P/1 – Boa tarde, Susane.
R – Boa tarde, Márcia.
P/1 – Vamos começar a entrevista você dizendo seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Susane Worcman, nasci em Salvador, Bahia, 30 de novembro de 1939.
P/1 – Diga-me o nome dos seus pais e dos seus avós.
R – Minha mãe se chama _________________ de solteira. Meu pai era Isaac _______. Meus avós eram Paula e ________, acho que ________. Eu só conheci uma avó. Os pais da minha mãe eram Léia e _______ também, _______.
P/1 – E a origem do nome Worcman?
R – Worcman é do meu primeiro marido. E todos esses nomes que eu disse até agora todos são de origem judaica.
P/1 – Mas judeu da onde?
R - Judaica. O Worcman é judeu da Polônia.
P/1 – ___________?
R – O _________ é da Rússia e ________ é da Romênia, dessa Arábia.
P/1 – Você sabe um pouquinho contar a história deles? Como eles... Da vinda deles para o Brasil?
R – Eu sei alguma coisa. É muito interessante porque eu já mexi com essa história de memória também e me interesso. Mas eu sei pouquíssimo dos meus antecedentes. Porque a minha avó foi uma imigrante que chegou em 1936 em Salvador, Bahia, diretamente da Romênia, com 17 anos.
P/1 – Com a família?
R – Não.
P/1 – Sozinha?
R – Chegou com a família. Ela é uma típica história de imigrante mesmo, porque ela foi a quinta irmã de uma família de nove. Então primeiro veio o irmão mais velho, foi pra Salvador, fez um dinheirinho, voltou pra casar ou trouxe a minha tia, não sei. Depois foi trazendo os outros irmãos e minha mãe foi a última que conseguiu chegar, porque depois já estourou a guerra e já não vieram os outros quatro que ficaram lá. Mas meu pai já nasceu em São Paulo. O que eu sei dele... Eu não conheci o avô, que morreu antes, quando ele era menino. Conhecia a minha avó, foi a única avó que eu conhecia, que era...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde, Susane.
R – Boa tarde, Márcia.
P/1 – Vamos começar a entrevista você dizendo seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Susane Worcman, nasci em Salvador, Bahia, 30 de novembro de 1939.
P/1 – Diga-me o nome dos seus pais e dos seus avós.
R – Minha mãe se chama _________________ de solteira. Meu pai era Isaac _______. Meus avós eram Paula e ________, acho que ________. Eu só conheci uma avó. Os pais da minha mãe eram Léia e _______ também, _______.
P/1 – E a origem do nome Worcman?
R – Worcman é do meu primeiro marido. E todos esses nomes que eu disse até agora todos são de origem judaica.
P/1 – Mas judeu da onde?
R - Judaica. O Worcman é judeu da Polônia.
P/1 – ___________?
R – O _________ é da Rússia e ________ é da Romênia, dessa Arábia.
P/1 – Você sabe um pouquinho contar a história deles? Como eles... Da vinda deles para o Brasil?
R – Eu sei alguma coisa. É muito interessante porque eu já mexi com essa história de memória também e me interesso. Mas eu sei pouquíssimo dos meus antecedentes. Porque a minha avó foi uma imigrante que chegou em 1936 em Salvador, Bahia, diretamente da Romênia, com 17 anos.
P/1 – Com a família?
R – Não.
P/1 – Sozinha?
R – Chegou com a família. Ela é uma típica história de imigrante mesmo, porque ela foi a quinta irmã de uma família de nove. Então primeiro veio o irmão mais velho, foi pra Salvador, fez um dinheirinho, voltou pra casar ou trouxe a minha tia, não sei. Depois foi trazendo os outros irmãos e minha mãe foi a última que conseguiu chegar, porque depois já estourou a guerra e já não vieram os outros quatro que ficaram lá. Mas meu pai já nasceu em São Paulo. O que eu sei dele... Eu não conheci o avô, que morreu antes, quando ele era menino. Conhecia a minha avó, foi a única avó que eu conhecia, que era russa, russa mesmo lá de Tomsk, que já é quase Sibéria. Eu sei pouquíssimo da vida deles e o que eu sei é que foi uma vida duríssima, eles eram muito pobres, o pai morreu cedo. E meu pai se formou em Medicina porque o desejo, naquela época, de todos os pais judeus era que o filho virasse médico, ou doutor, ou engenheiro, principalmente médico eu acho, sei lá. Mas enfim, ele se formou em Medicina na Bahia.
P/1 – Não, mas você tinha falado que seu pai tava em São Paulo, nasceu...
R – Não. Ele nasceu em São Paulo, mas ele tava em Salvador.
P/1 – Ele foi pra faculdade.
R – Não foi só da... Ele se formou na Bahia, como médico, na Bahia que era, aliás, um lugar bastante reconhecido.
P/1 – Uma faculdade boa.
R – É. Uma faculdade boa de Medicina. E quando minha mãe chegou foi pra casa da irmã que a trouxe. E minha mãe era uma mulher muito bonita, uma moça, naquela época, muito bonita e quando ele veio o pai dela disse pra ela assim: “Você é uma moça bonita, você vai pra América e vai casar com um doutor”. Ela foi uma moça muito obediente, porque ela chegou aqui e casou com um doutor, que era o meu pai. Só que o doutor que ela imaginava e pai dela também, seria um doutor rico, porque na terra deles só virava doutor quem era rico, mas meu pai, de rico, não tinha nada e nem nunca ficou rico. Então eu acho que o golpe não deu tanto certo assim, mas ela obedeceu.
P/1 – E eles se casaram na Bahia e ficaram mais...
R – Casaram-se na Bahia e eu nasci na Bahia, minha irmã também nasceu na Bahia, mas a gente saiu de lá mais cedo. Quando eu tinha três anos nós fomos pra uma pequena cidade do interior de Minas. Naquela época... Não sei se hoje em dia acontece, mas acho que não. Naquela época os jovens que se formavam como médicos era chamados nessas pequenas cidades onde não tinham outro médico. Então meu pai foi pra uma cidade chamada Guia Lopes no interior de Minas, nós ficamos lá dois anos e depois viemos para o Rio. Aliás, viemos para o Rio porque minha mãe tinha um irmão aqui, veio para o Rio e escreveu para o meu pai: “Eu não volto pra aí, não. Se você quiser vem pra cá”. E eu devo agradecer isso a ela, porque senão eu teria crescido no interior de Minas, eu acho que a vida teria sido diferente.
P/1 – E ele veio?
R – Veio.
P/1 – Ela era arretada.
R – Era, mas não parecia. Sabe aquelas pessoas que tem uma força disfarçada por dentro? Parecia uma pessoa muito tímida, quieta.
P/1 – Mais ______.
R – Mas quando ela definia uma coisa, tava definido. Então foi isso. Ficamos no Rio. Quer dizer, hoje em dia eu sou carioca.
P/1 – Susane, é você e sua irmã.
R – É. Sou eu e minha irmã.
P/1 – O nome da sua irmã.
R - ________. Minha irmã é loira de olho azul, sardenta, mais baixa, mais gordinha, completamente diferente. Minha irmã é a família da minha mãe, que a família da minha mãe é europeia, todo mundo de olho claro etc. E eu sou da família do meu pai, que é mais moreno, sei lá.
P/1 – Quem é mais velha? Susane, então retomando, e sua irmã é mais velha?
R – Não. Minha irmã é mais nova, dois anos mais nova do que eu.
P/1 – Como é que também foi sua infância? Conta-me um pouquinho alguma de suas memórias. Como era em casa? Sua mãe era autoridade também em casa, ou era o seu pai. Conta um pouquinho como era.
R – Olha, eu... Não sei. A lembrança da minha infância é uma lembrança um pouco... Não sei o porquê, mas não é uma lembrança cor-de-rosa. Eu sempre penso que se eu tivesse que dar uma cor, daria uma cor cinza. Mas eu não sei bem o porquê, quer dizer, até sei um pouco, mas podia não ser cinza, podia ser amarelinha, uma coisa um pouquinho melhor. Mas não é. É bem cinzenta. Na verdade era uma infância de menina no Rio de Janeiro, eu morava ali no Catete, na Rua Silveira Martins. Brincava na rua como as crianças brincavam antigamente. Fiz o Colégio Anglo-Americano desde o começo, desde o primeiro ano até o terceiro científico. Tinha alguns problemas, agora que você me perguntou eu to pensando, por que ela era cinza? Eu tinha um problema sim. Tinha alguns, vários, mas um deles a questão de a minha mãe ser imigrante, não é que eu, como criança, sabia, mas minha mãe era diferente das outras mães. Eu tinha certa vergonha, um incômodo daquela mãe diferente, falava um pouco diferente. E não só ela era imigrante como era judia, o que era mais difícil ainda. Então essa questão de ser judia era complicada, porque ela era muito judia e ela veio de uma Europa, onde depois os pais ficaram, os irmãos ficaram, morreu metade da família, nem toda dela morreu, mas toda aquela história. Então ela já tinha trazido da terra dela o medo que vem com o judeu da Europa, daquela fase. E uma das coisas que eu lembro, por exemplo, quando eu descia brincava com as meninas, de todas as meninas a única judia lá era eu e a minha irmã, quando eu trazia uma menina nova em casa minha mãe abria a porta, virava pra mim e dizia assim: “Ela é ______?”. Eu quase morria. Primeiro porque não era; segundo... Como eu ia dizer? Ela tratava bem depois, não tratava mal, não. Mas ela perguntava isso na porta, então tudo isso me criava certa dificuldade, uma angústia. E minha mãe conta, eu lembro, que ela me buscava no colégio. O colégio era ali em Botafogo, na praia de Botafogo, Colégio Anglo-Americano, era uma casa enorme e tinha um portão onde quando a gente saía, ficava num jardim, um lugar onde a gente ficava esperando os pais. Então quando eu saía, isso é uma angústia que eu, falando pra você, consigo sentir. Eu me lembro que eu vinha, a gente vinha em fila lá de dentro, a escola era grande e eu já vinha olhando assim, pra ver se a minha mãe tava lá sentada, ficavam os pais ali. Se tivesse, ótimo. Se ela não estivesse ali era uma desastre na minha vida. Então o que acontecia? Às vezes ela atrasava dez minutos, 15 minutos, sei lá. A minha irmã, que era menor, ia brincar no jardim, no escorrega, não tava nem aí. E eu subia no portão, o porteiro fechava o portão por minha causa, e ficava chorando pendurada no portão até ela chegar. E ela dizia assim: “Por que você tá chorando?”. Eu também até hoje não sei, eu devia ter uma sensação de abandono, eu não sei. Mas eu me lembro disso muito claramente, de eu pendurada no portão chorando pra minha mãe vir me buscar. Mas enfim, buscava, nunca deixou de buscar e a gente voltava pra casa de bonde, porque eu ia pra escola de bonde, voltava pra casa de bonde. Eu me lembro do número do bonde, a gente se lembra disso bem.
P/1 – Qual era o número?
R – Eram alguns. Tinha o quatro, que era Praia Vermelha, passava pelo Catete, passava por Botafogo e ia pra Praia Vermelha. Tinha o 13, que vinha para Ipanema. Tinha o cinco, que ia para o Leme. Tinham mais algum. O 12 também. E tinha até uma coisa, já fica na memória da cidade, tinha uma coisa que era taioba, não sei se alguém aqui... Não, aqui não. Taioba era um bonde que vinha também, mas era aberto, não tinha bancos, era um bonde que as pessoas que tinham compras, mudança, eu sei lá o quê. E a minha mãe não pegava taioba, minha mãe era muito chique, imagina se ela ia pegar um taioba, mas a gente gostava de pegar taioba. Então a gente vinha no bonde. E o bonde era assim, você pegava o bonde, tinha o trocador que vinha com as moedinhas na mão, você pagava, quando você ia saltar você batia. Tem uma música de carnaval, acho que diz: “Seu trocador, dem dem” que era que você puxava mesmo. E tinha gente que andava nos tribos, homens, os rapazes andavam nos tribos, a gente andava naqueles banquinhos. Eu me lembro de duas coisas engraçadas: uma, que o trocador vinha com aquilo e eu sempre falei muito com as mãos, quando o trocador chegou ali, eu acho que eu tava sentada no canto, na beira e fiz assim, lá se foram todas as moedinhas do trocador. Também nunca esqueci, porque acho que ele deve ter desejado me matar; e outra vez, eu me lembro que eu tava com a minha mãe e tinha uma senhora sentada atrás, não sei por que eu disse: “Mãe, que mulher feia que tá sentada atrás da gente”. E a mulher ouviu e armou um escândalo no bonde, minha mãe me pegou e a gente desceu no primeiro ponto. Então a gente guarda algumas coisas de infância muito engraçada. Mas eu me lembro disso, não sei quantos anos eu tinha, devia ser pequena. Enfim, era isso. Depois era isso, a gente brincava na rua de patins, de bicicleta.
P/1 – O que você gostava mais?
R – O que eu gostava de brincar?
P/1 – É.
R – Não sei. Não me lembro. Eu gostava de brincar na rua. A gente andava de patins, eu gostava de andar de patins. A gente brincava de umas brincadeirinhas que ninguém brinca mais, que era: “Sou pobre, pobre, pobre de marré deci”. A gente brincava de uva, pêra e maçã. Um dia minha mãe viu pela janela, teve um ataque e me mandou subir, não me deixou ficar brincando. Era legal.
P/1 – Como era uva, pera e maçã pra quem não conhece?
R – São meninos e meninas, aí alguém te pergunta: “Uva, pêra ou maçã?”. Aí você dizia: “Uva”. Uva é beijo, pera é abraço e, maçã aperto de mão. O menino que quisesse vinha pra te dar aquilo que você tinha dito, mas não sabia qual era o menino. Uma história dessa. Coisa de menino e menina. E a minha mãe foi olhar na janela pra ver se eu tava direito, tá eu... Beijinhos e abracinhos. Teve um chilique. Então tudo isso fazia parte, mas era legal. Engraçado, essa história faz você lembrar coisas. A minha rua era toda de casas e meu prédio era o único, depois construíram um prédio até mais moderno, grande, que a gente achava que era moderníssimo, em frente. E de lá eu fiz duas amigas nesse prédio, que a gente brincava. O ano passado eu encontrei uma dessas amigas que se chamava Marieta na esquina lá no Leblon. Eu olhei pra cara dela, ela olhou pra minha cara, eu disse: “Você é a Marieta?”. Ela disse: “Você é a Susane?”. Bota ano nisso, você pode imaginar quantos. E a gente se reconheceu, foi engraçado isso. Tem outras, tem várias lembranças, mas não são cor-de-rosa.
P/1 – Tinha educação religiosa? Sua mãe, você disse que era muito religiosa. Você seguia...
R – Não, minha mãe não era religiosa, não. Tem uma coisa que as pessoas não entendem, ser judia é uma coisa e ser religioso é outra. Ser religioso judeu é outra coisa. Minha mãe não era religiosa, minha mãe era...
P/1 – Nem seu pai?
R – Ih, meu pai, muito menos ainda. Muito até o contrário. Mas ser judeu... Você pode ser muito judeu sem ser religioso e ela era muito judia sem ser religiosa. Ela trazia isso, ela era uma europeia formada numa cidadezinha em que os judeus moravam aqui, os não-judeus moravam aqui, porque ela praticamente não conhecia os não-judeus. Então ela tinha medo, esses não-judeus eram, muitas vezes, pessoas que maltratavam, batiam. Tinha aquelas histórias todas de interior lá na Rússia, na Romênia. Então pra ela... Quando fiz uns 11 anos eu entrei numa comunidade judaica onde tinha um grupo de jovens, um grupo juvenil bem legal, que foi muito bom. Foi a minha adolescência, uma época bem boa, porque conheci amigos que tenho até hoje. Conheci o meu primeiro marido e a gente tinha atividades, a gente fazia piquenique, fazia baile, jogava ping-pong e estudava um pouquinho. Não muito seriamente, mas estudava um pouquinho de história judaica, era bem legal.
P/1 – E você entrou por conta própria ou...
R – Não. Minha mãe me levou. Fiz dez anos, ela...
P/1 – Pois é. Por isso eu tava pensando.
R – Não. Ela me levou, como depois levou minha irmã para uma comunidade protetora, obviamente, né? Uma comunidade judaica onde um dia eu encontraria um marido e aconteceu, acabou que eu casei lá mesmo. Mas a gente...
P/1 – Mas essa comunidade o quê? Era uma sinagoga? _____
R – Era. Era uma sinagoga. Uma sinagoga que existe até hoje, a ARI, Associação Religiosa Israelita, é grande, é a maior sinagoga do Rio de Janeiro. Tinha um rabino muito importante, muito legal, um rabino alemão...
P/1 – Qual é o nome dele?
R - Rabino Lemle. Que foi um grande líder comunitário e mesmo uma pessoa muito respeitada na sociedade brasileira, ele era uma pessoa que veio da Alemanha já depois da entrada do nazismo, mas ele foi trazido e...
P/1 – E tinha um cunho mais liberal. ___________
R – Tinha um cunho... Era super liberal. Era muito liberal, era mais moderna e tinha um cunho muito aberto, muito interessante isso porque hoje essa mesma sinagoga é mais tradicional do que era na minha época. Nessa época a gente era assim, a vanguarda, não era tão religiosa e era vanguarda mesmo, era bem moderna na educação, nos princípios. Foi muito boa, a minha adolescência foi muito boa lá. A gente fazia teatro, eu gostava muito de fazer teatro, eu era, a maior parte de vezes a principal, isso pra mim era uma coisa muito legal e eu gostava. A gente viajou junto, a gente fez várias coisas. Eram coisas de jovens mesmo, mas era uma coisa que eu tive muita liberdade, porque minha mãe tinha confiança, então...
P/1 – Era um local seguro.
R – E aí eu ia mesmo. Fazia tudo lá.
P/1 – E você... Virou seu grupo de amigos.
R – Virou meu grupo de amigos. Até hoje eu tenho esses amigos.
P/1 – E você ficou quanto tempo ligada a esse grupo?
R – Muito tempo. Com 13 anos que comecei a namorar aquele que foi o meu primeiro marido. 13 anos. Quando eu olho os meninos de 13 anos hoje eu não acredito no que eu fiz, mas foi isso. E outros de nós formaram vários casaizinhos, então saiu uma meia dúzia de casamentos lá e a gente ficou amigos até hoje, praticamente, a maior parte deles. Outros não. Outros seguiram outros caminhos, mas eu tenho um nucleozinho que são meus amigos até hoje.
P/1 – E que música vocês gostavam? Também assim, que vocês...
R – Não, a gente cantava muito em hebraico, essa parte toda era... Músicas em hebraico, danças israelenses. Tinha esse lado da educação judaica que fazia isso. O resto era igual, namorar era igual, bailinho tinha todo tipo de música, a gente dançava naquela época de par, era de par.
P/1 – Qual era uma música romântica do seu namoro? De dança.
R – Blue Moon e sei lá qual mais. Música americana, aquelas músicas. São bonitas. Eu gostava no cinema muito de filme musical. Muito. Eu via três vezes, quatro vezes, cinco vezes. Olha, isso é uma coisa muito interessante também no Rio de Janeiro, vai virar uma memória carioca também, mas é legal. Porque eu morava no Catete, depois eu me mudei para o Flamengo, mas era ali que a gente morava. E o centro era aqui no centro da Cinelândia. Cinemas eram todos aqui. Sábado e domingo, até certa idade, era uns 13 anos, 14 anos, era aqui na cidade que a gente vinha ao cinema, ia à lanchonete, tinha uma lanchonete americana grande aqui. Tinha esses cinemas que alguns ainda têm até hoje, outros que não têm mais, tinha o Metro, o Plaza. E a gente se vestia toda para vir à cidade. Você vinha bem vestido, não vinha de qualquer jeito. Minha mãe então vinha de sapato alto, meia, luvas. Todas as mulheres vinham elegantemente vestidas e eu me vestia, todo mundo se vestia para vir à cidade. E aqui que era que aconteciam essas coisas todas. Eu comi a primeira pizza do Rio de Janeiro aqui na Rua Senador Dantas, eu não me lembro do nome do bar, mas era ali no comecinho da Senador Dantas. Eu me lembro do meu pai dizendo: “Vou levar vocês pra comer uma coisa que vocês vão gostar”. Sentamos. Foi a primeira vez que eu vim comer uma pizza e realmente gostei. E não existia em lugar nenhum, só existia ali e depois virou feijão com arroz. Mas a primeira pizza eu me lembro, foi aqui na Rua Senador Dantas.
P/1 – E era meio lanchonete, ou meio restaurante?
R – Era uma lanchonete que tinha um restaurantezinho no fundo. E na frente tinha empadinha, tinha alguma coisa, tinha umas coisinhas, uns salgadinhos. E atrás, então, tinha umas mesas e lá que a gente sentou. Se eu me lembrasse, era bacana eu me lembrar, mas eu não me lembro de como se chamava. Depois o centro, com esse grupo jovem, o centro já começou a passar para Copacabana. Copacabana, Ipanema, Leblon era muito longe. Copacabana, Ipanema, então tinha a praia no Dois e Meio, que era em frente ao Copacabana Palace, era um ponto fixo. Então a gente ia porque sabia que ia encontrar todo mundo lá.
P/1 – Aí ia, quando você diz: “A gente ia”. Ia a família?
R – De bonde. Que família.
P/1 – Ou você e sua irmã, você e seus amigos?
R – Não. Eu já estava na minha. Já estava eu na minha. Já tava independente. Com 13, 14 anos. Às vezes com a minha irmã também, mas não, era com esse grupo mesmo. De bonde. Bonde número 13, saltava ali. E depois eu fui no primeiro Bob’s que teve no Rio de Janeiro, que era na rua... Ali em Copacabana.
P/1 – Copacabana. Aquela pequenininha.
R – Como é o nome daquela rua?
P/1 – Domingos...
R – Domingos Ferreira.
P/1 – Ferreira.
R – Então era o máximo ir ao cinema no Rian, que era na Vila Atlântica e depois ir comer cachorro quente, milk shake no Bob’s, que era a grande novidade. Namorei muito por ali, que era ir ao cinema, depois ia pra lá, ou ia ao Roxy. Eram Roxy, Rian e tinham mais dois, o Metro, o Metro Copacabana e o Art-Palácio, que era ao lado do Metro. Então toda parte da minha juventude mesmo, até uns 20 anos, era por ali que as coisas se passavam e todo mundo. O Leblon era mais longe, mas às vezes a gente vinha até o Leblon porque eu tinha uma amiga que morava no Leblon, na Carlos Góis, que, aliás, eu moro uma rua depois da minha hoje. E às vezes eu vinha escondida de bicicleta até o Leblon. Imagina.
P/1 – Uma viagem.
R – Do Flamengo. Mas isso era escondido porque senão não ia dar certo, minha mãe não ia deixar. Então a gente vinha de bicicleta.
P/1 – E o namoro também foi com o consentimento da sua mãe? Como era, tinha que apresentar ou não apresenta?
R – Foi mais ou menos. Olha, contar essas coisas é até engraçado, mas é bom que vocês vão aprendendo. Não, porque minha mãe me criou dizendo assim: “Só beija depois que ficar noiva”. E só até aí chegou a minha educação sexual, mas do que isso não se falava naquela casa. O problema era o beijo depois de ficar noiva. Tá bom. Mas como ele fazia parte do grupo...
P/1 – Queria que você me dissesse o nome dele, ele até agora tá ele.
R – Você conheceu o ____? Ela conheceu. O nome dele era Jedidia, que era um nome judaico, Jedidia, e que trouxe muitos problemas na vida pra ele porque terminava em “a”. Então quando ele ia à escola, que o professor no primeiro dia chamava Jedidia, que ele levantava, aquele caos, todo mundo rindo dele, meio problemático. Mas ele teve um apelido, que na verdade ele ficou bastante... Ele é uma pessoa bastante conhecida depois, que era ______. Então na verdade é o _____ que foi o meu primeiro, quer dizer, foi o meu primeiro namorado e foi meu primeiro marido. A gente namorou de 13 aos 20.
P/1 – Teve noivado?
R – Teve noivado. Mais ou menos. Teve um noivado, mas não foi nada muito... Eu não era muito dada a essas coisas, não. Eu gostava das coisas menos complicadas. E meus pais também não eram muito exigentes nisso, não. Então teve um noivado simples. Eu noivei em Itajubá. Por que eu noivei em Itajubá? Porque ele fez Engenharia em Itajubá, que era uma escola de Engenharia, ainda existe, de Engenharia Elétrica e Mecânica muito conceituada. Então ele passou cinco anos lá, ele ia e voltava, ia e voltava. No dia em que ele se formou, na noite da formatura a gente noivou lá, meus pais foram, os pais dele foram e a gente noivou lá. Foi isso. E mais ou menos é isso. Eu fazia muitas coisas, eu era... Eu fazia coisas, eu gostava de fazer.
P/1 – E assim, depois na escola, você também com o grupo, como você pensava? Como você foi encaminhando seus estudos? O que você queria fazer? Quais eram os seus planos?
R – Olha, eu acho que se eu fosse uma jovem hoje eu teria feito algumas coisas bem diferentes.
P/1 – Por quê?
R – Porque hoje você tem mais oportunidades, mais conhecimentos, o mundo é maior. E eu fui uma pessoa bem encaminhada, minha mãe me botou naquele lugar ali e o colégio eu era boa aluna, bastante boa aluna.
P/1 – O que você gostava de estudar?
R – Eu não estudava muito, não. Mas eu era boa aluna porque eu prestava muita atenção e eu devia ter uma boa memória porque eu era líder de turma. Tinha uma coisa assim, no Colégio Anglo-Americano você ganhava um negocinho assim, com apito que ficava aqui, que te identificava que você era líder da turma, você tinha umas responsabilidades lá com a turma. E depois eu participava de uma coisa que chamava Jogos da Primavera, que era uma coisa muito importante no Rio de Janeiro, nas escolas, que era uma competição de esportes. Foi muito famosa na época, foi feita pelo jornal dos esportes e as escolas desfilavam, tinha um grande desfile e eu era a porta-bandeira da escola.
P/1 – E você gostava de esporte então pra ser...
R – Eu gostava, mas não era uma grande esportista, não. Mas eu tinha alguma, não sei, me escolheram para ser porta-bandeira eu era porta-bandeira, então eu sempre vinha na frente com a bandeira. Depois eu fui porta-bandeira da bandeira do Brasil, então eu abria o desfile, eram umas coisas assim que me aconteciam. Eu jogava vôlei. Eu jogava vôlei, fazia ginástica sei lá o quê, uma ginástica lá com... Como chamava? Era uma ginástica de grupo, bonita, que você faz com umas coisas. Acho que era isso que eu fazia. Eu era conhecida na escola também, eu fiz a escola toda lá. Enfim, é isso.
P/1 – Você pensava também, já começando a encaminhar...
R – Eu pensava. Eu pensava o que eu ia fazer, mas pensava mais era que eu ia casar, precisava casar, eu era a mais nova do grupo, todo mundo começou a casar e eu tinha que casar também. Mas aí eu fiz vestibular pra Psicologia na PUC. Olha, eu fiz vestibular pra Psicologia, engraçado isso, porque eu gostava de ouvir as pessoas e as pessoas gostavam de me contar as histórias delas. Então eu achei que devia ter jeito pra Psicologia. Fiz e era o segundo grupo de Psicologia da PUC, tinha começado. Eu fiz um ano de Psicologia.
P/1 – Isso antes de casar?
R – Antes de casar. O Jedidia se formou e nós tivemos uma proposta de ir pra Brasília, porque Brasília foi inaugurada e eles estavam buscando engenheiros. Então quem fosse ganhava uma casa, um acampamento, ganhava um jipe e ganhava o dobro do que ele ganharia aqui.
P/1 – Imagina.
R – Era ótimo. Então a gente foi. Então eu cheguei a Brasília no ano da inauguração de Brasília. Incrível, né? Mais é.
P/1 – Você foi contando do Rio, agora vai contar um pouco de Brasília lá do início.
R – Foi o ano em que Brasília foi inaugurada. Foi uma época muito interessante, primeiro porque não tinha nada. Eu fui morar numa casa de madeira grande, que era a casa dos engenheiros americanos que tinham voltado já, que ficava atrás da Praça dos Três Poderes, chamava Acampamento Planalto. Era uma casa grande de madeira, dessas tipo americana, bacana, era boa. Você olhava em volta era tudo terra vermelha. Vermelha, vermelha, não tinha uma plantinha, uma nada. Então era tudo vermelho. Brasília era vermelha. Hoje ela é verde, mas antigamente ela era vermelha.
P/1 – Isso você recém-casada?
R – Eu casei e fui pra lá.
P/1 – Foi pra lá.
R – Fui pra lá. Não sabia fazer nada. Não, sabia fazer um ovo, sei lá, alguma coisa. Não tinha telefone, era longe de tudo. Olha, uma loucura. Bom, mas fomos. Tinha um jipe, já dava pra você ir e voltar. E pronto. Começou lá a vida. Aí aconteceram várias coisas: primeiro que eu fiquei grávida logo, sem a menor intenção de, mais fiquei, na época não tinha pílula também. Olha, eu já tô me sentindo assim, não só do século passado, mas do século XVIII, porque as coisas que não tinham, quando você pensa, mas é verdade. Então não tinha pílula, fiquei grávida logo e fiquei naquela casa, que eu dizia: “Eu tenho que plantar alguma coisa aqui”. Então eu saí, comecei a plantar algumas coisinhas lá pra ver se nascia alguma coisa, enfim. Depois de um mês eu tive um piti, direto. Chorava com saudade do Rio e aquela coisa. Então eu disse: “Eu preciso ir ao Rio”. Eu vim para o Rio num avião da FAB, porque a gente tinha certas facilidades lá, aí vim eu para o Rio.
P/1 – Que era o meio que tinha também.
R – É o que tinha. Eu sei que eu consegui um avião na FAB, vim passar uma semana no Rio. Passei uma semana no Rio. Eu precisava ver o mar, precisava ver o Rio. Não era nem tanto ver minha mãe, era vir para o Rio, uma coisa assim. Eu sentia falta daquela água, não tinha água em Brasília, não tinha lagoa, aquele lago que tem hoje em Brasília não tinha. Então passei uma semana aqui, aí voltei e sosseguei. Foi gozado isso, é uma coisa acho que meio psicológica. Voltei e fiquei mais sossegada. Aí começaram a vir os meus amigos, porque Brasília era o Eldorado da época, todo mundo se formando, todo mundo ia pra Brasília pra tentar a vida. E para onde iam? Para minha casa, porque não tinham onde ficar. Então eu passei dois anos em Brasília, a única época que eu passei sozinha com meu marido lá foi esse primeiro mês, nunca mais.
P/1 – Jura?
R – Juro. Que aí veio, sei lá, vieram amigos, amigos dele, amigos meus, tinha dia que chegavam dois, três que eu nem conhecia direito, eram os amigos de Itajubá dele. Mas era muito divertido, porque era uma coisa muito… Sei lá. Lá pelas tantas ele conseguiu, deram aos engenheiros uma casa na W3, que era a principal rua de Brasília e eram aquelas casas do Niemeyer, todas iguaizinhas uma ao lado da outra, mas era uma casa de dois andares, era uma casa legal. Então a gente mudou pra casa e foi interessante, por exemplo, eu nunca tive a chave dessa casa, porque não me deram, estava enguiçado, não sei o quê. Eu nunca precisei da chave dessa casa, eu morei lá dois anos, vinha para o Rio, saía. Eu encostava a porta e assim ficava. Era bom, era legal isso. E ali a gente tinha todos os vizinhos, todo mundo ligado. E todo mundo tinha essa coisa bacana em Brasília, porque todo mundo era jovem e ninguém tinha família, então você fazia aquela família de compadres. Então depois do jantar, sei lá, você saía, entrava na casa de um pra ver se tava, se não tava você entrava na casa da outra, ninguém tinha chave eu acho. Eu chegava em casa às vezes à noite, se a gente tivesse saído, já tinha gente lá esperando a gente, conversando na porta. Era bom, era divertido. Tive meu primeiro filho, o Vitor, que foi o primeiro judeu. Não sei se o primeiro judeu, eu acho que ele foi o primeiro judeu a nascer, mas ele foi o primeiro judeu a ser circuncidado em Brasília. E aconteceu que ele nasceu no dia que eu ia embarcar para o Rio, porque eu vinha para o Rio ter o filho, mas aí ele resolveu nascer, teve um churrasco, sei lá, devo ter feito alguma... E de madrugada ele começou a fazer movimento, então eu disse: “Olha” tinha uma água assim na coisa, eu digo: “Olha, acorda porque eu acho que tá acontecendo”. Não sabia muita coisa, não. Aí a gente desceu pra pegar o carro, nosso carro tava com os quatro pneus no chão, furados, não sei por que. Até hoje eu não sei por que, ou foi alguma brincadeira de alguém, alguma coisa tinha. Não tinha como chegar à maternidade. Aí veio chegando um vizinho, o Michel, que tinha uma dessas... Era um Chevrolet, um Ford, dessas que tem... É uma caminhonete aberta atrás.
