P/1 – Irene, gostaria de agradecer a sua presença aqui conosco e pedir para você começar contando o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – O meu nome é Irene Uehara, eu nasci em Santos, São Pualo, em 1963.
P/1 – Qual era o nome dos seus pais?
R – Meu pai era Matsutaro Uehara, mais conhecido como Tarô, e minha mãe Isaltina Uehara.
P/1 – E os seus avôs?
R – Ai vai ser complicado! . A gente trabalha muito os apelidos. A gente chamava o meu avô materno de Bongorô Naka e a minha avó nós chamávamos ela de vovó, apenas. Mesmo porque, a avó que eu conheci foi a madrasta da minha mãe. A minha avó paterna morou conosco e foi uma presença constante na família. Ela enviuvou muito cedo e criou o meu pai e tias sozinha. Então o meu avô paterno eu não conheci.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente a história da sua família.
R – É tudo muito longínquo porque todos os meus avós vieram na primeira imigração japonesa para o Brasil, em 1908. Somos então a terceira geração da família desde a vinda para cá e, praticamente, já estamos total aclimatados. Os meus antepassados vieram para Santos de navio, provavelmente indo trabalhar no interior do São Paulo, mas logo o meu avô descobriu que a realidade do trabalho não era como aquilo que havia sido prometido e eles se mudaram para Santos, onde toda a família foi se instalando.
P/1 – De qual região do Japão eles são?
R – As duas famílias são de Okinawa.
P/1 – Você tem alguma história da Okinawa que lhe foi passada pela família?
R – Lá em Santos os meus pais e avós fizeram parte da Associação de Okinawa de Santos, onde o meu pai foi um dos fundadores. Ele também foi vereador em Santos por muitos anos, então tem uma participação muito grande na comunidade. Nós tentamos resgatar algumas coisas da família indo até Okinawa. Um primo meu morou no Japão muito tempo, mas as lembranças ficaram só na lembrança, não temos mais nenhum registro da família por lá. Isso é muito chato, mas sobre as tradições e cultura isso foi ficando na família sim.
P/1 – Como os seus pais se conheceram?
R – Eram famílias conhecidas desde o Japão, onde eles também montavam famílias para imigrar. O meu avô tinha uma mulher lá, veio para cá com intenção de fazer dinheiro e voltar, mas nunca mais voltou. Acabou se casando no meio do caminho só mesmo para montar uma família e chegar ao Brasil. Então nisso as pessoas iam se encontrando. Os meus pais se conheceram porque as famílias eram amigas, da mesma região.
P/1 – Fala um pouquinho dos seus pais pra gente.
R – Como o meu pai foi criado sem o pai, ele era o homem da casa. Era o filho mais novo e tinha duas irmãs mais velhas. A minha avó tinha uma vendinha, onde o meu pai sempre ajudou. Trabalhou também num mercado e passado um tempo, se formou e acabou virando líder da comunidade japonesa em Santos. Ele teve uma projeção política até que importante. A minha mãe ajudou bastante neste processo e também coordenava toda a casa. Nós éramos em sete irmãos, mais a minha avó, que morava com a gente.
P/1 – Como era essa questão da vinda de japoneses de várias regiões diferentes para o Brasil?
R – Lá em Santos a gente convivia apenas com Okinawanos, praticamente. Nunca estudamos em escola japonesa, até porque elas foram todas fechadas na época da guerra, o que impactou muito na continuidade da cultura japonesa. Eu mesmo não me lembro de ter amigos japoneses na infância e adolescência que não fossem japoneses. Mesmo no clube Japoneses, eram quase todos de Okinawa.
P/1 – E você lembra do clube?
R – Então, ele não era totalmente fechado para a atividade dos japoneses. Quando eu comecei a frequentá-lo, os meus irmãos iam menos. A gente jogava bola, tinham uns almoços e festivais de dança, pintura, coisas mais voltadas para a terceira idade. Eu frequentei mais os almoços mesmo.
P/1 – Irene, e sobre a sua infância, como foi crescer em uma casa com tantos irmãos?
