em 2000 eu já estaria casada, com dois filhos, seria muito bem sucedida e estaria viajando pelo mundo. Não aconteceu bem assim (risos), nunca é com 20 e poucos anos você não está tão bem assim. Demorou mais uns 20 pra eu conseguir estar um pouquinho melhor (risos), mas era esse meu sonho: ter dois filhos, um marido, ser bem sucedida e viajar pelo mundo, só, nada de mais né (risos)?. Era isso que eu imaginava quando era criança.
P/1 – E assim, de adolescente para a parte da juventude, o que você gostava de fazer?
R – Eu adorava viajar, adoro viajar, só que agora é um pouco mais difícil, estou mais presa, mas era viajar, gostava muito de cinema, adoro cinema, ler bastante, não é à toda que eu acabei escolhendo fazer faculdade de Letras, foi mais por conta da Literatura, estudar línguas, era isso que eu gostava quando adolescente.
P/1 – Teve alguma viajem emblemática que você guarde com muito carinho?
R – Ah, a primeira vez que eu fui para Europa, sozinha. Eu fui Levar um grupo do AFS para Alemanha, um grupo de estudantes, acompanhar eles. A minha missão era só deixá-los no aeroporto, no primeiro dia, depois eu estava livre, eu aproveitei para tirar uns dias e viajar pela Europa. Eu era super nova, nunca tinha viajado sozinha, botei mochila nas costas e fui e eu descobri que viajar sozinho é muito bom, muito bom, estar sozinha num ambiente que ninguém te conhece, não é sua língua, você tem que se virar, não tem a quem pedir, é muito bom. Eu não imaginei que seria tão bom e pra mim foi uma terapia estar comigo mesma. Às vezes a gente está aqui, mas a gente não está com a gente, a gente está trabalhando, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, mas ali eu estava só pra mim, eu curti bastante, foi uma viagem muito boa pra mim.
P/1 – E agora, falando do AFS, conta pra gente como que você entrou em contato, pensou fazer intercâmbio?
R – Olha, eu pensava, mas eu tenho uma mãezona que é meio italianona. Ela nem deixava isso passar pela minha cabeça. Meu pai era mais assim, tanto que meu irmão mais novo, depois que eu vim trabalhar aqui ele acabou querendo ir e foi, viajou pelo AFS. Mas na minha época era impensável isso, só os pais mais tranquilões deixavam. Eu pensava, mas era um pensamento muito longe e uma amiga minha trabalhava aqui e falou: "Tem uma vaga, vai lá ver se você consegue". A primeira vez foi bem engraçada, eu não sabia nada do AFS, não fiz uma pesquisa antes, nem perguntei a ela. Eu sentei numa sala de reunião, que era a seleção, e o gerente da época começou a falar de ambulância, de feridos de guerra e eu falei: "mas isso aqui não é intercâmbio?". Eu não estava entendendo a relação, mas depois de ouvir a história toda, achei tão bonita a história do AFS, “que bacana deve ser trabalhar aqui". Me empenhei pra caramba, fiz uma prova, era super difícil entrar aqui, tinha uma prova escrita, um psicotécnico, fiz, mas me sentindo assim "poxa, seria um lugar que eu amaria trabalhar". Voltaram uns dias depois: "Olha, o pessoal adorou você, mas seu perfil não encaixa com a vaga". Era uma vaga pra cuidar do recebimento dos estudantes. Nossa, eu fiquei tão triste, tão triste, pra mim acabou, chorei e tudo. "Você tá chorando por causa de uma vaga de emprego?", "falei, não, mas eu queria muito". E passou, um mês depois me ligaram: "olha, surgiu outra vaga que eu acho que o teu perfil encaixa perfeitamente com o da vaga, você topa?" e era uma vaga justamente na parte da Logística, que era fazer toda parte turística daqui. E nossa, eu falei na hora "agora mesmo" e comecei. Muito feliz, muito feliz, eu vim pra cá muito feliz mesmo. Porque não só consegui a vaga, como consegui uma vaga numa área que eu já estava trabalhando, que era o Turismo. E fiquei 10 anos.
