Entrevista de Maria Aparecida Rodrigues
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 23/10/2021
Projeto Reciclagem Cadeia Produtiva - Tetra Pak
Entrevista número: PCSH_HV1136
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Dona Cida, pra gente começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Maria Aparecida Rodrigues, nasci na data de 23 de maio de 1954 e tenho 67 anos de idade. Moro na cidade de São Paulo. Hoje na região do Grajaú, Santo Amaro.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – O nome do meu pai, Vicente Rodrigues e Alzira de Oliveira Rodrigues.
P/1 – Onde eles nasceram?
R – Meu pai nasceu em Muriaé, Minas Gerais, e a minha mãe nasceu perto de... agora já não me lembro mais, mas quase na mesma cidade.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – A história do meu pai e da minha mãe, quando eles contavam, era muito... que, naquela época, eles falavam que não tinha namoro como hoje. O namoro deles era o pai falava: “Você...”, como se o pai arrumasse o casamento, o rapaz conhecia e só voltaria quando fosse casar. E a minha mãe contava, ela mais meu pai, que meu pai a conheceu [quando] ela tinha treze anos. Aí quando a pediu em namoro, pro meu avô Francisco e meu pai foi embora pra terra, pra cidade dele, trabalhar. Quando ele voltou, finalmente, pra pedir em casamento, ela estava com dezesseis, dezessete anos. Então eles namoraram sem se encostar, sem se abraçar, sem nada. Pediu naquele dia e voltou no dia de, realmente, [con]‘sumar’ o casamento e assim eles casaram e viveram lá, eles tiveram dois filhos lá, que são meus dois irmãos mais velhos, falecidos, que é o José Silveira, apelido de Zizico e o outro Vicente, que tinha o nome do meu pai. Aí quando meu irmão Vicente tinha quarenta dias de idade, de nascido, aí minha mãe veio pra São Paulo. Minha mãe chegou aqui em São...
Continuar leituraEntrevista de Maria Aparecida Rodrigues
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 23/10/2021
Projeto Reciclagem Cadeia Produtiva - Tetra Pak
Entrevista número: PCSH_HV1136
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Dona Cida, pra gente começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Maria Aparecida Rodrigues, nasci na data de 23 de maio de 1954 e tenho 67 anos de idade. Moro na cidade de São Paulo. Hoje na região do Grajaú, Santo Amaro.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – O nome do meu pai, Vicente Rodrigues e Alzira de Oliveira Rodrigues.
P/1 – Onde eles nasceram?
R – Meu pai nasceu em Muriaé, Minas Gerais, e a minha mãe nasceu perto de... agora já não me lembro mais, mas quase na mesma cidade.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – A história do meu pai e da minha mãe, quando eles contavam, era muito... que, naquela época, eles falavam que não tinha namoro como hoje. O namoro deles era o pai falava: “Você...”, como se o pai arrumasse o casamento, o rapaz conhecia e só voltaria quando fosse casar. E a minha mãe contava, ela mais meu pai, que meu pai a conheceu [quando] ela tinha treze anos. Aí quando a pediu em namoro, pro meu avô Francisco e meu pai foi embora pra terra, pra cidade dele, trabalhar. Quando ele voltou, finalmente, pra pedir em casamento, ela estava com dezesseis, dezessete anos. Então eles namoraram sem se encostar, sem se abraçar, sem nada. Pediu naquele dia e voltou no dia de, realmente, [con]‘sumar’ o casamento e assim eles casaram e viveram lá, eles tiveram dois filhos lá, que são meus dois irmãos mais velhos, falecidos, que é o José Silveira, apelido de Zizico e o outro Vicente, que tinha o nome do meu pai. Aí quando meu irmão Vicente tinha quarenta dias de idade, de nascido, aí minha mãe veio pra São Paulo. Minha mãe chegou aqui em São Paulo na data de 25 de janeiro de 1950, e meu irmão nasceu em 1949 e aqui ela teve os outros filhos, que sou eu, daqui de São Paulo, a mais velha.
P/1 – E você sabe por que eles vieram pra São Paulo?
R – Primeiro meu pai veio porque, naquela época, também, sempre falavam da cidade de São Paulo, que eles falavam a ‘cidade da garoa’. São Paulo era a cidade da garoa. E aqui tinha empregos. Como realmente hoje a gente vê que é uma coisa que não é valorizada, mas muitos, naquela época, vinham de fora pra construir a grande cidade de São Paulo, que é a que nós temos hoje. Aí meu pai veio, ficou um tempo aqui e depois foi buscar a minha mãe. Aí a minha mãe ficou aqui, aí eu nasci na região do Alba, porque eles moravam naquela região lá do Jabaquara.
P/1 – E você sabe, eles contavam qual foi a primeira impressão deles chegando aqui? Quais foram as dificuldades?
R – No primeiro momento eu acredito que eles passaram muita necessidade, eles falaram, porque aí não veio só a minha mãe, aí já veio a minha vó, as minhas tias e aí arrumar casa pra morar, moraram tudo na mesma casa, depois foram se separando, aos poucos. Então foi muita dificuldade pro meu pai e pra minha mãe, no primeiro momento.
P/1 – E você sabe a história do seu nascimento?
R – Eu, assim, me lembro que minha mãe contava, eu sou de sete meses, nasci de sete meses e em casa, mas nasci com problema. Naquela época não era uma coisa que, acho, bem desenvolvida como a medicina de hoje e deu um ano, dois anos, três anos, eu não andava. Aí aos três anos minha mãe me internou, porque também fiquei doente, e nisso ela não sabia. Além de eu não andar… então eu nasci com paralisia, naquela época. Além de não andar, eu ainda tive uma doença que demorou pra eu entender que doença que era e tinha que fazer transfusão de sangue todo dia. E eu não sabia. E o tempo passou. Então eu morei na Cruz Vermelha, não sei se você já ouviu falar da Cruz Vermelha que tem aqui no aeroporto? Ali eu fiquei, morei um ano e meio. Eu me lembro que eu chorava, eu queria vir embora pra casa, minha mãe chegava e no dia que eles falaram pra minha mãe, me lembro até hoje, daí eu começo a lembrar, que tinha que cortar meu cabelo. Meu cabelo era grande e cacheado. Quando falou que tinha que cortar, a minha mãe chorou muito. Eu a vi chorar muito. E aí ela me deixou lá e eu pedia pra que ela não me deixasse e ela me deixou lá. Então todo dia ela ia me ver. Nisso foi um ano e meio. Mas eu tomava, pra mim, injeção, mas não era injeção, era a troca do sangue. Só que, naquela época, a leucemia ainda não era falada. Então a leucemia que a gente entende é câncer no sangue. E naquela época eu fiquei assim. Aí saí do hospital, graças a Deus, mas eu andei com seis anos. Aí quando chegou aos seis anos, eu começo a lembrar a minha história real de vida. Aí foi quando eu fui colocar o meu pé no chão, pra andar. Até então eu não andava. E a história começa aí.