P/1 – Uma picape.
R – Uma picape altíssima e ele tava bebinho, porque eram seis horas da manhã e ele tava chegando de uma festa, ele disse: “Vem que eu levo vocês”. Eu não conseguia subir, porque aquele troço era alto, mas enfim, içaram, eu sentei, lá fui eu com o Michel bêbado. Olha, chegamos à maternidade. Quando chegamos à maternidade tava faltando luz, faltava luz em Brasília de vez em quando. A maternidade era no quarto andar, aí eu sentei numa cadeira e uns homens, eles dois e mais outros homens de lá me carregaram quatro andares e eu fazia, não sei se hoje eles fazem, acho que não, cachorrinho na respiração.
P/1 – Na respiração.
R – Então eu ia respirando, eles me carregando, uma coisa complicadíssima. Bom, enfim, você tem que ter 20 anos pra acontecer essas coisas. Pronto, tive o filho lá. Era um hospital também muito desorganizado, muito. Hospital Distrital de Brasília era o único. E dois dias depois eu vim embora porque era assim, o café da manhã vinha às nove, o almoço vinha às 11, o jantar vinha as três porque a cozinha tinha que fechar. Um horror. A comida péssima, eu disse: “Eu quero ir embora”. Não tinha como ir embora, aí _____ também que não era brincadeira chamou uma ambulância, me botaram na ambulância. Até hoje... Eu não disse até logo para o médico, eu não sei se ainda estão me procurando. Fomos embora, fui pra casa. Assim foi. Meu sogro era religioso, o pai dele era religioso: “Você tem que circuncidar”. Dez judeus em Brasília. Então a gente começou a catar judeu, ele trouxe meu pai, trouxe o irmão mais velho, então precisava de sete judeus, a gente não achou sete, faltava um. Tem que ter dez judeus, faltava um, ele disse: “Olha, você quer saber de uma coisa? Chama o Paulo” que era o engenheiro lá amigo nosso “Bota uma quipá na cabeça dele, manda calar a boca, não abrir a boca pra nada, não falar com ninguém e faz o negócio”. E assim foi. Ele tava morto de medo, coitado. Eu disse: Olha, se te perguntarem qualquer coisa você diz que é sefaradi. Sefaradi não precisa saber nada, porque é de outro jeito, então fica quieto. E pronto. Assim foi e ele foi o primeiro judeuzinho a ser circuncidado em Brasília. E nós passamos dois anos lá, foram dois anos muito interessantes, começo de Brasília.
P/1 – E lá você ficou também só... Parou também a universidade...
R – Parei. Eu tranquei a universidade. O que eu fiz lá? Primeiro eu tive filho, não entendia nada, foi apertando. Depois eu trabalhava aqui, quando eu fui pra lá eu trabalhava aqui no Consulado de Israel, na embaixada de Israel, agora que eu me lembrei disso, aqui. Então quando eu fui eu fiquei como representante lá, não tinha muita coisa pra fazer, mas uma vez ou outra eu fazia. E era isso. Aprendi duas coisas em Brasília fora outras: aprendi a dirigir, porque tinha um jipe e aprendi, e aprendi a beber cerveja, porque eu nunca tinha bebido e todo mundo bebia muito. Então eu aprendi a beber cerveja, que eu gosto.
P/1 – E essa ideia da cidade começando também, devia ser uma coisa meio complicada até para ter as coisas.
R – Não tinha nada, mas era interessante.
P/1 – Para criança.
R – Mas era interessante, todo mundo era jovem, qualquer coisa que você precisasse você ia pra Cidade Velha, que ficava longe, você ia de... Hoje em dia não sei se é Taguatinga que chama, não sei. É periferia, que continua periferia, mas na época era periferia que tinha as coisas. Não tinha cenoura, não tinha agulha e linha, que eu me lembro que eu pedia pra minha mãe: “Manda agulha, manda linha, manda não sei o quê”. Não tinha. Mas era divertido. O único cinema não tinha cadeiras ainda, a gente ia ao cinema no chão. Tinha dois restaurantes, você ia num ou você ia ao outro. Mas era interessante, era aquele espírito assim, muito novo, muito pioneiro. Eu acho que foram dois anos bem bons. Aí aconteceu o seguinte, não tem nada a ver com isso aqui, mas agora quem tá falando...
P/1 – Não, mas assim, faz parte da sua juventude.
R – Eu saquei que depois de certo tempo ao invés de emagrecer eu tava engordando, depois que o neném nasceu. Não gostei e resolvi ir a uma ginecologista, que era nessa Cidade Velha lá. Peguei o jipe, fui pra Cidade Velha. Quando ela me examinou ela disse pra mim: “Minha filha, você está no quarto mês de gravidez”. Então não sabia, nem desconfiava.
P/1 – E qual era a diferença de idade do Vitor...
R – A diferença de idade deles é de 11 meses. Todos os dois nasceram em janeiro, um no começo de janeiro e outro no final de janeiro.
P/1 – Foi em seguida.
R – Não, eu chorei daquele lugar lá da Cidade Velha, dirigindo aquele jipe, até a minha casa. Entrei em casa, fechei a porta, deitei na cama e chorei de desespero, porque no quarto mês eu não podia fazer mais nada, nem que quisesse. E tudo isso porque tinham me dito que se eu tivesse dando de mamar eu não engravidaria, mas eu tava dando de mamar, não eram bem assim as coisas. Então eu fiquei grávida de novo e antes de Karen nascer, que é a Karen, nós voltamos para o Rio, ela nasceu em janeiro nós voltamos em novembro.
P/1 – Mas como foi a volta? O Jedidia quis voltar? Vocês decidiram entrando num acordo?
R – Não, o irmão dele o chamou para trabalhar com ele, ser sócio numa fábrica de bicicleta, acho que ele tava começando. Aí a gente voltou para o Rio, acho que nem pensamos demais não, sei lá, tudo meio... Voltamos para o Rio.
P/1 – Daí vocês vieram morar aonde?
R – Em Leme. Onde dona Karen nasceu. Em cima da Fiorentina, que ainda existe até hoje. E a Karen, no dia que ela nasceu eu fui à praia, quando voltei achei que tinha alguma coisa enguiçada, mas tudo bem e ela nasceu naquele dia mesmo. Pronto. Vivi alguns anos no Leme, não me lembro quantos, algum tempo. Depois mudei pra Miguel Lemos, a gente comprou um apartamento.
P/1 – E enquanto as crianças estavam pequenas você ficou também meio de mãe.
R – É. Fiquei bastante de mãe, mas aí eu procurava fazer algumas coisas. Eu fui ensinar inglês nesse curso Oxford. Depois eu fiz... Não sei, eu fazia umas coisas, inventava umas coisas. Fiquei bastante de mãe, eram dois nenéns. Tinham várias coisas que aconteciam, tinha falta de luz no Rio de Janeiro. Então de 11 até não sei que horas, duas ou três, não tinha luz, eu morava no oitavo andar, então você tinha que controlar as coisas. Tinham várias coisas assim, mas era uma vida legal, a vida no Rio de Janeiro era muito mais mansa do que é hoje. Depois eu resolvi voltar pra faculdade.
P/1 – Para Psicologia?
R – Aí eu desisti de fazer Psicologia. Acho que eu só voltei pra faculdade depois que eu me separei. Gente, eu nem lembro mais. Por aí. Só sei que eu resolvi voltar para a faculdade. Não. Eu resolvi voltar pra faculdade. Fiz um cursinho de vestibular, porque achei que eu não ia voltar pra Psicologia, já tinha fechado há muito tempo. Fiz um curso de vestibular e quando fui pra me inscrever eu descobri que não precisava fazer vestibular, que eu tinha direito de entrar porque eu já tinha trancado, eu tinha que reabrir.
P/1 – Reabriu.
R – Então reabri, mas mudei, resolvi fazer Artes, que eu sempre gostei.
P/1 – Na PUC também?
R – Na PUC também. E também era o primeiro ano do Departamento de Arte. Era o primeiro ano do Departamento de Arte. Então fui fazer Departamento de Arte na PUC.
P/1 – Já na Gávea?
R – Na Gávea. Na Gávea. Aí foi lá. Foi bom, foi interessante.
P/1 – Susane, a gente costuma perguntar sempre assim, qual foi o seu primeiro emprego, seu primeiro trabalho. O que você considera como seu primeiro trabalho?
R – Complicado, porque eu fiz coisas diferentes em momentos diferentes.
P/1 – Pois é __________. Mas assim, você falou: “Ah, eu trabalhava lá também no Consulado de Israel”. Mas assim, o que você... Dava aula. Tem algum que você considere mais assim: “Não, foi meu primeiro emprego mesmo”.
R – Eu acho que sim. Quer dizer, eu fiz isso, eu trabalhei numa agência de navegação quando eu tinha 16 anos aqui, uma porção de pequenas coisas. Mas assim, o primeiro trabalho eu diria que foi na própria PUC. Quando eu me formei, quando eu estava pra me formar me foi oferecido pela diretora, pela Mônica, se eu queria trabalhar com ela.
P/1 – E trabalhar como? Dando aula ou trabalhar...
R – Era um departamento de arte, era bastante novo, tava sendo estruturado e ela queria que eu trabalhasse dentro do departamento. Olha, é uma história. Ela disse: “Você quer vir trabalhar comigo? Eu queria que você viesse etc”. Eu tava me formando, eu disse: “Tudo bem”. Ela disse: “Eu vou...”. Ela ia viajar de férias, já era final do ano depois que eu me formei, eu também e a gente ia se encontrar depois, ela disse: “Você quer ficar 40 horas?”. E eu disse pra ela uma coisa naquela época que eu mantenho até hoje, é interessante. Eu disse: “40 horas eu não quero. Eu quero ter minhas manhãs livres, eu tenho dois filhos, ainda são pequenos, eu gosto de ter a manhã pra fazer minhas coisas. Quero trabalhar na parte da tarde”. Até hoje eu trabalho na parte da tarde, sempre trabalhei meio dia. Quando precisa aqui, antes e tal, tudo bem. Eu venho um dia, eu venho dois, mas meus compromissos sempre de trabalho, sempre foram assim e eu não tenho mais filho pequeno, mas eu acho isso muito bom.
P/1 – É saudável.
R – É saudável para mim, eu faço ginástica na praia, faço as compras, ou para o cabeleireiro, sei lá. Eu acordo muito cedo, eu sou uma pessoa que acorda cedo, mas eu gosto de ter essa coisa de não acordar, tomar café, sair ventando, pegar o primeiro ônibus pra ir para o trabalho. E eu tive isso aquela época por causa dos meninos, mas eu mantenho isso e consegui a vida toda manter isso em todos os trabalhos que eu fiz. Então eu disse: “Olha, então eu quero...”.
P/1 – Tudo isso te dava uma tranquilidade para ser mãe e trabalhar.
R – Claro. Dava-me um... Também eu não tava trabalhando para pagar aluguel, tinha quem pagasse, então tudo bem. E foi uma história bem dramática eu diria, porque quando eu voltei das férias, e ela também, ela tava internada. Ela era uma mulher muito interessante, ela que tinha começado o departamento. E ela teve um câncer e nunca mais saiu daquele hospital. Bonita, jovem.
P/1 – Mônica...
R – Mônica... Como era o nome? Ela era argentina, Mônica Galceran. Galceran.
P/1 – E ela que abriu o Centro Histórico _____.
R – Ela que abriu o departamento, ela que começou o Departamento de Arte. Tem até um negócio lá, um busto dela lá perto do Departamento de Artes. Muito inteligente, pessoa bacana. Eu acompanhei o final dela, foi horrível, todos nós que tínhamos nos formado com ela foi muito ruim, porque ela era uma moça jovem, bonita e morreu. Ficou aquela confusão, departamento sem cabeça, o reitor nos chamou, me chamou e mais algumas pessoas lá, porque ele tinha ideia de botar no departamento um daqueles professores. Eu me lembro que a gente se reuniu e disse que não, que ele não era bom e sugerimos outra pessoa, que também era uma argentina, a Irma.
P/1 – A Irma.
R – É. Você conheceu a Irma? Onde você conheceu a Irma?
P/1 – Lá na PUC.
R – Ah, pois é.
P/1 – Meu primeiro estágio foi com ela.
R – Com a Irma?
P/1 – É, mas... Volta.
R – Depois você me conta. Então, a Irma foi ser diretora por obra quase que minha na verdade, nossa ali do grupinho, mas eu que já tava conversando com ela, gostava dela, achava ela interessante. Então ela foi ser diretora e pediu pra eu ficar. Então eu fiquei. Fiquei na PUC algum tempo. Fiquei alguns anos. Isso foi em 1973.
P/1 – E você dava aula também, Susane?
R – Depois eu comecei a dar aula também, de história da arte, manifestações artísticas e trabalhava na parte de... Como chamava, meu Deus? Não era administração, de organização do...
P/1 – Coordenação.
R – De coordenação de departamento. Depois com a Irma fundamos aquele Solar Grandjean de Montigny, quer dizer, ela que baseou, eu ajudei, gostava.
P/1 – E tinha sempre projeto de pesquisa lá do Solar.
R – Tinha. Tinham algumas coisas. É, do Solar. Então acho que esse foi realmente meu primeiro trabalho.
P/1 – E você permaneceu lá quanto tempo?
R – Pois é, to tentando me lembrar.
P/1 – Você fez projeto por lá também? Projeto que vocês...
R – Eu praticamente aprendi a fazer lá projeto. Eu fiz o primeiro, que foi sobre o Grandjean de Montigny, depois eu fui trabalhar... Bom a Irma foi convidada para MAM, pro departamento de atividades educativas do MAM. E ela disse: “Eu não tenho tempo, não dá, não sei o quê. Se você quiser... Eu vou se você quiser e você vai e a gente fica”. Isso é um pouco de repeteco na minha história. Complicado isso, bem complicado. Aí lá vim eu para o MAM, adorei porque não tinha nada. O MAM tinha tido em 1970, nos anos 1970 com Frederico de Morais ele teve um período muito interessante, efervescente, mas quando a gente chegou tinha mudado a direção, não tinha nada. Tinha aquele prédio todo que era a parte de educativa tava...
P/1 – Galpão das Artes?
R – O Galpão já é depois.
P/1 – Depois?
R – Mas era onde era a cinemateca. Sabe aquele anexo?
P/1 – Sei.
R – Era a cinemateca que funcionava e o resto não funcionava, era uma coisa muito horrível. E eu praticamente montei o departamento, adorei, gostei muito. A Irma ia lá, sei lá, uma vez por mês, duas vezes, vinha de vez em quando. Mas ela deu carta branca e eu montei aqui. Montei todas as salas, sala por sala, montei um ateliê de gravura muito legal, muito bonito, de escultura, de desenho, de pintura, de tudo. No fim, quando a gente começou a trabalhar, não me lembro quantas oficinas tinham, mas eram muitas e durante o ano, eu fiquei lá uns cinco anos mais ou menos, e quando eu... Tinha uma média de 50 cursos diferentes, eu tenho os programas até hoje, podia até contar um dia. Tinha 50 cursos, todos os artistas brasileiros bons passaram por lá. Tinha uma média de 1000 alunos por ano que passavam, não que ficavam. Faz um curso de um mês, ou de um ano, ou de três anos, passavam lá e tem pessoas que eu conheço até hoje desses artistas, que às vezes eu encontro na rua até hoje. E foi um período bacana, foi um período... O museu funcionava mal, não tinha muito dinheiro, era uma confusão dos diabos. Mas aquilo lá tava funcionando muito bem, a cinemateca também funcionava, a gente se dava bem com a cinemateca. Então foi um período muito interessante, eu conheci muita gente bacana. Até que mudou de novo a direção do museu e a direção nova achou por bem que o museu não tinha que ter aulas, porque era um museu de arte moderna, não precisava ter alunos, aula. Era a única coisa que funcionava lá dentro, mas eles achavam... E isso deu uma briga danada, eu tive uma briga grande com eles lá, ele disse pra mim, eu nunca esqueci essa frase: “O Moma não tem aula”. Aí eu disse para o diretor, digo: “Olha, o Moma, quando você sai você tá em Nova Iorque. Aqui quando você sai você tá no Rio de Janeiro. Existe uma diferença grande.” Bom, tivemos uma briga miserável, em uma semana ia entrar em férias, fecharam tudo.
P/1 – Isso era o que, metade de 1970, década de 1970?
R – Não. Isso foi em 1980.
P/1 – Ah, já 1980.
R – Foi em 1980. Aí os alunos fizeram, sei lá, uma passeata, um movimento. A televisão Manchete filmou, ele conseguiu pegar o filme e nunca passou. Foi um negócio meio bravo. E pronto. Acabou, acabou, nunca mais retomaram, tentaram.
P/1 – Isso já era com o Nascimento Brito.
R – Não. Nascimento Brito foi com quem eu fiz.
P/1 – Então foi depois.
R – Foi depois do Nascimento Brito. O que veio depois? Eu consegui até esquecer o nome do cara. Mas tinha um Marinho lá. Era o tal do Marinho com quem eu falava, enfim. E era o Herkenhoff que entrou pra fazer a parte de curadoria do museu, com quem eu me dava e briguei também. Enfim, foi barra, foi duro. Porque eu gostava do que eu tinha feito, as pessoas gostavam, os alunos eram muito ligados, os professores gostavam, porque era um espaço bacana, enfim.
P/1 – Não, foi superimportante ______.
R – Bom, aí foi um ano danado também, porque eu saí do museu, quer dizer, acabou com o museu, eu saí da PUC. Já tinha saído mais ou menos porque também já me desentendi com a Irma, que era bastante minha amiga, mas também por causa da história do museu, um pouco antes até, mas lá, porque aí... Bom, enfim, não importa. E também me separei. Então foi...
P/1 – Tudo de uma vez.
R – Tudo de uma vez. Separei-me do segundo marido. Ou do primeiro? Deixa-me pensar. Não, 1980 e tantos eu já me separei do segundo. Separei-me do Jedidia em 1971, ou dois, aí casei de novo, fiquei dez anos casada e me separei do segundo.
P/1 – Você casou logo em seguida?
R – Casei dois anos depois mais ou menos. E foi aquele ano assim tipo, arrasa quarteirão, zerou.
P/1 – Mas de filho ficou?
R – Não, com os filhos eu fiquei. Só faltava jogá-los fora.
P/1 – Do primeiro casamento?
R – Fiquei. Só tive os dois, nem queria mais. Avisei, inclusive, que: “Olha, encerrada a produção”. Mas aí fiquei. Então foi um ano difícil, um ano complicado nessas alturas da vida. Mas aí eu resolvi fazer uma coisa que eu queria fazer a algum tempo também, que foi um projeto chamado Heranças e Lembranças, que você conhece e que na verdade era ligado àquela sinagoga onde eu era diretora cultural, a mesma onde eu entrei aos dez anos de idade.
P/1 – Que você permanecia ligada.
R – Permanecia. Eu era diretora cultural lá, fazia uns eventos, fazia uma porção de coisas, não me lembro. Fazia coisas. Eu propus a eles de fazer um projeto, eu queria fazer a memória da comunidade judaica no Rio de Janeiro, porque eu queria apresentar os judeus sobre outra ótica. A mim me incomodava, sempre incomodou essa ótica de olhar o judeu como vítima, ou como humor. Isso eu nem levo muito a sério quando começa a falar que o judeu é isso ou aquilo, eu ignoro o ignorante que tá falando. Mas aquela coisa de vítima, ainda a coisa do holocausto era muito forte, muito forte ainda naquela época, muita gente tinha perdido família, não sei o quê, então tinha assim, uma sensação...
P/1 – Era forte, mas ainda muito pouco falado também. Não era, não?
R – Falava-se dentro da comunidade. Falava-se menos fora da comunidade, mas dentro da comunidade sim, porque tinha muita gente que, por exemplo, a família dos meus primeiros sogros, do Jedidia, morreu todo mundo que ficou. Quem ficou na Polônia morreu.
P/1 – Isso foram tuas experiências de vida, né?
R – De vida. De vida. Então toda a família dela que tinha ficado, ficou lá, morreu. Então todo mundo tinha perdido, tinha morrido muita gente, ou tinha perdido pouca gente. Era uma coisa muito forte, mas eu não gosto disso e não gostava. Então eu queria mostrar outro lado e eu queria mostrar um lado bonito, um lado de luta pela vida. Porque eu acho que isso é uma das características judaica, que eu acho que é uma boa característica e que talvez faça com que o judeu acabe tendo certos lugares de visibilidade.
P/1 – Uma força para ultrapassar a necessidade.
R – É uma força. É uma força que é de contra, a maré vem assim, você vai e enfrenta. Então era isso que eu queria mostrar. Aí fiz esse projeto, precisava arranjar dinheiro pra esse projeto. Também não foi fácil porque você vai fazer um projeto sobre judeu todo mundo dizia assim: “Procura a comunidade”. A comunidade não me deu nada, não queria me dar nada porque dizia... A comunidade não queria ter a sua história contada.
P/1 – Não queria tocar no assunto.
R – Não queria tocar nesses assuntos, sabe? Era uma coisa meio complicada. E o que eu consegui, eu consegui um dinheiro legal no consulado alemão, quer dizer, os sentimentos de culpa às vezes são positivos. E tinha um cônsul muito legal no consulado alemão e ele se dava com o nosso rabino, já era outro rabino, um rabino jovem, tal. E a gente foi lá conversar e ele disse que ia dar um dinheiro bom.
[troca de fita]
R – Fiz teatro desde o primário, tá? No primeiro ano primário eu representei lá na escola, eu lembro. Engraçado isso. Onde estamos?
P/1 – Vamos voltar pra Heranças e Lembranças.
R – Heranças e Lembranças. Foi muito importante. Tem algumas coisas muito importantes que se faz na vida. Outro dia eu tava pensando isso. Gente, um dia você vai morrer, o que fica das coisas que você fez? O Heranças e Lembranças certamente será uma delas.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouquinho, já que a gente vai deixar registrado, um pouco do projeto em si.
R – Vou contar. O projeto era recuperar... Não. Ele começou até diferente. Como eu vinha também dessa área de artes eu queria começar pela parte dos objetos. Eu pensei o seguinte: quando os imigrantes, e os imigrantes judeus do Rio a maior parte deles veio fugida de algum lugar, o que eles trazem com eles? Quais são os objetos? Eles podiam trazer poucas coisas. Que objetos que os ligassem a identidade judaica traziam eles? Por aí começou a ideia do projeto. Então aí a gente começou a fazer o levantamento de objetos. Os objetos judaicos não são muitos. Uma sinagoga tem poucos objetos e em casa você tem o quê? Quatro, cinco tipos de coisa. Você tem o candelabro, você tem o copo de vinho que você faz uma reza, você tem um prato de Pessach da Páscoa, tem uma mezuzá na porta. _______ pouca gente tem, que é outro objeto. Não tem muita coisa. Tem as coisas judaicas religiosas do homem, que é a quipá e o talid que é aquele, sei lá, xale branco. Enfim, não tem tantas coisas, mas eu queria saber que objetos eles tinham trazido, que tipo de objetos existia. Sei lá. Começamos por aí, o projeto começa aí. A história das pessoas nasce daí. Tem um objeto, quem são as pessoas que têm esse objeto, qual é a história dessas pessoas, de onde vem esse objeto, enfim, você tem que partir pra história das pessoas. Então foi se desenhando um projeto assim, eram os objetos, depois a história das pessoas. Foi feita uma equipe, eu fiz uma equipe. Na verdade nós trabalhamos no total com 16 pessoas durante quatro anos para fazer o Heranças. Mas antes de poder começar eu precisava de dinheiro, uma base de dinheiro qualquer. Aí foi essa luta de conseguir apoio, era bastante dinheiro, eu não tinha prática de sair pedindo e acho que as pessoas também não tinham prática desse tipo de coisa. Então esse cônsul alemão disse que na verdade o governo alemão ia dar um dinheiro para isso. Isso já me trouxe meu primeiro problema. Quando eu cheguei lá na ARI, na associação onde eu era diretora e era todo mundo cheio de... Porque lá tem a origem de judeu alemão. Quer dizer, judeu alemão que vai receber dinheiro da Alemanha para fazer o projeto. Teve uma assembleia, uma briga dos diabos. Eu disse: “Gente, se vocês me derem esse dinheiro, eu não aceito o dinheiro. Eu digo a ele obrigada e que eu não aceito. Resolvo”. É claro que eu fiz com dinheiro da Alemanha, porque ninguém me deu aquilo. Era bastante dinheiro na época, não lembro mais quanto, mas era bastante. Era assim como se fosse, sei lá, nem tanto, mas um 150 mil dólares. Não era dólar, era dinheiro alemão, 200 mil, alguma coisa assim. Mas ele foi elegantíssimo, eu achei ele o máximo porque ele me deu esse dinheiro, ele nunca interferiu no projeto, nunca nem foi lá ver o que eu tava fazendo. Eu podia ter feito a história do holocausto em cima dele, mas eu não tava interessada, mas ele também nunca me perguntou, eu achei que foi bacana. Além disso, ele me convidou e ao rabino que era o ______ e a mulher dele que era também minha amiga, pra fazer uma visita a Alemanha e visitar as principais cidades onde tinham grandes comunidades judaicas. Eu não sei, as pessoas não conhecem bem, eu não sei se conhecem, mas na Alemanha os judeus realmente tinham comunidades muito fortes, eles tinham posições muito importantes na universidade, na medicina e tudo. Talvez isso tenha sido uma das causas mesmo do holocausto. Tinham uns judeus também muito ricos, judeus com grandes lojas e tal. Enfim, era uma posição muito grande. E muitas comunidades. Então a gente fez um levantamento de onde tinha comunidade. Eu fui pra Alemanha com esse rabino e a mulher dele, nós três fomos para uma visita bacana. Quando a gente desceu do... Até esqueci. Desceu no aeroporto, tinha duas Mercedes Benz pretas esperando por nós, cada uma com um tradutor. A gente disse: “Nós somos três. Nós vamos numa. Obrigada”. Ficamos com uma, claro, e o tempo todo a gente tava sendo levado e visitamos muitas cidades. Visitamos Berlim, Frankfurt, Mainz, Munique, várias cidades. A gente ia visitar as sinagogas quando elas ainda existiam, porque uma parte já tinha sido destruída, mas ia visitar antigas sinagogas, antigos centros. Enfim. Tive algumas experiências muito fortes. Eu não gosto de ir à Alemanha. Fui porque... Não era nunca uma sensação agradável, nem pra mim, nem pra eles. Ela tinha perdido avós, ela tinha perdido um monte de gente, os avós dela eram alemães e tinham morrido no holocausto. A gente teve algumas experiências de defrontar mesmo com a história, com skinheads, a gente teve algumas coisas. Mas foi uma superviagem, hotéis bons, todo mundo sendo razoavelmente gentil com a gente. Aí quando eu voltei, formei essa equipe e a equipe era assim: tinha a parte de história que a minha filha Karen tinha acabado de se formar em História e ela queria trabalhar na parte de memória. Então ela ia ficar com a parte de memória e a gente fez uma equipezinha, ela fez, eu fiz, de pessoas que iam trabalhar com a questão da memória da história oral. Era uma coisa que ninguém fazia nem conhecia e metiam o pau na gente, porque diziam que história oral não é história porque história é feita através de documentos, história oral não existe. Tive muita briga com historiadores também de tudo. Mas enfim, ela seria a pessoa responsável e tinha uma museóloga que estava no Brasil, estava até lá na área, mas era uma moça jovem e que era argentina, mas morava em Israel e veio fazer, o marido dela veio fazer dois anos aqui de um trabalho. Então ela veio junto e eu chamei ela pra trabalhar com os objetos. E aí nós começamos. Uma pessoa que acreditava no projeto nos cedeu uma sala em Copacabana pra gente poder se situar lá. E fomos trabalhando. Começamos a fazer as entrevistas orais. A Paula Ribeiro, acho que parece que você também. Enfim, algumas pessoas iam entrevistar. No final do projeto nós tínhamos entrevistado judeus de 22 países diferentes que vivem no Rio de Janeiro. Coisa que eu nem sabia. Encontramos cerca de 700 objetos diferentes na casa das pessoas, em algumas sinagogas e tal. A museóloga ficou com a parte de estudo dos objetos, por quê? Ao estudar um objeto judaico ele tem que ter uma forma básica. Um candelabro tem que ter sete ou nove, dependendo do uso, braços. Mas ele tem nele muito de história, porque se ele é feito em um país, as grandes influências estilísticas, artísticas, de material, uma série de coisas você pode ler através daquilo. E isso em todos os objetos. Então a gente descobriu objetos muito bonitos, muito interessantes. Os objetos que vieram dos judeus de Marrocos, por exemplo, são completamente diferentes. A gente encontrou objetos de um enxoval de uma noiva rica da Turquia. Então o lençol era bordado a ouro. Tinha outra que tinha uns tamancos com pérolas e não sei o que, que era de Marrocos. Sabe, tinham coisas que eu nunca tinha visto também. Cada um tinha lá os seus objetos. Então os objetos foram a base da exposição, isso tudo culminou numa exposição no Museu Histórico Nacional, esse aqui, que era a primeira vez que os judeus se mostravam.
P/2 – Conta a história da mala que ela é interessante.