P/1 – Você já falava Inglês?
R – Já falava inglês, claro que eu aprimorei aqui, não falava fluente. Claro que muita coisa eu aprendi aqui, de Turismo também porque quando eu cheguei aqui a área estava abandonada, a pessoa já tinha ido embora há muito tempo, não tinha tido recolocação e falaram: "Oh, está tudo aí no computador, é com você". Fui aprendendo, fui aprendendo cada cantinho do Brasil, porque aqui os comitês são em cada cidadezinha que você nunca ouvir falar, enfim, pelo menos eu nunca tinha ouvido falar, não era meu mundo. E aquilo começa a fazer parte do seu mundo, Caicó, Natal, Rio Grande do Norte e, hoje em dia, você pode me perguntar qualquer cantinho, que a grande maioria eu sei onde é (risos). E tinha que fazer logística de um lugar para o outro “como é que esse cara de Caicó vai sair pra São Paulo pra pegar o voo internacional?". Você tem que pensar, eu sempre aceitei desafio, foi bem legal, aprendi muita coisa aqui, muita coisa mesmo.
P/1 – Quem fez a entrevista com você? Quem te chamou?
R – Quem fez a entrevista comigo foi o Pedro Rocha, que era o gerente da época. E quem me chamou foi na verdade a Ângela Serafim que era a coordenadora da época e ela falou: "Gostamos muito de você, pode vir, a vaga é sua se você aceitar" e eu "ah, claro que eu aceito". Eu vim na mesma hora.
P/1 – Que ano que você começou?
R – 2000. Fiquei no total até 2013.
P/1 – Você falou que a área estava meio abandonada, que não tinha tido uma recolocação. Fala pra gente um pouquinho quais foram os primeiros passos, como que você reorganizou a área?
R – Bem, os primeiros passos era descobrir porque que eles precisavam de mim. Porque eles precisavam de uma pessoa de Logística e com o tempo fui descobrindo o porquê. Realmente, o AFS tem vários estudantes espalhados pelo mundo inteiro e no Brasil também, por todos os cantinhos do Brasil e [precisava] de uma pessoa que fizesse a logística desses estudantes, de chegada e de retorno para os seus países e dos brasileiros também que iam viajar. Então, foi descobrir exatamente qual era esse passo a passo, onde entrava meu trabalho e com ajuda também do Pedro Rocha, que me ajudou muito na época, ele foi me ajudando "não, isso aqui você faz assim, faz assado" e eu fui construindo o trabalho, fui desenhando o trabalho junto com esse gerente, na época e, pronto, foi isso. Eu lembro que, na época, as passagens não eram... Hoje em dia você faz uma passagem aérea, você pega em qualquer lugar. Não tem nada físico que você é obrigada a ter. Na época os bilhetes eram bilhetes manuais, vocês nem sabem o que que é isso (risos). Tinha que fazer um bilhete, botar no correio e mandar pro estudante desse cantinho do Brasil, para ele pegar esse bilhete, entrar no avião e ir pra São Paulo para ele poder encontrar comigo, lá em São Paulo eu estaria com o bilhete internacional para ele voltar para o país dele. Você imagina essa logística. Era muito complicado, hoje em dia não, é tudo eletrônico, não tem nada disso, mas imagina. E o bilhete internacional dele vinha lá do exterior, por exemplo, se o rapaz era da Alemanha e estivesse em Caicó, o AFS Alemanha mandava o bilhete internacional pelo correio pra mim, quando chegava eu pegava o bilhete internacional eu via e fazia o bilhete doméstico até São Paulo, de Caicó até São Paulo, mandava pra ele pelo correio, encontrava com ele em São Paulo pra ele viajar (risos) era bem interessante.
P/2 – Quantos dias de antecedência?