P/1 – O que você lembra dessa época?
R – Me lembro que a minha mãe tinha... era meu aniversário e ela ia fazer um bolo. E naquela época ainda eram poucas pessoas que sabiam fazer bolo. E eu me lembro que ela fez um bolo pra mim e ela falou pra mim que era um ‘bujão’ de gás e fez como se fosse um ‘bujãozinho’ de gás, mesmo, o bolo e uma coisa que, naquela época, me magoou muito. Às vezes eu falo pra minhas filhas, ela me magoou muito, porque eu esperava um presente que seria da minha madrinha, e a minha madrinha, em vez de me dar um presente, ela me deu, não sei se você já viu, um açúcar cristal pequenininho, que vem pra confeitar o bolo, ela falou: “Aqui é o seu presente”. E ali mexeu comigo, porque eu queria uma boneca. E aí eu não tive a boneca, ela me deu aquilo e passou. E ali eu guardei até hoje. Hoje eu tenho... é como se eu vivesse aquele momento ainda, na vida. Então eu falo pra minhas filhas o que é a gente ter, lá atrás e o que é você não ter e você lutar pra ter. E assim foi, daí começou. Aí meus pais, naquela época já tinham construído, graças a Deus já tinham vindo pro Míriam, morava no Jardim Míriam, antiga Rua Treze e ali ele já construiu uma casa, minha mãe trabalhava em casa de família, meu pai era feirante, meu pai trabalhava com feira, ele vendia, naquela época ele tinha uma banca na feira, então ele era feirante. Ali nós compramos, morávamos ali, foi quando mudamos pra outra rua, onde ele comprou outro terreno. Ali a gente não construiu casa de tijolo, a gente morou numa casa de pau a pique, de barro. Meu pai fez a casa de barro pra nós. Aí, naquela casa de barro, eu morei até os meus onze anos de idade. Aí ele construiu a casa de cima, grande e aí foi quando chega... diz pra eu ir pra escola, eu não andava, então os primeiros passos quem fez pra mim foram os meus dois irmãos mais velhos. Eles me levavam nas costas até a escola, me punham na carteira e, na hora de vir, a mesma coisa. Aí quando eu completei sete anos, eu estiquei as pernas. Minha mãe era muito devota e aí ela pediu à Deus, Nossa Senhora da Aparecida, naquela época, e Deus concedeu que eu andasse. Então ali começa a luta da minha mãe e do meu pai, aí eles construíram a casa, começou já os problemas na vida, ela já tinha perdido mais um filho, mais dois filhos ali, naquele lugar e aí ela começa uma vida pesada com meus irmãos, como se tivesse algo que os tirasse de dentro de casa. Durante seis anos eles viviam na rua. Três meses em casa, três meses no mundo. Aí, com muito custo, a gente conseguiu, meu pai conseguiu salvar a vida deles. Aí em 1965 tudo começa a mudar de novo. Eu estava quase chegando aos doze, dia quinze de outubro de 1965 começa a chegar a família do meu pai. Ele não tinha parente dele aqui, só tinha parente da minha mãe, e aí a coisa… começa a beber, até naquele momento meu pai não bebia. Ele fumava, mas não usava bebida alcoólica. E com a chegada da família dele, tudo começa a mudar na nossa vida. Não veio pra ajudar, veio pra destruir. Ele já tinha feito um ‘pé de meia’ bom, ele tinha comprado terrenos, ele falava que ia deixar um terreno pra cada filho, nós éramos sete, e com o despertar da bebida ele foi dispondo de tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Aí meu pai acabou com tudo, meus irmãos também não quiseram seguir a vida, mais, com meu pai e minha mãe, aí em 1969, que não demorou muito, meu pai vende aquela casa, vem pra outro lugar, não consegue pagar, entrega a casa pra imobiliária e aí trouxeram eu pra morar, eu e meus irmãos, os pequenos, porque os grandes não quiseram vir, os mais velhos não vieram. Aí eu vim morar num lugar aqui, Jardim Campinas, que era um mato fechado, depois do Terminal Varginha, não podia andar de noite, não tinha luz e ali, aos quatorze anos meu pai nos trouxe pra aí. Minha mãe ainda segurou o casamento com ele até os 25, ainda voltamos pro mesmo lugar, mas pra pior, pra poder pagar aluguel, aí foi muito triste. Aí foi até a separação dos meus pais, com 25 anos de casados, mas aí cada um de nós já foi ganhando nosso destino de vida. A gente teve uma vida sofrida, trabalhava, minha mãe me punha pra dormir em emprego, pra poder ajudar a casa. Naquela época nem recebia dinheiro na minha mão, era minha mãe que ia lá receber. Dormia, sofria na mão das patroas, que as patroas não queriam saber, muito, da situação.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Quatorze, quinze anos eu cuidava dos meus irmãos. Aí depois eu comecei a trabalhar para ajudar a minha mãe. Aí ela nos levou, nós fomos trabalhar: eu, ela e minha irmã. Minha irmã casou e aí veio pra aqui também, aqui pro _______. Aí trabalhava no Colégio Pueri Domus, dos padres, ali na Américo Brasiliense. Nós quatro trabalhávamos juntos, no mesmo lugar. Minha mãe cozinheira e eu e minhas irmãs, chapeiras.
14:27 - 14:39
E assim viemos, fiquei aqui, em 1972 eu tive meu filho mais velho, que eu tenho um filho que vai fazer cinquenta anos, depois eu tive a outra, quando a outra nasceu eu vim morar aqui com minha irmã. Antes eu não queria vir, fiquei com minha irmã um tempo, com o tempo eu conheci, passado uns anos, três anos depois eu conheci o pai dos meus filhos, com ele eu casei. Tive seis filhos, três antes do casamento e três depois de casada com ele. Aí não deu certo, aí fui morar na favela, lá no Campo Grande, ali perto do Shopping Interlagos, aí consegui trabalhar, mas consegui levar os sete tudo pra creche, pra eu trabalhar. Aí fui levando essa vida, trabalhando e assumindo a casa, porque o marido não tinha essa responsabilidade. Até que o Senhor abençoou e minha falecida mãe e uma tia minha, que é a única, também, que tem da família da minha mãe... de dezessete irmãos, só tenho uma tia. Essa daí me convidou - ela fazia parte da igreja católica - se eu não queria vir pra cá, pra ajudar a salvar essa terra e ter uma casa pra mim. Fui uma filha que voltei sete vezes pra morar na casa da minha mãe, porque não conseguia pagar aluguel. E aí dali pra cá que eu estou aqui, há 37 anos.