R – A história da mala é interessante, eu vou contar. A gente tinha pedido pra fazer lá e eles toparam. A história da mala, essa mala, entre as coisas que a gente encontrou... Aliás, essa moça que era a mulher do rabino disse: “Susane, eu tenho uma mala que um tio que morreu, viveu na Alemanha e deixou quando morreu, mas eu nunca tive coragem de abrir. Agora se você quiser a gente abre junto”. Então abrimos a mala. Na mala tinha o seguinte: na mala tinha a história do judeu alemão na verdade, porque tinha o currículo dele, a história de vida da família dele. Ele era a terceira geração de médicos da família dele e médico não é médico simples, não. Um era doutor não sei das quantas, outro era da universidade. Médicos importantes. Ele era da terceira geração. Então tinha tudo aquilo escrito, tinha o diploma, tinha tudo lá. Tinha uma foto dele com a cruz de ferro que era dada aos heróis da Primeira Guerra, aos veteranos da Primeira Guerra. Ele tinha a cruz lá dentro e a foto dele da cruz. Depois tinha um talid que é aquele... Muito bonito. Todo bordado também de prata e ouro, grande. Uma quipá e uma bolsinha de couro aonde isso viria dentro. Muito depois que eu fui aprender, nunca tinha visto uma bolsinha daquele tipo, em geral é de veludo bordada e aquela era bolsinha de couro. E tinha muitas fotos dele, documentos de vida, tudo dele. Era isso que tinha. E algumas coisas me impressionaram muito. Primeiro a história era bastante impressionante; segundo quando ele foge da Alemanha que ele tira uma foto, passaporte, sei lá, em que ele já tava meio careca. Ele tira a foto com a cruz no peito. Fiquei pensando: “Esse cara devia ter jogado essa cruz pela janela”. Não, mas ele tira a última foto com a cruz pendurada aqui. Segundo, eu perguntei, quando eu fui pesquisar e tal, porque a tal da bolsinha. Até eu não sabia muito bem se era daquilo porque as coisas estavam fora, a talid e a quipá estavam fora. Aí alguém me explicou. Os alemães, os judeus alemães usavam essas bolsinhas, que pareciam uma bolsa qualquer, pra quando andassem na rua não parecessem tão diferentes. Era uma bolsa de couro, podia ter livro, podia ter não sei o que. É assim que ele ia pra sinagoga, ele colocava as coisas lá dentro. Então também já mostrava a cabeça dele. Isso tudo... Ele morreu. Fugiu. Acabou morrendo no Chile, ele veio pra cá, depois foi pro Chile, sei lá, morreu. Aí a gente foi tirar umas fotos pro livro e tiramos uma foto dessa mala. Um arranjo na hora, tirou foto de muita coisa aí eu coloquei a outra ali, coloquei as fotos dele. Enfim, a foto ficou tão, que todo mundo que viu... Eu inclusive disse assim: “Gente, isso é a capa do livro”. Porque era tudo ali, você não precisava falar nada. Então foi a capa do livro. Aí fizemos a exposição. A exposição foi aqui, era enorme a exposição. Eram 220 objetos, a gente fez uma seleção, todos eles estudados. Tinha assim um andar em cima, um andar grande com vitrines que a gente construiu, mandou construir e tal com os objetos explicado. Ficou bonita. Embaixo também foi muito legal porque embaixo tinha uma sala que hoje em dia tem um bar. Se você for ao Museu Histórico ali onde tem aquela entrada na esquerda. Mas ela não era usada. O pessoal que foi me mostrar disse: “Essa sala a gente não usa ainda porque a gente não teve dinheiro pra recuperar, ela ainda está com a parede toda descascada”. Tinha no fundo assim um buraco e tinha ainda coisas que tinham sido derrubadas. Tinha um trilho que atravessava a sala porque aquilo era Casa do Trem. Eu disse: “Essa sala eu quero que ninguém mexa, porque eu quero essa sala assim como ela é”. Essa sala foi a sala de baixo onde a gente colocou os documentos, as fotos da vida dos judeus todos e no meio daquele buraco preto, atrás tinha, sei lá, escombros, umas coisas. Aí a gente tinha um foco de luz que atravessava, criado ali mesmo, atravessava um negocinho de lata assim que tinha a forma da Estrela de Davi. Então jogava uma Estrela de Davi em luz lá e mais nada. Não tinha nada falado. Ali era um chororô desgraçado. Todo mundo que entrava ali chorava, porque tinha foto de família, tinha cartas, tinha não sei o quê e aquele final ali, aquela coisa era emocionante mesmo. Hoje eu falo assim, mas na época era muito emocionante mesmo, porque não teve palavra, só tinha aquela coisa assim. Depois você subia e em cima tinham os objetos. Então foi bonita a exposição. Aí o dinheiro não deu pra fazer o livro, mas aí já estava com as coisas mais ou menos prontas e eu fiquei catando dinheiro pra fazer o livro. Numa véspera de carnaval a Heloísa Buarque de Hollanda, que tinha ido à exposição, que tinha me convidado pra ir pra UFRJ, que gostava do trabalho, ela me chamou alguns dias antes do carnaval e disse: “Susane, eu consigo um dinheiro no Museu da Imagem e do Som se você entregar o material do livro depois do carnaval”. A gente tinha um material, mas não tinha a coisa pronta. “Segura o dinheiro que eu vou encon...”. A Karen sentou na máquina lá, enfurnou lá no carnaval pra fazer a edição daqueles depoimentos todos. Eram 90 depoimentos, a gente fez uma seleção, biografia, você nunca viu. Eu vou mostrar esse livro pra você depois. Ela ficou com isso, eu fiquei trabalhando... Enfim, foi uma loucura. A gente trabalhou um carnaval inteiro, todo mundo, entregamos e o livro saiu. Assim que saiu o livro.
P/1 – Isso aí o quê? Não chegou a um ano, né?
R – Foi mais de um ano. Quase dois anos depois. Foi bem depois, porque eu não tinha conseguido o dinheiro. Os objetos voltaram todos pros seus donos, eu ia devolver mesmo. Tiveram algumas coisas interessantes em relação aos objetos, mas não é o caso aqui, umas muitas coisas que acontecem. E foi muito marcante. Foi marcante porque foi marcante pras pessoas que participaram, foi marcante pra nós que trabalhamos, pra todo mundo. Todo mundo, não sei, teve caminhos ali. A própria Karen foi a primeira vez que ela trabalhou com isso e outras pessoas. Você vai fazendo uma coisa nova, você vai descobrindo caminhos. Foi marcante pra essa menina que depois voltou para Israel e continuou trabalhando em coisas semelhantes.
P/1 – E as famílias que se envolveram...
R – Aconteceram muitas coisas com essas famílias e, uma das coisas que eu acho que foi muito interessante de saber, de perceber da natureza humana mesmo, é que pessoas cujas casas a gente entrava e descobria um objeto interessante assim, em cima de uma estante. Às vezes eles: “Não sei onde está. Vou procurar na gaveta” um documento, não sei o quê. Depois que saiu no livro, saiu na exposição aquilo começou a ocupar um lugar na casa ou _________. Aí eu fiquei pensando... Enfim, a natureza humana é essa mesma.
P/1 – Mas se envolveram também.
R – Envolveram-se. Envolveram-se na história de suas famílias, gente que nem conhecia suas histórias, gente que tinha um objeto que sabia que o avô que trouxe, ou que o pai que trouxe, mas não sabia o porquê trouxe, não sabia da onde era, sabe? Foi legal. E foi a primeira vez que os judeus se expuseram, porque o judeu levou muito tempo, né? Quando ele vem, ele vem com medo e havia aquela questão do low profile, todo mundo dizia assim: “Não precisa mostrar. Não precisa falar”. Depois disso saiu um monte de coisa, de livro, aí já mudou muito. Mas foi bacana e foi um projeto que mudou também o meu caminho. Totalmente. Porque eu gostei desse tipo de coisa, gostei muito, foi muito importante. Fui pra UFRJ, que a Heloisa me... Aí nessa altura eu já tinha saído de todo da PUC, já tinha nanana. Ela me convidou pro ____ que era um centro de estudos interdisciplinares e eu fui lá desenvolver pesquisa. Eu fiz algumas pesquisas lá, uma sobre o ______ aqui, que também foi uma pesquisa muito bacana, até hoje tem gente que me procura pra ver, pra saber. Também levei uns dois anos com uma equipe do colégio, da universidade, pesquisando também a história das pessoas, como nasceu o _____, como era. Também foi muito divertido, porque o _____ é outra história. Você tinha os judeus, você tem os árabes, você tem os turcos, você tem aquilo tudo. A gente ia pro _______ três vezes, quatro vezes por semana andar naquelas ruas. Foi bacana. Então fiz esse e fiz mais alguns projetos lá, algumas pesquisas, mas essa acho que foi também a mais marcante. Tiveram mais algumas. Depois... Por que eu saí da UFRJ? Sabe que eu não me lembro porque eu saí da UFRJ.
P/1 – Mas aí você ficou desse lado entre pesquisa e _______
R – É. Aí mudou. Mudou muito o meu interesse e o meu know-how também, porque eu gosto, gostava muito de fazer exposição. Gostava de transformar a pesquisa, não só de fazer pesquisa, mas transformar em alguma coisa, ou uma exposição, livro, fiz algumas exposições. Então mudou muito meu rumo e meu interesse também. Aí vem a história da Brazil Foundation. Eu fiz Anglo-Americano parte de científico com a Leona. A Leona chegou como imigrante no Rio de Janeiro e entrou na minha sala de aula.
P/1 – Qual é a origem da Leona?
R – Ela vai te contar a história. Mas a origem da Leona é interessante também, porque ela veio da China, de pais russos que moravam na China, judeus também.
P/1 - ____ China, né?
R – É. Mas eles já moravam na China há um tempo. Eles vieram, com a entrada do comunismo foi que eles vieram pra cá. Então a gente tinha ficado muito amigas quando a gente fez científico juntos, estudávamos juntas, aquela história. Depois ela casou com um americano, foi pros Estados Unidos. A gente passou alguns anos sem se ver. Não me lembro bem, algum momento a gente retoma, ela vem pro Brasil e me procura, eu fui a Nova Iorque, procurei, a gente retomou. Quando ela ia se aposentar na ONU, que ela trabalhava na ONU, ela trabalhou 25 anos na ONU, ela tava muito agoniada. Um ano antes ela já sabia, porque lá é mandatório, você bate 60 anos te cortam a cabeça no dia do teu aniversário. Você vai lá no dia, ganha um presente, nunca mais você volta.
P/1 – Coisa muito estranha.
R – É assim. É muito estranha, mas é assim. E ela tava muito agoniada porque ela tinha sempre trabalhado, ela queria fazer alguma coisa. Então ela pensou que ela queria fazer alguma coisa que ligasse ela ao Brasil, porque ela tinha muito reconhecimento pelo Brasil. Toda história dela de escola, de universidade, de família imigrante era daqui, então ela... A gente conversava. Uma vez eu fui aos Estados Unidos porque eu tinha conseguido um dinheiro para um projeto que não era o Heranças, era o Teatro Ídiche, que foi outra pesquisa que eu fiz.
P/1 – Qual?
R – O Teatro Ídiche, que também é uma coisa ligada. Eu tinha conseguido lá que iam me dar algum dinheiro. Eu fui lá e não pude receber o dinheiro porque eles não podiam me dar diretamente, eles precisavam de uma instituição americana que recebesse esse dinheiro e me repassasse. Eu tava na casa dela, ela acompanhou a agonia toda e viu que eu não consegui mesmo o dinheiro. Então lá ela trabalhava com ONGs no mundo inteiro, então acho que as coisas foram se juntando e um dia a Leona me ligou, por telefone mesmo, e disse: “Susane, eu to pensando aqui, tive uma ideia de fazer uma fundação aqui, que captasse o dinheiro nos Estados Unidos, para poder apoiar projetos sociais no Brasil. Tem uma lei de imposto de renda muito favorável. Você topa ficar com o Brasil e eu fico aqui?”. Eu, de social, minha filha, eu não entendia nada. Nunca tinha trabalhado com social. Achava bacana, mas... Bom, o projeto eu sei fazer, dificuldade eu também já to careca, eu sei também enfrentar. Eu disse: “Ah, eu topo sim. Vamos fazer”. Pronto. Nasce a Brazil Foundation lá na casa dela e aqui na minha casa.
P/1 – Você topo meio como aceitando um desafio, era uma coisa diferente? O que também fez aceitar?
R – Achei a ideia muito interessante. Eu acho que eu tava cansada também, porque você trabalhar na área cultural no Brasil não é fácil. Não é hoje, mas era muito mais difícil ainda dez anos atrás. Eu achei na verdade que eu ia trabalhar um pouco, que eu ia trabalhar assim, dois dias por semana. Ia ser mais uma coisa, eu ia fazer uma coisa, ia fazer outra coisa, não tinha muito problema, não. Achava bacana a ideia e tal. Eu gosto de coisas novas. Até hoje eu gosto de coisas novas. Se surgir uma ideia assim meio diferente eu gosto. Também se eu tiver numa estrada e aqui tem um caminho conhecido, aqui tem um caminho desconhecido, se eu puder escolher eu vou pro desconhecido. É uma coisa minha. Eu gosto de trilhar caminhos desconhecidos. Então vamos fazer. Nasceu lá, nasceu na minha casa. A Kátia já trabalhava comigo nessa coisa de pesquisa de projeto cultural, de trabalho cultural. Então ela trabalhava como secretária minha na minha casa. Eu combinei com a Kátia o seguinte: “Olha, Kátia, tem essa história começando, você fica dois dias pra essa Brazil Foundation e fica três dias pros meus projetos. Aí você ganha dos dois lados, você tem o seu dia inteiro.” “Tá bom”. Então a gente trabalhou assim um ano. Esse primeiro ano meu foi voluntário, eu não ganhava.
P/1 – E você continuou a tocar os outros projetos.
R – Eu continuei a tocar lá o que eu tava fazendo, que eu nem me lembro direito o que era, era outro projeto. Eu tinha a (Tríade) que até hoje dá recibos aqui pro pessoal, mas era uma empresa. E a gente começou lá em casa durante um ano, foi na verdade 2001. Quando chegou meados de 2001, eu me lembro que até foi o marido da Leona que disse: “Você tem que começar a dar pro projeto.” “Primeiro que eu não tenho dinheiro; segundo que...” “Tem que dar”. Então resolvemos abrir o primeiro edital, nós tínhamos 30 mil dólares. Em 2002 a gente apoiou com os 30 mil dólares, a ideia eram 10 mil dólares por projeto. Então recebemos 73 projetos, propostas e a gente ia apoiar três projetos. Mas tinham duas coisas interessantes: primeiro que o dólar tava muito alto, aquilo rendeu bem; segundo que havia uns projetos que podiam ganhar um pouco menos, sei lá. Eu sei que nasceu...
P/1 – Prêmio Incentivo.
R – Prêmio Incentivo. Nasceu ali no primeiro coiso. Era um prêmio menor, mas tinha esse projetinho pequeno no Rio que a gente achava interessante. Então foi aquela “tira daqui, tira dali” ele ia ganhar também. Então ficaram três projetos mais um Prêmio Incentivo nessa primeira seleção.
P/1 – Susane, eu perguntei pra Kátia, só pra gente retomar um pouquinho, esse primeiro ano vocês ficaram fazendo o quê? Constituindo a Brazil Foundation?
R – Constituindo.
P/1 – Papelada...
R – Papelada. Eu acho que tentando entender um pouco o que era pra ser feito.
P/1 – A Kátia contou também de um jantar que você reuniu pessoas. Quem que estava nesse jantar? Conta só um pouquinho.
R – Tinha jantar nada. Teve uma reunião na minha casa.
P/ 1- Uma reunião. Perdão.
R – É. Uma reunião. É bem a cabeça da Leona. A Leona nisso é imbatível, ela disse: “Susane, temos que fazer uma reunião, chamar teus amigos, meus amigos, todo mundo que a gente conhece pra começar a fazer um movimento”. Ela nem tinha casa aqui, eu tinha casa, eu digo: “Então vamos fazer lá em casa”. Mas a minha casa não dava tanta gente. Só sei que tinham umas 50 pessoas, até hoje não sei como, sentadas lá.
P/1 – Você se lembra de quem tava lá nessa reunião?
R – Não. Lembro de alguns, mas muito poucos.
P/1 – De alguns assim, quem que você se lembra? Vocês foram apresentar a ideia? Como é que foi?
R – Apresentar a ideia. Literalmente. O que seria, como seria. Tinha alguns amigos meus pessoais, dela também, e amigos de amigos. Não lembro, não. Não me lembro especialmente de alguém.
P/1 – E eram meio pessoas do setor? Eram pessoas que seriam...
R – Não. Pessoas amigas nossas mesmo. Aquele tipo de meus amigos, amigo do amigo, minha irmã, minha não sei quem, dela também. Talvez tivesse, tinha talvez algumas pessoas do setor, tinha a mãe do _______, eu acho que ela conhecia. Não sei se a Eliana e o Armando já estavam, talvez. Não me lembro. Se eu sentar com ela talvez ela se lembre melhor. Mas eu não me lembro. Tinha a Ana Regina, uma amiga minha. Essa eu me lembro, a Ana Regina e a Heloísa que era professoras da universidade, eu chamei. Aí foi uma apresentação e tal. Não aconteceu nada especialmente. Foi um exercício também de apresentar.
P/1 – Aí quando vocês fizeram então o primeiro edital, vocês lançaram ______ onde? Como é que vocês fizeram essa ligação?
R – Lançamos na internet
P/1 – Já tinha um site, então.
R – Miserável. Alguns sites pequenos. Eu tinha que ter alguém pra fazer a seleção, porque eu também não sabia fazer essa seleção. Sei lá, era uma responsabilidade. Então contratei uma equipe de quatro que tinham me informado, eram quatro mulheres que faziam esse tipo de coisa, e tive uma assessoria que foi importante naquela época, da Mônica _____, ela era diretora da ______ na época. Eu não me lembro como que a Mônica chegou a mim, não tenho a menor lembrança, posso um dia até perguntar a ela, mas a gente se conheceu, ela gostou da ideia, gostou da Brazil Foundation, gostou de mim, a gente se deu bem. Então ela me ajudou nisso de dizer: “Olha, então contrata não sei. Tem que fazer...”. Sabe? Ela me ajudava no caminho das pedras. Aí vieram aqueles 73 projetos, as quatro moças fizeram uma análise.
P/1 – Quatro moças?
R – Eram quatro moças que tinham um grupo que chamava ______.
P/1 - ______.
R – É. Que eram quatro analistas, eram muito ligadas à educação na verdade. Desde o primeiro eu disse: “Mas a gente tem que ver como é que é. Então fui eu que fiz as visitas”. Foi super interessante, mas era a primeira vez que eu fazia as visitas.
P/1 – Susane, vamos por partes, senão também...
R – Embola.
P/1 – Não. Até pra quem não conhece a história entender. Explica o que são essas visitas, da onde saiu a ideia de fazer a visita e que é antes da seleção...
R – É. Você recebe, é um processo que foi digamos o começo do processo que até hoje a gente desenvolveu, mas que segue mais ou menos o mesmo caminho.
P/1 – O processo de seleção?
R – É. O processo de seleção que foi uma leitura, uma análise daquela proposta e uma seleção de alguns que poderiam ser os finalistas. Ah, agora tô me lembrando. A gente fez um critério de A, B, C e D. D eram aqueles que morriam ali mesmo. C eram mais ou menos, B era de bom e A seriam ótimos. Então nós começamos a tentar trabalhar com os As. Não deu conta. Aí buscamos o B. também não deu conta. Eu me lembro que um dos projetos mais sérios e melhores que a gente teve, que foi o ICA, que tá agora nesse último, foi selecionado para trabalhar na memória, saiu do C. Ele já tava no C, a gente precisava de um de educação. Não sei. Ele veio do C. Então tinha assim, tinha um projeto do sul da Bahia que trabalhava com a orientação sexual de jovens, porque era um lugar de gravidez precoce que na verdade era apoiado pela __________. Era uma reunião de 11 municípios da Bahia que se juntaram para desenvolver esse projeto. Tinha o ICA que era em Mogi Mirim, que é um instituto de apoio a crianças, que faz o contraturno da escola e trabalhava com a questão de circo, então ensinava os meninos a serem palhacinhos e tal. Tinha o Geledés que foi uma indicação mais ou menos da Mônica, que era do movimento negro das mulheres em São Paulo. É um movimento muito conhecido, até hoje é muito conhecido. E tinha esse menino daqui de Nova Iguaçu que tinha 19 anos, que apresentou um projetinho muito simples que dizia o seguinte, que lá em Três Corações, em Nova Iguaçu era o bairro dele, não tinha coleta de lixo. Então ele queria formar duas ou três pessoas que não tinham emprego lá, pagar pra que eles fossem coletores de lixo. Depois ele queria desenvolver isso, que a comunidade passasse a sustentar esses coletores de lixo. O rapaz era um rapaz muito esperto, muito bem falante: “Você chegou... Alguém?” “Não. Ninguém influenciou o Edson”. Mas ele era muito bem falante, estava estudando acho que Ciências Sociais e conquistou muito a gente. Então, na verdade, nesse primeiro, hoje olhando pra trás, isso já determinou também um caminho. Porque a Brazil Foundation sempre tem em cada seleção alguns, um ou dois ou três projetos de risco, de gente que tá começando, de ter uma ideia não sei como que a gente dá um Prêmio Incentivo ou a gente às vezes dá mais, mas em geral é o Prêmio Incentivo, pela ideia e pela necessidade daquilo que ele tá mostrando. Porque fazia todo sentido aquilo que ele dizia. Então lá fui eu, visitei o sul da Bahia, que é lindíssimo, maravilhoso, visitei o Geledés de São Paulo, visitei o ICA em Mogi Mirim que é um centro de referência nessa questão de criança e tal, mas é um modelo bem filantrópico mesmo, mas bem feito. E fui a Nova Iguaçu para... Então pronto.
P/1 – Mas a ideia da visita vocês conceberam que era extremamente necessário pra _______ seleção.
R – Olha, eu acho que era uma coisa quase que óbvia, porque você lê uma coisa e fica cheia de perguntas. Você tem a sensação de você estar ouvindo uma história de alguém que está querendo um dinheiro. E daí, sabe? Ficou um buraco entre aquilo que você ouviu e leu e aquilo que... Eu não me lembro muito bem como é que foi a decisão. Eu preciso entender como é que foi essa decisão de fazer a visita. O porquê, como, deve ter sido uma decisão, mas eu não lembro o porquê. Eu sei que foi uma coisa assim, tinha que ter visita. Então visitamos e depois tinha que ter uma apresentação. Bom, então vamos fazer uma apresentação pública. A gente nunca fez nada, temos que mostrar praqueles 50 que estavam na minha casa, e mais alguns, quem a gente selecionou. Então pedi uma sala na Firjan, fizemos a primeira apresentação na Firjan. Tinha umas cem pessoas e veio uma representante do Geledés, irmã da Sueli Carneiro, veio a gestora lá do ICA, veio o Edson e veio, a coisa mais engraçada, veio um prefeito representando aquele outro projeto. Prefeito baiano do sul da Bahia, bem baiano, bem todo falador, com terno e tal. Putz, muito engraçado. E pronto. A gente fez lá uma apresentação, cada um falou. Quem conquistou o público e a gente foi o Edson, foi o menino lá de Nova Iguaçu porque ele era realmente... Ele era um menino, falava bem pra burro, todo mundo ficou encantado com ele. E começou. Ali começou, a gente acompanhou. O monitoramento também não tinha estrutura nenhuma, mas a gente acompanhou pra ver o que tava acontecendo, acho que voltamos lá. Eu nem me lembro como era... O Pedro... Não. O Pedro nem tava aqui também. Eu não lembro como é que a gente acompanhou a questão financeira. Juro. Mas foi tudo acompanhado, tudo deu certo, tudo terminou. Todos eles terminaram.
P/1 – E vocês já estavam onde? Já tinham saído da sua casa?
R – Já tínhamos saído da minha casa. Tem uma moça chamada Heloísa Coelho que é a diretora do Rio Voluntário, e ela tinha... Como é que a gente conheceu a Heloísa Coelho? Acho que ela foi à minha casa. Eu não sei. Só sei que um dia tava eu, a Leona e a Heloísa andando no Leblon e conversando. Ela disse: “Eu tenho três salinhas que a Firjan me cede aqui na Santa Luzia. Eu quase não uso. Se vocês quiserem eu cedo uma pra vocês”. Claro que a gente quer. Então me mudei para cá, pra salinha da Santa Luzia, era uma salinha dessa tamanho mais ou menos. Eu mobilhei essa salinha com o primeiro dinheiro que a gente teve de uma instituição internacional que é a ______. A ______ deu 20 mil dólares de seed money pra gente, que é money de base, dinheiro de base e alguns dos móveis, os móveis todos da Nádia, a minha cadeira, acho que algumas cadeiras dessas pretas. Tem algumas coisas que ainda são desse dinheiro. Eu fui atrás de uma loja bacana, comprei todos os móveis, mobilhei lá. Pronto. Estávamos nós lá. Eu, Kátia, nessa época entrou o menino Davi que fez essas duas fotos e que foi nosso primeiro voluntário. E só.
P/1 – Susane, esse dinheiro da _____ foi dado aqui dentro?
R – Ele foi dado, mas ele foi dado via Estados Unidos.
P/1 – Via dos Estados Unidos.
R – É. Uma coisa dos Estados Unidos, a _____ tava dando, mas pra cá, pra que fosse aplicado aqui. Aí começamos a nos organizar e tínhamos que sair pro segundo edital. Eu pensei: “Bom, segundo edital, o primeiro veio 73, o segundo vai vir 200, 250. Tá bom”. Coloca-se o segundo edital de novo na internet. Recebemos 895 projetos. Nunca me esqueci daquela cena. Porque a sala desse tamanho, o carteiro chegava com aqueles containers com aquele monte de papel e derramava ali. Primeiro derramava na mesa, aí ocupou a mesa. Essa mesa redondinha aí, acho que ela já existia, aquela que tá na Kátia. Ela já existia na sala, a gente ficou com ela. Não era nossa. A gente não comprou, mas tava lá, a gente ficou com ela. Depois não dava mais, derramava no chão. Enfim, éramos ou nós ou os projetos. Tava uma coisa catastrófica. E um susto. Eu pensei várias coisas: “Eu tenho que arranjar uma equipe. Eu tenho que arranjar uma sala maior. Eu tenho que fazer uma porção de coisas porque não vai dar certo”.
P/1 – Ao que você atribui essa multiplicação por sete vezes mais, ______ vezes mais?
R – Eu atribuo a necessidade brasileira.
P/1 – Ok. Mas essa mudança tão dramática de um ano pra outro. Ter dobrado. Vocês ficaram mais conhecidos?
R – Dobrado nada. Deduplicado. Foi dez vezes, mais do que dez vezes. Eu atribuo literalmente a questão do Brasil. Primeiro porque projetos de entidades pequenas não tinham, como não tem até hoje, condição de acessar financiadores maiores porque eles não sabiam fazer os formulários, não sabiam falar em inglês, não sabiam preencher uma planilha. Não sabiam nada. Então essa brecha que a gente descobriu, literalmente, porque eu também não sabia que isso não existia, mas essa brecha que a gente descobriu na rede social brasileira de que não havia uma financiadora que pudesse apoiar projetos pequenos, e de uma maneira mais amigável, mais fácil, explodiu. Sei lá. Com esse nome americano, dando em dólar. Nós dávamos 10 mil dólares. Não dávamos em dólares, dávamos em real, mas o edital dizia dez mil dólares. Dólar era legal, tinha 3.3 depois três, depois 2,80, mas era um dinheiro que você respeitava. Então vinha um negócio com um nome americano, com uma doação que era baseada em dólar e que tinha uma abertura. Então eu sabia, isso eu sabia, eu falava: “A gente vai receber muito mais projeto do que a gente vai poder apoiar”. Mas eu nunca pensei que esse muito mais fosse tudo isso. Mas era uma área muito carente, pouca gente fazia edital. Não tinha nada. Como que chegou ao conhecimento? Não sei. Saiu na internet, provavelmente, eu não me lembro, não sei também direito, algumas outras instituições devem ter repetido, até hoje isso acontece. Eu sei que a gente recebeu 895 projetos do Brasil inteiro. Isso que era interessante.
P/1 – O primeiro também era do Brasil inteiro ou era mais ________
R - Era aberto pro Brasil. Sempre foi.
P/1 – O que vocês receberam no primeiro...
R – Era de bastantes lugares. Era de bastantes lugares, mas o segundo já foi mais amplo, vários outros lugares. Era muito interessante, uma coisa que foi se perdendo. Eu acho bacana também porque nesses primeiros anos, nesse, no outro, no seguinte, o nome dos projetos eram muito engraçados, eram muito interessantes. Eram nomezinhos assim, mais criativos, menos compromissados com o real. Um dizia assim “Mamãe cheguei” era uma coisa de meninas...
P/1 – Mais lúdicos.
R – Mais lúdicos. A gente guardava os envelopes porque vinham, em geral, escritos a mão cheio de erros, de lugar. O nome das cidades. Eu tenho essa pesquisa, talvez a Carlinha tenha. A gente fazia uma seleção de nomes de projetos e uma seleção de nomes de cidades, porque as cidades também tem nomes divertidos. Então a gente se divertia muito com aquilo.
P/1 – Diga uma que você se lembra bem diferente.
R – Ah, tem muitas. Até hoje tem, você olha aí ainda tem umas cidades. Sei lá, Grotão de não sei da onde, lugar da Mariazinha. Eu não sei. Nomes assim, você não imagina nem aonde é, não sabe nada. Então a gente selecionava, achava bacana. Em 2003, que foi esse segundo edital...
P/1 – A avalanche.
R – A avalanche. Eu disse: “Eu preciso arrumar uma analista de projeto”.
P/1 – Aí nisso vocês também já tinham abandonado os seus projetos, né? Quando veio a avalanche.
R – Não. Eu acho que eu ainda tinha alguma coisa naquela época. Ainda tava fazendo alguma coisa. Mas cada vez menos, porque de um lado muito difícil, do outro lado uma coisa que ia me puxando mais. Acho que nessa época eu tava desenvolvendo ainda o Teatro Ídiche com a Paula. Acho. Ou outra coisa. Não sei. Eu ainda tinha alguma coisa. E aí eu acho que eu precisava de uma analista. Um dia me surge lá uma menina moça, jovem, com uma roupinha... Eu falo isso porque realmente eu pensei: “Gente, eu tenho que falar com essa moça que assim não dá pra vir trabalhar”. Aparecia o sutiã, tava toda desconjuntada, sei lá. Mas era uma moça bem inteligente, bem simpática. A Kátia que tinha trazido, eu acho, ou avisado, não sei. Ela me disse o seguinte: “Eu sou assistente social, eu já trabalhei bastante” falou e tal “Mas eu to parada há dois anos porque eu tive uma filha, eu fiquei em casa esses dois anos, mas eu gostaria de recomeçar”. Eu disse: “Então vamos começar”. Essa menina era Sheila. A Sheila foi fundamental pra Brazil Foundation.
P/1 – Você pode falar o sobrenome dela?
R – Sheila Nogueira. Ela começou logo depois, ela já conhecia a Kátia e tal. Ela é uma pessoa: primeiro que ela tem muito conhecimento; segundo que ela é bastante criativa, brilhante, interessante. Então ela me ajudou muitíssimo, porque na verdade a gente configurou como é que a Brazil Foundation ia funcionar.
P/1 – Toda metodologia de trabalho.
R – Bastante metodologia de trabalho. Uma série de coisa, muita coisa. Então eu reconheço muito isso da Sheila, acho que ela foi, pra mim, fundamental. A gente tinha uma facilidade de diálogo muito grande. A gente começou a trabalhar ali em 2003.
P/1 – E por onde vocês começaram com essa análise de 800 projetos? Você, bem ou mal, uma analista também é muito pouco.
R – É muito pouco.
P/1 – Como é que você processa isso?
R – Eu pedi socorro de novo pra Mônica _____. Eu disse: “Mônica, arranja-me uns analistas”. Eu não tinha ficado muito feliz com as primeiras, sei lá o porquê tinha achado elas mais assim. “Mônica, eu preciso de analista. Indica uns que eu vou contratar só pra seleção”. Então ela me indicou pessoas que tinham trabalhado pra _____. Era a Cléa, que era uma americana que estava aqui há algum tempo. Luciano Norões, que trabalhava pela _____ há muito tempo. Então essa segunda seleção foi feita pela Cléa, Luciano, Sheila e eu juntos lá. Já foi uma seleção complicada, mas a gente tinha mais dinheiro e conseguimos apoiar 17 projetos desses 895. Já dentro do mesmo princípio, primeira leitura... Tinha assim, primeira leitura, essa primeira leitura eliminava todos aqueles que não atendiam aos requisitos básicos, ou que chegava fora de época, ou não tinha CNPJ, ou pedia coisas fora do comum. Sei lá. Aquela coisa bem... Então era uma espécie de triagem. Aí tinha uma segunda leitura, essa segunda leitura já tinha um encaminhamento de fazer um conceito de análise mesmo, a gente continuou com o A, B, C e D. Fomos caminhando com isso, depois a gente teve uma reunião pra discutir, cada analista já apresentou os seus. Já foi uma coisa mais ou menos encaminhada.
P/1 – E vocês discutiam os critérios também que vocês iam adotando?
R – É. Ia, né? Quer dizer...
P/1 – Afinando.
R – A Mônica ajudou também. A Mônica sabia melhor das coisas. A Sheila sabia, os outros dois já tinham feito isso bastante pra... Quem não sabia ali, na verdade, era eu mesma, mas eu ia entendendo. Uma coisa eu sabia, eu sabia ler um projeto. Um projeto é um projeto. Pode ser de cultura, pode ser não sei o quê.
P/1 - Tem que ter bom senso.