R – Ah, muitos (risos), a logística era complicada, tudo tinha que estar pronto, com o bilhete dele na mão pra viajar pra São Paulo 30 dias antes, pelo menos. A gente começava os preparativos dois, três meses antes. Hoje em dia é impensável isso, hoje em dia a pessoa liga “oh, estou indo amanhã pra São Paulo" ou "vou agora, daqui a duas horas no aeroporto e meu bilhete tem que estar lá". Foi bom acompanhar essas mudanças aqui dentro, do mundo e adaptando, nisso eu me inseri no AFS, porque foi confiada a mim essa tarefa e eu tentei executar da melhor forma possível, de ir acompanhando as mudanças no mundo, bilhete físico deixou de existir, a comunicação por carta que a gente fazia aqui, era um memorando-carta, dobrava, envelope, cola, até que o e-mail foi passando existir, bilhete eletroeletrônico e aí foi isso.
P/1 – Fabiane, conta pra gente algumas histórias de sufoco que o bilhete não chegou, chegou em cima da hora?
R – Olha, história de sufoco teve bastante. Ah, o mais comum era "perdi meu voo e agora?". O estudante não tem muita noção, uma situação muito comum era perder voo, "como é que a gente vai fazer?”. Eu estou tentando lembrar uma história específica de uma situação, o que era muito comum era perder voo e a gente ter que correr atrás. Agora lembrei de uma muito boa, uma estudante, na verdade ela nem perdeu o voo, o voo atrasou demais, demais. Ela ia pegar o voo em Uberlândia e ia pra São Paulo. De São Paulo ela tinha que pegar o voo internacional e São Paulo tem dois aeroportos Guarulhos e Congonhas. Ela ia chegar em Guarulhos e pegar o internacional, mas, com a confusão, a companhia aérea botou ela pra chegar em Congonhas seis horas da tarde e voo internacional dela era oito horas da noite! Quem é de São Paulo sabe que não dá tempo (risos). Eu pedi a um voluntário, porque toda essa logística em São Paulo eu tinha auxílio dos voluntários. Eu era praticamente a única funcionária que ia e contava com a ajuda dos voluntários. Cheguei pro voluntário: "Voa pra Congonhas, essa menina vai chegar lá, ela não vai perder esse voo, nem que a gente segure esse avião". "Tu voa pra Congonhas!". Ele voou pra Congonhas, chegou lá, pegou a menina e falou: "você quer embarcar hoje?", "quero, quero ir pra casa hoje", "então tá, deixa comigo". Chegou pro taxista e falou: "Faz em quanto tempo pra Guarulhos?", " Ah, uma hora e meia", "você?", "uma hora", "você?", "ah, no mínimo 50", "você?", "45 minutos!", "vamos lá, pé na tábua!" (risos). E a garota foi lá, com medo, atrás do taxista correndo, pegando atalho, que tem vários atalhos em São Paulo. Pegou atalho, e "calma, calma moço, calma moço" e a menina quase não falando Português direito "calma eu quero chegar viva, eu quero ir hoje mas eu quero chegar viva!" (risos). E a gente lá conversando e [falando para a companhia aérea]: "Pelo amor de Deus, ela tem que embarcar, espera um pouco". Esperaram até o último minuto, a gente adiantou o check-in dela, dei passaporte, passei tudo por telefone pra companhia aérea que deixou tudo pronto, quanto ela chegou ela praticamente foi jogada pra dentro do avião. Jogou a bagagem e "vaiiii". Ela agradeceu imensamente a gente. Tem muita história de aeroporto, daria pra fazer um documentário só de histórias de aeroporto, tipo aquele programa que tem na GNT, é ótimo, porque eu acho que as pessoas ficam sensíveis um pouco no aeroporto. Chegadas e partidas, tem sempre uma emoção envolvida e principalmente pro pessoal do AFS, a pessoa ficou um ano aqui e está indo embora ou está chegando pela primeira vez, você é o primeiro rosto que ela vê, tem muitas histórias legais. Tem uma história de uma mamãe que foi buscar o estudante, estava esperando uma menina, na verdade um menino, desculpa, já cortei o barato. Estava esperando um menino, só que chegou um menino travestido de menina, era um menino, só que ele era um travesti e não falaram isso (risos). Ele não falou isso no formulário dele, nem sei se pode falar isso aqui, mas foi uma situação legal, no sentido não é o que você estava esperando. Estavam esperando um menino loirinho, Australiano, todo homem e chegou um homem, maquiado, de saia, de blusinha baby look (risos). É uma situação engraçada, a cara das pessoas, “surpresa!”. E a história desse menino é muito interessante porque a mãe que ia ficar com ele, que foi receber ele lá em Guarulhos, tinha só meninos na casa e ela falou: "Olha, eu não tenho preconceito, mas eu não tenho como ficar, eu tenho meninos, não estou preparada”. Ela foi bem honesta em dizer que não estava preparada pra aquilo. De última hora conseguiu uma família do mesmo local que antes, no ABC Paulista, foi Santo André, alguma coisa assim e ele ficou nessa família e a família amou, falou que ele era a pessoa mais especial que eles tiveram na vida, que tiveram contato. E eu vi no dia que ele chegou travestido dessa forma, causou um choque pra todo mundo e o dia em que ele foi embora, porque eu sempre estava na chegada e na partida e foi muito bonito de ver a emoção da família e dele. Ele até brincava "vou vender um órgão meu pra voltar pro Brasil, porque eu quero ficar", ele não queria embora, foi um momento muito especial. A aparência não quer dizer nada e valeu pra ele a experiência e pra família também.