R – Era muita gente! . Além dos filhos sempre tinham os primos e amigos. Era uma casa movimentada pelo fato do meu pai ser político. No mais, não era uma casa nos moldes das de hoje. Eram três quartos para dez pessoas, dois banheiros, era tudo coletivo! Uma cozinha grande e sala grande, sem a privacidade que existe hoje, onde cada filho tem o seu quarto e computador.
P/1 – E como foi a trajetória do seu pai como político?
R – Era uma coisa engraçada, porque ele entrou para vereador no ano em que eu nasci. Ou seja, ter a minha vida pública fez parte da minha vida. Isso me perseguia um pouco e por vários momentos eu passei por situações chatas. Você não podia ser meio anônimo e isso me incomodava. Mas tudo tem o seu lado bom e ruim.
P/1 – E do que vocês brincavam nessa casa?
R – Como eu era mais nova, eu brincava muito mais com os meus primos. Nós tínhamos um intervalo de 12 anos, então eu não participava muito da vida deles. Não tenho lembranças da minha mãe dando banho e comida para mim, as minhas irmãs quem faziam isso. Lembro delas brincando de boneca comigo. Tive que me virar muito cedo, inclusive nas brincadeiras, porque os meus irmãos já estavam em outra.
P/1 – E qual era a sua brincadeira preferida?
R – Brincadeira de roda e de bola, normalmente na casa dos meus tios.
P/1 – E você se lembra do bairro em que você morava?
R – A minha mãe continua morando na mesma casa, lá em Santos. Antes já era uma avenida movimentada, hoje então, cada vez mais, então eu não tinha essa história de brincar na rua. Mas o quintal e a praia eram lugares que a gente frequentava muito. O meu tio nos levava porque o meu pai só foi comprar carro nos anos 80. A gente sempre andou de ônibus, perua e táxi porque não dava para comprar carro. Esse tio, que era muito generoso, pegava todos os primos e levava a praia. Era bem gostoso.
P/1 – E você se lembra do carteiro que levava correspondências para a sua casa?
R – Sempre! Uma história com carteiro que me marcou bastante foi no meu intercâmbio. Quando eu fiz 18 anos fui morar no Canadá por um ano e não existia internet, era carta. Então o correio era tudo! Você escrevia uma carta e depois de uma semana, dez dias, a carta chegava. Então você ficava ali aflita, esperando o carteiro chegar, o que é muito diferente de hoje. Ao mesmo tempo que se cria uma expectativa, ajuda a controlar a ansiedade. Você não fica esperando uma resposta imediata. Dava tempo de se mandar uma pergunta, pensar uma semana naquilo e até pensar na resposta. .
P/1 – Você se lembra da primeira correspondência que recebeu?
R – Na escola a gente aprendia muito. Quando estava-se aprendendo a escrever, mandava-se uma carta para o colega, era bacana.
P/1 – E nessa casa movimentada, tinham festas?
R – O meu avô, pai da minha mãe, era muito festeiro. Natal, ano novo, dia das mães, a casa sempre foi movimentada. Herdamos isso dele. Um dos meus irmãos fez medicina e uma vez teve uma festa de arromba em casa, até me colocaram para fora de casa porque eu era pequena! .
P/1 – E qual era a sua festa comemorativa preferida?
R – Os meus pais faziam questão de ter todos juntos no ano novo. Eu demorei muito tempo para conseguir sair disso. Depois que o meu pai faleceu eu acabei mudando este habito porque achei que já era tempo, e então a casa se transferiu para a minha casa a festa que antes acontecia na casa da minha mãe.
P/1 – E como eram as comidas nestes natais?
R – Muita comida japonesa e tradicional. Muita maionese, peru, essas coisas. Essas coisas típicas típicas, como se tem na comida italiana não existia na minha casa. Era uma casa bem brasileira.
P/1 – E você consegue falar pra gente sobre a influência da cultura japonesa na sua criação?