R – Tem o bom senso. Tem vida também. Então dava pra entender quando a coisa não podia andar. Então foram selecionados 17 projetos, todos eles foram visitados, todo mundo visitou.
P/1 – Todo mundo quem? Você...
R – Eu, Sheila, Cléa e Luciano.
P/1 – Vocês dividiram...
R – Dividimos e visitamos. Aí tiveram várias coisas interessantes. Por exemplo, eu me lembro que tinha um projeto que a gente achou que foi ótimo, depois do _____. Hoje eu recebi um e-mail deles que dizia o seguinte, eu não me lembro como é que era o nome do projeto, mas o projeto dizia o seguinte, que isso era em Pernambuco, no interior de Pernambuco, bem no interiorzão, uma área muito pobre, e que o que eles estavam fazendo... O projeto era que a gente ia dar um dinheiro, esse dinheiro ia servir pra comprar um bode e pra comprar ração pra ele. Esse bode ia cobrir as cabras locais que iam parir e cada dono de cabra ficava com os cabritinhos, mas um cabrito ele teria que dar pra alguém que não tivesse bode nem cabra nenhum. Eu achei o máximo aquele projeto: “Pô, que projeto interessante, legal”. Era um nome meio complicado, então virou o projeto do bode. Era o bode. O bode, bode, bode. “Luciano, você vai visitar o bode”. Aí o Luciano disse assim: “Eu não vou visitar porque tem um padre envolvido. É um padre, eu detesto padre”. Lembro dessa conversa. Eu digo: “Eu não quero nem saber. Você vai lá pro interior, Luciano, vai visitar o bode.” Então lá se foi o Luciano visitar o projeto do bode. Voltou...
P/1 – Encantado.
R – Encantado. Primeiro que ele disse: “Eu que já vi tanta coisa nunca vi tanta miséria. Eu cheguei lá tinha as criancinhas comendo farinha com água e era a única refeição do dia deles. E realmente bode e cabra é o único bicho que consegue viver naquele lugar porque não tem nada. Bode come sapato velho, quando não tem sapato como qualquer coisa. Então eu to comprado com o bode”. Então a gente apoiou o bode, eu considero que é um projeto superbacana, e virou o bode. Eu não sei o nome dele.
P/1 – Tem o leite da cabra.
R – Tem tudo. O bode fica velho eles comem velho, tem leite. É um projeto interessante. É um projeto que tem uma vida que continua porque realmente é um padre, uma entidade italiana com um padre italiano que vive ali, há anos já faz e continua fazendo. ______, eu não me lembro qual é o nome todo, mas era isso. Ele era o bode pra gente, qualquer coisa era o bode. Foi um projeto que andou bem, foi bacana.
P/1 – Os bodes se multiplicaram.
R – Multiplicaram-se. Era muito legal. Eu achei a ideia linda. Continuo achando.
P/1 – É bacana.
R – E era muito engraçado porque a proposta dizia assim: “Dois sacos de milho, um saco de sei lá o que dava de comer pros bichos”. Vinham todos os alimentozinhos dos animais que eles queriam comprar e o bode.
P/1 – Bem simples e objetivo, né?
R – Bem assim. É. Era isso e assim foi. Aí já foi o segundo com os 17. Começaram várias coisas a acontecerem, né? Pra 2004 de novo...
P/1 – Vocês se mudaram também ______
R – E teve mais um problema porque entrou outra gente lá, não tava bom.
P/1 – Espera aí. Entrou gente lá aonde?
R – Porque eram três salas. No começo ela não usava, então a gente tinha uma sala na Santa Luzia e tinha o banheiro.
P/1 – Lá na Santa Luzia.
R – Depois ela cedeu uma das salas pra não sei quem. Não dava. A gente não dava. Então eu disse: “Preciso de outra sala”. Aí fui pedir na Firjan. Eu disse: “Gente, eu preciso de uma sala maior”. Então ofereceram ao lado daquela, tinha um monte de salas enormes, mas precisavam de obra grande, estavam fechadas, destruídas, a gente não ia ter dinheiro. E o Ieds que tava aqui, que ocupava esse espaço todo, saiu. Aí eles disseram assim: “Vai lá ver se você quer”. O espaço tava bem maltratado. As janelas, por exemplo, da minha sala eram podres. Tinha um tapete pior do que esse que cobria tudo, precisava de uma pintura, mas eu achei bacana. Depois tinha um monte de sala, é bom assim separadinho. Eu topei. Eu me lembro que a Leona foi contra. Ela disse: “Susane, se tiver um dia uma pessoa que não possa subir a escada...”. Eu me lembrei muito disso porque eu tive um problema brabo aí com meu joelho agora, toda vez que eu subia aquela escada eu digo: “Miséria. Olha, lá vou eu pela escada”. Mas acho que foi ótimo. Fizemos uma reforma, arrancamos o tapete, troquei as janelas, pintamos e mudamos. A mudança foi superbacana porque trouxemos os móveis, muitos desses móveis são da Firjan. A gente foi ficando com os melhores e pedia os que não serviam, o pessoal que era a equipe na época pegou um sábado por conta deles e fizeram a mudança no braço, dos papéis, de tudo que tinha que trazer. Eles mesmos fizeram, quando eu cheguei segunda-feira já tava tudo pronto, eu nem sabia, nem tinha participado nessa coisa. Foi bem bacana.
P/1 – Todo mundo participou?
R – Toda a equipezinha participou. Equipe nessa época já tinha mais gente. Eu não me lembro... Não. Porque o Gláucio entrou aqui, o Gláucio e a Carlinha, quando a gente já tava aqui. Enfim, eu sou ruim de data. Mas já tinha mais uma voluntária, que é a Raquel Diniz, também já tinha entrado como voluntária.
P/1 – Pra ajudar na...
R – Ah, voluntária. Pra ajudar na leitura, na arrumação de papéis, nas coisas. A Raquel Diniz, eu acho que ela até inclusive já ajudou nessa segunda seleção. Aí a gente veio pra cá, a Sheila era casada com um professor de Ciências Sociais que me mandou, eu pedi estagiários, ele me mandou dois estagiários que eram um casalzinho de namorados, mas eu não sabia. Mas enfim, vieram dois estagiários. Um era o Gláucio e outra era a Carla Lima. Entraram aqui, não sei se você sabe essa história. Bom, entraram os dois, o Gláucio era um estagiário mudo, que entrava mudo e saia...
P/1 – Calado.
R – Não dizia nem bom dia nem até logo. Sentava no computador e ficava. A Carla ficou fazendo outra coisa, a Sheila aqui etc. Pronto. Vamos lá, já estávamos com uma equipe mais funcionante. Aí a gente começou a trabalhar realmente até mais, desenvolver mais metodologia, a acompanhar mais os projetos, a entender melhor, a entender o que é que acontecia no Brasil. Sabe, foi desenvolvendo aquilo tudo. Aí aconteceu um drama novelesco aqui dentro. Porque aqui de vez em quando acontece essas coisas, que primeiro a Sheila se separa do marido e, no ano seguinte, ou daí a dois anos, eu não me lembro, no ano seguinte, ela tá namorando esse menino mudo, calado, que era bem mais novo que ela, inclusive, mas que tinha esquecido de avisar pra namorada, que trabalhava aqui também, que ele já não tava mais com ela porque ele já tava com a outra. E quando tudo espocou, eu que tinha uma equipe de três, de quatro, pensei: “Eu vou ter que mandar três embora”. Porque virou um caos aqui dentro. Onde um estava a Carla não entrava, onde um passava o outro não dizia. Uma situação... Eu pensei: “Pô, mas eu não posso mandar todo mundo embora. Eu vou ficar sem ninguém”. Então foi complicadíssimo, mas a gente meio que...
P/1 – Mas isso alguém te contou, você começou a perceber? Como que a novela se desenrolou nessa...
R – Primeiro eu soube que a Sheila se separou. Tudo bem. Depois acho que alguém contou que ela tava namorando o Gláucio. Sei lá.
P/1 – Foram vistos.
R – A Kátia sabia. Eu acho que sabia. E depois começou o drama porque a Carla não falava, não entrava na minha sala, não saia pela mesma porta, isso tudo nessa sala. Olha, foi bem complicado. Bem complicadinho. Mas a coisa foi se desenrolando, desenrolou de alguma maneira e ficou todo mundo. Não tive que mandar ninguém embora. Até pensei em mandar, mas disse: “Bom, vamos ver como é que fica”. A coisa terminou que os dois casaram, realmente casaram, a Carla pediu pra sair. Saiu durante dois anos ou três anos. Depois voltou pra cá, mas ela pediu pra sair, o que foi bom também porque a situação tava bastante complicada. Tem que mudar.
[troca de fita]
P/1 – Susane, retomando, você estava falando aqui, então, da novela aí com a Sheila. E você, então, decidiu que não ia mandar ninguém embora…
R – Não, eu nem decidi, eu redecidi que as coisas… Eu ia ver se eu conseguia arrumar as coisas, porque ia ser muito difícil, eu teria que mandar praticamente a equipe, que era naquela época, tudo. E as coisas foram se acomodando, não foi muito simples não, mas foram se acomodando. Agora, vou te dizer… Vou dar uma interrompida nessa história, porque a gente deu uma interrompida geral. Eu fui beber água, fui ao banheiro etc. E fiquei pensando uma coisa que eu não te disse e que você também não me perguntou, e que eu acho que foi importante em tudo isso. Quer dizer, na minha decisão de Brazil Foundation, e porque… É fiquei pensando nisso. É o seguinte, eu fiquei pensando o que me fez mudar de panorama, de área, quer dizer, eu transitava numa área de artistas plásticos, um monte deles, coisas culturais, bastante área também judaica. Quer dizer, era… E mudo para uma área social e que me pegou muito rapidamente. E eu tentei… Deve ter, não sei. Saí daqui e fiquei pensando, que na verdade tem algumas coisas nisso que sempre foram muito presentes na minha vida, mas não eram claramente presentes. Quer dizer, eu nunca tinha optado pelo trabalho, mas eu me lembro de desde menina, e sempre foi assim, a questão da justiça. Justiça é uma coisa que me incomoda muito… Preocupa-me muito. A questão da igualdade, e a questão de oportunidade numa sociedade, né? Essa questão da igualdade, da oportunidade das pessoas… Na verdade, tudo isso se resume na palavra justiça mesmo, eu acho.
P/1 – Valores que acabam sendo a missão da Brazil Foundation, né?
R – Pois é, e eu tinha isso sempre, desde o colégio… Ainda que… Quando eu falei pra você que eu tinha sido líder no colégio… Aí eu fiquei pensando: “Por que eu era líder? Eu não falava nada disso há muito tempo. É que eu era sempre aquela que falava, reclamava, brigava pelas coisas. Muitas vezes apanhava, assim, não fisicamente, mas aquela história que você pensa que está todo mundo com você. Você vai lá lutar por um direito, aí quando eu levantava, falava, que eu olhava pra trás, ninguém tinha se levantado da carteira. E isso aconteceu muitas vezes na minha vida, porque as pessoas falam, mas na hora de enfrentar mesmo, é mais difícil. As pessoas têm muita dificuldade com isso. Então, eu fiquei pensando que no fundo… Mas não foi consciente não, não foi consciente. No fundo havia essa inquietação mesmo, esse… Essa coisa da justiça. E aí muitos anos depois, há algum tempo atrás, eu recebi duas coisas: recebi um quadrinho que fala do meu nome, Susane, um quadrinho francês, que diz que eu isso, aquilo, sei lá, umas características de perfil, e fala da questão da inquietação para a justiça. Tá lá na minha casa, tem tempo isso. Depois, eu vi isso pelo meu… Eu sou sagitário, e no meu mapa astral isso aparece muito. Eu nunca acreditei em nada disso de mapa astral, depois comecei a acreditar, porque tem muita coisa que aparece, fora isso. Então, na verdade acho que isso existe na minha… Na minha trajetória. E talvez isso é que me... É que fez com que minha… O meu caminho dentro da Brazil Foundation tivesse uma razão de ser, sabe? Para mim era muito claro aquela razão de ser, eu me envolvi…
P/1 – Tinha ___________, né?
R – É uma…
P/1 – Porque você poderia também ter passado, mas de uma maneira meio…
R – Pois é, mas eu to te contando isso, porque eu acho que eu nunca parei pra juntar os pedacinhos, e para pensar nisso. Eu não tenho… Toda essa luta também, quer dizer, entre assistencialismo, entre a pena etc. Não é muito o meu caminho, sabe? Eu nunca fui uma pessoa de levar sopa pra não sei quem. Mas a coisa da justiça é muito forte pra mim, muito importante. E eu acho que o Brazil Foundation me dá muita satisfação nessa área. Então quando eu vejo assim os retornos que a gente conseguiu aqui… Porque na verdade você me perguntou o que Heranças e Lembranças mudou na vida das pessoas. Mudou algumas coisas, mas eu acho que a Brazil Foundation mudou fundamentalmente muitas vidas. Não só de vidas aqui dentro, porque a Kátia é uma que mudou a vida dela, para melhor, porque ela também merece, mas… Sabe? Abriu um caminho pra ela. Mas quando a gente olha pros nossos projetos… Ontem, ou anteontem, não lembro, anteontem. Veio o pessoal aqui da Grota, que é um dos projetos assim do coração. E eu também tava olhando pra aqueles meninos, alguns deles… Disse: “Gente, como a vida deles foi mudada”. Não por mim, pelo ___, pelo… Lá do Márcio _____. Mas, também por nós, também por nós. Tem um deles que estava aqui, ele disse: “Não, eu to vivendo de música”. Ele é um menino negro, muito pobre, da favela da Grota. Eu disse: “E aí, você tá vivendo de música? Bem? E que bom!” Ele disse: “Eu to vivendo é muito bem! Comprei uma TV digital 45…”. Não sei o quê… Eu digo: “Pô, eu também tava querendo, mas eu não comprei não, porque…”. (risos) Não falei não, só pensei. Mas ele é um. Os dois meninos que estão lá não sei, lá em… Iwoa, é outro. O outro que tá na Alemanha é _____ há muitos deles, né?
P/1 – É um resultado concreto, né?
R – É um resultado de vida. Não é um resultado só de… De construção, de vida. É resultado de vida.
P/1 – Não, tangível, né?
R – Tangível.
P/1- Acho que tem uma coisa diferente de…
R – Então, é… Eu acho que isso… Isso foi muito… É muito importante, até hoje foi muito importante, porque quando a gente fala da Brazil Foundation… Eu tava te contando histórias e tem outras pra contar, mas parece tudo um pouco quase que uma brincadeira, entra um, sai outro, faz uma festa, não faz. Mas nada foi fácil. Aliás, o primeiro e o segundo ano foram fáceis. Foram fáceis, porque era uma coisa mínima. O dinheiro vinha, não tinha que me preocupar com dinheiro, era aquilo mesmo. Também não tinha muita gente para pagar, mas… Logo depois começou a ficar cada vez mais difícil, por várias razões, uma delas financeira, que cada ano que passava era mais difícil conseguir o dinheiro. Tem que pagar, mexia na vida das pessoas. Não foram dez anos tão simples como parece quando você olha assim, olhas os quadros, não eram tão simples não.
P/1 – As maiores dificuldades você diria que foram o que? Financeiras? Como é que você avalia?
R – As maiores dificuldades. (risos) Dificuldades…
P/1 – Tá, uma dificuldade assim que tenha…
R – Dificuldades grandes. Financeira, mas não só financeira não. Acho que a grande dificuldade, que foi surgindo aos poucos, foi a dificuldade de diferentes… De… Conflito, ou sei lá, de pensamento, de caminhos diferentes, entre Brazil Foundation Brasil e Brazil Foundation… Brazil Foundation Rio e Brazil Foundation Nova Iorque.
P/1 – É um ponto que eu queria explorar, né? Até as diferenças de trabalho, lá e aqui. Que a gente tá falando daqui, dessa realidade bem crua brasileira. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre essa diferenciação também pra ______ entender um pouco melhor, né?
R – É, a diferença é muito grande: primeiro porque o desenho da Brazil Foundation era esse, baseado numa realidade de momento, né? De contexto, de um dólar alto, de uma possibilidade de desconto em imposto de renda, da… Da Leona ter grande conhecimento, muita gente que ela conhecia na área lá. E uma comunidade brasileira nos Estados Unidos já profissionalmente estabelecida, que tinha condições de já fazer doações e de se interessar. E o brasileiro fora do Brasil… Não são todos, mas é uma regra, bastante generalizada, ele tem uma ligação afetiva com o Brasil. Então, a comunidade não é fechada, mas ela se conhece. E ela tem uma ligação com o Brasil. Também, porque tem família, porque volta ao Brasil pras férias. Enfim, tem uma coisa… Então, não é tão difícil falar do Brasil, pedir apoio do Brasil lá, porque é como… Mas não acontecia, realmente foi uma ideia muito brilhante da Leona de juntar essa comunidade e começar a ver se… Porque tem a cultura americana que todo mundo dá, mas o brasileiro tava lá, ganhava lá, mas o brasileiro não tem essa cultura. Ou então ele mandava pra igreja, ou ele mandava pra alguém que pedia, sabe? Era aquela coisa meio difusa, que, aliás, é um pouco o perfil da filantropia e da doação do brasileiro até hoje aqui, que tá melhorando muito, mudou mundo nesses dez anos, mas ainda é… De base é essa. Então, o que acontecia? Nos Estados Unidos reuniu-se um grupo de voluntários. O trabalho nos Estados Unidos era feito por voluntários, na casa Leona, durante quatro anos. Voluntários de uma… Homens e mulheres, a maior parte moças, mulheres e tal. E cujo principal objetivo é arrecadar recursos para cá. E depois que surgiu a ideia do gala, que surgiu uns três anos, ou quatro anos depois que a gente já… já tava funcionando. Alguém, uma voluntária lá disse: “Puxa, nós precisamos fazer um gala. Porque nos Estados Unidos todo mundo faz gala. E levanta muito dinheiro com gala. Vamos fazer um gala”. E o gala era todo feito por voluntários. Os mais antigos voluntários, os bons são quatro pessoas que continuam… Se transformaram em diretores. É a nossa diretoria lá, todos eles voluntários, profissionais de sucesso em outras áreas. E que batalharam, ajudaram muito. Aqui, o quadro é outro. E rapidamente ficou outro, depois dos dois primeiros, talvez no terceiro ano ainda mais ou menos. Fui profissionalizando a coisa, porque o trabalho era um trabalho profissional que exigia não só conhecimento, como responsabilidade, envolvimento e capacidade humana, mesmo, de desenvolver. Então, a coisa foi sendo desenvolvida mais profissionalmente. Mas com essas leis brasileiras de trabalho, com o… o dinheiro foi escasseando e com até o desconhecimento lá, dessas leis aqui. Então, eu, por exemplo, eu não tinha ninguém, nem a própria Kátia, ninguém aqui recebia dentro da lei, era CLT, não tinha nada disso. Era tudo meio ajeitado. Que não era uma situação boa, não era uma situação tranquila, mas também não tinha outro jeito, a gente foi levando assim. Mas havia já a percepção de que as coisas teriam que ser feitas de outra maneira. Depois existe também uma coisa de perfil, né, de pessoas. Quer dizer, a Leona é a presidente, a Leona era quem… Mas ela realmente participou pouco… Participava… Ela entregou aqui, o que foi muito bom, porque como a gente é bastante diferente, se a gente tivesse que compartilhar não teria dado muito certo eu acho, hoje. Porque a gente… Via as coisas assim, nessa área a gente é muito bem… Na área de amizades nunca tivemos nenhum problema como amigas, mas é aqui existem diferenças fundamentais. Então, desde o começo havia… “Ah, não tem dinheiro, então não paga”. Ou “não tem dinheiro, manda embora”. “Não tem dinheiro pra 20, então dá pra dez projetos.” E nada disso para mim soava aceitável. Não vou diminuir o número de projetos. A gente estabeleceu uma base, nós temos que dar um jeito. Não vou mandar embora e não vou deixar de pagar. Então, começou a ter… Era uma luta, não vou dizer que era diária, mas era mensal, ou era muito frequente. E isso cria um clima de muita dificuldade, para mim era muito difícil. E às vezes… Às vezes você ser amiga é pior do que não ser, porque você tá sempre dividida entre uma pessoa que você gosta, que é tua amiga e que você tem que dizer “não, não é assim, não vou fazer”. E a pessoa também não gosta de ouvir o que você ____, você diz. Então, os últimos anos foram difíceis. Foram difíceis, porque era uma… Nós não tínhamos orçamento. Esse ano foi o primeiro ano que a Brazil Foundation no Brasil começou o ano com um orçamento. O primeiro ano em que eu sei em janeiro que eu tenho dinheiro pra chegar até dezembro. Porque em geral eu começava o ano, eu tinha dinheiro até abril, pode ser, até maio… A Kátia, coitada, que é uma pessoa mais… Não sei, mais responsável, talvez, do que eu. Ela ficava enlouquecida: “Não temos dinheiro ____”. “Vamos levando que a gente chega lá, algum momento… Alguma coisa a gente vai ganhar.” Mas ela ficava muito nervosa, porque a gente fazia as contas, ia pagar todo mundo em abril, já não tinha dinheiro pro mês que vem. E a gente ia vivendo isto o tempo todo. Que você também não consegue planejar muita coisa e você fica num embate, né? Uma luta bastante complicada. E essa questão de voluntário também… Quer dizer assim, aqui eu não vou trabalhar com voluntário, a gente tem o Pedro que é um voluntário ex… Completamente for a do comum. Mas o voluntário é voluntário, né? A gente teve alguns que passaram. Vem, fica seis meses, um mês, uma semana, sei lá… não dá. Eu disse: “Não tem como trabalhar assim, não vou trabalhar assim”. Depois, uma coisa que também a gente foi descobrindo, é que na verdade, apesar de todo mundo lá, os voluntários, os diretores, tudo, acharem bacana o que a gente tava fazendo aqui, respeitarem a gente, não entendiam nada do que a gente tava fazendo. Não compreendiam o que tava acontecendo, literalmente não compreendiam. A gente percebia que, na verdade, lá se fala inglês, e aqui se falava português. Eram dois mundos. E são dois mundos, literalmente. Porque o pobre americano dá de dez na classe média brasileira, mais ou menos. É outro pobre, é uma… Tem pobre, tem miséria, mas é… Toda a estrutura da cul… Da sociedade é diferente. A infraestrutura, tudo é diferente. Então, isso criou, por exemplo, uma situação de… Já as coisas começaram a ficar complicadas e tal. E nós conseguimos, eu não me lembro bem, mas já com bastante luta, fazer um encontro em Nova Iorque, que foi acho que 2005. Isso a gente recupera depois, foi 2005. Em que fui eu, Sheila, Gláucio e Pedro. O Gláucio nessa época já tinha se tornado um analista…
P/1 – E Kátia?
R – Não, Kátia não foi nesse encontro. Fomos nós quatro, para ter um encontro com a equipe de Nova Iorque. E foi contratada uma pessoa pra fazer o que eles chamam um retreat, que é um… Eu não sei como é que se chama isso em português, tem um nome…
P/1 – Tem, tem um nome.
R – É um encontro de equipes, onde se analisa como é que as coisas funcionam. E ela depois dá uma orientação, uma avaliação e tal. Era uma mulher até bacana lá, interessante. Foi feito no próprio escritório da Brazil Foundation, participamos nós daqui. E lá participaram aqueles que eram os… Que são até hoje, né, que são os diretores, que eram aqueles voluntários mais antigos. Então, a Tricia, que é atualmente a CEO, e o Marcelo, a Roberta. O Marcelo foi pouco, porque ele era muito ocupado, mas acho que ele apareceu… O Marcelo, a Roberta e mais uma ou duas voluntárias que estavam a muito tempo com a gente. Foi legal, legal porque a gente teve certa oportunidade de falar algumas dificuldades que eram encontradas, que a gente nunca tinha tido. E também foi legal, porque teve uma reunião, aí teve mais gente, eles convidaram mais pessoas que participavam, em que a Sheila, que não falava inglês, mas ela fez em português e a gente foi ajudando também, e ela desenhou num quadro os bonequinhos… Aquilo ficou famoso lá dentro, os bonequinhos para mostrar o que é que acontecia com um projeto, uma instituição. Quando a gente entrava, o que a gente fazia, o que a gente esperava que acontecesse, e o que na verdade era nosso objetivo que acontecesse. Explicando o trabalho. Isso foi um sucesso tremendo lá, porque de repente as pessoas começaram a entender um pouco.
P/1 – Não era só dar o dinheiro.
R – É, não era só dar o dinheiro. Na verdade eles queriam entender, eles queriam saber, porque não sabiam nada e… É difícil entender, né? Você mora em Nova Iorque há 20 anos, há 15 anos, é um advogado, é um médico, sabe? É outro mundo, você entra em num outro mundo. Então, foi bacana. E a gente ficou assim muito esperançoso. Mas não rendeu o bastante. Um pouco depois as coisas estavam voltando ao… Ao normal. Ao caminho assim das dificuldades, do não sei o quê. Então, eu diria que essa foi a pior… A maior dificuldade da Brazil Foundation, eu acho, mais do que o dinheiro. Porque o dinheiro… Primeiro que eu acho que a gente podia ter conseguido muito mais dinheiro. Acho, sempre achei e continuo achando. Tenho certeza, tem gente que consegue mais dinheiro lá, faz mais coisas. Agora tá se conversando… Porque a gente conhece a estrutura inexistente, porque só tinha uma secretária, o resto era voluntário. Male mal você conseguia fazer um gala, que dá um trabalho desgraçado, é uma coisa enorme. E pronto. Então, o ano inteiro ficava preparando o gala, depois aí a fazer… Contar, fazer… Terminar, e pronto. Entende? Você não tinha outros caminhos, tinha umas doações físicas, tinha umas coisas, mas não tinha nada organizado. E os Estados Unidos é de ponta nisso, eles têm milhares de programas e maneiras, tem, todo mundo faz. Então, a gente…
P/1 – É um problema do trabalho voluntário, né?
R – A gente não tinha profissionalismo nessa área de captação, que tem que ter, cada vez mais, tem que ter. E com todo mundo voluntário, ninguém era da área. Realmente houve uma defasagem enorme entre Brazil Foudation Rio e Brazil Foundation Nova Iorque. Aqui, a equipe foi crescendo, o que complicava mais, porque custava mais, mas a gente tinha outros requisitos, as pessoas iam chamando, sabe? As coisas iam crescendo e lá não andava, não crescia, não crescia. Aí botaram mais uma pessoa que não deu muito certo… Começou a se fazer uma tentativa de criar uma equipe lá, mas… Sei lá, custou ela funcionar, custou muito. Então, eu acho que isso foi realmente a maior dificuldade. Agora, eu vejo uma coisa no princípio me deixava bastante… Bastante irritada assim… Irritada não, mas ficava pensando: “poxa…”. Que as pessoas ficam muito mais impressionadas com o baile, quando vai o artista, ou uma… Modelo, não sei o quê, todo mundo… Do que realmente com o trabalho. Lá sem dúvida! E aqui também, as pessoas… Porque começamos a… Começou a sair em Caras, começou a sair em Quem, ou sei lá o que, essas coisas. E eu fi… Dava-me certa agonia, porque eu dizia assim: “Gente, não é esse o perfil, não é isso. A ideia não é essa. Isso é uma ferramenta, isso é um meio, pra você alcançar um fim, mas a gente tem que mostrar esse fim”. E esse fim não é tão glamuroso, né? Ou até acho que é, porque hoje a gente tem muitas histórias boas, mas é mais difícil. E, na verdade, também Nova Iorque se queixava que a gente, sei lá, não compreendia como eles trabalhavam, como era difícil o trabalho deles, como era difícil captar o dinheiro. Acho que havia uma incompreensão de parte a parte mesmo. E isso foi ficando pesado, nos últimos anos ficou muito pesado, difícil. Alterava muita coisa aqui. E mesmo, por exemplo, a questão da Sheila, também teve um pouco a influência dessa… Isso houve algumas conversas que eu tive com ela... Era difícil. Então, eu acho que foi isso que foi… Eu diria que para mim foi a maior dificuldade, o resto a gente ajeitou.
P/1 – E você não acha também que pode ser, também tem um lado de temperamento, dessa coisa que você… Eu ouvindo você e você vê que você entrou aqui e você bem ou mal você também acabou se apegando a isso de uma maneira também muito… Que é o temperamento daqui, né? Muito de se apaixonar, e de se apegar àquilo e de querer fazer…
R – A gente que compra… Quem não comprou…
P/1 – De repente dela dizer: “Ah, não tem, despede. Reduz o número de projetos”.
R – É, se você…
P/1 – Isso era uma coisa que pra você… Você falou: “Para mim era inadmissível”.
R – Era inadmissível.
P/1 – Então tem um lado também de temperamento mais…
R – Tem, e quem não comprava… Quem não compra não fica, né? Porque é difícil, não é tão fácil. É… Não se paga tão bem. E provavelmente um bom… Um bom profissional, sei lá, das diversas áreas, talvez possa ganhar muito mais fora daqui do que aqui. Aqui tem um limite, mas as pessoas… Quer dizer, a gente teve períodos, né, na Brazil Foundation. Períodos de grande harmonia interna, e de trabalho muito legal, muito divido, muito… Assim, de troca mesmo. Depois períodos de crises. A tal crise do romance aí, depois… Teve alguns momentos de crise que quebra essa harmonia, há uns dois anos atrás foi um ano péssimo aqui dentro também, porque havia uma dificuldade de… Entre as pessoas mesmo, complicadas. Depois quando saíram duas pessoas, né, que eu dei uma virada grande na equipe. As pessoas que entraram deram trabalho, não foram fáceis, não eram boas, ou tinham espíritos diferentes, então a equipe…
P/1 – Isso depois até da Sheila?
R – Depois da Sheila.
P/1 – Então, foi uma sequência de mudanças.
R – Foi uma sequência de mudanças. Quer dizer, a saída foi em 2009, 2010 nós tivemos uma equipe… Muita gente nova, e alguma… O pessoal que já tava aqui. E que foi trocando, porque… Foi complicado assim, eu ______ falo, né? As pessoas que não entenderam o que é a Brazil Foundation, pessoas que não entendiam o que que é um trabalho nessa área. Pessoas que pensavam que iam entrar aqui pra ganhar muito dinheiro e que não era bem assim. Enfim… Então, foi um ano danado, 2010 foi um ano danado! A gente fez um planejamento estratégico depois de muita luta, com muita dificuldade de implantar aqui, com nenhuma implantação quase lá…
P/1 – Pois é, isso que eu queria entender. O planejamento estratégico que você faz, ele abrange Nova Iorque também, é global, é…
R – Tudo tem que abranger, né? Tudo tem que abranger. Agora de novo f… É um… Você pega uma laranja e uma banana e começa a fazer um… Como é que você junta? É difícil. Se os dois lados participam igualmente, que se juntaram até, sei lá, amassa a banana, bota dentro da laranja, faz alguma coisa. Mas quando cada um tá, dizendo: “Não. Eu é que sei”. Deve ter a minha culpa disso, não digo que não, porque eu sou meio dura no, né… Em certas coisas não negocio. Enfim… E foi muito difícil, foi um ano muito difícil 2010. Mas aí mudaram… Mudamos, a equipe mudou. Eu acho que a gente tá num período legal, meio carente, porque tá faltando gente, mas boa. Eu acho que as pessoas tão… Se dão bem, tão envolvidas, a gente tá crescendo. O planejamento acabou e a gente abriu outras fontes de captação de recursos brasileiras.
P/1 – Pois é, isso que eu queria explorar. Essa parte mesmo de prestação de serviços, que hoje a Brazil Foundation faz para outras instituições. Você pode também retomar um pouco isso?