P/1 – Vou voltar um pouquinho, posso?
R – Pode.
P/1 – Queria te perguntar se você lembra a sensação de começar a andar.
R – Foi muito bom. Aquele momento, quando eu coloquei, eu falei: “Mãe, eu vou cair”. Ela falou: “Não vai, não, segura”. Aí eu segurei, me lembro que eu segurei numa cadeira e aí coloquei os pés e aí comecei a andar, aí andei uns passos e aí eu não caí. Aí graças a Deus, dali pra frente foi tudo de bom pra mim, porque a pior coisa na vida é você saber que você tem e não pode usar. E eu queria andar, brincar, correr igual os meninos corriam, mas eu não podia. Depois, Deus, graças a Deus, me abençoou e deu tudo certo.
P/1 – E, Dona Cida, quando você ganhou sua primeira boneca?
R - E não foi nem de boneca de plástico, essas bonecas, não. A primeira boneca que eu ganhei era de pano, porque naquele tempo eles faziam muita boneca de pano. Aí ela me deu, minha vó fez a boneca de pano, com roupinha, com tudo. Aí quando eu ganhei a verdadeira boneca, mesmo, eu já estava com uns doze anos, quando eu consegui pegar uma boneca pra mim. Mas eu sempre gostava de brincar, eu queria brincar de boneca e brincava de casinha. Eu falo pras minhas filhas: “Minha casinha não era de barro, não. Era de fazer comida de verdade”. Minha mãe falava: “Mas você vai cozinhar?” Eu falava: “Hoje é dia das minhas comadres”, que eram as amiguinhas. Aí nós fazíamos comida de verdade. Era muito bom. E, de lá pra cá, graças a Deus, está aí.
P/1 – O que você cozinhava?
R – Comida, mesmo.
P/1 – O que você gostava de fazer?
R – A gente fazia couve, arroz, no fogãozinho de lenha, fazia comida. Uma levava arroz, outra levava um pedacinho de carne e a gente fazia e nós passávamos o domingo cozinhando pra nós mesmas. Comida verdadeira, até pra boneca (risos).
P/1 – Como foi ganhar a sua boneca?
R – Foi muito bom. Eu ainda a tive por um bom tempo, na minha vida. Um bom tempo, mesmo. Eu falava que eu ia guardar, pra quando eu tivesse uma filha. Mas não deu tempo, porque ela ficou no meio das mudanças e era de pano, não deu, mas era muito bom. Muito bom, mesmo. Foi uma sensação muito boa. E hoje está aí, cada boneca que vem aqui, nesse meio de material. Vem umas bonitas, vem umas... (risos) mas vem. É assim.
P/1 – E, Dona Cida, como foi, pra você, o período que seu pai começou a beber?
R – Foi muito ruim, porque ele bebia, não na frente dos meus irmãos, ele não judiava, mas fora dos meus irmãos, ele judiava da minha mãe. Ela trabalhava, chegava cansada, mas ele bebia e depois que ele passou a beber, até coisa... depois que ele nos trouxe pra onde ele trouxe, ele vendia até as coisas de dentro de casa, pra poder comprar bebida. Aí, com o tempo, não deu certo, ainda bem antes deles se separarem, ele ficou doente, ela cuidou dele, ele ficou... meu pai foi um pai que foi internado nove vezes. Nessas nove, ele ia e voltava. Foi indo. Décima. Treze vezes meu pai fugitivo. Minha mãe o internava no hospital, um exemplo, lá em Jundiaí, ele fugia. Onde ela o levasse, no hospital onde tinha que fazer tratamento da bebida, ele fugia. E assim a gente ainda cuidou e eu passei a cuidar, com o tempo. Lá na favela eu comecei a cuidar dele. Aí eu vim pra cá e ele veio também. Mas ele judiou. Foi muito sofrido, porque você vê o pai que não bebia, aí você vê o pai se transformar, você vê uma vida que você tinha, porque meu pai e minha mãe não deixavam faltar nada pra nós. Aí depois você se vê na miséria, sem ter o que comer e beber. É muito triste isso, isso marca muito a vida da gente. Eu falo: a gente tem que... é só história da vida da gente que a gente vai buscando e lembrando, mas tem hora que você deita, também, e você consegue buscar o passado seu, aos pouquinhos. E assim foi até que ele faleceu, eu já estava aqui. Minha mãe e eu cuidamos dele, até mesmo ele falecer, ainda o trouxe pro barraco, comigo, mas tudo deu certo.
P/1 – E como era a sua relação com os seus pais? E com os seus irmãos?
R – Meu pai, bom, com a gente não tinha moleza. Apanhava, mesmo. Era assim: se eu falar pra você que foi pai... naquela época eles pensavam em dar a comida, a roupa, a escola, e no português claro e o cacete, batia. Mas não tinha aquele lado afetivo do amor. Nem pai, nem mãe. Você, coisa rara, não sentia abraço nem de mãe, nem de pai. Achavam que a obrigação deles enquanto pai e mãe era te sustentar. A realidade era essa, mesmo. E aí foi assim, a gente foi levando a vida. Então não tinha aquele carinho afetivo de abraço de pai e mãe. Eles pensavam só em nós vivermos. A gente amava, eu falava pra ela: “Eu te amo muito”, mas era dela, mesmo. Você sentia dela mesmo, sentia do meu pai mesmo que eles não eram aquelas pessoas afetivas pra abraços, pra essas coisas, entendeu? Era muito raro.
P/1 – E você sentia falta?
R – E como a gente não sente? E como não sente? Sente. A gente sente. Minha mãe fez 32 anos... não, 23. Dois anos antes do meu filho, minha mãe fez 23 anos que faleceu. O meu pai faleceu em 1987. Eu já estava aqui, mas ele faleceu em 1987. Ele também faleceu e não foi de doença. Meu pai não teve doença nenhuma. Não teve doença, não tomava remédio pra nada. O problema dele era a cabeça, só, mesmo. Mas não tomava medicamento. Nem ele, nem minha mãe morreram de doença pesada.