R – É uma coisa engraçada porque o meu marido é judeu, onde a mãe judia, assim como a italiana, é muito conhecida por ser super apegada aos filhos, que é totalmente oposto à japonesa, então a gente acha que chegou em um equilíbrio. . Uma peculiaridade da maternidade japonesa é que não se vangloria o filho na frente dos outros. Você não aplaude o seu filho porque ele ganhou uma medalhinha. Se diz “muito bem, é isso que você tem que fazer” e tal. Então isso me marcou porque eu também sou um pouco assim. Já levei até umas reprimidas das minhas amigas, dizendo que eu sou dura com as minhas filhas. Eu tento equilibrar essas coisas, a ser moderada. Eu adquiri muito disso com a minha mãe.
P/1 – E essa avó que morava na sua casa, tem alguma história marcante?
R – A gente tinha uma cachorra que sempre dava cria e a gente tinha que se virar para doar os filhotes. Um dia eu cheguei em casa e descobri que a minha avó tinha dado os cachorrinhos para o primeiro mendigo que ela tinha visto na rua, a gente ficou louco! . Essa é uma história que me marcou.
P/1 – Tem alguma outra história que tenha marcado a sua infância?
R – Com cachorros principalmente. Sempre os tivemos e como eu era a mais nova, ficava meio sozinha e brincava com eles.
P/1 – E teve algum especial?
R – Praticamente uma só. Quando ela morreu eu já morava em São Paulo e o meu pai ligou chateado, dizendo que ela tinha falecido.
P/1 – Você se lembra como foi o seu primeiro dia de aula?
R –Eu sempre estudei em escola pública, nas escolas em que os meus irmãos já tinham estudado. Era perto de casa e eu me lembro quando comecei a ir sozinha para lá. Me lembro que eu achava o colégio enorme e uns tempos depois eu voltei lá e achei tudo minúsculo, foi muito engraçado! Lembro isso vivamente. Os professores eram bravos.
P/1 – Tinha uniforme?
R – Tinha uma saia xadrezinha, sapato. Não sei até hoje como a gente brincava e corria de sapato. Não se usava tênis. A gente tinha também uma pastinha de couro com alça, para carregar o material. Não existia mochila. E aquilo durava muito tempo! A gente as vezes queria outra mas não podia, porque aquela ainda estava boa. Então sapato e pastinha é a minha lembrança do primário.
P/1 – E como era a hora do recreio?
R – Cantina não se existia. A gente levava lancheira de casa e brincava de bola no pátio, não tinha nem quadra.
P/1 – Tem algum professor que marcou esta fase?
R – Isso a gente está falando sobre o primário. Sobre o pré eu me lembro de muito do lugar, mas não do professor. Tinha a Dona Maria Leite, que era professora do quarto ano, histeria, gritava com a gente. Ela tinha sido professora da minha irmã várias vezes, que era super boa aluna e eu não era! . Dona Lílian no terceiro, e no primeiro e segundo eu tive uma professora que se chamava Maria Gonçalves Charleaox, dificílimo da gente escrever. Uma lembrança legal do que a gente chamava de ‘parque infantil’ é sobre bondes, existiam muitos em Santos. E tinha um desses no pátio, onde a gente ficava brincando, era muito legal. Tenho até uma foto ao pé deste bonde.
P/1 – E quais foram as primeiras matérias que você se identificou?
R – Sempre gostei de Português, História e Geografia. Tanto que acabei prestando vestibular pra Geografia. No primário realmente eu tinha um interesse muito grande por leitura.
P/1 – E como eram os seus pais com a escola, eles acompanhavam?
R – Não acontecia da forma que existe hoje. Não existia uma devolutiva tão grande. Era “estuda e vai! Estuda e vai!”. Na minha casa ninguém ia mal na escola. O raciocínio era, se está indo bem na escola e não está doente, está tudo bem. Minha mãe ia as reuniões, meu pai nunca pode. Lembro que as vezes ela ia em duas, três reuniões no mesmo dia, porque eram vários filhos, mas nunca teve acompanhamento com as lições de casa. Tanto é que a gente brinca com uma questão que, um dia, no inicio do ano letivo, descobri que o meu nome não estava na lista de chamada porque a minha mãe esqueceu de me matricular. . Virou motivo de chacota e a minha mãe fica brava quando a gente fala, mas são coisas que fazem parte da vida.
P/1 – E a sua juventude em Santos, como foi?