R – Vou retomar. Mas vou até te contar uma coisa que eu acabei de ler aqui agora, que o menino… Tem o Marcos Gaspar, é um rapaz de fora, é um analista, que eu contratei para fazer um projeto que a gente tá desenvolvendo com a Embaixada Americana, para a Embaixada Americana, não com. Nós fomos contratados para fazer, que é uma seleção de projetos para equidade racial e étnica, um projeto politicamente um pouco complicado, mas um projeto legal. E nós fizemos a seleção e agora tem três pessoas viajando e ele me mandou um e-mail agora, muito bonitinho, que você me lembra que eu vou te passar, porque ele faz a primeira… ____: “Susane, foi um prazer visitar essas instituições, porque todo mundo conhece a Brazil Foundation e todo mundo tem uma… Um olhar…”. Ele fala isso bonitinho, mas do que eu tô dizendo: “assim de respeito, de admiração, não só pela questão dos recursos, mas por todo apoio que vocês dão, a parte técnica, o monitoramento. Foi muito prazeroso fazer essa visita, porque eu fui sempre muito bem recebido”. O que pra mim eu fiquei pensando: “Que interessante, né? Lá se foi ele pro interior aí não sei da onde”. São projetos outros, projetos que foram escolhidos especificamente dentro daquela área e ele me manda esse e-mail, uma coisa curtinha, e nós vamos usar isso no nosso site, porque foi muito bem escrito. Então, isso é uma realidade, quer dizer, eu ontem passei o dia em São Paulo. Eu fui num congresso da Gife. Assembleia Geral da Gife. A Gife é o, digamos, é a elite do investimento social no Brasil, né? São as grandes empresas etc. Eles agora estão abrindo mais, quer dizer, estão querendo que financiadores menores entrem. Então, eles também estão passando por uma grande mudança. E eu, e outras pessoas que entramos esse ano, né, a Brazil Foundation entrou esse ano, fomos apresentados. E a receptividade, assim, o olhar, fiquei pensando: “Que coisa engraçada, né, essa gente…”. Da melhor _____, sabe? Os números lá são outros, não tem nada a ver com os nossos números. E o cara veio me cumprimentar, o outro queria saber, sabe uma coisa assim? Eu digo: “Ah, meu Deus, nada como um nome americano para você se impor como o quê”. Mas não é só o nome americano. Não é só o nome americano. Tem todo um reconhecimento de trabalho, só pode ser, não é possível. Então, então eu acho que é isso. Quer dizer, acho que a gente veio aí aos trancos e barrancos, nós viemos e estamos andando, e andamos. E estamos no décimo ano, esse décimo ano que a gente tá fazendo um projeto completamente diferente do que a gente fez até agora, que eu acho que é muito importante, e extremamente interessante também. Mas eu tenho com clareza que o contexto social do Brasil mudou, os doadores mudaram também. Tudo tá em grande mudança. O Brasil tá mudando. O Rio de Janeiro tá no foco. Então é o momento de… Em que as coisas vão acontecendo, se você não… Se você não pegar a prancha e pegar a onda, a onda passa e você fica lá atrás. Porque as pessoas estão correndo, e as coisas estão correndo, mas é um momento bom, porque se você pega bem a onda você chega numa praia bacana.
P/1 – Quando você diz que o Brasil mudou, você tá falando especificamente do quê?
R – Ah, eu tô falando…
P/1 – Dentro desse…
R – Desse campo meu, tô falando.
P/1 – Não, dentro desse campo, e eu até queria recuperar. Eu acho que até com essas suas visitas, que você faz a dez anos vendo projeto aqui, acolá, lá no ____ do Piauí, ou sei lá da onde. Você conseguiu ter também assim meio um panorama…
R – Tenho um panorama.
P/1 – Do que é o Brasil profundo, né? Dentro da cadeia da…
R – Tenho. Eu diria que mudou e não… Fala-se muito do que o Brasil mudou economicamente.
P/1 – Pois é.
R – Mudou, né, um pouco, bastante talvez. Mas eu acho que mudou muito foi o… A capacidade do brasileiro de reconhecer os seus direitos, e de lutar por eles. Não é o que acontece com todos. As gerações mais velhas, coitadas, continuam esperando que o governo dê alguma coisa pra ela, mas as novas gerações, as médias e novas, tão mudando e bem. Então, a gente têm experiências muito bonitas no Brasil, como você disse, no cafundó do Pará, de mulheres que são massacradas sexualmente, com violência doméstica, com falta de direitos de trabalho, com… Que se organizam, que fazem uma rede enorme, que tão batalhando pelos seus direitos, muito bem batalhados, organizados, mulheres negras, mulheres pobres, mulheres… Algumas sem nenhuma educação. E você fica… Tão lá, tão fazendo… Você vê meninos no interior da Bahia, num lugar chamado Tucano, que são jovens filhos de assentados, e não estão na universidade, mas que se organizaram e que têm uma rede de vários municípios também, e que controlam o orçamento municipal, pra defender os direitos do jovem de invés do prefeito fazer, sei lá, a festa de não sei o quê, achar equipamentos de esporte, de estudo, de coisa para esses jovens. E eles... É luta, luta dura, difícil, mas eles estão fazendo. Então, você encontra no rincão de não sei aonde, pessoas que te fazem um discurso que eu não sei reproduzir. Porque é um discurso completamente consciente do que tá faltando, do que não é reconhecido e de como eles tão lutando por aquilo. Isso no interior do Brasil, no interiorzão do Brasil. Então, isso é muito bonito.
P/1 – E você fala dessa capacidade de poder se organizar. Eles podem se organizar.
R – É, uma capacidade de se organizar...
P/1 – Que tem o respaldo...
R – Inacreditável. É...
P/1 – E podem, não só no governo...
R – Não, que no governo, nada, no governo é sempre um problema. Vão encontrando assim, manda pra Brazil Foundation, manda pra não sei aonde. Dá um jeito aqui, puxa dali. Às vezes consegue alguma coisa no... Então, mesmo no... Se você olhar, esse é um trabalho que a gente tem que fazer um dia aqui, porque nós temos aqui uma base de dados, né? Dos sete mil projetos que a gente recebeu...
P/1 – Eu queria que você falasse...
R – Vou falar do ______... É tem algumas outras coisas ainda pra falar.
P/1 – A gente meio foi pulando, né?
R – É, depois a gente volta. É porque eu saí, fui ao banheiro e fiquei pensando. (risos) Então, o próprio desenho... Como eu disse, tinha projetos engraçados, uns nomes divertidos e tal, mas hoje em dia você recebe projetos muito mais bem feitos, muito mais... Com focos mais definidos, e focos diferenciados também. Então, a gente sempre recebeu aquela coisa da criança pra creche lá do ______ E são mudanças, existem mudanças, que não sei... Numericamente eu não sei como é que funcionaria, é uma estatística que mereceria ser feita, mas nós nunca fizemos. Mas existe uma mudança sim, existe uma mudança de... da condição do cidadão brasileiro poder reconhecer os seus direitos e lutar por eles, no Brasil. Talvez até menos nas grandes cidades, do que no interior. Talvez nas grandes cidades eu acho que ele é muito... Muito levado por várias atrações, opções e outras lutas. Enquanto que lá são comunidades menores a... A questão é muito presente e eles também sabem que ou alguém deles faz alguma coisa, ou não vai acontecer mesmo. Mas eu acho que isso é um Brasil que pode mudar o Brasil. Aliás, eu até acredito que vai mudar mesmo, porque...
P/1 – Que tá mais se mexendo.
R – Tá mais consciente. Porque você só se mexe depois que você sabe. Porque se você não sabe que... Que aquilo não tá certo, que você deveria ter certos direitos, você não vai se mexer, porque você não sabe nem pra onde.
P/1 – Isso acontece até nas cidades. Na cidade você tem essa consciência que só sabe reclamar. Você encontra muito, né?
R – Começa a reclamar, isso eu... Isso eu diria nesse Brasil que eu... Como eu sempre fui uma pessoa reclamona, então eu me lembrava que eu ficava na fila, essas filas que você fica na vida, que tem que tem que pagar, ou tem que não sei o quê. Uma fila... O cara não atendia, ficava enorme, aquela coisa assim. Eu começa a chiar, parará, chama o gerente, não sei o quê. E era só eu. Hoje em dia... Eu ainda em geral começo, mas já tem gente que reclama também, e diz também, sabe? Eu sinto que as pessoas estão mais conscientes de que as coisas podem... Devem e podem funcionar de outra maneira. Então, eu acho muito esperançoso isso. Espero que a minha esperança não dê em nada. Mas eu acho que não, acho que é um Brasil... E aí você muda... Quando eu disse que mudou, porque mudou também o... Digamos, o perfil dessa sociedade, o que tá acontecendo? Quando nós começamos o Brazil Foundation, as empresas não estavam nem aí, não davam, quando davam, davam lá pra igreja da esquina. Não estavam nem aí... Sabe? Não tinha essa coisa. Hoje em dia, de uns cinco anos pra cá, existe uma pressão da sociedade, não vou te dizer que seja de bom-mocismo, não sei, mas existe uma pressão da sociedade, que foi criada por vários mecanismos. E que as pessoas têm que começar a pensar que elas têm certas obrigações. Quer dizer, uma empresa enorme, que ganha uma fortuna, ela tem certa obrigação de investir no social. E se ela não investe, hoje em dia, se ela não investe, ela é mal vista, ela tem problemas. Então, quando eu te disse que eu fui ao Gife, onde estão essas empresas. E depois eu fui numa outra, que eu não posso falar ainda, mas eu fui numa outra, me chamaram, queria saber como é que a gente trabalha. É uma empresa enorme, mundial, que está começando a entrar no Brasil. E ela para entrar no Brasil já tá preocupada...
P/1 – Com o social.
R – Com o social, como é que... O que a gente pode fazer, como é que ele pode entrar bem, e ____. Então, isso é outro mundo. Porque é uma influência de fora, também. Mas as...
P/1 – Mas tá chegando aqui.
R – Mas tá chegando aqui. As empresas... Não fique pensando você que as empresas multinacionais, ou americanas, ou tal, dão muito aqui. Elas dão muito lá, nunca deram muito cá, mas elas tão começando a dar também, porque elas também tão sofrendo pressão da sociedade. E faz parte do balanço do fim do ano, faz parte do status social de uma empresa. Uma fala com a outra e ela tem que saber que ela tá dando. Isso muda o contexto.
P/1 – Susane, a Kátia falou mais ou menos que até o que vocês receberam o ano passado, foram quase 50% entre a receita que vocês conseguiram aqui dentro, e o que veio de Nova Iorque.
R – Eu acho que foi até mais, viu? Acho que a gente chegou quase a 60%.
P/1 – E aí eu acho que isso é um grande marco, né?
R – É um grande marco.
P/1 – É uma mexida… Até na…
R – Dá uma grande mexida e eu gostaria de chegar a 100%. (risos)
P/1 – Eu queria… (risos) Não, acho que você chega lá, mas acho que dentro do histórico da Brazil Foundation, isso…
R – É por alguns… Mas…
P/1 – Aí eu queria também que você falasse um pouco também acho que desse lado… Dessa prestação. Esse dinheiro daqui de dentro entre veio com a prestação também de serviços que vocês…
R – Veio da percepção que se eu não me mexesse, conseguisse algum dinheiro aqui dentro, a gente tava perigando. Há uns três ou quatro anos atrás. Eu disse: “gente, do jeito que vai, cada vez pior, tem que sair pra alguma coisa”. E as coisas foram acontecendo no sentido de que bom, a gente nessas alturas já tinha desenvolvido alguma expertise, o reconhecimento, uma metodologia e tal, e havia… Eu não lembro qual foi a primeira, viu? Teve algumas assim, algumas possibilidades, até porque algumas empresas também… As coisas vão se casando. Algumas empresas começaram a ter que fazer essas coisas, né, apoiar projetos, não sei o quê. E você há que reconhecer que… Tudo passa muito por conhecimento pessoal, né? Se você conhece alguém, ou ele te conhece. Bom, começou a haver um pouco esse movimento e a gente foi tentando estimular, de usar os nossos conhecimentos pra empresas. Então, a gente fez seleção de projetos para algumas empresas, boas, grandes. Começou uma parceria grande com a HSBC. Essa parceira, na verdade, ela nasce em Nova Iorque, porque é o HSBC… Uma coisa de banco, um dinheiro que rende, numa ilha dessas daí da vida, e eles tinham que encaminhar uma parte desse dinheiro pro Brasil. Então, essa parte desse dinheiro eles iam encaminhar para a Brazil Foundation. Eles encaminharam o primeiro ano, mas no segundo ano eles queriam que a gente fizesse alguma coisa com o dinheiro deles pra eles. E o que a gente começou a fazer, a gente primeiro fez uma seleção de projetos pra eles. Depois eles queriam fazer eles mesmos a seleção deles, isso acontece muito também. Mas a gente… Nós começamos a propor a capacitação desses gestores deles. Por quê? Porque, primeiro porque eram mal escolhidos, era uma mistura grande; segundo, porque a gente aprendeu aqui que se você não desse apoio de monitoramento e apoio técnico, o teu dinheiro vai pelo ralo, vai mesmo. Tem um ou outro que faz de… Mas precisa, são pessoas que precisam disso. Então, começamos com essa história de oferecer oficinas de capacitação. Foi uma, depois foram duas. O ano passado a gente capacitou acho que 600 gestores sociais, do HSBC, de projetos que eles apoiam.
P/1 – 600 você falou?
R – É. Durante o ano. Várias oficinas. E as oficinas foram crescendo também, bacana, porque a gente foi aprimorando as capacidades, nasceu um grupo de teatro que é um sucesso enorme, porque o grupo de teatro são três pessoas. E as peças… São peças pequenas…
P/1 – Quem são as três pessoas do grupo?
R – (risos) O teu cinegrafista, a Clarissa e a Márcia. As peças são desenhadas, são criadas por eles mesmos, para cada situação. Quer dizer, quando a gente faz uma capacitação em gestão a peça trata dos problemas de gestão. É tudo feito com bastante humor, eles são muito bons artistas. E com poucos recursos eles criam umas situações muito boas, que tem uma resposta imensa do público. E isso também fez um diferencial muito legal nas nossas capacitações.
P/1 – O teatro então é uma ferramenta dentro de um trabalho…
R – É uma ferramenta, é uma ferramenta que começa as capacitações. Porque… Aquele problema é jogado ali, sem nenhuma preparação. Mas as pessoas começam a se reconhecer, a reconhecer: “Ah, é igual. Não sei o quê”. E depois a coisa vai desenvolvendo nas oficinas com os facilitadores, e se desenvolve. Então, isso cresceu para burro e mais _____ para outros, sei lá. Eu sei que o ano passado a gente levantou, eu diria quase 60% dos nossos custos. E se der certo aí eu acho que mais um pouco a gente vai ser capaz de se autofinanciar. Porque isso eu acho que seria muito bom. Até porque, mesmo em Nova Iorque as pessoas, e é verdade isso: “Olha Susane, o dinheiro tá no Brasil agora”. É verdade, teve a crise nos Estados Unidos. Tem muito dinheiro lá também, e eles continuam dando bastante, mas… Tem outro tipo de dinheiro de cabeça, rolando aqui, e a gente tem que aproveitar isso… Mas nós temos muita competição, muita competição. Quando nós começamos ninguém fazia nada, hoje em dia eu recebo, por dia, acho que uma média de dez propostas de oficinas. Todo mundo dá oficina de capacitação. Milhares de oficinas de todo tipo de coisa que você possa imaginar. Eu já fiz uma vez só de… Eu digo: “Eu quero ver que diabo eles estão fazendo”. Achei uma bomba, mas eles dão milhares. Esse mesmo grupo dá adoidado, não sei com que resultado. O próprio Gife tá fazendo oficinas, mas assim…
P/1 – Eu queria, pois é, e queria, a gente falou da…
R – Temos que pensar também… Eu tenho que pensar também em outra maneira já. Já tô pensando.
P/1 – Susane, só um minutinho, porque a gente pulou até uma parte, né? A gente tá falando aqui da parte de capacitação dos gestores do HSBC. E a gente falou até da parte mesmo do fato de que vocês fazem a capacitação com os próprios gestores dos projetos.
R – Ah, sim! Bom, porque começou… Ah, desculpa…
P/1 – Pois é, mas aí que…
R – Começou assim, começou em casa, na verdade. Isso em casa.
P/1 – Aí vocês criaram…
R – Isso nasce em casa no sentido de que vi… Que a gente reunia… Quer dizer, logo no começo a gente sempre trouxe os gestores. A gente visitava, depois trazia aqueles que… Nas primeiras vezes eram umas reuniões de um dia. Era feito aqui mesmo, dentro da Brazil Foundation… A gente conversava, sei lá, era uma coisa mais informal. E aos poucos foi se organizando, porque é… É sempre uma resposta às necessidades reconhecidas. Quer dizer, hoje em dia eu diria que a gente tem alguma metodologia dentro do que a Brazil Foundation faz, em tudo, mas sempre foram em resposta ao reconhecimento das necessidades. _____ “Vamos ver como é que a gente muda”.
P/1 – Vamos aprender a fazer.
R – É, mudava. Tem o Pedro que entende dessa área de finança. Então, criava as planilhas, as planilhas foram mudando. Depois, a área de monitoramento… A coisa vai sendo aprimorada e criou-se uma, sei lá, uma capacidade mesmo. Aí os primeiros anos, fora o fato de que a gente fazia isso pros nossos, e pros nossos a gente faz uma vez por ano, porque não temos o dinheiro de ficar trazendo essa gente, levando essa gente, né, é meio caro. Mas começou a nascer… A crescer essa história pra fazer para fora. Eu percebi que não ia dar, porque os primeiros eram feitos com a equipe. A equipe saía daqui. Então, tinha dias que a equipe toda, menos a Nádia, não, a Nádia não, a Nádia ia também. A Kátia, e às vezes eu, porque eu ia na primeira e não ia na segunda. E o resto era todo mundo fazendo coisa. Eu disse: “Bom, eu não posso continuar assim” “Como é que eu vou trabalhar assim se metade da semana todo mundo tava não sei aonde?” Em Curitiba, em Recife, fazendo capacitação.
P/1 – Capacitação.
R – É, fazendo capacitação. E depois isso foi criando também problemas financeiros, que é… Essa questão de governança não é brincadeira não. Porque, na verdade, quem fazia… A gente fazia muito no fim de semana, agora paramos de fazer também. Ganhava fora, tava trabalhando fora, mas aí quem não ia também queria… Olha, foi ficando bem complicado o campo. E a minha ideia, desde o começo, mas a minha ideia foi sendo… “Bom, eu preciso criar uma equipe de capacitação, que não tenha nada a ver conosco. Talvez uma pessoa nossa, duas, mas…” E foi indo, foi indo, hoje em dia a gente praticamente tem, né? Tem ainda duas, três pessoas que vão, mas os facilitadores agora não são pessoas da equipe. São pessoas contratadas pra isso, que fazem isso. E agora dão… Tão fazendo, por exemplo, esse outro trabalho com o Japer. E se tiver outro trabalho, ou eu vou contratar mais gente, ou eles mesmos, mas… São duas vertentes, e tem que ser duas vertentes, não pode ser igual.
P/1 – Então, tem uma…
R – Ali recebe por…
P/1 – Uma equipe para capacitação…
R – É. É uma equipe que recebe por capacitação, a…
P/1 – E quem é a equipe aqui… Quem faz esse trabalho da capacitação agora? Atualmente?
R – Atualmente, faz a Raquel, que não é daqui, não é nossa, da equipe. A Anette, a Dani, a Graciela Selaimen, uma pessoa de advocacia, que às vezes varia... O Pedro, porque o Pedro continua como voluntário nosso, mas pra fora ele recebe quando ele faz capacitação, Nádia e Lívia. Nádia e Lívia são responsáveis pela organização, atendimento etc. Eu já disse pras duas que isso é complicado pra burro, porque... Ah, e Clarissa, porque a Clarissa faz o teatro. Olha...
P/1 – E aí...
R – Ainda tem umas coisas...
P/1 – E aí o que...
R – Tem algumas que você quer... É difícil de trocar, mas vamos indo.
P/1 – E aí dessa parte tem essa gestão... O que é? Planejamento estratégico...?
R – Não. Planejamento estratégico não. É gestão, gestão financeira, um pouco de planejamento, mas não estratégico, alguma coisa de planejamento. Depois, comunicação institucional, agora a gente vai dar avaliação e sustentabilidade. São oficinas diferentes. E a gente come... Fez uma vez, eu gostaria de fazer mais vezes... Vamos desenvolver isso, porque isso também é uma coisa que tá crescendo e é um bom filão, é uma capacitação para voluntários das empresas. Porque as empresas todas botam os seus funcionários para serem voluntários. E as pessoas não sabem muito bem o que tem que fazer, é um... É uma coisa meio mal resolvida.
P/1 – Às vezes energia gasta...
R – É mal resolvida no geral. Então, a gente... Eu gostaria de desenvolver isso. A gente fez uma vez, ou duas, mas teve alguns problemas... Não deu muito certo, tamos mudando, vamos ver, vamos ver. Mas é um campo bacana pra trabalhar também.
P/1 – Aí o teatro tá sendo usado...
R – Sempre.
P/1 – Sempre pros gestores dos projetos apoiados...
R – Nossos e fora. É. E eu acho que ele é uma ferramenta muito potente, muito atraente, muito potente. Nem eu imaginava que ia ser tão, mas as pessoas ficam muito... Tem a resposta muito forte para isso.
P/1 – E vocês foram, então, ao longo desse tempo todo é... Formatando um...
R – Tudo. Tudo. Tudo. Desde o formulário de... O edital, o edital vai mudando... Todo ano a gente faz uma reunião depois para ver, analisar como é que é, muda aqui, tira ali, o... Os formulários de resposta, as capacitações. Tudo, tudo, tudo cada ano é revisto.
P/1 – Fala um pouquinho do monitoramento. Como é que é feito o monitoramento também, ao longo do tempo de apoio aos projetos.
R – Monitoramento também mudou bastante. Mudou bastante.
P/1 – Tem uma equipe pra isso, ou como é que vocês começam...
R – Tem uma equipe, tem uma equipe. Agora, tá manca, porque falta um, mas tem uma equipe que é a equipe do monitoramento. Então, o que acontece? O que é monitoramento? Monitoramento é um acompanhamento que a gente faz no projeto durante o ano que ele tem que desenvolver o trabalho dele. Então, ele vai monitorar assim, se as ações estão sendo feitas, e se o orçamento é compatível com aquilo que foi proposto. Mas é muito mais do que isso, porque eles ajudam realmente, quase que pessoalmente, a cada um dos gestores dentro das problemáticas que surgem, dentro dos desvios de caminho. Porque existe uma troca de e-mails e telefones, e sei lá o que mais, enfim, de comunicação.
P/1 – Tem visita também?
R – Poucas. Porque visita... O problema da visita é dinheiro. Se bem que a gente tem esse apoio da TAM, sem o qual tudo teria que ser diferente, que permitiria. Mas não é só isso, porque a visita, você tem o avião daqui pra lá, mas você tem táxi, alojamento, às vezes você vai pra capital, mas você tem que se deslocar pra dentro. E o tempo também. Então, não tenho tanta gente, o ideal seria ter. O ideal seria você poder fazer ao menos uma visita no meio de um projeto, ou um pouco antes do meio, ou por, enfim, algum momento do projeto. Raramente a gente faz isso. O que a gente faz às vezes, que consegue fazer é, por exemplo, quando a gente já está fazendo seleção e alguém vai pra ver na seleção, e na mesma cidade, ou na cidade vizinha, ou no mesmo estado, tem projeto nosso. Então, ele já dá uma olhada, dá uma parada lá. Agora, por exemplo, esse rapaz que nem é nosso, foi contratado pra trabalhar no Japer. Ele foi visitar um projeto, que por acaso era nosso também, mas veio outra proposta e tal. E ele já foi visitar outro, que era perto. Enfim, a gente... A gente tenta aproveitar essas coisas, mas não é o ideal. O ideal seria poder ter ao menos mais uma visita. E... Isso eu acho, acho que...
P/1 – Mas um relatório... Eles têm obrigação de mandar um relatório...
R – Não. Eles têm obrigação de mandar quatro relatórios. A gente já tá discutindo isso também, porque é muito, é difícil pra eles. É pesado, eles são poucos. Então, essa é outra questão que a gente... Aí tá sempre problema de relatório atrasado, relatório que não chega, né? E a gente tem discutido isso também, mas eu acho que... Hoje, se você me perguntar, quais são diferenciais da Brazil Foundation? Porque isso eu vou percebendo também, né? Vou vendo como as coisas se passam. Eu acho que a questão do monitoramento é um diferencial. Porque muitas instituições, fundações dão dinheiro, até logo, boa viagem. No final manda as notas, manda o orçamento pra ver se tá fechado e tal. Monitoramento faz com que o projeto, o gestor, as pessoas que estão trabalhando se sinto amparados. Eles têm com quem falar. E a gente cobra muito. Então, é um acompanhamento. É um ano que ele tá acompanhado. Pro bem e pro mal, porque se ele não responde, ele é cobrado e tal. Mas ele também se tem dificuldade ele sabe com quem falar. Então, eu acho que isso é um diferencial bem importante da Brazil Foundation. E isso tudo é feito com... Sempre que possível em tons amigáveis. Às vezes a gente tem que esquentar um pouco o caldo, mas em geral a ideia é essa. É poder ser parceiro. Então, eu acho que esse é um diferencial. Outro diferencial é aquele que desde o começo a gente descobriu meio por acaso, mas essa questão de que a gente apoia projetos menores, projetos longos, projetos, sei lá. E inclusive um nível de projeto de risco, que a gente incorporou na nossa seleção. Então, toda seleção a gente sabe que tem dois, três, depende da seleção, projetos definitivamente de risco. Iniciantes, com coisas que a gente fica pensando: “Gente, esse troço pode não dar certo”. “Mas pode dar certo.” Então, a gente... Em geral é o Prêmio Incentivo, que leva esses projetos de risco. E muitas vezes deu certo.
P/1 – E projetos cancelados? Dentro dessa ideia do projeto de risco, é uma proporção, vocês já tiveram...
R – Olha, na parte dos projetos cancelados, não foi de risco não. Eu nem sei se teve algum de risco cancelado, sabia? Também não tive muitos projetos cancelados. Eu não sei quantos, a gente precisa levantar aí. Temos cinco projetos cancelados mesmo, em dez anos de trabalho, que é muito pouco.
P/1 – Muito pouco.
R – Dois deles devolveram ou parte do dinheiro, ou o dinheiro. E o resto também só recebeu a primeira parte. Porque a gente dá em três vezes. A gente sempre deu em duas, agora a gente passou a dar em três, porque o relatório final, que para nós é importante, para a gente fechar, a gente não conseguia receber, porque eles já tinham recebido todo o dinheiro e era muito difícil. Então, chegamos à conclusão que a gente ia deixar um rabinho, então, é a menor parte da doação, mas agora... Tem um ano, né, que a gente faz isso? É um ano que a gente faz isso, deixa aquele rabinho... Se ele não manda o relatório final, também não recebe o dinheiro final. Eu acho que é uma boa medida. Então, desses outros que não foram cancelados tem alguns que não deram muito certo, ou fizeram aquilo que tinham que fazer e, sei lá, depois fizeram outras coisas. Ou continuam fazendo, sabe? Num... Agora, tem alguns que são exemplos, são coisas maravilhosas...
P/1 – Cita um.
R – Cito.
P/1 – Que você, assim, acha que tenha sido exemplar.
R – Prece, no sertão do Ceará; o Quixote, em São Paulo; a __________, em Seabra. Tem muitos, tem muitos. Mesmo a própria Banda, que agora ela é meio enrolada, mas também teve um desenvolvimento. Alguns projetos de mulheres, mulheres do Cerrado, outras mulheres de outros lugares aí complicados. Olha, muitos. Um projeto de Gentio do Ouro, que a gente nem acompanhou tanto, mas é... Foi um projeto muito interessante de controle social também. E alguns crescem, sei lá, a própria Grota, a Grota foi um projeto desses. Agora, não é o nosso dinheiro, porque o nosso dinheiro é sempre muito pouco. O nosso dinheiro, é o nosso acompanhamento, a nossa vontade. E é a capacidade que eles vão adquirindo também de procurar outros, porque todos eles cresceram porque acharam outros, não por nosso dinheiro, não é...
P/1 – Vamos trocar a fita.
[troca de fita]
R – Bom, vamos lá, me diz aonde você quer que eu retome, você que anda olhando aí.
P/1 – Vamos lá. Queria também que você me falasse sobre o banco de projetos, como foi a criação. Base de dados e banco de projetos é a mesma coisa?
R – Não.
P/1 – Então me explica qual é a diferença.
R – Tá. Quer dizer, a questão de programas na Brazil Foundation foi se abrindo, abrindo novas portas, novas possibilidades. Nem todas ainda estão bem, bem utilizadas, mas já existem bem. Banco de projetos foi o primeiro, era uma questão de poder ter uma seleção de projetos para ofertar. Por quê? Porque às vezes vinham pedidos dos Estados Unidos mesmo: “Ah, Fulano quer fazer uma doação, queria um projeto de educação”. Aí tinha que selecionar lá dois ou três projetos e mandar pra ele, ele escolhe lá qual ele quer e a gente então resolve. O primeiro e o segundo banco de projetos são projetos que a gente colhia dentro da seleção, que a gente considerava bom, tinha sido visitado, mas a gente não pôde apoiar. Então a gente...
P/1 – Os finalistas.
R – Os finalistas. A partir do terceiro ou quarto, sei lá, por aí, a gente começou a usar os nossos projetos que já foram apoiados e que a gente reconhecia que um novo apoio seria muito bem vindo e muito bom para pra prosseguimento. Então a gente começou a trabalhar com os projetos já apoiados e até hoje é assim. O banco de projetos são projetos que já foram apoiados pela Brazil Foundation e que tiveram bons resultados, são confiáveis e que a gente pode ofertar. Porque primeiro que você dá... Um banco de projetos é uma coisa muito complicada, porque a gente compra, por exemplo, o banco de projetos você escolhe um projeto, você paga cinco por cento do que você dá pela seleção e tal, e a gente cobraria 20% para que a gente pudesse fazer o monitoramento. Ninguém paga o dinheiro, rarissimamente, então alguém paga, mas muito pouca gente paga os 20%. Então a nossa responsabilidade fica duplicada, porque você dá um projeto, não vai acompanhar, o cara tá dando um dinheiro direto para aquilo, com o seu aval e se a coisa não der certo... Então é difícil, então a gente tem muito cuidado com o banco de projetos. Mas ele poderia ser muito mais utilizado do que é, porque ele deveria ser ofertado, procurado. Não tem ninguém fazendo isso. Então acontece se o cara aparece que quer, senão não acontece. O _____, ou seja, a base de dados foi um, sei lá, uma coisa assim de, poxa, nós temos esses projetos, a gente tem que jogar fora, porque se não jogasse fora a gente tinha que arranjar outro andar de papel que a gente tem aí. A gente guarda o tal do cd, mas todos os projetos que foram chegando à Brazil Foundation foram entrando numa base de dados com algumas informações, organização, o que eles pretendiam, qual o público alvo, o que eles pediam. Acho que são umas 12 ou 14 informações.
P/1 – Todos os que chegaram aqui?
R – Tudo que chegou aqui. Tudo. Tudo. Independente do que aconteceu com eles.
P/1 – Selecionado ou não.
R – É. Aí, o que aconteceu? O primeiro ano foi num programa, no segundo ano foi noutro programa, o terceiro ano foi outra pessoa. Então não adiantava nada, porque você não podia cruzar nada, você não podia pesquisar nada, ficava aquilo. Então há uns dois anos a gente pagou uma pessoa durante um ano, que veio aqui, trabalhou, trabalhou, conseguiu consolidar aquilo num programa só e hoje em dia você tem uma base de dados que quando eu preciso quem toma conta é a Carla, mas se eu disser: “Carla, eu preciso saber quantos projetos foram pedidos em educação no ano tal” ela me diz. Ou qualquer outra coisa mais ou menos nessas áreas, uma estatisticazinha, ela faz os cruzamentos, ela consegue saber. Então é uma, sei lá, é certa riqueza, porque ninguém no Brasil deve ter isso, é uma coisa de demanda. E eu tinha muita vontade de fazer uns estudos, trabalhar em cima disso, desses... Não sei. Estabelecer questões e buscar respostas das questões. Mas nunca a gente teve gente para isso, acontece aqui dentro que a gente tá sempre trabalhando no limite das pessoas. São poucas pessoas, muita coisa que acontece, então ainda não consegui. Mas isso tá aí no campo a ser feito.