P/1 – Eu até ia te fazer uma pergunta, como que é essa coisa de você ver a pessoa chegando e depois a pessoa indo embora? As mudanças?
R – Era a melhor parte do meu trabalho, sinceramente é o que eu ainda sinto falta de não estar aqui é ver isso, eu sempre quis estar com gente, descobri logo cedo quando eu vi que eu não ia ser engenheira, que eu gosto de gente, gosto de lidar com pessoas. Gostava de lidar com voluntários, todo mundo falava pra mim: “poxa, Fabiane, deve ser muito difícil, como é que você faz ir pra um lugar, pra um aeroporto, coordenar pessoas e essas pessoas não estão recebendo, porque que elas te obedecem, porque elas fazem o que você quer?". Porque todo mundo tem um objetivo em comum, todo mundo quer ajudar ali no melhor que pode. Mesmo eu sendo funcionária, eu dava ou meu melhor possível. Acho que lá todo mundo sabe o papel que está fazendo, todo mundo adora esse momento porque é que o momento que você vê seu trabalho acontecer, seja voluntário, seja funcionário. Você vê que você se empenhou por aquele estudante por um ano e você está vendo o resultado. Na chegada vou conhecer como é que é essa carinha desse estudante, ver como é que ele reage a diversidade, a diferença do país dele. Chegavam aquelas meninas da Islândia, que vinham para o Brasil de shortinho e top, em julho, em São Paulo. Chegava e ficava encolhida e você “legal, imagina que é muito calor, já vem de short no avião e chega aqui: frio!". E com sede de conhecer o país, chega já querendo ir pra porta da porta do aeroporto "ah, eu quero ver como é", começa a conversar, querer saber de você já como é que, como é que é lugar que ela vai ficar, como que é a cidade que ele vai morar. E depois você vê essa pessoa na volta, falando Português, é muito legal, e com sotaque! (risos). Teve uma vez, eu ouvi um japonês falando: "é massa!". É muito legal, é impagável, igual aquela propaganda de cartão de crédito “é sem preço, não tem preço”. E eu acho que essa é a fórmula do AFS, trabalhar a fundo, não é aquela coisa automática eu vou fazer um curso, voltei ninguém te conhece, você vai fazer uma viagem e vai estudar. Mas, o AFS tem isso, de envolver toda essa rede de pessoas, a família hospedeira, o voluntário que está no aeroporto, o funcionário, o funcionário se dá muito mais do que um funcionário comum. Sempre teve momentos de estresse: "meu Deus, porque eu não posso ter um trabalho de jogar a caneta às cinco horas da tarde e ir pra casa, dormir, voltar. Mas não, você leva pra casa porque "ah, o estudante tá com problema, será que ele vai pegar o voo às cinco horas da manhã, será que ele vai acordar, não vai ter problema, não vai me ligar". Eu ficava olhando o celular, você se dá mais, você se preocupa com a questão, é diferente, bem diferente.
P/1 – E história da despedida da família? Do estudante que vai e a família que recebeu o estudante que foi?