R – Nunca tive grandes turmas. O que mudou muito a minha vida foi a escolha por fazer intercâmbio, que eu tomei quando o meu irmão fez. Na verdade, um pouco antes disso comecei a me enturmar mais quando entrei para o escotismo. O fato de ter sido Bandeirante e ter feito intercâmbio foram duas coisas marcantes pra mim e ajudou muito a descobrir o mundo.
P/1 – Teve algum amigo que marcou este período?
R – Nada que marcasse tanto, a ponto de ser amigo até hoje. Só coisa momentânea, mesmo porque, quando sai de Santos, não mantive muito contato. Mas no intercâmbio sim, fiz amizade com pessoas do mundo inteiro, das quais me relaciono com algumas até hoje. Há algumas semanas atrás esteve em São Paulo uma pessoa que conheci com 18 anos no avião, indo para o Canadá. Nos encontramos até hoje, é muito bacana.
P/1 – E como era ser Bandeirante? O que vocês faziam?
R – Embora pareça uma coisa caretona, tem uma coisa muito legal. Naquela época, 1970, 1980, no movimento bandeirante já se falava em ecologia, sobre reciclar as coisas, não desperdiçar, consumo de energia. E isso foi incrível, carrego comigo até hoje. Aprendi lá a cozinhar, dormia em barracas, curtia a natureza. Foi onde eu fiz a minha primeira viagem sem a família. Conheci lá outras meninas de outras cidades do estado, então a partir disto o intercâmbio fez muito sentido.
P/1 – E do movimento Bandeirante, tem alguma história interessante?
R – Em um acampamento eu conheci uma menina que se chamava Avaiandava, que participava de um grupo judaico. Nossos uniformes eram cheios de broche e ela tinha um que tinha a estrela de Davi, onde os nossos tinham uma cruz. Nós trocamos de broche, coisa que se fazia e bem mais pra frente eu acabei casando com um judeu. As minhas filhas são deste mesmo grupo judaico, sendo que duas já são monitoras. Até hoje eu não descobri quem trocou broche comigo, mas foi uma coisa bacana. Nunca imaginaria que elas estariam naquele grupo.
P/1 – E como foi o intercâmbio?
R – O programa que eu fiz se chama AFS, American Field Service. Uma ONG (Organização Não Governamental) que começou na segunda guerra, junto com o Médicos Sem Fronteira. É um programa sem fins lucrativos que visa realmente que as pessoas saiam do seu mundo e levem para outros lugares a cultura do seu local de origem. Então quando você sai do Brasil, você não está indo lá estudar inglês, você está indo representar o seu país. Então não se pode ir qualquer pessoa, tem que ser alguém que minimamente vai representar o país e mais, vai ficar na casa de uma família, não está indo apenas para aprender inglês. Você ia para uma casa com imersão total, chamaria o pai da casa de ‘pai’, a mãe de ‘mãe’ e o irmão de ‘irmão’. Então após aprovado, você preenchia um formulário buscando nas famílias o mesmo perfil do estudante intercambista. Eu tive sorte de encontrar uma família muito legal no Canadá. Uma senhora, que era a minha conselheira lá, eu me correspondo até hoje. Antigamente muito por carta e cartão de natal, depois perdemos um pouco o contato, mas no Facebook a gente se reencontrou e conversa. È muito legal porque estamos falando de uma senhora que hoje tem 80 anos. Ela já veio duas vezes para o Brasil e então guardo muito essa lembrança, de conhecer jovens do mundo todo. Uma coisa muito legal eram os encontros entre intercambistas. As únicas músicas que todo mundo sabia cantar eram as do Beatles, muito engraçado ver como o trabalho deles se espalhou para o mundo todo.
P/1 – E como foram as primeiras semanas com a família no Canadá?
R – Você sofria um processo de seleção, que começava em julho, e você só viajava um ano depois. Se tudo estivesse OK, você só ia em julho do ano seguinte. Então neste período você ia se preparando e recebendo informações. Por exemplo, eu fui para o Canadá e então corri atrás de aprender francês, que eu não tinha conhecimento suficiente para me comunicar bem. Tanto que nos primeiros momentos eu só falava em inglês, mas cheguei num ponto onde comecei a sonhar e até xingar em francês, é realmente uma imersão. No começo você fica super cansado, pois precisa aprender tudo e prestar atenção em todos os detalhes. Então neste programa você recebe a orientação de que nos primeiros três meses você é a atração. As pessoas tem mais disponibilidade, mas depois deste período você já faz parte da comunidade.