P/1 – Até porque é uma base até pra estudo, né? De antropologia, é um pouco do Brasil.
R – Claro. É. Eu ofereci pra esses dois professores que foram lá na minha casa, um de Antropologia, outro de Ciências Sociais, que eu chamei pra falar dos monitores e que eu conheço, são professores da UFRJ que eu conheci na época e disse pra eles: “Olha, eu tenho isso. Vê se vocês têm algum aluno em mestrado que queira fazer uma tese qualquer, eu tô disponibilizando”. Isso faz uns dez dias que eu falei, pode ser que ainda surja. De vez em quando eu ofereço isso. Então isso é o que é o banco de dados. E a gente, sei lá, a gente vai criando aí. Eu acho que a gente vai ter que refazer um monte de coisa, eu to sentindo assim, um campo que tá caminhando a largos passos na área de profissionalização e tem gente que entra com muito capital. Então a gente tem que se preparar pra ver como é que a gente vai se situar no... Porque isso virou um mercado, é um mercado.
P/1 – Você falou do diferencial de vocês. Assim, pensando, eu já te fiz essa pergunta, eu até queria perguntar de novo pra você deixar gravado. Mais próximo do perfil de vocês, você acha que tem alguém ou não? Como é?
R – Eu não conheço. A gente já serviu até de modelo para algumas financiadoras pequenas, que vieram aqui, passaram um dia a dois, copiaram, há alguns anos, dois anos atrás, três anos atrás, levaram os nossos formulários, a gente abriu, deixou. Buscaram o nosso edital, passaram um dia aqui, depois outro veio aqui. A gente tem alguns financiadores menores que tiveram, sei lá, talvez uma base de... Eu acho que trabalho exatamente como a gente trabalha, eu não conheço, pode ser que tenha, mas eu não conheço, eu nunca vi. Nunca vi. Não conheço. Não sei.
P/1 – Susane, pra gente ir encaminhando também meio para o final... Ah, eu queria que você falasse sobre o fundo patrimonial também, quando __________.
R – Bom, eu vou falar sobre o fundo patrimonial, mas eu devo dizer também que nesse diferencial, e eu faço minha a culpa, eu devia ter dito logo, mas to dizendo agora, é um diferencial muito grande essa questão da gente um escritório em Nova Iorque e um escritório no Brasil. Primeiro que isso impressiona; segundo porque isso realmente abre portas e cria possibilidades. São pessoas procuram em Nova Iorque e acabam aqui, ou grandes empresas que ficam: “Ah, tem em Nova Iorque”. Sabe? Dá-te uma área internacional, porque não deixa de ser internacional, tem um escritório lá outro cá e o nome é americano. Então isso também já tem muita gente copiando, buscando copiar, tentando fazer igual, tem gente que já conseguiu, brasileiros que já conseguiram entrar nessa área de imposto de renda, de desconto em imposto de renda. É uma questão que cria um diferencial, cria mesmo assim, de respeito, de fantasias até, porque as pessoas acham que quando eu digo, várias vezes já aconteceu, qual era o nosso budget anual, as pessoas não acreditam, porque parece uma coisa muito maior. Estamos em Nova Iorque, dólar e tal. Mas cria isso também, cria uma abertura, cria uma possibilidade, muita gente vai lá, vem cá, ou vem aqui e diz que vai continuar lá. É um diferencial, é um diferencial e bastante importante também.
P/1 – E aí do fundo vocês começaram a...
R – O fundo é um desejo, porque as grandes financiadoras de modelo americano têm um endowment. Endowment é um fundo de X grande que elas botam pra render, trabalham com o rendimento e não mexem no capital, que é um ideal bacana porque você ao menos... Uma boa parte da tua sobrevida tá garantida ali, você tem aquele capital rendendo. A gente tentou muito, a gente tem pensado muito, mas o ano passado foi o primeiro ano que surgiu essa possibilidade, com grande gala do ano passado, com a história publicitária __________ que começou. Enfim, é toda uma história muito específica e que ele disse: “Eu vou começar o endowment pra vocês”. E ele conseguiu um milhão de dólares, que a gente hoje em dia tem.
P/1 – No gala do ano passado.
R – No gala. No gala com o microfone na mão.
P/1 – Você acha que foi ele que bateu o martelo em meio a...
R – Eu não acho, não. Eu vi. Eu vi. Eu o vi subir num palco, pegar o microfone e dizer assim: “Hoje eu quero fazer um endowment para a Brazil Foudation de um milhão de dólares e eu vou começar isso, aqui tá meu cheque de 100 mil dólares”. Aí ele olhava assim, ele conhecia praticamente as pessoas lá porque ele tinha convidado metade. Convidado não, vendido a mesa. E ele dizia assim: “Fulano, você vai dá quanto?”. Aí tinha um foco de luz que batia assim, na cara do Fulano, todo mundo sentado naquele baile, atrás dele tinha uma tela onde surgia o nome do Fulano e quanto ele dava. E os Fulanos eram pessoas, senhores de companhia que estava ali na companhia de outros, não podiam... Então ele começou com 100 mil e ninguém mais deu 100 mil, mas um deu 50, outro deu não sei o quê. Aí ninguém deu mil, não podia dar mil, ficava feio dar mil. Então, aí foi indo, bateu um milhão e 300, eu acho, na noite. Nem todo mundo pagou, esses 300, por exemplo, nunca recebemos. Tem gente que diz que dá, mas nunca mais veio. A Kátia ficava aqui atrás, nunca conseguiu que eles dessem. Mas um milhão ficou, hoje em dia a gente tem um milhão.
P/1 – Isso entre brasileiros e americanos, ou mais brasileiros?
R – Lá? Esse gala que foi o que mais recolheu dinheiro, porque fora o dinheiro do endowment teve o dinheiro de doação, de tudo. Ele recolheu praticamente quatro vezes o que a gente conseguia. 80%, mais ou menos, foi dinheiro brasileiro, não foi dinheiro americano. Foi dinheiro brasileiro.
P/1 – Susane, eu queria que você me contasse também um pouco do encontro em Itatiaia.
R – Vou te contar um pouco desse ano, desse nosso décimo ano. Bom, estamos fazendo dez anos de idade e sei lá, eu achei que era importante ter um momento de parada, de reflexão, de análise, de recuperação também de história, sei lá, tudo isso que a gente tá tentando fazer. E foi bom porque eu fui à Nova Iorque o ano passado, na época do gala, eu tive uma reunião com o ______ e propus essa ideia, torcendo para dar certo. E deu certo, toparam. Entenderam muito bem, perguntaram: “Mas para quê? Mas como?”. Aquela coisa, mas deu certo. Então ficou fechado que esse ano é o décimo ano da Brazil Foundation e ele ia se desenvolver de maneira diferente. Abriríamos um edital só para projetos apoiados pela Brazil Foundation, para instituições apoiadas pela Brazil Foundation. Fizemos um levantamento, o monitoramento aqui procurou com muita luta tudo que a gente apoiou, o Brasil todo, porque tem uns que não têm mais telefone, mudou, mudou. Enfim, tem de tudo. Descobrimos que a gente tem 183, 183 instituições e 228 projetos apoiados, porque algumas receberam duas vezes. Então 183 foram apoiadas, foram contatadas, pedimos que... Então mandamos um formulário explicando o que a gente pretendia, perguntando algumas coisas. 120 responderam. Desses 120 a gente fez uma seleção também complicada, difícil, olha, pergunta, segundo formulário, que foi muito bonito, porque desse segundo formulário a gente descobriu muitas coisas boas que estavam acontecendo com essas instituições, que a gente nem sabia mais porque 2002, 2003, enfim, de todos esses anos, e conseguimos selecionar 20. Eu jamais diria que são os 20 melhores, mas eu diria que com esses 20 a gente conseguiu de alguma maneira desenhar realmente o universo de projetos que a Brazil Foundation vem apoiando, com todas as suas variáveis. Mas a gente ficou muito conflitado, porque tem alguns projetos que são de grande sucesso e que a gente não escolheu. Então criamos outra categoria, que seria a categoria de destaque, que são esses projetos que tiveram desenvolvimento excepcional. E ainda sobraram outros projetos que a gente não sabia o que fazer, aí criamos outra categoria que chamou Menção Especial e que passaram a integrar o nosso banco de projetos desse ano. Porque são projetos bons que poderiam fazer um bom uso de alguns, uma ajuda extra e tal. E propondo a esses, quer dizer, quem está dentro do projeto vai passar um ano, ele recebeu um dinheiro, um recurso, ele vai passar um ano dedicado à recuperação da história, da trajetória deles, a estruturação da metodologia, a sistematização da metodologia, que eu vou explicar o porquê que é. E no final vai haver uma avaliação e pra essas três etapas foram contratados técnicos de fora. A questão da memória é o Museu da Pessoa que tá fazendo, um sociólogo mexicano foi contratado pra fazer a sistematização, essa sistematização não é uma coisa fácil, até porque muito desses projetos criaram metodologias, eles nem sabem que criaram metodologias, nem sabem o que é metodologia. Eles agora vão ter que reconhecer essa metodologia e mais ou menos organizar, não sei o que vai acontecer, estamos aí aguardando, mas acho que vai ser interessante. E a avaliação final, na verdade eles vão receber algumas ferramentas, mas a avaliação é muito mais lá pra Brazil Foundation. A Brazil Foundation vai fazer todo esse processo também, já está fazendo estando aqui. E a avaliação final são dois avaliadores que vão, com base nos resultados desses projetos e na gente, eles vão fazer uma avaliação do que foi o trabalho da Brazil Foundation nesses dez anos. Eu gostaria, eu tenho dois objetivos com esse projeto na verdade: um, eu gostaria de poder mostrar publicamente por livro, com evento, através de nosso site, de outras maneiras que a gente conseguir imaginar nesse mundo que muda, o que realmente você faz. Porque as pessoas acham o maior barato, acham formidável etc, mas o que realmente se faz? O que significa realmente dar 20 mil, 30 mil reais pra um projetinho no cafundó do Judas e o que ele consegue fazer, a gente consegue que ele faça, e o que significa isso dentro do contexto brasileiro. Isso não é uma coisa simples, as pessoas não têm noção, as pessoas não têm noção do que está acontecendo no Brasil e não têm a noção do que a gente faz também. Então eu acho que teve um sucesso enorme o a no passado, do gala e saiu em tudo que é jornal etc, mas ninguém sabe o que a Brazil Foundation faz. Todo mundo sabe que teve um gala, que a Gisele Bündchen foi, que ela doou o vestido dela, que ela bonita e simpática, também acho. Mas ninguém sabe realmente e vou te dizer mais, nem as pessoas que deram, que estavam lá realmente sabem muito.
P/1 – Talvez nem queiram saber.
R – Eu não sei. É outro mundo, é outra língua, é outro mundo, é outra questão.
P/1 – Outra realidade.
R – Outra realidade, outra questão. Então eu acho que a gente tem que dar uma resposta, não vou dizer da minha maneira, porque não é, mas de um mesmo nível: “Bom, olha, aconteceu tudo isso, agora quem quiser pode vir”. Mas a gente tem que fazer essa resposta, é isso que a gente tá tentando. Então isso é um objetivo claro. O segundo objetivo é que a gente realmente pare, analise, reflita sobre tudo que fez e possa vir a definir uma nova política de doação e toda uma sistemática de trabalho, que a gente possa ajustar o que precisa ser ajustado, a gente continue com o que faz bem e possa crescer com conhecimento da nossa estrutura e da nossa capacidade. Porque até hoje, em dez anos, a gente cresceu relativamente. Vinha uma demanda e a gente trum, vamos fazer. Ia criando aqui, ia atrapalhando aqui, lá íamos nós e fizemos muita coisa. Mas eu acho que é um momento muito interessante esse e uma possibilidade que todo mundo assim: “Puxa, ninguém nunca fez isso. Nós nunca fizemos, nós gostaríamos de fazer, mas nunca tivemos essa chance”. Então é um momento bem bacana e a gente tem que saber aproveitar. Não é fácil também.
P/1 – É hora de sistematizar um pouco o que vocês fizeram, do aprender fazendo, né?
R – É. Sistematizar o que a gente faz, reconhecer o que a gente faz bem, reconhecer o que a gente faz mal, melhorar o que a gente pode melhorar, traçar novos caminhos. Nós temos alguns anos pelo frente, que não serão necessariamente comigo, mas eu ao menos gostaria de formatar um pouco os próximos passos.
P/1 – O que é a sua visão para esse futuro? O que você acha que é importante para essa continuidade, para a própria Brazil Foundation continuar a se desenvolver assim?
R – O que é importante? Eu sei lá. O que é importante é que haja recursos e haja pessoas que saibam o que estão fazendo e queiram fazer as coisas. Queiram fazer as coisas de uma maneira condizente com os reais objetivos, que não se percam aqui dentro, nem as pessoas que estão aqui que trabalham aqui, nem as pessoas que estão fora e que apoiam, que não se percam os valores reais, as capacidades possíveis e o que se deseja fazer. O Brasil tá mudando, vai mudar mais, talvez o trabalho tenha que mudar de acordo, aliás, talvez não, certamente terá que mudar, mas tem muita miséria ainda no Brasil, muita necessidade. Eu não falei em miséria porque a gente nem trabalha com a miséria, a Brazil Foundation nunca trabalhou com a miséria. Mas tem muitas necessidades, muitas possibilidades, muitas potencialidades e eu gostaria de poder pensar que poxa, a gente vai encontrando os caminhos certos, assim como a gente encontrou o ______, assim como a gente conseguiu desenvolver algumas coisas, que a gente possa caminhar nesse sentido. Vou te contar uma historinha, talvez pra acabar. Eu ontem fui ao Gife de manhã, depois de tarde fui numa enorme empresa, que tá entrando no Brasil, imensa e ele disse: “Ah, nós queríamos trabalhar, nós queríamos apoiar a educação. O Brasil precisa muito de educação”. Eu digo: “Tudo bem. Que educação você quer apoiar? O que é essa educação? Você quer apoiar o quê? Educação ambiental? Você quer dar educação profissional? Você quer apoiar os professores, o ensino? Você quer apoiar... O que você quer apoiar na educação? Criança, jovem, velho? Educação é um mundo”. Aí ele ficou me olhando assim: “É. Não sei”. Eu disse: “Olha, eu não...”. Foi muito interessante aquela entrevista ontem, pra mim eu achei que foi muito boa, porque eles tinham preparado um material pra fazer uma projeção, não levei nada para projetar, nem pretendia e eu disse: “Eu não vou falar, eu gostaria de primeiro ouvir de vocês pra entender o que vocês querem, porque tem várias respostas que eu posso dar dentro do tipo de trabalho que a gente faz. Não vou ficar gastando aqui o meu tempo e o de vocês dizendo. Eu quero saber o que vocês querem”. Aí veio a história da educação e ele disse assim: “Realmente não sei”. E a história... A gente conversou, contei algumas coisas nossas, levei relatório etc. Mas no final ele disse: “Olha, nós vamos ter que nos reunir, pensar e depois a gente vai voltar a conversar”. Então é isso que eu vejo, quer dizer, as pessoas entram, dinheiro eles devem ter muito, não sei se vão aplicar, mas muito: “Ah, o Brasil precisa de educação, nós estamos entrando no Brasil, vamos fazer educação”. O que é isso gente? Não é bem assim que a coisa... Não é assim, não é. Então essa maneira de reconhecer e de pensar, eu gostaria de ver as coisas todas tanto da Brazil Foundation como no Brasil mesmo, essa coisa de você poder buscar caminhos, tem muita coisa errada, muita coisa mal feita. Mas eu acho que o brasileiro, eu reconheço no brasileiro, que eu aprendi também a conhecer mais na Brazil Foundation, muito talento, muito talento em várias coisas, muito talento, muito potencial, muitas capacidades, vamos ver se dá para aproveitar todas elas. É isso, acho que é isso.
P/1 – Susane, o que foi um grande aprendizado seu aqui nesses anos todos? O que você destaca como seu grande aprendizado?
R – Foi esse. De conhecer o Brasil, conhecer o brasileiro e de descobrir uma coisa também, eu lidava num outro mundo bem charmoso, de artes, de cultura e eu descobri que eu gosto muito desse mundo aqui. Gosto, gosto muito, aliás.
P/1 – Foi outro lado seu que você descobriu.
R – É. Um lado meu que se adequou, ou sei lá, já existia e eu nunca tinha usado, nunca. Foi bom. É bom, eu me sinto muito feliz com isso.
P/1 – Susane, eu queria que você destacasse, um pouco (arruinado?) com a fita, que o Cláudio ameaçou, mas eu queria que você destacasse uma... O que mudou na Brazil Foundation desde o início e o que permanece ainda mais ou menos com a mesma carinha lá do primeiro ano?
R – Olha, eu acho que o que mudou foi a metodologia, a sistemática, as capacidades de a gente ir lidando, a ampliação das nossas ações, que nem tanto mudou como desenvolveu, foram se ampliando. Mas o que permanece, eu espero até que permaneça, sei lá se permanece, é aquilo que eu te falei em algum momento aí: é uma clareza quanto aos valores e uma clareza quanto ao que é realmente importante, para quê existe tudo isso. Sabe, um monte de dinheiro, um monte de gente trabalhando, qual é o objetivo final disso tudo. Aí eu acho que é isso.
P/1 – Susane, eu vou encaminhando, infelizmente, para o final, antes que a gente estoure mais uma fita, mas eu acho que a gente ainda podia ficar mais uma hora, ainda ficou coisa de fora.
R – Ah, ficou muita história divertida, mas um dia eu conto.
P/1 – Eu quero que você me conte, sorteie aí uma história sua.
R – Ah, tem muita história.
P/1 – Eleja uma história que você...
R – Ah, não sei. Não sei qual que eu poderia...
P/1 – Uma engraçada, uma que tenha te tocado, alguma que a tua memória te traga.
R – Tem tantas, tem muitas. Tem muitas interessantes. Mas eu acho que, por exemplo, vou... É uma aqui, já é meio conhecida, mas eu acho bacana, que é um projeto que se chama Coração de Estudante, o Prece, que se desenvolve... Começou num lugar chamado Cipó, depois em Pentecoste, que hoje em dia é um projeto muito forte de educação no interior do Ceará. Quando eu fui pra lá eu encontrei esse professor, é um professor doutor de Biologia, mas que nasceu lá em Cipó, vive, e que eu o encontrei em Fortaleza e ele começou a me contar, ele tudo assim, tal, do projeto, não sei o quê. Eu disse “interessante isso, como ele trabalha”, como ele ia todo fim de semana com uma Kombi, naquela época era uma Kombi velha, que ele ia para lá e ensinava seus alunos filhos de agricultores lá, para que eles pudessem entrar no vestibular e que tava... Como a coisa tava andando, não sei o quê. Eu achei muito legal, eu disse: “Eu gostaria de ver”. Ele disse: “Você quer ir a Cipó?”. Eu disse: “Eu quero”. Então ele foi lá, pegou o carro dele, me pegou, porque eu falei, eu não sabia nem onde era, fomos nós pra Cipó. Cipó fica cento, acho que 130 quilômetros de Fortaleza. Não é nem um fim do mundo, mas tudo lá é um pouco mais complicado. Eu tava morrendo de fome já, porque era fim de tarde, seis, sete horas da tarde e passamos por um barro, uma coisa na estrada, aquela estrada foi ficando cada vez pior, digo: “Gente, vamos dar uma parada, a gente toma um café”. Aí eu pensei: “Então eu faço um lanche, compro um sanduíche, porque esse negócio vai esticar”. Aí paramos e só tinha café de garrafa e uma tapioca fria muito ruinzinha. E ponto. Não tinha mais nada. Então vamos tomar café com tapioca, porque eu tava vendo que a coisa ia ser complicada. E fomos lá de café com tapioca e fomos lá pra Cipó onde ele me mostrou a casa de farinha que o pai dele tinha doado, onde ele fazia as aulas etc. E voltamos, depois tivemos outro encontro, ele com outro rapaz que trabalhava com ele, lá em Fortaleza de novo e me explicando, ele era muito politizado também, ele começou com uma linha assim, de política, de esquerda. Eu digo: “Olha, Manoel, vamos fazer um negócio? Não entra em política porque vai complicar. Você vai melhorar esse teu projeto, porque...”. Ele fazia lá várias assertivas, aquela coisa: “Faz o teu projeto como ele é, porque ele é bom”. E o apoiamos. E ele é um dos projetos que a gente sempre cita, porque não só aqueles meninos entraram, como depois deles já são 400 que entraram na universidade. Ele já tem dois doutores, não sei quantos mestres, tem 13 células educacionais, porque aqueles que se formam, já estão no fim, abrem novos grupos. Ele é uma potência lá e ele lutou muito, porque muita gente era contra etc. E a gente foi acompanhando, eu fui lá mais umas duas vezes, porque de vez em quando ele... Bom, aí Manoel, dois meses depois ele recebe a primeira parte dele com todo um orçamento que a gente fez aqui, ele telefona e diz assim: “Olha...”. Acho que não eram nem dois meses, era até menos: “O dinheiro acabou” “Como Manoel? Esse dinheiro era para seis meses. Como acabou?”. Aí ele disse: “Quebrou a Kombi, eu tinha que consertar, não tinha dinheiro, sem Kombi eu não posso ir lá. Consertei a Kombi”. Aí eu: “Pedro”. Bom, aí a gente aqui: “Ah, o que a gente faz?”. Não tinha o que fazer: “Tá bom Manoel, você se vira, você vai receber a outra parte depois”. Tá resolvido. Ficou a Kombi. Depois demos o resto. Olha, sempre foi um problema, ele não conseguia preencher os orçamentos, ele dizia que não era assim, era assado. Era uma confusão, ele era muito confuso, mas terminou o projeto e o projeto era bem legal. E a gente ficou com ele, depois arranjamos outros apoiadores para ele, a gente tá sempre junto com ele. Mas eu vim saber por ele, muito tempo depois, quando ele veio pra uma capacitação aqui já na segunda vez que a gente apoiou, que ele não tava nem falando comigo, tava falando sobre isso com outras pessoas, acho que pra Leona e mais alguém. Ele disse: “Olha, quando a Susane esteve lá a gente tava com a corda no pescoço total. Se vocês não tivessem apoiado eu ia desistir do projeto, eu não tinha mais como”. Então aquele apoio fez com que tudo acontecesse. Depois ele teve outro etc. Ele não me disse isso, nem eu sabia, porque eu não entendi, sei lá, eu cheguei lá tinha toda uma coisa. Então eu acho que esse é um exemplo muito interessante de como você... Às vezes você atira no que vê e acerta no que não vê, isso já aconteceu com outros aqui. A gente acha bom, a gente apoia, depois vem descobrir que o projeto tava péssimo, de repente ele cresceu pra burro, que a nossa entrada com aquele dinheiro que nunca foi grande, mas que a nossa entrada, nosso apoio, realmente fez diferença. Ele disse: “Eu tava desistindo, tava desesperado”. Então é uma história que eu acho bacana, tem outras e eu fico muito, sou muito assim... É, tem alguns desses projetos que me deixa assim, muito orgulhosa, sinto meio mãe. O Manoel, Grota, a ________, que são assim, tipo filho, sabe aquele... Mas tem outros ótimos que cresceram sozinhos também.
P/1 – E você continua com a mesma empolgação para enfrentar os 800 projetos a cada ano? Porque é um tempão, que você me disse que só de __________.
R – Não. Isso eu quero mudar. Isso é uma das coisas que eu acho que o custo benefício não é justificável. Se a gente tivesse uma montanha de dinheiro, que pudesse apoiar muitos projetos, a gente tinha pensado se valia a pena, mas dentro da nossa a coisa tem que mudar, mas tem que ver como é que a gente pode mudar essas coisas sem perder essa nossa diferença, sabe? Essa nossa capacidade de descobrir coisas, de apoiar outros. A gente tem que... Não sei. Vai ter que ser pensado tudo isso. Mas acho que isso tem que mudar, não tem mais sentido a gente ficar cinco meses trabalhando, lendo milhares de projetos, trabalhando em cima de uma coisa louca pra apoiar 20, 25. Tem que mudar. Tem que mudar, tem que apoiar mais tempo, tem que mudar, tem coisas a mudar. Eu acho que esse nosso processo desse ano é um processo que vai nos permitir avaliar. Aí você gostaria que eu falasse em Itatiaia, eu vou falar e a gente podia acabar realmente. É que dentro desse processo a gente fez essa escolha de 20 e programamos um encontro, uma capacitação num hotel em Itatiaia que nós fechamos, um hotel lindo que tinha macacos, bichos, um monte de coisa. Fomos 60 pessoas pra lá, dois gestores de cada projeto, isso também é uma especificidade nossa, a gente trabalha sempre com dois. Dois gestores de cada projeto, mais uns técnicos externos, mais a equipe toda. Enfim, não sei, eram 60 ali dentro. Passamos três dias lá, a equipe de teatro foi também. Pela primeira vez veio a equipe de Nova Iorque, três pessoas. Então era um grande encontro, que foi muito legal, foi muito legal. Aí teve uma divisão de pessoas que vão trabalhar com memória, que ficaram com o Museu da Pessoa, um gestor de cada um dos projetos e alguns nossos. E outro que grupo que ficou com a metodologia, depois teve uma última noite de bebidinha, violão e algumas coisas engraçadas acontecendo. E teve a presença de alguns gestores, figuras muito diferentes, uma índia, uma senhora velha índia, muito marcante, o ______, sei lá. O pessoal das mulheres do Pará, coisas assim que são bem marcantes. Todos foram entrevistados, mas aí não é uma entrevista de cinco horas, era uma entrevista de quê? Quinze minutos, meia hora mais ou menos. Alguns disseram coisas muito importantes, no momento a gente tá editando todas elas, transcrevendo e vamos editar, vamos levar a público. E foi o começo, na verdade ali foi o start do projeto Brazil Foundation 10 anos, que vai acontecer esse ano todo, depois o ano que vem vai ter que acontecer outras coisas.
P/1 – Mas vocês estão prevendo fazer um livro então? Como resultado dessa ______.
R – O livro certamente. Eu quero fazer um evento, não sei ainda o desenho desse evento, queria um evento diferenciado que eu não sei ainda qual é. Mas isso vai entrar também no site, sei lá, a gente vai usar tudo que a gente conseguir. Como vai usar eu não sei, mas tem que ter, primeiro semestre do ano que vem tem que ter coisas que são resultados desse trabalho. E que espero que seja realmente uma contribuição, não só para a Brazil Foundation, mas eu acho que é uma contribuição pra quem quer conhecer um pouco desse campo social que acontece, porque a gente agora editou dois depoimentos só, por enquanto. Olha, é uma declaração, declarações... Um deles é de um agricultor que é analfabeto e o outro que desenvolve uma tecnologia de recolher a água e aproveitar a água no interior da Paraíba, que é uma coisa fantástica e que quatro páginas de jornal de um político não diz a metade do que eles dizem ali. Simples. Em 15 minutos cada um. Então tem que ver como a gente vai botar isso no ar. Tem que botar.
P/1 – Aproveitar todo esse material.
R – É. Tem que aproveitar.
P/1 – Susane, enfim, vamos terminando, queria saber se tem... Certamente a gente deixou algumas coisas de fora, tem alguma coisa só mais que você queira assim...
R – Olha, eu devo te confessar que depois de quatro horas, eu to morta de calor, cansada, eu devo ter deixado muita coisa fora.
P/1 – Você deixou algumas coisas, mas quem sabe a gente ainda faz depois mais uma curtinha, meio temática _____.
R – Pode ser que se um dia a gente lembrar e depois que você tiver feito outras entrevistas, você tenha necessidade de um fechamento eu juro que eu faço, mas no momento encerrei a minha capacidade.
P/1 – Então você gostou de ter dado o seu depoimento?
R – Eu acho que eu gosto de falar, né? Eu descobri isso. Não, é legal. É legal porque você tem que rever uma porção de coisas, né? E é legal. Enfim, eu não propus um ano assim, isso aí faz parte, de rever, rever é importante.
P/1 – Então Susane, eu queria agradecer também você ter essas quatro horas nesse calor que também não é fácil.
R – Você também. Você também. Aliás, todos aqui.
P/1 – Obrigada.
R – Devem ter se divertido um pouco.
[continuação]
P/1 – Susane, boa tarde. A gente vai continuar, retomar sua entrevista, que aquele dia foi um pouco exaustivo, mas pra pegar alguns pontos _________.
R – Que ficaram faltando.
P/1 – Uma das coisas, vendo a sua entrevista, que você falou dos critérios que vocês utilizavam, até as classificações A, B, C e D. Você disse: “A gente mudou e não usa mais isso”. Como, hoje em dia, vocês selecionam? Como é o processo de seleção?
R – Pois é. Interessante você falar isso agora, porque como nesse processo de dez anos em que uma das partes importantes vai ser a sistematização de tudo que a gente faz, é ver a sistematização de toda a metodologia de seleção. Depois a sistematização de todo o nosso processo de monitoramento, a sistematização do acompanhamento mais próximo, que também tem certas formas de fazer ou não fazer. Inclusive uma avaliação que na verdade nós estamos contratando uma para fazer por fora, mas existe uma avaliação constante e a partir dessa avaliação constante que foram mudadas tantas vezes os critérios. Realmente, praticamente de uma seleção para a outra, nesses dez anos a gente sempre sentou, reviu os editais, ampliava, cortava, trocava, revia os processos de seleção. Já foram mais longos, já foram mais curtos. Porque parece, às vezes eu acho que é até difícil de imaginar, mas quando a gente recebe mil projetos, mais de mil, ou um pouquinho menos de mil pra ler e ler com algum critério, é uma coisa imensa, é uma coisa imensa. E se você não for tendo algumas referências e uns parâmetros, chega um momento que você já não consegue nem diferenciar uma coisa da outra. Então, na verdade, hoje em dia como é que a gente faz esse processo? Esse ano a gente vai sentar pra refazer tudo, mas mais ou menos eu acho que não muda muito. Quando chegam esses projetos todos eles são lidos por uma equipe de três, quatro, cinco pessoas, depende do número de projetos. E a primeira leitura vai eliminar todos aqueles que não correspondem ao básico. O que é o básico? Ele tem que ter CNPJ, tem que ter um estatuto, tem que ter chegado na data certa, tem que ter respondido dentro dos formulários certos, tem que vir com o orçamento dentro do orçamento certo. Quer dizer, tem aquela coisa absolutamente básica. Quando ele não tá, ele não preenche qualquer uma... Tem que vir com um cd gravando tudo que ele fez. Quando não vem qualquer uma dessas questões, ele vira um FC. FC chama-se fora dos critérios. E é muito interessante pensar o seguinte: 30% dos projetos que a gente recebe, mais ou menos, cai fora nessa triagem e às vezes é por uma bobagem. Quer dizer, você percebe que as pessoas recebem o edital, sentam para fazer um projeto, que não é tão fácil, tem muitas coisas para responder, e escorregam no fim. Faz aquilo tudo, mandam e não mandam o cd. Faz aquilo tudo, mandam e não mandam o papel da entidade. Se a gente recebesse cem projetos a gente telefonava pedindo, mas para quem recebe mais de mil não tem condição. Não preencheu ele cai fora. E é uma pena, porque às vezes dá uma pena enorme, que a gente sabe que aquilo deu algum trabalho, mas o que nós vamos fazer? Nós temos que ter um critério senão a gente enlouquece, realmente.
P/1 – Vocês já botaram um alerta no site, sobre isso?