R – Tem os brasileiros que também vão, tem famílias em que a despedida é bem emocionante. Eu agora mãe acho que entendo mais, porque eu não era mãe quando eu fazia isso. É muito difícil você deixar um filho partir, ficar um ano fora, logo que eu entrei a comunicação era mais difícil, não tinha Skype, WhatsApp, não tinha nada, era só telefone e carta, basicamente. E-mail estava começando, tinha, mas não era uma coisa assim tão... Então, deixar seu filho um ano lá fora. A despedida era bem emocionante, eu sempre me emocionei nesses momentos.
P/1 – Eu agora queria que você contasse pra gente, você contou da viagem pra Alemanha, conta algumas histórias de viagens que você foi acompanhar os estudantes.
R – Teve essa da Alemanha. Teve uma que eu fui buscar um grupo nos Estados Unidos, acho que foram os dois grupos que eu acompanhei, estudantes só foram esses dois. É uma experiência legal porque, eu falava sempre no aeroporto, quando eu estava fazendo os preparativos pro grupo embarcar, eu falava para os pais: "O intercâmbio deles começa quando eles viram ali, entram aqui no embarque". Eles não tem mais os pais, não tem mais volta. Era muito legal, nunca foi um trabalho, era um prazer, porque você vai se sentir um adolescente junto (risos), só tem que ficar de olho. No trabalho em si, de acompanhar o grupo, nunca tive nenhum problema, sempre foi muito legal.
P/1 – E como você sabia a necessidade de "esse grupo precisa de alguém que vai acompanhar" ou todos os grupos sempre tinham?
R – Não, só os grupos grandes que o AFS designa o que eles chamam de Chaperone, pra acompanhar o grupo e deixar até o destino, por exemplo: no AFS Alemanha, na Alemanha, em Frankfurt alguém do AFS está aguardado lá e deixo o grupo com essa pessoa e entro em contato com o AFS só pra dizer que está tudo certo, que todo mundo chegou bem. Mas é só nos grupos grandes, nos individuais não. Um estudante só indo geralmente não há um acompanhamento, o que acho mais interessante ainda porque os grupos menores são justamente os de países mais distantes. Às vezes vai estudante sozinho pra Hong Kong, nunca viajou de avião e eu que ia pro aeroporto, passar as últimas instruções, encontrar com esse estudante, dar o bilhete internacional dele, fazer check in, dar todo esse apoio. E a ansiedade é tão grande, tão grande, imagina você nunca entrou num avião, você com 16 anos, você vai não só entrar no avião, como você vai pipocar em diversas conexões, se virar sozinho, chegar no país que fala Chinês, por exemplo, é tenso. Eu tentava dar o meu melhor possível nas instruções, mas eu sempre falava pra eles: "está começando seu intercâmbio, começa aqui agora, você vai ter que chegar lá vivo e ligar pra sua mãe e dizer que está tudo certo, chegou bem".
P/1 – E o fluxo de chegadas e partidas, teve algum período que foi mais intenso?
R – O período sempre mais intenso é no meio do ano, [são] os ciclos, porque o AFS depende muito da Europa, dos Estados Unidos, o AFS Brasil. Lá tudo começa no meio do ano, o fluxo maior de estudantes, tanto brasileiros indo como estrangeiros voltando no meio do ano. E aí é uma loucura. Teve anos que já foram 400 estudantes só indo para o exterior e acho que 200 vindo, uma loucura.
P/1 – E como o AFS fazia com essa emissão de passagens?
R – Era uma agência parceira e eu organizava e tudo, mas passava para a agência fazer as emissões, durante muito tempo. Depois nos últimos três anos que eu estive aqui eu falei, “não, vamos tentar fazer”, meu departamento se expandiu e a gente fazia as emissões todas aqui, fazia tudo, tudo aqui, uma loucura, mas foi legal.
P/1 – Qual que foi a tua situação de maior dificuldade, seu maior desafio no seu período aqui?