P/1 – E na sua infância a sua família tinha algum costume? Por exemplo, comemoravam alguma data…
R – Ah, sim! Já vinha da minha vó. Por exemplo, Natal, Ano Novo.
24:43 - 25:16
P/1 – Você estava me contando dos costumes da família.
R – Então, aí minha vó fazia aquelas comidas gostosas. Naquele tempo era muito doce de feijão, arroz doce, doce de cidra, doce de mamão, essas coisas. Aí ela convidava todo mundo, a comida era pra todo mundo, aniversário minha vó lembrava de todos e a última festa que ela fez foi no meu casamento, mas minha mãe também fazia muita festa. Ela fazia aniversário, lembrava de todo mundo, fazia aniversário de todo mundo, muito almoço em família, a família da minha mãe foi sempre muito unida, confraternização, sempre tiveram isso. E isso é o que ajudava a gente a vencer, lutar na vida, que a família sempre foi rígida, pai e mãe e vô e vó, a gente não podia mentir, tinha que saber o que falar, se era verdade, não tinha mentira com eles, então com eles era tudo no sério, meu pai e minha mãe ensinaram a gente a não usar a mentira. E assim meus avôs também ensinaram a mesma coisa. Então era uma família de tio, vô, toda unida.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Por parte da minha mãe, sim, eu conheci meu vô e minha vó. Meu vô, não demorou muito, faleceu. Agora, por parte da minha vó, do meu pai, eu não conheci, nem meu vô e nem minha vó porque, como ele veio pra São Paulo, dezoito anos depois que apareceu essa família dele, mas a minha vó faleceu eu estava com onze pra doze anos, menos disso, e minha vó era índia. Meu vô, como eles falam: ‘aqueles negros da mata’ e minha vó era índia, do laço, mesmo. Eu sou neta de índio verdadeiro. E aí não deu tempo pra conhecer minha vó. Quando era pra viajar, não demorou muito, ela faleceu. Mas da minha mãe eu conheci, eu convivi até... ela só não conheceu meus três filhos mais... não foi isso, não. Ela faleceu no dia... ela fez meu casamento, eu casei com o pai das minhas filhas dia 29 de maio de 1979, eu tinha essa e tinha mais três, meus três mais velhos. Ela fez meu casamento no dia 29, foi o último casamento que ela fez, dia 29 de dezembro de 1979 e faleceu no dia seis de janeiro de 1980. Ela só fez meu casamento, mesmo. Na mesma semana, depois, ela foi pro hospital e faleceu, mas ela já era bem de idade. Uma cozinheira, também, de ‘mão cheia’.
P/1 – Tinha alguma atividade que você gostava de fazer com ela?
R – Minha vó? Nós cantávamos. Gostava de cantar, tocar sanfona. Naquele tempo, era sanfona. Aí passava tocando sanfona, conversando a parte da tarde, dia de domingo era encontro das filhas da minha vó com a minha vó e aí era muito bom. E a gente, com as primas, brincando, era muito bom. Era tudo de bom.
P/1 – E, Dona Cida, qual foi a casa e o bairro da sua infância, que mais te marcou, que você tem mais lembrança?
R – Jardim Míriam foi a minha infância. Ali, quando eu saio, com quatorze anos. Dali em diante a vida foi só sofrimento. Até os quatorze anos a vida era uma, nos quatorze a coisa já muda. Aí já vem sofrimento com pai, com mãe, que os dois não conviverem e a coisa já começa a mudar. E a casa que eu morei está lá. Todas as duas casas que eu morei, a que eu nasci ainda está lá na Alba, no mesmo lugar (risos). E as que eu cresci, até os seis, que é na Rua Treze e a que eu fiquei dos seis aos quatorze, na antiga Rua Doze. Está lá no mesmo lugar. Vira e mexe eu vou lá, dar um passeinho, lembrar dos meus passados.
P/1 – E foi nessa época que você começou a trabalhar?
R – É. Logo quando eu vim pra cá. Minha mãe nos tirou de lá, no primeiro momento ela trouxe, meu pai veio pro Jardim Campinas, aqui perto da linha do trem e ali minha mãe trabalhava, mas ela não podia ir pra casa todo dia, porque era muito longe, trabalhar aqui no Terminal Varginha. Naquela época - depois do Terminal Varginha – não tinha ônibus que ia até onde a gente morava. Tinha que descer no Terminal Varginha e seguir a pé, até pra quem vai pro Jardim Sabiá, Chácara do Conde, Jardim Campinas. Então, ali era uma época que muitos que saíam, não voltavam. Onde, na vida, a gente vê falar muitos desaparecidos, está entendendo? E aí minha mãe teve que dormir no emprego, aí nós ficamos com meu pai, aqui, e ela tinha que dormir no emprego, então nós só a víamos de oito em oito dias. Lá atrás, no passado, a gente só a via de domingo, porque ela trabalhava de domingo a domingo. É uma coisinha que eu esqueci porque lá, no passado, na idade dos meus dez, onze anos, ela trabalhava numa casa, na Casa Palma, então aquela época não tinha luz, igual nós hoje, as luzes, antigamente, pras empregadas domésticas entrarem, só podiam entrar no trabalho depois das onze e meia, meio-dia, porque era a hora que a antiga Eletropaulo, que eles falavam Light, ligavam as luzes em São Paulo, pra que as empregadas domésticas entrassem pra trabalhar. Então elas trabalhavam até oito, oito e meia da noite, porque elas tinham que entrar nesse horário pra trabalhar, porque não tinha, não podia ligar, não tinha energia, não era como hoje. E depois, de lá pra cá, nós viemos pra cá. Quando meu pai nos trouxe pra cá, aí foi quando minha mãe teve que dormir no emprego. Aí nós a víamos a cada oito dias. Foi quando as coisas apertaram, nós tivemos que voltar pra trás e aí volta pra casa de aluguel. Nessa casa de aluguel que ela arrumou, depois das casas grandes que ela teve, a situação caiu tanto. Era uma casa que era tão pequenininha que, de dia, você encostava o guarda-roupa na parede; de noite você trazia o guarda-roupa até o meio do quarto, que era pequeno, aqui estava a cama do meu pai e da minha mãe e eu e minhas irmãs deitávamos atrás do guarda-roupa, porque… está entendendo? Não tinha espaço. Então todo dia nós jogávamos o colchão no chão, pra nós voltarmos. Pra quem tinha tudo e aí, por causa da vida que meu pai chegou a levar, nós tivemos que chegar naquilo. E meus irmãos dormiam na cozinha, que era pequenininha também. Aí, depois, ele construiu uma outra também, essa também ele vendeu e assim por diante, foi indo a situação de vida. A última que ele fez, que quando nós voltamos de Campinas pra cá, nós já éramos maiores de idade, foi quando eu já fui ser mãe. Mas até aí muita coisa foi pesada, lá atrás.