R – A gente bota um alerta, a gente bota em negrito, a gente grifa. As pessoas não estão acostumadas a ler e prestar atenção. Assim como eles não leem e prestam atenção no contrato que eles fecham com a gente, eles assinam um contrato e a gente descobre mais tarde que eles não leram direito, que eles não sabem o que pode rescindir um contrato, eles não sabem que tem datas etc. E olha que realmente a gente tenta ser mais simples possível dentro daquilo que a gente precisa pra ter o mínimo de segurança. Então isso é um treinamento que já melhorou, eu acho que já foi pior. Hoje em dia a gente percebe que os projetos estão mais preparados, as ONGs estão mais preparadas, estão mandando as coisas, mas assim mesmo cai um bom número. Bom, aí aquelas que sobram, todos serão catalogadas e serão divididos por tema, por área temática. E cada um dos analistas que vai ler aquilo tem, não vou te dizer que é uma especialização, mas já tem certo caminho feito dentro daquela área, alguém que lida com educação, alguém que lida com saúde, que vai ler os projetos mais dessa área. Ao ler esses projetos, esse analista estabelece um parecer, ele escreve um parecer e hoje em dia a gente não dá mais nota. Ele pode ser... Antigamente a gente até atribuía valores, resolvemos que não funcionava. A, B, C, D a gente ainda usa um pouco, bastante assim nesse momento, porque você vai ter os melhores projetos, aqueles que são considerados melhores que vão virar A, B. C aqueles que são mais ou menos e D aqueles que são muito ruins, então a gente não volta a trabalhar com eles. E, na verdade, dado grande número de projetos, a gente procura trabalhar praticamente com os projetos A, no máximo B. Mas já aconteceram coisas assim de a gente procurar: “Ah, vamos dar uma revisão no C, porque tem poucos projetos de algum tema”. Escolhe um do C e acaba que ele vai ser o melhor projeto do ano, ou quase o melhor. É tudo muito complicado, viu? Tem uma área muito subjetiva também, a gente tem que reconhecer isso, dependendo do analista que lê. Porque chega um momento, depois que você preencheu todas aquelas coisas de critérios básicos, entra também aquele teu know-how, aquela percepção que tem alguma coisa nesse projeto que é interessante. Então aí entram algumas coisas, por exemplo, que eu to aqui olhando pra esse quadro do Brazil Foundation 10 anos e um dos projetos que foi escolhido foi um dos projetos mais simples que nós já recebemos, veio numa linguagem muito simples, o que ele pedia era muito simples. Eu acho que até posso contar exatamente que o projeto é, ou nem sei se devo.
P/1 – Pode contar.
R – Pode? É o projeto da dona _____, que eu nem me lembro como se chama, é de da Lagoa da Boa Vista.
P/1 – Arte na Roça.
R – Arte na Roça. E a dona ____ dizia o seguinte: “Eu moro numa comunidade muito pequena que não tem nada pra crianças, nem para jovens. Então eu ensino a esses jovens, há dois, três anos, umas danças locais típicas para que eles se reúnam e possam dançar. Só que eu só sei três e eles agora estão enjoados, porque eles não querem mais essas coisas. Então o dinheiro que eu queria era poder trazer uma pessoa aqui pra ensinar novas danças”. Uma coisa muito simples, mas tinha alguma coisa naquele projeto. Quem leu disse assim: “Gente, eu não sei. Lê o outro”. Aí a gente sempre se reúne pra ler, pra discutir. E vamos arriscar o projeto, demos um Prêmio Incentivo. Prêmio Incentivo que foi criado exatamente para esse tipo de coisa, é a metade do prêmio que se dá e é dado porque a gente chama de projeto de risco. Se é para perder, perde ao menos só a metade. Mas vale a pena, porque você aposta em alguém ou alguma coisa que a gente achou que vale a pena. Eu devo te dizer que hoje em dia é um dos melhores projetos, como resultados, que a gente tem. A comunidade cresceu imensamente, a dona ____ cresceu imensamente, fez parceria com a escola, conseguiu da secretaria da educação uma oficina de inclusão digital, tem 20 computadores, ela nem sabia o que era um computador na época. Olha, é incrível o resultado dela. Então tem essas coisas que são histórias, que para nós são muito gratificantes, mas entra um feeling, sabe? Entra um feeling. Outro projeto ótimo, maravilhoso, que é super premiado internacionalmente, que é o Lua Nova, a primeira vez que ela mandou não entrou. Ela ficou entre os semifinalistas, depois da visita ela não entrou. Quem foi visitar disse: “Olha, tem uns problemas lá que eu não vou... Não acho...”. Aí a gente avisou-a o porquê e tã-nã. No ano seguinte ela mandou...
P/1 – Você se lembra o que era que pegava?
R – Lembro. Mas eu não sei se eu devo contar.
P/1 – Então não conta.
R – Eu lembro. Eu lembro. Era uma coisa bastante interna do tratamento às moças, que é projeto difícil e lindo. É um projeto lindo. Depois que ela entrou, ela também tem uma carreira sensacional, não só por nossa causa, bastante por eles mesmos. Mas estão muito próximos, a gente vem acompanhando. Então esse tipo de instinto eu diria, que vem de prática, vem de sensibilidade, vem da troca também, porque como a gente depois senta cinco, ou seis dos analistas, quem trabalhou senta e discute projeto por projeto, aquilo que acha bom, aquilo que acha ruim, como é.
P/1 – A Leona falou muito do seu olho.
R – É.
P/1 – Você sempre teve um olho pra...
R – Pois é. Eu não sabia que tinha, não, viu? Mas eu descobri nesse trabalho que eu tenho olho. Então...
P/1 – Para saber em quem apostar.
R – Pois é. Eu tenho o olho assim, de repente eu olho, às vezes eu penso: “Tá tudo certinho, mas não sei. Não dá”. E o contrário, às vezes é tudo meio confuso, mas eu digo: “Gente, essa gente merece”. Então não sei. Não sei te dizer de onde vem isso, mas acontece. Por exemplo, outro projeto, foi um projeto muito bom, super bem feito, super adequado ao local. Lá fui eu lá na Bahia, não sei aonde, lá no interior, não tinha nada. Não tinha nada. O que tinha era que o cara que escreveu o projeto para as pessoas tinha essa especialidade em escrever projetos. Quando eu cheguei lá ele achou que eu era do ministério da educação, porque ele tinha mandado outro projeto para o ministério da educação. No meio da entrevista é que eu disse a ele: “Você tá achando que eu sou quem?”. Porque o que ele me dizia não tinha nada a ver com o projeto. Aí que ele disse: “Ué, você não é do ministério da educação?” “Ãhã”. Isso lá no interior da Bahia, lá dentro de um carro que subia numa colina enorme, onde em cima era a tal da sede deles. Eu tenho essa foto aqui. A sede lá construída era um telhado, uma casa com uma porta e dentro não tinha nem uma cadeira. Não tinha nada. Então essas coisas são muito interessantes porque você percebe. Nesse mesmo ano eu fui também ao interior da Bahia, que é em Tucano e tinham dois meninos me esperando, dois rapazes, 18 anos, que eles não têm sede. Aí eles disseram: “Olha, a gente não tem sede. Uma organização lá nos emprestou”. Então tinha o quê? Era uma garagem, uma espécie de uma garagem, eu sentei-me à mesa com aqueles dois meninos e quando eu saí, uma hora depois, disse assim: “Eles vão ser apoiados”.
P/1 – Não vão ser?
R – Eles vão ser apoiados.
P/1 – Era o quê o projeto?
R – É um projeto que eu considero um dos projetos mais importantes que a gente tem, que é o Coletivo Juvenil, Coletivo Jovem que ele se chama, do interior ali da Bahia, onde jovens filhos de assentados fazem controle social do orçamento do município, dos municípios ali. Então o que o menino me disse: “Ah, esse prefeito...”. Era nessa época, era São João. Tudo engalanado, cheio de laço lá, sabe? Todas enfeitadas, cidadezinhas todas. Ele disse pra mim: “Ah, esse prefeito gastou mais de 100 mil reais enfeitando essa cidade e não vai sobrar nada pra gente depois. Os jovens daqui não têm um campo de futebol, não têm um lugar pra se reunir, não têm nada. Todo ano ele gasta, gasta e não sobra nada. A gente não quer mais isso, não. A gente quer que pensem na gente”. Isso eu não sei reproduzir o discurso porque ele falava tão bem, os dois falavam tão bem que eu fiquei muda lá ouvindo. Muito, muito... E eles...
P/1 – Muito mais responsáveis que o próprio prefeito.
R – Muito. Mas mais do que isso, quer dizer, são jovens preocupados com o orçamento, preocupados com o futuro, com uma noção muito clara do que é ser cidadão, muito clara do poder que eles poderiam ter nesse controle. Aí eu vou te contar uma história engraçada. Eu tava até com uma fotógrafa que veio voluntariamente comigo pra gente fotografar lá nesse projeto. Eu disse: “Bom...”. Tava meio tarde e eu disse: “Tem alguma pousadinha em algum lugar para a gente dormir aqui, porque ficou meio tarde”. Ele disse: “Olha, aqui não tem, não. Mas se vocês forem a dez, 20 quilômetros daqui tem uma cidadezinha que é uma cidade turística, vocês vão gostar, tem um hotel bom e tal”. Lá fomos nós. Pena que eu não me lembro do nome dessa cidade, mas essa cidade é uma cidade que tem água quente que vem da terra. Então chegamos à cidadezinha, a primeira coisa que a gente via é aquela praça enorme, cada arvorezinha da praça tinha laçarote desse tamanho, porque tava preparada também para o São João. No meio da praça, eu tenho isso tudo fotografado, uma construção com um monte de chuveiros, uns dez chuveiros, 20 chuveiros, um monte de chuveiro e embaixo desses chuveiros um monte de homem de calção tomando banho. Aí eu disse: “Gente, o que será isso?”. Ali vinha água quente e os homens todos tomavam banho, todo mundo tomava banho. Mas era muito engraçado, porque ali só tinha os homens e eu perguntei pra alguém: “Escuta, e as mulheres não podem tomar banho não?”. Porque eu já achei uma coisa bacana, quero tomar banho também. “Olha, poder pode, mas imagina se você ia para o meio da praça, no meio daqueles homens todos”. Tudo de calção, barrigudo. Aí acaba o banho eles jogam uma toalha nas costas e andam como se tivesse em Copacabana. Andam de calção, com uma toalha e vão pra casa. Muito engraçado. Muito engraçado. Nós perguntamos... Eu queria tomar banho daquela água e a gente perguntou lá no hotelzinho, um hotelzinho bom. E o homem ainda disse pra gente: “Olha, bom que...”.
P/1 – Só um minutinho pra gente... Retomando, você perguntou se tinha...
R – Eu perguntei que eu queria tomar banho também. O cara do hotel disse: “Não. Se vocês acordarem cedo de manhã tem um lugar ali perto que é mais retirado, que é cobertinho, fechado e as mulheres gostam de tomar banho lá”. Então eu disse: “Cristina, é lá mesmo que nós vamos”. Então lá fomos nós e tomamos banho cinco e meia, seis horas da manhã, que é uma água quente, é uma água quente. Mas foi muito divertido, porque é uma coisa você não espera, não imagina. Aliás, essa viagem foi uma viagem bem legal porque eu fui com essa moça que se chama Cristina ____, que é uma fotógrafa, que mora em Nova Iorque. Tá em Nova Iorque, mas o marido tava aqui por um ano, então ela também veio. Aí um dia ela bate aqui e diz: “Ah, eu quero fazer uma coisa voluntária, quero fotografar”. Eu disse: “Olha, eu to saindo pra uma viagem, quer vir? Vem”. E a gente se deu super bem, lá fomos nós fazer essa viagem. Dali, por exemplo, a gente foi pra outra cidadezinha, são tudo cidadezinhas, no interior da Bahia e esse até não foi apoiado. Não era ruim, mas não foi apoiado. Então a gente conversou lá com as pessoas, tal e a gente acabou alugando um carro com chofer, porque tava muito difícil o translado dessa cidade para outra, porque também não tinha como. Então a gente tinha um... Era um pernambucano que era o chofer da gente, com o carro também... Mas ele era legal. A gente acabou ficando mais porque disseram: “Vai ter uma procissão”. Eu disse: “Então a gente espera a procissão, que você vai fotografar a procissão”. E oito horas da noite a gente disse: “Bom, não é tão longe a outra cidade, a gente pega o carro e vamos embora”. Aí fomos comer. Tinha um lugar, um barzinho, fomos comer. Quando terminamos de comer veio lá o pernambucano e disse assim: “Olha, eu vou não” “Como vai não?” “O moço aí do restaurante disse para mim que quando a gente sai daqui, que passa numa encruzilhada que ali adiante da estrada, quem passa lá depois dessa hora vai ser assaltado. Todo mundo já sabe que ali tem assalto. Vou não”. Digo: “Você não vai nem eu. Não vamos ninguém. Agora vamos alugar um lugar pra dormir” “Ah, tem uma pousada aí, vamos perguntar, tem uma pousada nova, vocês podem ir pra pousada”. Fomos lá atrás da pousada. A pousada eu não descrevo, custava dez reais por pessoa pra dormir, mas também só tinha eu e ela, então não tinha problema nenhum. A gente dormiu na tal pousada e pronto. No dia seguinte de manhã nós fomos embora. Então tem esses inesperados que vão te acontecendo. Eu, pessoalmente, adoro. Para fazer companhia tem que ser alguém que tope.
P/1 – Susane, dessas viagens também, que também são muito... Que eu já li, que a Leona também comentou, suas idas nos meios de transportes mais...
R – Ah, já andei de várias coisas.
P/1 – Conta um pouquinho.
R – Porque normalmente eu vou sozinha. Normalmente a gente vai sozinha por causa das despesas. Essa, pra mim, foi uma viagem muito especial. Levei essa menina, mas normalmente você vai sozinha e vai fazendo como pode. Por exemplo, essa ficou na história, que todo mundo me goza, que é essa do Maranhão que eu cheguei a São Luís, aí o rapaz que era o gestor veio me pegar e disse: “Não eu arranjei...” era de noite já, ele disse: “Eu arranjei um carro que a gente vai... Emprestado. Porque eu vou te levar”. Porque era um quilombo, eram três quilombos. Ótimo. Lá fomos nós no dia seguinte, um calor no Maranhão. Lá vamos nós numa estradinha, uma estrada de terra onde não tem nada em lugar nenhum e tal, e o carro para: “O que houve Raimundo?” “Não sei. Espera aí”. No carro. Não tinha carro, não tinha condição. Não tinha carro, não tinha gente, não tinha nada. Não tinha nada. Aí ele disse: “Olha, mas a gente pode caminhar, não é longe, não. É logo ali”. Eu digo: “Bom, também não tem opção, vamos caminhar”. Era meio dia nessas alturas já, tinha um sol a pino, que não tem ideia. Bom, lá fomos nós, eu e o Raimundo. Uma hora e tanto depois eu disse: “Ô Raimundo, falta muito?” “Não, não. Estamos chegando”. Estamos chegando.
P/1 – É logo ali.
R – Estamos chegando. Chegamos. Chegamos. Eu acho que a gente deve ter ficado mais de duas horas, porque a gente chegou lá já era mais tarde. Sei lá, também nem... Chegamos, era um quilombo, tinha uma árvore grande, era bonito e o pessoal todo sentado embaixo da árvore esperando a gente, porque eles estavam esperando pela gente mais cedo. A gente conseguiu chegar. Chegamos e quando o pessoal viu que a gente tinha chegado, os que não estavam ainda sentado... Porque as casinhas ficam assim em volta, é como quase uma taba. Não é uma taba, mas tem várias casinhas ali, tem aquele meio.
P/1 – Configuração.
R – É. Eu só vi a porta aberta abrindo, saía alguém já com a cadeira embaixo do braço, trazia e já sentava embaixo da árvore. Tudo bem. Conversamos, conversamos, perguntei. Esse projeto já entrou assim, porque ele tinha um nome muito interessante, porque se chamava... Mistério? Não. Como era o nome, meu Deus? Encantados e Voduns. Como era o primeiro nome? Ah, Remédios de Encantados e Voduns. Ah, já adorei o nome, digo, não sei nem o que é, mas já é um nome interessante. E um quilombo no Maranhão, vamos lá. E a proposta era exatamente isso: são quilombos completamente fora da civilização de alguma maneira e que ele tava querendo resgatar esses remédios naturais, com as plantas, como eles trabalhavam. Então nesse quilombo que a gente foi tinha uma senhorinha de cento... Eu não me lembro se é 102 ou 120 anos, que ela era quem tinha...
P/1 – A guardiã do...
R – É. Quem tinha o segredo, já tinha lá um monte de vidrinhos e tal. Aí vimos a casa de farinha. É muito primitivo. Assim, primitivo não, muito primário, no sentido que eles estavam muitos anos atrás. Mas tinha uma organização, aí no meio tinha como se fosse um poço, sei lá, uma torre, que seria a torre responsável pela água de toda aquela... Mas tava parada. Aí eu perguntei: “Gente, por que tá parado?”. Porque tinha sido construído, sei lá, pela prefeitura: “Ah, porque a prefeitura tinha que trazer o óleo diesel e nunca mais trouxe”. Digo: “E quanto custaria para comprar o óleo e botar isso pra funcionar?”. Bom, fizemos as contas, eu não me lembro quanto era exatamente, eu vi o número de pessoas, daria exatamente dois reais por cabeça pra botar o bicho pra funcionar, mas eles disseram: “Não. Quem tem que fazer é a prefeitura. Eles que botaram isso aí, eles que têm que botar pra funcionar”. E eu tentando lá discutir com eles, gente por... Bom, enfim, até hoje eu não sei se eles resolveram fazer, mas disse: “Bom, vamos embora, nós temos que ir embora, porque vamos andar a pé de volta”. Aí eles disseram: “Ah, não. Não pode ir embora assim não, porque nós preparamos um tambor de mina pra você”. Eu nem sabia o que era, mas é uma dança característica naquela roda. Os rapazes batem os atabaques e uns tambores, e as mulheres entram pra dançar, sendo que a mulher dança muito com a saia, com o movimento da saia, mas só tinha uma saia, então uma vestia a saia assim que tinha um... Que botava, entrava, dançava, saía, tirava a saia. A outra botava a saia, dançava. E aquela música batida, bacana à beça. E a última a dançar foi a senhorinha de cento e não sei quantos anos, que dançou perfeitamente bem como todas as outras. Magrinha, pretinha, olha, uma beleza. Tem a foto dela aí também. E eu disse: “Olha, tá ficando de noite nós temos que voltar”. Ele disse: “Bom, ou a gente caminha ou tem dois rapazes aqui que têm motocicleta, porque é quem faz ligação. Vamos?”. Claro que vamos, que eu não andaria tudo de volta. Aí ganhei o capacete, sentei atrás da motocicleta, rezei pra que aquele menino soubesse dirigir, porque realmente a estrada era de terra. Dirigiram, levaram a gente até a estrada que levava pra cidade, a gente: “Até logo. Obrigada”. Saltamos, veio um ônibus, a gente fez sinal. Parou um ônibus com ar-condicionado, a gente sentou e chegou a São Luís. Sendo que entre aquela estrada e o que a gente tinha feito tinha uma média de uns 100 anos, não sei quanto tinha de quilômetro, mas de anos tinha mais ou menos isso.
P/1 – Perdido no tempo.
R – Interessantíssimo. Todos eles bem quilombolas, bem pretinhos. Enfim, foi uma visita muito legal, a gente apoiou esse projeto. E tem, sei lá, tem algumas aventuras. Eu já andei muito de barco, todo tipo de barco já, aquele barco cheio de rede, barco pequeno, barco grande, barco que vai levando coisa.
P/1 – Teve algum que você teve medo?
R – Eu não tenho medo, não. Não. Agora, a gente teve um analista que o barco virou e ele não sabia nadar. Verdade.
P/1 – Salvou-se?
R – Pois ele tava de, ele não sabia nadar, ele tava de colete, então não aconteceu nada, mas ele ficou bem nervoso. Mas comigo nunca virou nada não. E também já andei muito daqueles ônibus que sobe bode, galinha, vai parando, não sei o quê, que você leva muito tempo. Hoje em dia eu já pergunto: “Tem outra forma?”. Mas é muito interessante também, porque você aí vê como as pessoas se locomovem, como elas vivem, você é a vida dela. Tem lugares, na verdade, que o barco que é o principal...
P/1 – Meio de transporte.
R – Meio de transporte. Eu andei na Paraíba, porque a gente foi numa ilha de pescadores, que a gente apoiou também. Uma história bastante bonita, bastante difícil. Tem muita história. Teve o Gentio do Ouro. Gentio do Ouro foi outra aventura danada. Lá fui eu pra... Gentio do Ouro fica a dez horas, de carro, de Salvador. Então também tinha uma analista nova, disse assim: “Ah, eu vou com você. Você não pode fazer isso sozinha”. Ela tava era doida pra ir, mas eu achei que: “Tá bom. Então a gente aluga um carro...” que ela dirigia, eu dirigia “A gente vai de carro, já era uma boa”. Pegamos um carro em Salvador e fomos nós pra Gentio do Ouro. O que a gente sabia? A gente sabia uma estrada lá que tinha, a gente ia parar em Xique-Xique e que era, digamos, o último povo da civilização e depois você continuava lá pra chegar a Gentio do Ouro. Então vamos lá. Chegamos a Xique-Xique, ah ficamos encantadas, porque Xique-Xique é o lugar de comércio e tem um porto. Então chegavam aquelas barcas com coisas de barro, com peixes, com sei lá, aquela coisa toda, um grande mercado. Ficamos encantadas com Xique-Xique, vamos continuando, vamos continuando. E olha, aí começa a continuar. A estrada, que disseram que era uma estrada pavimentada, pavimentada era uma forma interessante de dizer, porque tinha buracos e de vez em quando um pouquinho assim, de pavimento, mas não to exagerando, a gente até fotografou também. Porque eram buracos imensos, imensos, então quando vinha alguma coisa, que também não vinham muitos, de vez em quando vinha um caminhãozinho, a sensação que você tinha é que o cara que tava dirigindo tava bêbado, porque ele vinha assim, evitando os buracos. Mas ele devia tá olhando para a gente pensando que a gente tava bêbada, porque a gente também tava indo assim, porque eram enormes, eram enormes. E não tinha nada, só tinha aquilo e nós. Lá vamos nós, vamos nós para Gentio do Ouro. Não tinha marcação, não tinha nada. Estamos indo, de repente o carro começa puxar, ela que tava dirigindo: “Susane, acho que o pneu furou. Furou”. Saltamos eu e ela. E o pneu furado, aí eu digo: “Vixe, a gente precisa de uma ajuda, eu não sei trocar pneu”. Ela disse: “Deixa comigo que eu sei trocar pneu” “Tá. Então vamos lá, vou te ajudar”. Era um tal de fazer força, o carro não levantava, caía fora macaco. Imagina as duas. Aí veio um daqueles caminhõezinhos, bem velho também, com uns homens em cima, eu digo: “Bom, agora ou eles trocam o pneu ou eles ficam com o carro e matam a gente”. Sei lá, não tinha nada. Aí eles param, pergunta assim: “O dona, quer que a gente ajude?” “Quero sim, moço, por favor”. Saltaram, trocaram nosso pneu: “Obrigada. Obrigada”. Aí eu disse: “Olha, onde é Gentio do Ouro, hein?”. Já tava... Disse: “Ih, vocês já passaram. Gentio do Ouro é pra trás. Aqui pra frente vocês vão chegar ao fim da terra, porque daqui é...”. Eu digo: “Como? Bom, vamos voltar, porque a gente já passou. Vamos voltar”. Só que quando ela liga o carro ela disse pra mim: “Susane, eu esqueci que Xique-Xique nós tínhamos que botar gasolina. Nós estamos no fim da gasolina”. Eu digo: “Putz, o que a gente faz? Bom, volta e vamos começar a voltar, ao menos a gente fica mais perto, se acabar a gente anda”. Sabe, não tem um posto, não tem nada, não tem posto de gasolina, não tem nada, nada, nada. Então a gente dá a volta, aí ele disse: “Olha, a marquinha é muito escondidinha, fica na pontinha de uma estradinha que cai pra direita assim, que é de Gentio do Ouro” “Tá. Pode deixar que eu vou ficar olhando”. Então fomos voltando, fomos voltando. A gente desce, consegue ver se a gente chegou, a gente desce, desce, desce. Quando a gente chega à boca da cidade, na pracinha, sei lá, na boca da cidade, o carro para, acabou a gasolina ali. Aí a primeira pergunta, primeira pessoa, diz: “Gente, onde é que tem um posto de gasolina?”. Por que a gente pergunta? “Ah, dona, posto de gasolina não tem aqui não”. Eu disse: “Como é que vocês fazem quando precisam de gasolina?” “Ah, tem o seu não sei o quê, ele tem gasolina”. Digo: “Então, por favor, chame o seu não sei o quê”. Lá vem ele com aquela garrafa de dois litros de Coca-cola cheia de gasolina.
P/1 – Não era nem galão.
R – Não. Era a garrafa de Coca-cola de dois litros. Aí a gente comprou, sei lá, três garrafas, foi o suficiente para sair de lá.
P/1 – E isso já era em Gentio do Ouro.
R – Gentio do Ouro.
P/1 – Mas era um projeto?
R – Projetão. Lindo o projeto, também de controle social, eu cheguei à conclusão que o baiano está ligadíssimo nisso. Mas lá já era feito pelos professores locais e por pessoas locais, que estavam realmente em conflito direto com a prefeitura. Mas organizadíssimo, bárbaro. Bárbaro o projeto, muito bom. Aí a gente apoiou. O lugar é lindo, lindíssimo. Você sai e quando a gente voltou, no dia seguinte, a gente dormiu por lá, passamos por outra cidade, que eu tenho o livro aqui, que é maravilhoso, de fotografia, você já viu, que tava lá. É uma cidade colonial que está praticamente abandonada, já não tem mais ninguém e que é um lugar deslumbrante. Lindo, lindo, uma coisa assim, fora do comum. Então gente ainda deu uma voltinha lá pra conhecer, pegamos aquela bela estrada de volta e voltamos para Salvador. Então são lugares que ficam na tua lembrança, porque são muito diferentes do que você tá acostumada. E são muito longe das coisas. Quantos projetos? Hoje em dia menos. Primeiro que o celular mudou toda essa... Todo mundo tem celular hoje, mas quando a gente começou a trabalhar, muitos projetos que a gente apoiou só tinha um orelhão que ficava ou na praça, ou dentro da prefeitura. Então a gente, para poder falar com o gestor, a gente tinha que ter uma hora mais ou menos marcada para ele estar no orelhão, pra não sei o quê. Computador nem pensar, nesses lugares nem pensar. Hoje em dia quase todos já têm um computador, já tem um orelhão. Não, orelhão não. Mas já tem um celular. Mudou bastante, mudou bastante. E eu diria o que mudou, que ao menos tenho muito essa impressão, é que mudou muito a consciência do brasileiro mais simples, de que ele tem certos direitos, que ele tem que se preocupar em ocupar seu espaço.
P/1 – E que ele pode fazer...
R – E que ele pode fazer alguma coisa por isso. Então a gente encontra isso hoje em dia nesses lugares inesperados.
P/1 – Você acha que ele não tá esperando mais tanto do governo quanto _________.
R – Depende da geração. Você vê os quilombolas estavam esperando o governo. Mas esses meninos de 18 anos, filhos de assentados, não estão esperando mais, eles estão tomando conta do governo, como vários outros. Então é uma esperança que eu acho que existe, muitas vezes eu digo aqui, dizia mais até, que eu era a última otimista do Brasil, porque todo mundo falava mal, falava mal e eu voltava, eu sempre volto bastante encantada. Agora, viver outras coisas que não são tão boas. As pessoas te recebem super bem. Por exemplo, eu cheguei numa cidade, tinha uma faixa esperando que dizia assim: “Welcome”. Mas não me lembro nem como tava escrito: “Misses Worcman”. Digo: “Nossa”.
P/1 – Prestígio.
R – É. Aí vieram falar comigo lá no estúdio e eu: “Ô, que bom, tal, obrigada” “Ah, você fala português?”. Digo: “Bom, eu nasci na Bahia, né?”. Disse: “Ai que alívio, ninguém aqui fala inglês, a gente não sabia o que ia fazer”. Então não sei como eles conseguiram aquela faixa, eles tinham gastado todo o inglês deles naquela faixa. Então, sabe, eles te recebem super bem, te levam pra comer, contam as histórias, é sempre muito prazeroso.
P/1 – E te comove ainda toda essa acolhida, esse lado tão ainda...
R – Se me incomoda ou se me comove?
P/1 – Comove?
R – Olha, eu vou te contar uma coisa. Nos primeiros anos de Brazil Foudandation eu chorava na entrega dos prêmios, eu chorava com a... Eu chorava. Hoje não choro mais não. Acho que é uma coisa igual médico, né? Você vai ficando mais acostumada. Às vezes você fica ainda, ainda tem certos momentos que você fica mais assim, mas chorar não tem me acontecido mais, não. Pode acontecer, mas não tem acontecido ultimamente. Mas eu fico muito amiga, às vezes, de alguns, muito próxima mesmo. Fico preocupada, a gente se fala, sei lá, é um... Não sei, sabe que eu acho bom. É porque existem vários tipos de pessoas que você vai encontrando. Primeiro eu realmente não sinto nenhuma hierarquia.
P/1 – Você não se coloca também como...
R – Não sinto, não me coloco, nem eles se colocam, não existe esse problema. Seja lá onde for, não houve esse problema com a gente. Isso é muito bom pra mim, deve ser muito bom pra eles também. Então hierarquia não tem nenhuma. E existe muita confiança inicial básica, a gente só trabalha com aqueles que nos inspiram confiança e de vez em quando a gente tem umas decepções. Ontem mesmo tiveram dois projetos que a gente teve que cancelar, que eram dois projetos importantes, mas não conseguiram, não fizeram, sei lá, fizeram uma parte, não deram mais satisfação, coisas assim. Então o que eu tento ensinar também, dizer, é o seguinte: com todo cuidado que a gente tem e com todo esforço às vezes, deles, às vezes não dá certo mesmo, é muito difícil, é muito difícil. Se você tá trabalhando no Rio, ou em São Paulo, ou em Belo Horizonte, também não é fácil, mas você tem algumas ferramentas e alguns recursos. Mas se você tá trabalhando a dez horas de Salvador, num lugar onde não tem nenhum...
P/1 – Nem gasolina.
R – Nem gasolina. É muito difícil. Depois eu fiquei sabendo, bem depois, o ano passado, numa outra reunião, que a gente apoiou esse projeto, o projeto deu certo etc. Depois fiquei sabendo que a prefeitura, o municipal ficou quase um ano sem pagar aquelas professoras por causa do trabalho político delas. Então elas viviam daquilo, mas não recebiam e não paravam. Então existem pessoas que compram a briga mesmo. Eu acho, sei lá, muito entusiasmante esse tipo de coisa e a gente tem vários, vários. Quando você fala com um gestor, agora que a gente tá entrevistando eles todos, nossa, existe uma força interna assim, sabe? E se também não existir, o negócio não anda pra frente, não. Isso é muito importante. O gestor ou a pessoa que tá ali na frente, se ele não tiver a chama não tem projeto que resista, porque é muito obstáculo, é muita luta e tem que ter alguém que puxe o bonde.
P/1 – E aí é nesse ________ que você pesca se tem essa...
R – É. Eu não sei. Para mim é quase uma coisa instintiva. Eu olho assim, converso um pouco, eu digo: “Bom, esse cara é bom”. Ou: “Essa moça sabe”. Completamente instintivo. Não é em cima de pré-critério. Tem todos critérios que a gente usou pra chegar lá, mas quando chega lá já é um...
P/1 – Na visita.
R – Na empatia mesmo, sei lá, na energia.
P/1 – Não tem plano de escrever essas suas memórias pelo Brasil afora não?
R – Olha, tanta gente já disso isso e eu sempre me prometi. Não tenho, não. Um dia pode ser que eu...
P/1 – Não, tem que fazer.
R – Quando eu... Todo mundo que se aposenta escreve as memórias. Então eu ainda não to pensando muito em me aposentar, se bem que as pessoas me perguntam, porque eu tenho uma idade razoável. Mas não to pensando muito nisso. Sei lá, eu acho que...
P/1 – Você precisa começar como hobby, não precisa fazer como aposentada.