P/1 – Me conta um pouco sobre o seu processo lá.
R – Eu tive uma irmã mais nova, coisa que eu não tinha aqui no Brasil. Essa minha irmã não tinha nada a ver comigo, mas nada muito grave, não brigávamos, mas também não fazíamos programas juntas. Eu tinha também um irmão casado, mas me dava super bem com os meus pais de lá. Era engraçado porque eles tinham hábitos que eu não tinha, por exemplo, viajar em família, comer fora, esquiar e andar de patins todos juntos. Coisas que eu não fazia aqui no Brasil. E o habito da família ter muitas coisas diferentes das minhas me fez começar a perceber que os hábitos da minha família não eram os únicos do mundo, e então não se precisaria reproduzir, poderia se criar os seus próprios padrões. Esse é o bacana da imersão. Você consegue entender um pouco mais e questionar melhor.
P/1 – E como foi na escola?
R – Tranquilo porque eu já tinha feito o ensino médio aqui. Cursei então apenas algumas matérias de lá, história do Canadá, francês. As outras eu não gostava muito e também já tinha cursado. Era uma escola pública de ponta. Toda equipada, organizada, limpa, integral e com sistema de transporte. Coisa que não se pode imaginar aqui no Brasil.
P/1 – E no seu retorno, como foi o seu processo de escolha profissional?
R – Foi uma coisa um pouco difícil. Eu também não sabia muito o que queria e escolhi Geografia meio que por exclusão. Mas não sabia o que faria com aquilo, uma carreira acadêmica ou técnica. No fim acabei entrando nas duas. Ao chegar no Brasil cai num cursinho semi intensivo, manhã, tarde e noite. Depois de um ano, prestei vestibular na USP (Universidade de São Paulo) e entrei.
P/1 – E como foi a entrada na faculdade e mudança para São Paulo?
R – Praticamente todos os meus irmãos já moravam em São Paulo, então para mim foi meio automático. Desde os 15 anos eu vinha para cá. Mas foi muito legal porque passei a ter toda a privacidade que eu nunca tive na infância. Divida o quarto com no máximo uma pessoa, tinha o meu cantinho e sempre fui feliz quando morei fora. Sair de casa foi super natural e necessário para mim.
P/1 – Como foi o seu primeiro ano de faculdade?
R – Entrar na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo é entrar em contato com toda libelú e formação do PT (partido dos trabalhadores) latejando. Mas por mais que eu gostasse do curso e tivesse amizades, não acho que eu vivi intensamente como gostaria. Não sei se por adaptação, mas hoje não sei se eu faria a mesma faculdade.
P/1 – Tem alguma coisa que tenha te marcado?
R – Tem um fato engraçado que aconteceu numa festa do primeiro ano. Eu andava com algumas pessoas que estavam organizando uma festa e falaram: “olha, tem um grupo que quer tocar de graça, estão começando agora. Vamos deixar eles tocarem, é de graça..é um tal de Utraje a Rigor!”. Muito engraçado!
P/1 – E a sua primeira experiência profissional?
R – Eu fui assistente de uma professora. Fazia parte de um grupo de pesquisas que ela tinha. Tive bolsa de iniciação científica pelo CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e comecei também a dar aula no estado. Tinha e parece que tem até hoje uma deficiência de professores de Geografia para ensino médio. E eu gostava. Depois consegui um estágio na CETESB (Companhia Tecnologia de Saneamento Básico), fiquei lá por um ano e no final do estágio consegui uma vaga em uma empresa de estudo de impacto ambiental, onde fiquei por um ano. Ou seja, no total eu tinha experiência de uns três anos na área de Geografia. Eu estava de férias nesta empresa, que fazia parte do grupo Camargo Correia, quando me ligaram falando que o departamento em que eu estava havia sido extinto. . Ou seja, eu e a torcida do Flamengo estávamos na rua. Nessa época, o hoje meu marido, que é arquiteto, havia me medido pra fazer uma coisa para ajudá-lo no trabalho e comecei a mexer com isso. Acabei migrando totalmente de área.