P/1 – E como era o dia a dia, nessa nova casa?
R – Em qual casa?
P/1 – Nessa do Jardim Miriam.
R – A do Miriam, que eu morei de infância? Era tudo de bom. Meu irmão mais velho tocava, ele foi... não sei se você ouviu falar naquele prédio, o Joelma. Um que pegou fogo, uns anos atrás. E a gente participou daquilo ali, porque meu irmão... naquela época, pediam socorro pras pessoas irem fazer um show, alguma coisa, pra levantar dinheiro, pra poder levantar aquilo ali e meu irmão foi um. Naquela época eles tocavam, minha mãe comprou pra ele a bateria, a guitarra e aí eles tocavam, naquela época do prédio Joelma. Aquilo ali foi uma coisa que abalou muito São Paulo. Muito mesmo. E aí, depois foi vindo dali pra cá. Meu pai vendeu tudo e aí a gente ficou naquela, que ele falava: “Não vou deixar nada mais pra vocês. Vocês vão, cada um, lutar com o seu suor”. E realmente foi isso que aconteceu. Aí depois que a gente o perdeu, cada um teve que arrumar sua vida. Então não foi um pai que falou assim: “Eu vou deixar uma herança, alguma coisa pra vocês, não. Vocês vão lutar pra vocês terem o que é seu”. Errado ele não estava. Na verdade, se você ver hoje, errado ele não estava, mas aconteceu. Mas o Miriam é um lugar que deixou muita marca. Lá tem uns primos meus, ainda, que moram e tem minha primeira cunhada, do meu irmão mais velho, que a gente se conheceu, nós temos seis anos de diferença, uma da outra. Quando eu a conheci, ela era bebê. E hoje, minha cunhada, meu irmão faleceu e ela continua morando na mesma casa de infância dela, que é na mesma rua.
P/1 – E, Dona Cida, como foi começar a crescer, sua juventude?
R – A minha juventude não foi ruim, não, porque nunca saí só. Os irmãos não deixavam. Onde eles iam tocar, eles levavam. Eles falavam: “Você não vai”, você não vai. Podia chorar, você não vai. Então eram aqueles irmãos cuidadosos, não deixavam você ter amizade com qualquer pessoa. Apesar que na minha infância, a gente não... a minha infância, o meu início de mocidade, a gente não conviveu, naquela época não tinha o de hoje, era uma coisa totalmente diferente. Se alguém usava alguma droga, alguma coisa, ninguém sabia. Jovem também era bem raro você ver beber, você não via, está entendendo? Então os pais, naquela época, se você falasse: “Pai, eu vou em tal lugar, posso ir?” “Pode”. Ainda era daquele movimento lá: “Eu vou cuspir no chão. O cuspe não pode secar antes de você chegar”. Meu pai e minha mãe foram desse jeito. Pra eles, eles não perdiam tempo. Mas era bom. Meus irmãos tinham liberdade e também eles respeitavam, sempre respeitaram meus pais, depois da turbulência que passou, na fase da vida deles, que eu acredito, penso eu que aquela época eles queriam crescer e viver e meu pai e minha mãe eram sérios de um lado e paternal do outro. Então não deixava, não, mas pelo menos não criou nada, nenhum filho errado.
P/1 – E a escola, você já tinha ido, nessa época, ou não?
R – Eu comecei a ir pra escola com sete anos. Aí depois, com o tempo, a gente... por que eu parei? Que eu fiz duas vezes a oitava. Porque tinha que parar de estudar... Está daqui é minha filha. (Pausa).
39:35 - 39:58
Onde eu parei?
P/1 – Na escola.
R – Então, tinha que estudar, mas aí, quando a minha mãe começa a pôr a gente pra trabalhar, já não dava mais. O meu primeiro emprego, eu me lembro, foi em Diadema. Eu tinha que dormir lá nesse emprego e só vir dia de sábado pra casa. Ficava de segunda-feira a sexta-feira. Era pra cuidar de duas crianças. Então, não dava. Minha mãe nos colocou cedo pra trabalhar, pra ganhar, pra ajudar. Mas não deu pra desesperar, não, porque eu consegui fazer até a oitava, depois voltei de novo, fiz até a oitava e não faz muito tempo, eu tinha voltado de novo pra escola, há uns anos eu voltei, aí uma das filhas ficou doente, aí parei. Aí está aí.
P/1 – E como foi começar a trabalhar, lá em Diadema?
R – Trabalhava lá, assim: eu lavava louça, cuidava do menino. A mulher era feirante, ela vinha - porque Diadema não é São Paulo – pro lado de cá, pra fazer a feira, que ela era feirante. Era ruim, porque ela judiava e eu não podia falar com a minha mãe. Naquela época ela judiava, as patroas, não tinha ‘quem-quem’ com elas. Elas achavam que você era escrava delas e era mesmo. Os filhos, de noite o menino acordava, você não tinha que dormir: “Levanta, vai cuidar dele, vai dar mamadeira pra ele”. Não era ela, era eu. Então com meus quatorze, quinze anos foi assim. Aí depois cuidei dos meus irmãos, pra minha mãe, tanto que os acabei de criar. Minha mãe trabalhava, os quatro mais novos, eu tomei a rédea de tomar conta deles, que hoje já não tem nenhum.
P/1 – E depois?