R – O maior desafio, eu acho que foi tudo tão desafiador, difícil dizer, foi tudo. Foi tudo diferente pra mim. Desde que eu entrei, entrei num mundo que eu não conhecia, pra mim, o AFS tem um mundo completamente à parte, toda forma dele trabalhar, de pensamento, envolvimento do estudante com a família, com voluntário, funcionário, tudo foi um desafio pra mim. Eu conheci pessoas que trabalhavam em outros ramos e era difícil explicar como é que era o meu trabalho, sempre foi. Tudo foi um desafio pra mim. Um desafio grande que eu tive, foi um período conturbado que teve aqui dentro, de troca de diretor, onde os rumos do AFS ficaram bem questionáveis. As pessoas que trabalhavam no AFS foram colocadas à prova "será que essas pessoas estão realmente no ideal do AFS, estão trabalhando da forma que deveriam?". Por conta desse diretor, foi uma situação muito complicada. Você está trabalhando, dando o seu melhor e vem alguém e diz: "você não está sendo correto", questionando o seu trabalho. Foi uma fase, vamos dizer, nebulosa, foi desafiador pra mim, eu sai dessa situação bem e não só pra mim, mas por todo mundo que trabalhou comigo nessa época, foi uma situação complicada, desafiadora.
P/1 – Qual foi sua maior conquista?
R – Aqui dentro ou conquistas lá fora?
P/1 – Aqui dentro.
P/1 – Minha maior conquista acho que foi o reconhecimento. Sair daqui bem, sair daqui reconhecida, todo mundo me conhece ainda, as pessoas que me procuram ainda acham que eu estou trabalhando aqui. Consegui fazer parte do mundo AFS eu acho que isso é a minha maior conquista. Tem muito aquilo a pessoa voluntária é diferente da pessoa que recebe pra fazer mesma coisa, digo, a mesma coisa que não é a mesma coisa, são funções diferentes, mas eu acho que se você não tiver amor e paixão pelo que você faz, você não vai muito longe e eu fui, acho que fui, consegui entrar e fazer parte dele. Eu acho que a minha história foi legal aqui, tanto que vocês estão me chamando aqui pra conversar, senão não teria vindo aqui, eu consegui fazer parte disso, acho que foi minha maior conquista.
P/1 – Porque você decidiu sair? Conta essa história pra gente.
R – Eu engravidei no último ano e o ritmo aqui é muito intenso e eu me envolvia realmente demais, não era uma pessoa que conseguia simplesmente trabalhar as minhas horas e acabava. Eu me envolvi em todos os processos, no final desses 10 anos eu já me envolvi em tudo. É porque as pessoas me davam abertura pra isso, eu me envolvia demais. Eu estava grávida, ia ter um filho, sabia que meu ritmo de vida ia mudar. Eu decidi "vou trabalhar por conta própria". Fiz a proposta aqui dentro: "Olha, eu vou trabalhar por conta própria, vamos tentar? Vamos fazer dessa forma?". Deu certo, a gente já está trabalhando dessa maneira, eu com a minha agência, e o AFS sem o setor e eu suprindo o setor como uma pessoa jurídica. Quanto tempo que a gente está? Acho que é dois anos e estamos caminhando. E eu tenho uma maior liberdade, tenho pessoas para me ajudar, a relação muda um pouco, mais o carinho continua, o envolvimento continua, mas a relação muda. Foi por isso que eu saí.
P/1 – E hoje, nessa parte de aeroporto, essa parte mais transitória?
R – Eu estou fora, porque realmente eu sei que é muito importante pra eles que esse metier todo seja feito pelo próprio AFS e eu acho que realmente é o diferencial, tem que ser feito por eles mesmos. Só fico nos bastidores: "Fabiane, cancelou o voo, faz outra passagem", enfim, mas não estou no local.
P/1 – E a tua relação de ajuda mútua, porque você trabalhou muito em parceira com os voluntários de cada comitê. Se você puder falar um pouquinho disso pra gente.