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Um dos meus muitos irmãos fez FAU (Faculdade de Arte e Urbanismo) e nós acabamos nos conhecendo ai, fora da faculdade. Na época de faculdade mesmo a gente nem andava junto. Comecei a sair com ele quase já formada.
P/1 – E como foi essa trajetória com design?
R – Tinha uma novidade do exterior aqui no Brasil que eram uns cartões tridimensionais. Eu achei interessante e fui montando uns bonecos e levava para os lugares, que achavam interessante. Acabei entrando em uma escala de produção. Como eu não desenhava, contratei uma pessoa para isso e então fui criando os produtos e vendendo. Num dado momento eu vendia para o Brasil todo e também para fora, participava de feiras. Foi um período bom do qual eu também já virei a página.
P/1 – E nesse período em São Paulo, ainda jovem, do que você gostava de fazer?
R – Eu morava em república e a gente ia muito em shows. A gente foi ver um show do Hey Charlie no palácio das convenções do Anhembi. Hoje em dia você nem imagina em assistir a um show bom desses num lugar que não seja essas casas com garçom, mesa. Esse show me marcou bastante. A gente ia muito a shows no SESC, teatros, galerias. Era divertido.
P/1 – Tem alguma história marcante neste período do final da USP?
R – Eu ia muito a show porque além de arquiteto o meu marido era músico. Num dado momento ele largou a vida de músico, mas nós íamos muito em show.
P/1 – E sobre o seu marido ser judeu, como foi?
R – Bem complicado. È uma família muito conservadora. O pai dele nunca aceitou, então tivemos uma vida bem difícil no começo. O meu marido saiu de casa brigado, nos casamos e ele e o pai ficaram muito tempo sem se falar. O pai dele morreu de um ataque fulminante e eles não se falaram, então ficou uma coisa meio dramática. Foi muito ruim, mas muita água já se passou, me dou muito bem com a minha sogra, mas o começo foi difícil.
P/1 – E você se lembra da primeira vez que teve contato com a família dele?
R – é uma coisa engraçada, porque eu conheci a minha sogra quando a minha filha nasceu! . Foi meio impactante, mas enfim, faz parte da história.
P/1 – E sobre a sua carreira profissional, como foi?
R – Eu fiquei bastante tempo nessa área de design, depois acabei trabalhando com alguns brindes e por um período bem curto em um escritório de arquitetura e, de repente, a oportunidade de cozinhar profissionalmente, coisa que eu já gostava. Fui estudar para isso e encarar uma nova opção profissional.
P/1 – E como foi a decisão de voltar a estudar?
R – Foi estranho, mas gostei bastante porque era um grupo heterogêneo. Tinha médicos, dentistas, professores, que estavam lá para aprender algumas coisas para ter algum negócio ou por prazer mesmo. Tenho contato com várias dessas pessoas até hoje.
P/1 – Você sempre gostou de estudar, Irene?
R – Sempre. Mas depois de estudar, vira outra coisa mesmo!
P/1 – E se lembra de como virou profissional?
R – Depois desse curso. Comecei com estágio em bufês.
P/1 – E como foi a questão de conciliar o trabalho de chefe de cozinha com a família?
R – Nem foi um problema. Isso é relevante pra mim no momento. Fazendo o que eu gosto, vivo melhor. As minhas filhas também já estão grandes e precisam de um outro tipo de atenção, então isso pra mim não é um problema.
P/1 – Conta um pouquinho então sobre o seu dia a dia pra gente.
R – Não sei se carece muito. . Estou pensando em uma história que aconteceu no meio do caminho, que quando a minha filha nasceu e eu conheci a minha sogra, a minha filha teve câncer. Então ficamos dois anos e meio no processo de tratamento, que foi uma coisa muito mais marcante pra gente do que qualquer outra coisa. O câncer se curou e tudo mais, mas a cada vez que se dá um tropeço você acaba revendo várias coisas. Existem algumas dificuldades que te fazem reviver tudo com outros valores.