R – Depois foi quando eu terminei, que eu vim pra cá, as coisas passaram, aí eu já tive meus filhos: o Jeferson, a Tânia, que é a de três, aí depois casei com o pai deles, aí fui morar na favela, eu levava os quatros todos pra creche, de manhã e eu trabalhava e à tarde eu ia buscar. A vantagem é que era das sete às sete, dava tempo de vir trabalhar como diarista, voltar e fazer as coisas, porque naquela época era muita roupa, eram oito filhos, então, o que eu tinha que fazer? Chegava em casa, lavava a roupa, torcia. Esses dias mesmo uma delas até reclamou: “Ô, mãe, o que você fazia com aquela roupa lá pendurada?” Aí eu abria as quatro bocas do fogão, punha uma grade em cima, pra secar a roupa, pra que pusesse na mochila. Então tinha que ter uma mochila pra cada um, cada um com a sua roupa limpinha. Eu tinha que secar em cima do fogão, dobrava tudo, passava, dobrava, punha na mochila, no outro dia os encaminhava. Aí eu fui levando essa vida com eles, até quando deu. Esse que eu perdi, os dois estavam doentes, mas deu pra recuperar, aí fiquei lá na favela, morei durante nove anos. Foi em 1982, eu tive essa que saiu aqui. Aí foi quando a minha tia me falou desse lugar aqui onde eu moro, mas lá na favela, naquele momento minha ajuda não dava muito, não vou mentir pra vocês, catei muito na feira, pedi esmola, teve dia de eu pedir esmola pra trazer, pra poder dar pra eles. Aí eu catei na feira e depois, quando os meninos, os dois mais velhos, também levei os dois, os dois também catavam na feira comigo. Ou então eles iam e ‘coisavam’, depois as coisas já foram mudando, já consegui comprar, deixava a feira abaixar tudo, pra eu poder ir lá comprar tudo mais barato, pra não faltar pra eles. Aí nesse meio termo eu consegui comprar um barraco lá, quando eu comprei o barraco foi quando chegou a chance de chegar aqui. Aí quando foi em 1982, no fim de 1982 pra 1983, eu estava grávida da caçula, que mora aqui em cima. Não, não estava ainda grávida dela, aí minha mãe falou: “Vai pra lá, lá você vai conseguir ajudar aquele pessoal que está lá naquela luta e você ter o que é seu”. Aí falei pra minha mãe: “Mas eu nunca mexi com isso, mãe. Como eu vou ter uma casa?” Já fui despejada várias vezes, porque o marido não pagava aluguel. Duas vezes eu cheguei, a minha mudança estava na rua. O proprietário entrou, tirou tudo e colocou no meio da rua. Aí eu chegando: “Meu Senhor”. Olhei assim, aqueles móveis parecem que são meus e eram, realmente, meus. Tudo, cama, tudo lá o proprietário pôs, fechou a porta e eu não tinha pra onde ir. Foi onde eu voltei sete vezes pra casa da minha mãe. Você voltar uma vez, duas, vai, mas sete vezes, não. Até o dia que você chega e fala assim: “Deus, eu vou mudar a minha vida” e aí vim aqui. Comecei a participar de uma reunião aqui. E aí foi quando eu vim pra cá. Aí eu cheguei aqui no comecinho de 1983, vim participando da reunião, a mata aqui era fechada, não tinha nada, aqui era mata fechada, mesmo. Aí a gente passava pelos trilhos, pra chegar nessa reunião. Aí, participei da reunião o ano de 1993 todinho, aí ganhei a minha filha caçula. Quando ela completou dez meses, em 1984, aí eles fazem o convite de quem queria estar vindo pra cá morar, pra ajudar a salvar a área. Aí eles olham pra mim com oito filhos: “Bom, uma mulher com oito filhos vai dar pra ajudar”. Porque a lei respeita a criança. E aí eu vendi o barraco, na morte do Tancredo Neves, e vim. Aí cheguei aqui, a caçula ia fazer... estava com dez meses. Aí eu vim morar aqui. Aí veio o desmatamento, uma boa parte a gente desmatou na mão, até que chega primeiro de maio de 1985, quando vem a repressão policial do Jânio Quadros, que era o prefeito e eles não aceitavam moradia por invasão e aí foi quando eles vieram, no dia primeiro de maio. Eu já estava morando aqui, tinha um espaço aqui de quatro casas, que é uma coisa que eu pergunto pro pessoal e não sei se vocês hão de concordar: a maioria desses prédios e construções que tem, que o governo passa e fala: “Vai sair um apartamento em tal lugar, vai sair moradia em tal lugar”, não é que ele comprou. A real é essa, tipo aqui: aqui nós temos quatro modelos de casa, que já estava pronta, a mata estava fechada. Lá em cima, onde é o CJ, era o quê? Onde guardava os materiais da construção, está me entendendo? Como eles conseguiram construir aqui? Não tinha asfalto, não tinha nada. Então, primeiro eles invadem, faz o primeiro protótipo deles, depois eles lançam. Agora, quando você invade, você não pode. Mas pro lançamento desses a lei pode. Aí foi quando nós chegamos, eu fiquei nessa creche uns tempos, lá em cima, no CJ, ali nessa rua construíram um cômodo pra mim, que era uma fábrica deles, tinha até fábrica de tijolo aqui dentro, aí construíram a fábrica pra mim, da fábrica eles construíram... tinha fábrica de tijolo e eles construíram os barracos. Eu fiquei. Aí, no dia primeiro de maio de 1984, a polícia veio. Naquela época vieram nove camburões e nove ‘baratinhas’, que eram aquelas polícias diferentes, aqueles carros pequenos. Aí o Jânio veio pra tirar, mas não conseguiu, Deus é maravilhoso. Aí, eu não conhecia ninguém. Tinha reunião, mas você só passou a conhecer as pessoas num momento desses. Aí foi quando um dos policiais mandou que eu saísse do barraco, mas nessa altura já tinha espalhado, tinha um movimento na Praça da Sé, lá onde eles falavam sobre o governo e o Jânio manda fazer a vistoria dos lugares onde estava tendo invasão de terras, onde chegaram aqui. Aí foi quando ele falou pra mim, um dos policiais. Quando chegou, já tinha bastante gente com criança, dentro do barraco, pra segurar, porque a gente já vinha invadindo outros lugares. Aí foi quando um dos policiais falou pra eu sair. Eu saí, aí quando eu saí, de repente, que eu atravessei, que eu cheguei na ponta aqui, ele foi pra tirar tudo. Aí quando ele foi pra tirar tudo, ele falou: “A senhora não vai tirar as crianças?” Eu olhei e falei: “Deus, vou falar pra ele o que eu devo”, aí eu falei pra ele. Ele falou de novo: “A senhora não vai tirar as crianças, pra nós derrubarmos o barraco?”, eu falei pra ele: “Você pediu pra eu sair, não mandou tirar os meus filhos”. E aquela palavra foi abençoada por Deus, porque a partir daquele momento chegaram uns advogados, o pessoal, e levantaram aquela ira que estava e já partimos pra parte da negociação da terra. Foi quando o Bruno... o Mário Covas compra essa terra e cede pra nós morarmos e aí a gente começa a nossa luta. E aí estamos aqui, hoje.