R – Era mais o grupo de São Paulo, era um dos comitês que me ajudavam mais. É uma relação que eu levo até hoje, tem pessoas que eu tenho amizade até hoje, a Tite é uma delas, foi a primeira pessoa que me recebeu no aeroporto como voluntária e foi a última a me dar tchau, digamos assim, e até hoje a gente se fala, ela trás doce de leite quando vem, daqueles Mocóca (risos), ela trás doce de leite pra mim, pra minha família, já viajamos junto, é uma relação que vai além da profissional, mesmo que não seja profissional patrão e empregado, nunca foi, é que vai além. Tem pessoas que estão no meu Facebook, curtem foto da família...
P/1 – E agora, eu vou voltar um pouquinho mais só pra parte pessoal, como que foi pra você ser mãe?
R – Ah, eu esperei muito esse momento, queria muito ser mãe, muito. Foi ótimo, é meio assim, enlouquecedor. Eu brinco: de todo trabalho que eu tive na vida, foi o mais desafiador (risos) e continua sendo, porque é muito difícil ser mãe, não é fácil não. Muita coisa a gente via nas ruas, eu e meu marido e a gente falava: "Olha aquilo ali, aquela pirraça, a mãe não sabe cuidar". Acontece que eu aprendi a não julgar como as pessoas são criadas, porque realmente é complicado. Mas é muito muito gostoso, ontem mesmo, minha filha pela primeira vez, espontaneamente, pegou, me deu um abraço e um beijo. A gente espera dois anos pra ver isso (risos).
P/1 – Como você conheceu o seu marido?
R – Ah, eu conheci numa roda de samba, lá no meu bairro, ele também mora lá, roda de samba, a gente começou a namorar, depois veio o casamento, foi o caminho natural das coisas.
P/1 – E agora eu vou entrar numa parte final, você falou das suas conquistas, seus momentos de dificuldade, queria que você falasse agora qual que foi o seu maior aprendizado aqui? O que fica com você de todo esse tempo de AFS?
R – É a tolerância, aprender a respeitar o outro. Quando você entende que o outro é diferente e que pode ser diferente e que está tudo bem viver no seu mundo. Isso eu acho que é o maior aprendizado que eu levo. Porque eu tinha uma visão muito do meu mundinho: minha casa, meu bairro, escola, faculdade. No AFS eu vi um mundo de pessoas diferentes, de culturas e vivências diferentes e você aprende a não julgar, a "não, isso é certo ou errado", tudo você põe na balança, "poxa, será que é assim mesmo?", "isso aqui é certo ou que errado". Não tem certo e errado, tem maneiras de vida, não existe um caminho reto, existem vários caminhos. Acho que me fez uma pessoa melhor, eu não seria a pessoa que sou hoje se eu não tivesse tido dessa experiência. Como pessoa, me acrescentou bastante, fiz o meu intercâmbio de certa forma. Não precisei viajar, ficar um ano fora, mas nesses 10 anos eu estive com pessoas da Tailândia aos Estados Unidos, brancos, pretos, amarelos, gays, não gays, homens, mulheres, muçulmanos, você vê que que realmente existe um mundo diverso, muito além das suas fronteiras. E acho que isso me engrandeceu muito.
P/1 – E quais são seus sonhos?
R – Ah, eu não quero ser mãe de novo (risos). Eu quero ter só uma filha e se a situação financeira melhorar bastante tenho vontade de adotar, mas gerar um filho de novo não. Tenho vontade de se eu puder adotar uma criança. E voltar a viajar (risos), só que em família agora, é só isso. Não tenho mais sonhos, mais ambições grandes assim não.
P/1 – Conta pra gente o que você acha dessa ideia do AFS, de resgatar esses 60 anos de história no Brasil, através da história de vida de vocês?
R – Eu acho ótimo, achei super pertinente. Eu acho que o AFS lida com pessoas, não é um curso de línguas, pegar depoimentos dessas pessoas acho fantástico, acertou em cheio. Vai ter muita história, vai ser difícil de vocês editarem...
P/1 – E como que foi pra você dar o seu depoimento, contar sua história?
R – Foi ótimo! Foi boa, eu fiquei com medo. Eu não pensei em nada pra falar, mas foi fluindo, foi tranquilo, foi ótimo.
P/1 – Então, muito obrigada, Fabiane. Parabéns pela tua história.
R – Ah, obrigada! Obrigada.
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