P/1 – E como foi este processo na sua vida?
R – É sempre difícil. Você não tem muita opção, ou trata ou não trata. Quando descobri que ela estava com leucemia, eu estava grávida da minha segunda filha, então foi muita coisa ao mesmo tempo. Entramos no processo de praticamente morar no Hospital Sírio Libanês por um tempo, mas sempre se aprende muito sobre isso. Você acaba vendo a história do outro, que é sempre pior que a sua, e vai ganhando forças para vender as dificuldades.
P/1 – Como foi a experiência de ser mãe desta forma?
R – Exige-se muito. A gente estava começando a vida e era tudo novo. Quando a segunda filha nasceu eu estava morando na casa da minha sogra. Nos mudamos para lá porque a casa em que a gente mora hoje estava em reforma. Ou seja, fui morar na casa da minha sogra, que mal conhecia e ainda com a minha filha doente. Então fica-se pensando se estas coisas acontecem por acaso. È estranho morar na casa de uma sogra que mal se conhece, mas ao mesmo tempo, putz, super cômodo morar lá porque conseguíamos nos dedicar mais a nossa filha, sem precisar do staff da casa. Eu não fazia supermercado, nem vendo se tinha janta. Foi um momento muito bom. Depois a nossa casa ficou pronta, onde a terceira filha nasceu.
P/1 – Fala um pouquinho das suas filhas pra gente.
R – A mais velha hoje tem 20 anos e está no segundo ano de Artes Plásticas. A do meio está fazendo 18 anos e está no primeiro ano de relações Públicas na Cásper Líbero. A mais nova tem 11 anos e está no sexto ano da Escola Vera Cruz. Todas elas fazem parte do movimento Bandeirante, como eu, e duas delas são monitoras. As maiores são convertidas e a terceira vai também se converter ao judaísmo e são todas muito ativas na Congregação Paulista Israelita.
P/1 – Como se deu este processo na vida delas?
R – Eu achava interessante o movimento Bandeirante, independente de judaico ou não. Como elas estavam em uma escola laica, não tinham nenhuma formação judaica. Nós também não dávamos nenhuma orientação religiosa em casa, pois eu não era religiosa e então tanto fazia, mas como o meu marido seguia uma pouco, muito pouco, optamos por colocá-las no movimento. E foi muito bom, no sentido de aprendizado de vida e também por aprenderem a respeitar e ajudar os outros. Elas tomam conta de menores e aprendem muito com isso. A gente sempre brinca que o que elas fazem no sábado a tarde é melhor do que ficar batendo perna em shopping. Elas tem uma formação que não tem preço, aprendem a se virar.
P/1 – Voltando no tema cartas, tem alguma correspondência que tenha marcado a sua vida?
R – Essa do intercâmbio sempre marcou. As cartas é que mantinham o meu contato com o Brasil. Olhando pela janela dava até uma expectativa para ver o carteiro, se ele estava chegando ou não. Essa correspondência entre os amigos do exterior, no natal, principalmente, era muito bacana.
P/1 – Você lembra qual foi a primeira carta que recebeu quando estava morando fora?
R – Não me lembro. Há pouco tempo até vi algumas delas, a minha mãe separou uma caixa com estas coisas, mas não me lembro da primeira.
P/1 – E algo que você escreveu, algo especial?
R – Em particular, nada em especial.
P/1 – E quais são os coisas que hoje você considera mais importante?
R – Acho que ultimamente tem sido o fato de viver cada dia não como se fosse o último, mas não ficar na expectativa de como vai ser amanhã, e ter sempre em mente que as coisas vão mudando e a gente tem que acompanhar e se adaptar a estas mudanças, procurando sempre ser uma pessoa melhor, com respeito e solidariedade.
P/1 – E quais são os seus sonhos?
R – Sonho é uma palavra que eu não gosto de usar porque parece uma coisa distante. Mas eu tenho o desejo de sempre ter paz. A gente vive no stress dessa cidade grande e eu sou meio Tim Maia: eu só quero sossego!
P/1 – O que você faz nas horas de lazer?