P/1 – Que luta foi essa, que começou nessa época?
R – O desmatamento, a organização pra tudo. Passamos quantas noites em claro?
R/2 – Oito dias e oito noites.
R – Sabe onde é o prédio? Martinelli. Ali naquela pracinha ali, do prédio Martinelli, a gente passou oito dias e oito noites. Os padres daquela região levavam sopa, pão e café pra nós, pra gente conseguir chegar, salvar essa terra aqui, pra nós estarmos aqui. E estamos aí. Aí, depois veio o projeto pela Unicamp, universidade de Campinas, onde a gente não fez de alvenaria. Então nossas casas são todas pré-moldadas, todas feitas no chão e levantadas as paredes.
P/1 – Dona Cida, como foram essas noites e esses dias?
R – A gente passava... era vigília lá e vigília aqui, a gente fazia vigília aqui. Uma parte pra cá, vigília aqui. Aqui a gente passava na base da fogueira, buscar lenha, fazer fogueira, passar a noite batendo papo ali, fazendo a ronda, pra ver se estava tudo bem, até que a gente conseguiu os primeiros passos, depois teve que sair todo mundo, ficaram algumas pessoas, algumas famílias, mas a maioria teve que sair, se ‘despertar’, pra poder entrar com a terraplanagem. Aí, da terraplanagem, começa. Aí vem a universidade, o nosso arquiteto é o Vila Lisboa e o Roberto Pompéia, da universidade de Campinas. Aí estamos aí.
P/1 – Como foi ver as casas se erguendo?
R – (risos) Ah, o primeiro momento foi muito bom. Assim, nasce em você aquela fé de quando você começa a pegar o primeiro tijolo. Quando a gente fez a primeira placa, quando vai começando as placas. Aí, quando a gente começa a levantar a primeira casa… Pra você ver: o mesmo material da parede, que está ali, é o da laje. Então fazer a placa, as paredes, levantar as paredes. Tinha um pessoal, que era dividido o pessoal pra servir água, pra cozinha, pra placa era só mulher, os homens na betoneira, outros pra carregar. Assim.
P/1 – E foram organizando tudo?
R – E aí, nesse tema, vem mais outro pedaço triste porque, pra eu ter a casa, eu precisava da casa, mas precisava trabalhar e eu tinha oito filhos. O que eu fiz? Eu tive que me separar das cinco filhas mulheres. Eu precisava arrumar um lugar, porque eu trabalhava doze horas por dia, de segunda-feira a sexta-feira, chegava muito tarde em casa. Eu fui morar num barraco, aqui embaixo. E aí eu tinha que deixá-las e lá na parte debaixo ainda era mato, então não tinha muito conhecimento com as pessoas, aí um dia, à noite, eu cheguei, essa ali e a outra estavam com as roupas dela arrumadas. Eu falei: “Quem fez isso?” Ela falou assim: “A senhora também não fica em casa, mais”. Que aí já não dava pra olhar pra ir pra escola, voltar, quando eu chegava e saía estava dormindo, voltava, estava dormindo. Então se sentiram realmente abandonadas. No desespero eu saí procurando um lugar onde eu podia ‘aguardá-las’. Pelo menos até eu conseguir a casa. Que aí eu trabalhava de segunda-feira a sexta-feira no emprego e sábado e domingo, aqui. Então a gente não pagou o pedreiro, a mão de obra pra ninguém. A mão de obra foi nossa. 60% mulher e 40% de homem. Então sábado e domingo nós tínhamos que cumprir oito horas de serviço. Já não tinha casa, já não dava pra você dedicar à família, aí foi que eu saí e procurei um lugar e achei, lá na Pompéia, na Avenida Pompéia, perto do Hospital São Camilo, um orfanato que falava que cuidava de criança, mas era só menina. Aí primeiro eu levei a Cristiana e a Luciana. Aí depois eu levei a Taís e a Verônica. Nesse meio tempo eu ia durante a semana… os finais de semana eu ia e ficava ao menos um dia lá com elas, cozinhava, que elas passavam o dia lá. E de último eu levei a mais velha. A mais velha estava com a minha mãe. Eu sempre coloquei na cabeça: “Onde um come, ficam todos”. Então a tirei da minha mãe e a levei pro orfanato. Aí, lá no orfanato, elas chegaram a ficar três anos, mas elas tinham que ficar até os dezoito, cada uma. Mas naquele momento deu problema que a mais velha fugiu, porque ela sofreu lá dentro, ela apanhou e aí eu fui lá, com muito custo eu consegui tirar todas as cinco e, quando eu cheguei lá - eu deixei meus documentos, todas no meu nome – a mulher já tinha tirado tudo do meu nome, como se eu tivesse dado elas para adoção e eu não fiz isso. Aí eu falei pra ela: “Eu quero minhas filhas de volta, senão eu vou chamar a polícia. Você falou que ia cuidar”. Já estava tudo no nome de Carvalho de Andrade, de Rodrigues pra Carvalho de Andrade. Consegui trazê-las. Foi sofrido. As trouxe tudo de volta e aí a vida começa a apertar mais ainda. O barraco lá embaixo não tinha banheiro, não tinha uma estrutura boa, que era um cômodo só, até sair a casa aqui. Aí eu cavei uma fossa da noite pro dia, de quase dois metros e meio, sozinha, pra fazer um banheiro provisório, pra elas tomarem... pra poder usar. Senão eu ia tinha que sair daqui e subir tudo isso e ir lá na minha mãe, do outro lado, pra poder usar o banheiro, ou eu, ou eles. E o mato fechado não dava pra você... como diz?... ir em qualquer lugar, porque você não sabia quem andava ali. E ali, assim eu fiz. Aí comecei pedindo ajuda, muitas pessoas me ajudaram, a prefeitura me ajudou, os Vicentinos me ajudavam com comida, a LBA também me ajudou bastante, pra eu poder criá-los. Não tinha onde pôr pra dormir, dormi com eles durante um bom tempo, os oito, na cama, numa cama só, porque o barraco era pequeno e naquela cama eu colocava tudo deitado, no canto da cama, de assim, porque não dava, se eu deitasse, o espaço não dava. Um dia saí, fui andar, falei: “Hoje eu vou arrumar uma cama pra vocês” “A senhora vai comprar, mãe?” Não tinha cama pra dormir que dava porque, quando eu mudei pra cá, as minhas coisas, que eu trouxe, quebraram tudo. Aí quando eu fui morar lá embaixo, no