R – Sei lá, é uma coisa assim, pode ser que um dia. Essas coisas eu acho que de repente bate e você faz. Eu to há dez anos nisso, já acho que foram dos anos mais interessantes da minha vida. E eu já comecei isso com 60.
P/1 – E é uma época que o Brasil tá mudando, né? Por isso mesmo que seria interessante você registrar.
R – Mudou muito, muito. Mudou muito. O Brasil mudou muito. Mudou de uma maneira visível, perceptível. É bacana mesmo, precisava. Quem sabe depois desse projeto 10 anos, que vai ter que mexer com tanta coisa, eu consiga fazer um fio pra isso.
P/1 – Susane, eu queria recuperar, que a gente acabou passando muito rapidamente, as parcerias nos apoios que vocês receberam logo no início, quais foram as essenciais, as fundamentais para desenvolver esse começo fundação?
R - Olha, eu acho que a inicial que foi muito legal foi da ______, isso eu disse até pra eles recentemente. Porque a ______ é uma instituição internacional que eu também não conhecia, foi feita através de Nova Iorque e eles deram pra gente o que eles chamam de seed money, quer dizer, uma semente. Eu me lembro que na época eram 20 mil dólares, sendo que desses 20 mil, cinco mil a gente tinha que completar com dinheiro arrecadado, que não podia ser da família, tinha que ser levantado de voluntários. Mas na verdade, por exemplo, essa cadeirinha verde aqui, toda a sala da Nádia e algumas outras coisa que tem aí da Kátia, tudo, tudo isso foi feito com esses primeiros 20 mil dólares. Foram montados os primeiros computadores, todo aquele princípio foi montado com esses 20 mil dólares. Então foi o primeiro dinheiro da gente para começar realmente. Então eu acho que foi muito importante. Depois disso a gente teve alguns projetos, assim, alguns apoios que eu diria que são bonitos. Teve o apoio da Firjan, essa sala que a gente tá, até o ano passado a gente só pagava o condomínio, não pagava aluguel. Esse ano a gente já paga aluguel. Mas foram vários anos, uns cinco anos que a gente tá aqui ou mais, sete, oito. Também foi um bom, um apoio importante. E sempre o apoio vem com essa coisa da confiança, quer dizer, alguém te dá porque tá confiando que você vai andar pra frente. A TAM é um apoio fundamental para a gente, eles entraram um ano, dois, depois não entraram mais. E sem isso a gente não consegue fazer essas viagens e eu passei seis meses correndo atrás do presidente para que ele pudesse me receber. Tinha mudado os presidentes, tinha mudado a diretoria, tinha aquelas coisas, ele morreu, o Rolim. Seis meses depois um dia toca o telefone dizendo: “Olha, o novo presidente vai atendê-la amanhã às seis horas da tarde em São Paulo”. Lá fui eu pra São Paulo correndo no dia seguinte, esperei lá uns minutinhos. Fiquei 15 minutos com ele e até hoje nós temos o apoio da TAM.
P/1 – Tá aí o verdadeiro homem de negócios, né? Que atende, dá 15 minutos, resolveu.
R – É. Atendeu e em 15 minutos eu expliquei o que era, disse: “Por que vocês pararam?”. Ele disse: “Não, nós vamos continuar”. E pronto. Tem sete, oito anos, mas depois seis meses pra sentar na frente dele. Mas ótimo, com a TAM a gente tem um belo apoio. A gente tem um apoio, teve o apoio da Ford Foundation, mais em Nova Iorque do que aqui também, porque a Ford lá já tinha vários conhecimentos e tal, também deu um dinheiro pra gente começar. Nós tivemos um apoio interessante da Tozzini, que é uma grande companhia de advocacia e desde o começo a parte legal ela resolve pra gente. Tivemos um apoio que eu quero até procurá-la de volta, da Microsoft não, da...
P/1 – Da IBM.
R – Da IBM. Da IBM, que também veio aqui acho que foi em 2005 e disse: “Ah, não. Vocês precisam de um servidor e precisam de computadores novos”. E pronto, nós ganhamos um servidor, que eu nem sabia o que era direito e ganhamos cinco computadores na época eram novíssimos, hoje já estão todos fora de linha até.
P/1 – Tiveram apoio técnico também? Pra...
R – Para o uso do servidor um pouquinho. Então foi superlegal. E que mais? O HSBC já é uma coisa diferente, mas é o nosso grande parceiro até hoje também, que é o nosso parceiro que a gente dá o apoio técnico para os gestores deles. A gente faz muita coisa com eles e são parceiros muito bons, já tem anos que a gente trabalha junto. E tiveram outros eventuais, mas eu diria que esses foram a grande família, que nos apoiou. Muitos já não estão mais, mas...
P/2 – IAF.
R – IAF já foi mais adiante, mas a IAF também é uma bela parceria, que é Inter-American Foundation. Você vê como são as coisas, é difícil. Nós mandamos um projeto para a IAF, durante dois anos nós não recebemos nem resposta. Dois anos depois, literalmente, a gente recebe aí um aviso que a gente tinha acho que 24 ou 48, dois dias ou um dia, uma coisa assim, pra refazer qualquer coisa porque eles estavam julgando, iam dar ou não dar. Tinha que refazer tudo, dois anos, o dólar já tinha mudado tudo, as coisas nossas já tinham mudado, uma loucura aqui. Correndo, correndo, correndo, mandamos, fechamos com a IAF. Fechamos com a IAF e já estamos no nosso quarto ano de apoio com eles, eles são ótimos parceiros também, super exigentes, mas são muito bons, a gente recebe e faz lá tudo que tem que fazer. E foi a IAF que nos indicou para a embaixada americana para desenvolver esse projeto do Japer, que é bem interessante pra gente também.
P/1 – Explica um pouquinho como é o Japer também. Como é a estrutura?
R – O Japer é uma parceria do governo americano com o governo brasileiro para apoio a projetos de equidade racial e étnica.
P/1 – São projetos também espalhados pelo Brasil?
R – Tem uma seleção. A gente abriu um edital com essa vertente, recebeu... Tinham vários critérios que já vieram juntos, recebemos 303 propostas, fizemos todo o processo de seleção igual ao nosso só que muito mais fácil, com 300. O tema também só era um, foi mais fácil. E acabamos de selecionar. Hoje sai, foi hoje que saiu? Dia 30, hoje é dia 30. Hoje foram publicados quais foram os 12 selecionados e agora a gente vai monitorar por um ano. É um projeto bem interessante pra nós.
P/1 – Esse número varia ou normalmente é em torno, cerca de 12 projetos ou...
R – Não. Varia de acordo com os recursos e os recursos variam de acordo com a cotação do dólar. Então quando a gente fez os cálculos, a gente achou que ia ser dez, mas deu pra ajustar um pouquinho, puxar dali e daqui, deu pra 12 projetos. É só esse tipo de coisa... O dólar caiu muito, então tudo isso pra nós é bastante difícil, mas é um resultado bom, é o que eles, mais ou menos, pretendiam.
P/1 – Vocês fazem monitoramento também?
R – Agora a gente começa a monitorar. Até agora fizemos a seleção. Fizemos igualzinho a gente faz pra nós, fizemos visitas, tudo certinho.
P/1 – Susane, você também falou muito rapidamente sobre planejamento estratégico de vocês. Eu queria que você falasse mais assim...
R – Estou morrendo de calor. Com a IAF nós tínhamos por obrigação, uma das coisas que eles estavam pagando era um planejamento estratégico, a gente tinha que fazer. Então fizemos, o ano passado começamos, contratamos uma pessoa de fora para fazer. Existe uma dificuldade, não sei se é dificuldade, é uma dificuldade bastante grande, porque nós somos dois escritórios dentro de uma instituição, que se fosse uma em São Paulo, outra no Rio, tudo bem, mas uma é no Rio de Janeiro e a outra é em Nova Iorque. Tudo é diferente, o contexto é diferente, a moeda é diferente, a cultura é diferente e as finalidades dos escritórios são diferentes.
P/1 – As ações.
R – As ações são diferentes. Então, no desenho da Brazil Foundation, Nova Iorque é responsável pela captação de recursos, inicialmente ela é responsável por captação de recursos para tudo, para doação ou para manutenção das operações, para tudo. E durante os primeiros anos, sei lá quantos, foi. O dólar estava alto, os Estados Unidos estavam bem, então tudo transcorria bastante bem. O escritório aqui cresceu muito, então nós começamos duas pessoas, eu e Kátia, hoje nós temos uma equipe de 12 pessoas e às vezes a gente tem que contratar gente de fora, que dizer... Temos as salas, enfim, crescemos. Claro que as despesas cresceram, o dólar caiu e os Estados Unidos entraram em crise. Qual é o público alvo do escritório em Nova Iorque? Quanto mais rico melhor, quanto mais visível melhor, quanto mais possibilidades de contatos etc, melhor. Porque é isso que tem que ser feito, é isso que precisa. O que não tem nada a ver com o público nosso, com o nosso público são os projetos sociais e tudo que se refere a eles. O nosso trabalho é outro tipo de trabalho, eles lá trabalham muito, não é que ninguém trabalha não, todo mundo trabalha muito, mas lá se trabalha muito com voluntários. Por que com voluntários? Porque são ações focais, então tem que organizar uma festa, tem que organizar um leilão, tem que organizar não sei o quê. Então tem um escritório menor, hoje em dia são quatro pessoas, e o resto é feito por voluntários. Aqui nós não trabalhamos com voluntários. Então isso tudo no começo até poder ser entendido também não foi tão simples. Porque eu disse: “Olha, não dá pra trabalhar com voluntários”. Nós tivemos dois voluntários, um é o Pedro, que tá aí até hoje, sete anos de... Mas o Pedro não existe, o Pedro é um fenômeno da natureza. É um voluntário que está conosco há sete anos, vem todos os dias, se vai se atrasar telefona que vai se atrasar, se vai sair mais cedo vem aqui e me diz: “Hoje terei que sair mais cedo, Susane”. Nem os funcionários fazem isso, mas o Pedro faz. Então o Pedro não é o normal, voluntário comum. E nós tivemos durante uns quatro anos uma médica também, que também era mais ou menos o mesmo esquema. Ela era mais light, mas ela vinha nos dias certos, nos horários certos e tinha já obrigações aqui, ela tinha uma coisa que era dela. O resto são só pra...
P/1 – E essa é a Carla Neto?
R – É a Carla Neto. O resto são trabalhos profissionais, exigem know-how, preparo, um comprometimento enorme, uma responsabilidade enorme. Porque aqui passam milhares de dólares todo ano, cada ano passa muito. Eu sempre digo: “Pena que não ficam”. Mas passam. Eu tava fechando contas com a Kátia ontem, o ano passado, 2010 passou cinco milhões e 800 e não sei quantos mil dólares aqui.
P/1 – Entre os projetos _______________
R - Entre o que vem, doações recomendadas, dinheiro de projeto, operacional, dinheiro de outros projetos. Olha, passa... A Kátia é uma pessoa que é responsável por isso, porque ela que controla essa parte de contabilidade, o Pedro ajuda, a Aline também tá dando um apoio a ela. Mas é uma coisa muito responsável. Monitoramento é responsável, quando um projeto começa a desaparecer no ar, ou não dá as respostas, quem tá cuidando dele tem que correr atrás. E correr atrás é correr atrás mesmo, telefona, manda e-mail, o cara não responde, responde pela metade. Você tem que dar conta, você tem que dizer desiste, eles não vão fazer ou tão mal. Mas é uma responsabilidade, porque: primeiro que ele já recebeu algum dinheiro; segundo a gente já investiu não só dinheiro, como trabalho, com uma porção de coisas. Então cada um que a gente não consegue chegar ao fim é duro, até porque você pensa: “Puxa, tinha tantos, se eu tivesse dado esse mesmo apoio para outro poderia ter tido um resultado melhor”. Então tudo é muito responsável e exige algum conhecimento específico.
P/1 – Tá sempre planejando a dificuldade que você tá colocando...
R – Bom, o que eu ia dizer é que na hora de fazer um planejamento, a pessoa que foi fazer, nossa, é muito diferente tudo.
P/1 – Mas era um planejamento para os dois escritórios?
R – Eu, na verdade, para ser muito franca e honesta, tava muito preocupada de fazer o nosso aqui. Mas é claro que eu tenho que pensar neles lá e a gente fez mais ou menos também, porque... Mas aí também faz por e-mail, por telefone, faz como dá para fazer. Mas foi feito. Foi feito o planejamento, levou alguns meses de reuniões, de avaliações, de uma série de coisas. Tem um planejamento feito para três anos. Agora, interessante que a gente agora tá retomando pra fazer o acompanhamento e tem muita coisa que já tá defasada. Neste ano já mudou um monte de coisa, já cresceu, já isso, já aquilo. Mas de qualquer maneira é uma referência, um referencial, é interessante, é bom.
[troca de fita]
P/1 – Então retomando desse planejamento estratégico, Susane, que você contou que já mudou e tudo, mas vocês têm algumas diretrizes cambiando vocês?
R – Olha, teve muita coisa mais, digamos, de organizacional, de estrutura, de como funciona aqui dentro. Tem essa questão, que tá no ar, do futuro que se fala e que eu acho que cada uma das pessoas tem direções, mas têm percepções e desejos. O que acontece, ao menos pra mim, aqui dentro, que na verdade se você não tem recurso, não tem o mínimo de sustentabilidade do teu funcionamento, você não tem nem o direito de fazer grandes planos. Você tem que criar uma base sustentável. A nossa base sustentável inicial foi aquela doadora vinda dos Estados Unidos. Isso já não funciona. Hoje em dia, dia de doação vem de Nova Iorque, o resto não necessariamente. Então há uns dois ou três anos já e depois com o esse planejamento ficou mais claro, eu comecei a buscar outros meios de criar recursos aqui. E foi aí, já antes e depois melhor ainda, que a gente criou toda essa capacidade de poder ministrar oficinas, oficinas de capacitação, de gestão administrativa, gestão financeira, comunicação institucional, sustentabilidade, avaliação. Enfim, de todos os elementos e ferramentas que a gente usa e que a gente começou a ensinar. Isso cresceu enormemente, cresceu muito na nossa parceria com o HSBC. Nós fizemos pra Vale, nós fizemos pra Furnas, a gente fez pra outros, mas sempre foi uma coisa assim, eventual, alguns projetos. Com o HSBC não. Formalizou-se de alguma maneira e só no ano passado a gente apoiou 600 gestores deles. Uma das coisas que nasceu com tudo isso foi essa nossa atividade com o teatro, que é um diferencial muito bacana que a gente tem e que nasceu também aqui. Nasce assim, a gente fazendo, conversando e vendo que vai fazer uma oficina ou outra e nasceu a ideia até de uma das pessoas trabalhar com a gente: “Puxa. Essa história dava até uma peça de teatro”. É uma pessoa que faz teatro, que gosta de teatro. Então: “Ah, por que você não faz? Tenta fazer um teatro”. Daí nasceu. Hoje nós temos cinco peças montadas, né? Montadas assim com roteiro, com tudo certinho, já apresentadas, umas mais, outras menos. E o HSBC hoje em dia não aceita nenhuma proposta de capacitação sem uma peça.
P/1 – Que ótimo.
R – É. Então ficou uma coisa bem interessante e que eu acho que vai chegar o momento de a gente ter isso também como um produto a ser ofertado. Então eu acho que o nosso caminho de planejamento e sustentabilidade tá passando por aí no nosso know-how, nas coisas que a gente sabe fazer, aprendeu a fazer, naquilo que a gente tá tentando melhorar e que a gente possa oferecer. Porque a Brazil Foundation tem um perfil diferente, e pouca gente tem esse perfil aqui no Brasil. Pouca gente que trabalha com doação pequena, que trabalha com monitoramento tão próximo. Tem muitas características que são bem específicas. Então eu acho que é por aí. Agora, é interessante como eu te digo que tudo muda. De uns dois anos para cá, três, sei lá, o que eu recebo diariamente de oferta de curso, você não pode acreditar. De oferta de curso para terceiro setor. De gestão, de isso, de aquilo. Aí vem aquela pergunta: “Você sabe falar com o gestor de uma ONG social?”. Tem um curso de um mês, de dois meses, de dez anos, de não sei o quê. Só que todos esses cursos são pagos e o nosso a gente não trabalha com o público pagante. Quem paga é a empresa e o público pagante é esse que precisa, que é o gestor. Então isso também é uma coisa diferente que a gente faz, só preciso arranjar mais duas empresas. Eu preciso de mais duas que façam conosco o mesmo tipo de trabalho que a gente faz com o HSBC já durante um ano, para que a gente possa garantir a nossa sustentabilidade. E também para que haja um recurso a mais além daquele, porque a gente trabalha com orçamento. No final de ano a gente faz um orçamento pro ano seguinte. O orçamento é sempre feito muito justo. Então de repente você ter uma boa ideia, precisa de uma máquina nova, ou ter uma coisinha, tá sempre muito apertadinho.
P/1 – Susane, a renda da menina da capacitação do HSBC você sabe mais ou menos precisar o que ela representa?
R – O ano passado representou quase 60% da nossa despesa operacional. Por isso que eu digo, se eu tiver mais uma ou duas é festa.
P/1 – Então dessas metas...
R – Para mim é uma meta. Uma meta de poder fechar com uma empresa. Agora, tem problemas com esse tipo de coisa, viu? Que eu to percebendo um pouco agora. A gente ainda não saiu em campo pra vender aqui. Em Nova Iorque faz, aqui ainda não saiu em campo para realmente vender. Mas tem uns problemas, por exemplo, de que as empresas não têm muita noção do que isso tudo significa. Ou elas têm umas ideias mirabolantes, querem apoiar não sei o quê, não sei aonde, de que maneira, coisas que você olha e diz: “Não vai dar certo”. Ou têm um dinheirão na mão, porque tem algumas que gastam muito dinheiro, e querem dar pra primeira coisa que puder dar pra ficar livre, porque aquilo é um encargo de alguém que é responsável e ele tem que gastar aquele dinheiro até o dia tal.
P/1 – Da responsabilidade social pró-forma, né?
R – Muito. Também tá melhorando. Já foi pior. Hoje em dia tem várias empresas que já estão entendendo, estão se organizando melhor. Agora, também tem isso, quase todas grandes empresas querem ter o seu próprio instituto, o seu próprio sei lá o quê, cada um dá um nome, que é o seu organismo responsável por isso. Gastam uma nota, porque em que botar pessoas, tem que montar um esquema. Provavelmente quando chega no meio começa a achar que tá gastando demais, então diminui e a coisa fica meio manca. Outras fazem... Tudo que eu falo aqui pra você eu posso dar com nome, endereço e telefone, mas não dou. Mas outras, por exemplo: “Ah, vamos fazer uma grande doação”. Então faz uma doação de 80 mil reais e gasta 250 mil para dizer que fez aquela doação. Então é realmente complicado, né? Porque publicidade é importante, e é cara. Então muitas vezes se gasta mais para fazer a publicidade que foi feita do que se deu realmente para fazer. Mas, assim mesmo, faz-se mais, tem-se mais essa preocupação hoje em dia, não é uma coisa esotérica quando você fala em responsabilidade social, ninguém vai te olhar como se você estivesse falando da lua. Todo mundo já sabe que ou faz ou precisaria fazer. Então é uma mudança, uma mudança na sociedade que eu espero que continue, que vá dar bons frutos. Eu preciso, quer dizer, eu vejo o futuro da Brazil Foundation em várias coisas. Uma é essa de poder encontrar o caminho de ser capaz de se auto sustentar. Isso é uma coisa. Outro que eu tenho preocupação e que a gente deve começar mais o ano que vem, já como fruto dos dez anos, é que a experiência que a gente tem já acumulada e meio comprovada, que ela possa ser organizada e disponibilizada. Porque é um know-how que pode ajudar outras instituições, pode ajudar as ONGs, pode ajudar... Existe essa coisa do conhecimento, e é um campo de conhecimento nesse setor que é um setor muito novo no Brasil. Então tudo aquilo que você puder mostrar e fazer, você pode contribuir de uma maneira afirmativa e legal. A gente percebe isso às vezes que você quer algum feedback, você precisa de alguma informação e não tem, sabe, não tem. Então eu gostaria de poder publicar de vez em quando algumas coisas, de fazer, eventualmente, algum projeto de pesquisa, digamos, sobre um setor específico desses que a gente trabalha. E ter recursos para isso. Hoje a gente não tem. Quem tá aqui ganha para fazer aquilo que tem que fazer e já... É aquilo mesmo. Mas eu acho que é um segundo passo que a gente deveria e poderia chegar. Alocar alguma coisa para elaboração, para pesquisa, para reflexão, por coisas nesse sentido. Eu acho também que a nossa política de doação tem que ser repensada, imagino que o ano que vem vai ser repensado também já com fruto do trabalho.
P/1 – Política de doação para os projetos?
R – Para os projetos. Foi muito interessante, eu diria, a maneira que a gente fez. Foi muito criticada, cansei de ser criticada: “Vocês são loucos. Vocês pulverizam o dinheiro que vocês têm. Vocês dão um pouquinho para cada um no Brasil inteiro, cada um fazendo uma coisa”. Tem certa razão de ser, mas pra nós foi muito positivo. Primeiro que a gente ficou conhecendo o Brasil todo; segundo que a gente descobriu que com um dinheiro pequeno, mas com muito trabalho, você consegue bons resultados, interessantes resultados. É isso que eu quero mostrar no fim do Brazil Foundation dez anos. Como é que você dando 20, 25, 30 mil, que é o que a gente até hoje conseguiu dar, como que você consegue, por outras formas de trabalhar, você consegue resultados interessantes. Mas eu sinto muita pena, por exemplo, de alguns projetos que a gente tinha que dar em dois anos. Eu sempre brinco assim, é uma figura, eu digo: “A gente vai lá, cavouca a terra, coloca semente, joga um pouco d'água e depois vem outro e chupa a laranja”. Porque quando a coisa começa a estar... Não sai, né? Um ano não molha nada. Você leva dois, três meses para começar. Então eu acho que a gente tem que ter um projeto de doação mais continuado, de dois anos talvez. Tem que pensar tudo isso. Acho que não tem que abandonar essa nossa forma de ter pequenos projetos, porque isso nos faz descobrir coisas. Porque esses pequenos projetos não têm mais ninguém que possa ouvi-los e ajudá-los. Mas tudo isso tem que ser refletido. Então acho que para o ano que vem, por exemplo, esse é um dos focos principais. E pro futuro eu acho muito difícil falar. O pessoal diz isso em cinco anos, em dez anos. Eu acho muito difícil. O Brasil muda pra burro, esse setor muda o tempo todo. Tem milhares de coisas acontecendo. O que a gente faz e já faz razoavelmente bem feito, gostaria de fazer cada vez mais bem feito e ter dinamismo interno. Virou vamos arranjar outro caminho, vamos fazer. Não consigo pensar mais nada, não.
P/1 – A gente vai terminando, eu queria que você me contasse a história do quadro que você ganhou __________________.
R - Ah, tá. Vocês podiam até tentar... Pega lá. Porque vale a pena. Inclusive vamos ver se ele levanta sozinho. Pesadézimo. Esse quadro deve pesar o quê? Uns 20 quilos? É bem pesadinho. Muito bem. Ele foi feito para nós. Tem aqui escrito...
P/1 – Em honra...
R – Deixa-me ver o que tá escrito: “Até em honra, honra. Homenagem especial de todos que fazem o Prece, Programa de Educação em Células Cooperativas. A Brazil Foundation, na pessoa de Susane Worcman, para...”. Como é? Pelo seu _______ inestimável e constante apoio. Ocasião de décimo aniversário do Prece. 18 de outubro de 2004”. Esse projeto, esse quadro mostra isso, é um dos projetos assim que eu, enfim, tenho o maior carinho realmente. Ele é um projeto cooperativo de pré-vestibular, de preparo para pré-vestibular, no interior do sertão, do Ceará, num lugar chamado Cipó e depois em Pentecoste. Isso aqui é uma casa de farinha. Esse é o professor Manoel de Andrade e esses são os seus primeiros alunos, que embaixo dessa árvore, dormindo nessas redes, durante cerca de dois anos, trabalharam com ele pra poderem se preparar para fazer o pré-vestibular na Universidade de Fortaleza. Quando eles fizeram o exame, se não me engano mais, porque já tem um tempo, dois passaram de primeira, depois o resto também passou. E no ano seguinte ele tinha 200 alunos querendo fazer. Mas quem são esses alunos? Eles são filhos de pequenos agricultores dentro daquele sertão, pais em geral analfabetos ou semianalfabetos, que nunca pensaram que podiam chegar a uma universidade. E quem é Manoel de Andrade? Manoel de Andrade é um filho de uma pessoa igual a essa que teve a sorte de ter um tio que o levou para Fortaleza, quando ele tinha acho que 12 anos, quando ele era menino estudou lá. Hoje em dia ele é um pós-doutor em Química e Biologia, enfim. Ele achou que: “Eu tenho que ajudar aquelas outras pessoas da minha terra para que possam chegar a uma universidade”. Então ele, fim de semana, e eu fui com ele neste ano. 2003 eu fui pela primeira vez. Fui com ele numa Kombi velha, caquética em que ele colocava as três filhas, que ele tem três filhas, a mulher e ele. Todo fim de semana ia pra casa desse pai dele que mora aqui e que doou então essa casa de farinha aqui no... E sentava para estudar com os meninos. Isso foi andando, ele preparou aqueles que entravam na faculdade para poderem ensinar também. Hoje em dia ele tem uns 400 alunos que já entraram, outros tantos que vão entrando.
P/1 – Já são 500.
R – São 500. Tem alguns que são mestres, que são doutores. Tem 13 células educacionais, que muitos deles que estavam um pouco mais longe formam sua própria célula. Enfim, ele é um poder naquela área que eu assisti. Por que eu te digo que ele é um poder? Porque durante muitos anos ele teve briga com reitor da universidade, que ele não queria ajudar, ficava danado porque ele conseguia colocar aqueles meninos lá dentro e eram meninos não pagantes. Sei lá. Tinha problema. Com o prefeito local também, porque ele começou a criar muita possibilidade. Mas ele é danado, a cabeça chata mesmo. Ele foi fazendo, fazendo, até que teve uma festa de aniversário que foi essa, acho que foi ou foi no ano seguinte, não me lembro muito bem. Enfim, ele fez uma festa de aniversário onde ele alugou lá um estádio que tem em Pentecoste e tinha 2000 pessoas sentadas ali, de toda região. Os pais de todos os meninos, todo mundo que estava é daquela região, conhece, sabe. Sentado a mesa, que era um palco, uma mesa com aquele público, eu tava na mesa também mais umas pessoas. Tinha o prefeito, o secretário de educação, o deputado local, essa gente toda, todo mundo sentado ali. Todo mundo falou, elogiando, lalala, aquela coisa. O Manoel na dele. Não falou nada. Quando acabou de falar todo mundo ele levantou e disse pra eles, entre outras coisas, mas isso eu nunca esqueci: “Eu queria dizer pra vocês que isso que eu to fazendo só chegará ao seu sucesso total quando eu não precisar mais fazer isso, porque quem tem que fazer isso são vocês. Tô aqui porque não é feito por quem deve, mas no momento que as coisas vierem a ser como são, essa minha ação não tem mais razão de ser”. Aquela turma toda sentada ali a distância.
P/1 – Maravilhoso.
R – Ele é maravilhoso. Aí ganhei isso, tinha que vir do Ceará com essa coisa linda, mas que pesa uma troletada, mas vim. Já plantei árvore lá, já fui lá umas três vezes ou quatro. De vez em quando ele me chama, eu dou um jeitinho de ir.
P/1 – Ele tá entre os projetos do dez anos?
R – Tá. Ele é um projeto do dez anos. É o Prece.
P/1 – Susane, para ir terminando, a gente sempre também termina com ________ perfil, o que você faz nas suas horas de lazer? O que você gosta de fazer?
R – Eu gosto de praia. Moro perto de praia, então quando tem um dia bonito eu vou à praia. Eu leio, gosto de ler. Gosto muito de cinema, gosto muito de teatro. Tenho amigos, tenho, sei lá, algumas atividades assim e adoro viajar. Então eu viajo bastante pelo Brasil através do projeto e de vez em quando fora do Brasil também. Então acho que não sobra muito tempo mais, não. Além do que eu tenho quatro netos e uma bisneta.
P/1 – Diz o nome dos netos. Isso aí também nem disse.
R – Nem te disse, né? Nossa, não me perdoarão. Eu tenho a Clarissa, que é minha neta mais velha e que é mãe da minha bisneta, que se chama Vitória. Tenho o Jonas que já está com 16 anos, tenho o Miguel com dez e o Ian com dez.
P/1 – É uma boa turminha.
R – É uma boa turminha. Muito boa, aliás.
P/1 – Susane, outra coisa que você queira ainda deixar registrado, falar?
R – Não. Eu acho que a Brazil Foundation foi uma dessas coisas que acontecem na vida da gente quando você não tem a menor ideia de que possa acontecer, e que foi um grande presente pra mim. Eu descobri uma porção de coisas, descobri esse Brasil que eu não conhecia, descobri pessoas incríveis, descobri capacidades em mim que eu nunca tinha usado. Algumas eu já tinha usado, mas outras foram crescendo aqui. Então foram dez anos muito bons para mim, numa época em que muita gente também já tá pensando: “Vou me retirar. Vou diminuir. Vou não sei o quê”. E para mim foram dez anos de muita construção. Então é uma coisa muito boa mesmo. É isso.
P/1 – Bom que tem gente como você que pensa assim.
R – Deve ter, né? Eu imagino que tenha. Eu quero dizer uma coisa também, uma última coisa que eu acho que é legal da Brazil Foundation. É que a maior parte das pessoas, agora tem muita gente nova, mas a maior parte das pessoas aqui e as que estão a mais tempo, cresceram junto com a Brazil Foundation. Isso foi uma política desenvolvida não tão conscientemente, mas um pouco de, sei lá, achar que valia a pena. São pessoas que entram, a Kátia, por exemplo, é uma moça que entrou, sei lá, para atender o telefone, para fazer aquela base, que já se formou aqui dentro, que aprendeu inglês, que é nossa gerente de programa e é responsável por todo esse dinheiro que eu te falei. Cresceu aqui dentro. Clarissa cresceu aqui dentro. A Carla, a Carlinha que está conosco há alguns anos cresceu aqui dentro. Estagiários que entram, muitos crescem, às vezes saem, outros ficam, mas crescem aqui dentro. Porque existe uma coisa assim de espírito dentro. Entrou, você tem responsabilidade, você tem o que fazer, então vai depender muito de você. Você quer andar para frente, você tem caminho aberto. Se não quer também não dura muito.
P/1 – A Raquel, né? ________
R – Raquel que foi voluntária, hoje em dia é gerente de toda a capacitação.
P/1 – Profissionalizou-se.
R – Totalmente. Profissionalizou-se depois e foi encarar outros lugares. Voltou e tá conosco. A própria Nádia que já está conosco há alguns anos também e que também foi contratada para atender telefone e porta, hoje em dia já gerencia toda essa parte de logística, de não sei o quê, ela mesma que faz. Então tem uma coisa que é legal. Quem fica tem caminho para crescer e também quem não cresce não dura, porque começa a ver que os outros vão, você quer ir também. A Lívia, que é responsável pela comunicação, entrou como estagiária. Todo mundo aqui... A Carlinha entrou como estagiária, a Lívia entrou como estagiária, Clarice entrou como estagiária. Todo mundo começa assim. Eu acho isso bacana. Eu acho que isso é um dos resultados paralelos da Brazil Foundation. O pessoal do teatro que não sabia nem o que eu fazia aqui dentro, hoje em dia já se consideram uma equipe. Não. Uma equipe não. Uma trupe. Também não é trupe. Como é que chama? Uma companhia, que também se formou nessa brincadeira, de repente tem que fazer, tem que criar. Então eu acho superbacana. Vai se criando assim, seus produtinhos. É bom.
P/1 – É ótimo.
R – É. É bom.
P/1 – Então, Susane, queria te agradecer mais uma vez o seu tempo aqui.
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