R – Agora eu dei para costurar. Isso é um resgate de memória. Eu resolvi ter uma maquina de costura e faço umas memórias para as minhas filhas. Eu tinha uma sacola com roupinhas e fraldinhas delas, algumas roupas antigas de basquete do meu marido, alguns uniformes meus de Bandeirante, eu cortei tudo e estou fazendo colchas de retalhos. Serão quatro colchas, com os pedacinhos de tecido que elas olhas e reconhecem a história delas mesmas. Estou me ocupando muito disso, virou a minha terapia. É muito legal. Costurei até toquinhas e babadores para elas levarem quando tiverem uma casa delas.
P/1 – Fala um pouco dos seus irmãos hoje, o que eles fazem?
R – O meu irmão mais velho era médico. Ele é falecido há alguns anos. Um outro irmão, o Milton, trabalha com vendas, depois vem o Maurício, que é engenheiro e trabalha na prefeitura de Santos. Tenho uma irmã artista que trabalha com teatro e música, hoje ela é maestrina de uma orquestra de crianças por uma ONG (organização não governamental) e viaja pelo mundo. Tem a Iná e o Márcio, que são arquitetos. Ele quem me apresentou o meu marido.
P/1 – Pensando em toda a sua trajetória, tem mais algum fato que você queira contar?
R – Acho que essas coisas marcantes de quando a Paula ficou doente, que deu uma rasteira na gente. Mas são coisas que ficaram para trás. Tem até um fato, mas eu não quero registrar. . Posso até conversar com você, mas não vou registrar. Eu vou te falar mas depois você corta. Há duas semanas nós sofremos uma tentativa de assalto e só não fomos baleadas porque a arma do ladrão falhou. Estávamos entrando em casa com a família toda e quando entramos, ele entrou também e apontou a arma para a gente. Meu marido deu uma ré e nós fugimos, ele fez assim e a arma falhou. Não sei como estamos vivos, porque na hora poderia ter dado uma merda! . Então isso mexeu muito com a gente. Não divulgamos para a família dele, por exemplo, para que não fiquem assustados, mas colocamos a informação no jornal do bairro. Isso tem duas semanas, então ainda estou meio abalada.
P/1 – Irene, você já foi para o Japão?
R – Não fui, mas fui duas vezes para Israel! . Mas fui por uma coincidência. O meu marido joga basquete até hoje e tem uma coisa que se chama Macabíada, que são os jogos olímpicos judaicos. Então de quatro em quatro anos acontece o evento, em Israel, e nas últimas duas eu fui com ele. A minha filha que competia pela ginástica olímpica foi também em um desses anos. Eu tenho loucura por ir ao Japão, mas ainda não fui. Tenho um grupo de mulheres não judias casadas com judeus, da qual eu falo que sou presidente por ter ido duas vezes a Israel. . Eu também cozinho muito as comidas judaicas. O mundo dá tantas voltas que o fato de termos este casamento, digamos que proibido, não impediu, e sim fez com que elas tivessem uma postura ativa na comunidade judaica, até mais que muitas outras judias que eu conheço. Então o preconceito é mesmo um problema.
P/1 – Pra gente terminar, como foi a experiência de contar a sua história para o Museu da Pessoa?
R – Foi engraçado porque antes da Rosana me falar disso eu já estava trabalhando as colchas e também para elas levarem esta memória. Também tinha o fato do meu primo ir a Okinawa e não achar mais ninguém. Perder isso pra mim é chato. Eu também tenho este livro de receitas, que estou guardando pra elas. Eu sempre fui guardando algumas coisas para manter as memórias. Então quando recebi o convite de vir aqui, pensei nisto, em deixar uma memória para elas. Da minha mãe eu até guardei alguma coisa, que ela havia resgatado dos meus vós, coisas da guerra e tal. Como eu peguei essas coisas da minha mãe, quero também deixar algumas para as minhas filhas.
P/1 – A sua mãe deixou algum diário?
R – Não escrito, mas ela foi muito entrevistada nos cem anos de imigração japonesa. Ela tem fotos com o príncipe no ano passado, quando ele veio do Japão. Acho que é importante guardar essas histórias.
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