barraco, não tinha cama. Conseguimos a cama de casal. Aí dormíamos eu e os oito na mesma cama. Aí eu dormia sentada e eles deitados, pra poder passar a noite. Aí eu resolvi e falei: “Eu vou arrumar uma cama pra vocês”. Aí eu saí (risos) e ia por aí, andando por aí, aí num lugar eu achei um estrado, depois achei as travesseiras da cama e assim eu fui montando, aí montei a primeira cama, mas precisava de mais cama, afinal, são oito! Aí fui andando e consegui montar duas beliches de material, como diz, reciclável, de bater cama, que jogaram fora, eu emendei os pedaços e montei duas beliches e fiz a cama pra eles dormirem. E ali nós ficamos, até o dia de nós subirmos aqui. Mas nesse tempo foi muito difícil, porque faltava alimento, as coisas. Minha mãe me ajudava, mas era pouco o que meu pai e minha mãe me ajudavam. Aí depois, arrumaram a creche aqui, voltei, comecei a trabalhar na creche, mas eu trabalhava sem registro. Durante o tempo que eu trabalhei nessa creche aqui eu trabalhei sem registro. Foram dez anos de voluntário, sem registro. Ajudar sem registro. E aí, depois, quando conseguimos as casas, eu me registrei e com um ano e pouco eu saí e aí eu consegui, graças a Deus viemos aqui pra cima, entregou a casa pra nós sem acabamento, porque aos poucos ia vir e aí a gente começou a lutar por essa casa e aqui a gente está. Mas nesse tempo foi pedindo esmola, até arrumar a vida. Pedindo ajuda, pra não deixar faltar o que comer e beber. Aí, quando foi em 1992 a 1993, houve um problema na associação, eu sofri um problema sério e fui obrigada a sair desse emprego e aí foi onde me leva a chegar no que eu sou hoje.
P/1 – Foi na creche?
R – Problemas passados e, quando você assume, você é responsável por uma coisa que você não fez. Aí eu falei que eu não ia levar pra frente, mas o pessoal tem claro que isso, um dia, poderia sair e aí foi onde - quando chegou nessa data - me levaram a jogar tudo o que eu tinha esperado. O que eu queria, mesmo, na vida, era ter estudado, me formado, o que eu queria ser e ainda sou. Esse é o livro que a gente conta nossa história. E eu faço parte do livro. Nós somos em... naquela época, quando a gente fez a história do livro, nós éramos seis mulheres que tomavam conta da associação, então o livro lá está Maria de Lurdes Vermont, ngela Maria da Silva, Maria de Fátima da Silva, Valquíria Magalhães, Maria Cleonice Alves Belmiro e Maria Aparecida Rodrigues, entre aspas, foi ali onde que a palavra Cida Preta que eu coloquei pra você é assim: (risos) quando eu cheguei aqui tinha uma outra senhora chamada Dona Cida, o apelido dela era Cida Preta, essa Cida Preta foi embora, foi comandar outro movimento e eu cheguei com oito filhos e a outra Dona Cida também chegou com oito filhos, que é a Dona Cida do Gilberto. Aí eles falaram, como tinha muita Cida: “Então a gente vai te dar esse nome, você aceita?” Aí eu ainda falei pra eles: “Se for com respeito” e, com esse respeito, girou o mundo inteiro, o Brasil inteiro, onde eu vou eu já me identifico, ali chegou Dona Cida Preta. Então é Cida Preta. Pode procurar em qualquer lugar, que você vai achar Cida Preta. E aí foi isso: eu ganhei a palavra Cida Preta. E aí, no livro está Maria Aparecida Rodrigues e eles fizeram assim, entre aspas, ‘Cida Preta’ (risos). Esse livro foi feito com a difusora lá de Curitiba. Está aí. Uma hora a gente chega lá e eu mostro pra vocês (risos). Então é isso e aí nós estamos aí. Aí foi quando houve uma calúnia comigo, aqui na associação, falaram que eu tinha roubado e uma coisa que mexeu muito comigo, foi assim: nessa altura eu já estava como cozinheira da creche, então eu fazia, tanto pra creche, quanto pro CJ, bolo e depois me colocaram como lactária de berçário, aí eu já fui cozinhar pra todas as crianças da creche. E aí houve um problema de diretoria e aí tinha que sair, esse corpo. Então, tem que nomear outro corpo e, nesse grupo, me indicaram como presidente da associação. E quando eu cheguei nesse grupo da associação, meu nome estava sujo no SPC, mas por dívida minha. Então eu tinha que consertar o meu nome. Isso foi no mês de julho de 1992... 1993, aí eu tinha que consertar, limpar meu nome. Então, de julho, meu nome foi limpo só em outubro. Então eu administrei essa associação, como presidente, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março de 1993. Foi quando houve um problema sério e falaram que tinha tido um roubo na associação, aí me imprensaram, me colocaram na parede e eu falei: “Não, o que eu assinei, eu assinei e tudo que eu assinei tem cheque”, mas acreditaram, foi um erro muito grande, quando eu assinava cheque sem valor. E pra quem ia? “Não, pode deixar, não precisa colocar o valor, não, que eu...” e isso não voltou? E isso me levou pro buraco. Que então eu já tinha pagado, pra ter o que aconteceu, eu consegui pagar o mês de novembro dos funcionários, que eram 28 funcionários, consegui pagar dezembro, férias e décimo-terceiro de funcionário, dezembro foi pagamento e abono, janeiro férias. Aí quando chega de março pra abril estoura um problema que jamais eu esperava. Diz que tinha tido um desfalque muito grande e não dava tempo. O valor do dinheiro que tinha caído na minha mão não daria tempo pra aquilo. Aí eu fui parar... sentada aí onde ele está, aí era uma fossa, aqui era outra, chamaram a polícia pra mim. Eu fiquei detida durante dezesseis horas, pra prestar conta daquilo que nem eu sabia o que era. Tudo que me perguntou, eu me lembrei, eu comprei comida, não só pra mim, como pra pessoas que pediram, o que eu assinei e o que eu deixei de assinar. Quer dizer: enquanto você fala ali, eles vão batendo, mas vão buscando sua vida lá fora. E realmente não tinha achado nada meu lá fora. Aí, passado uns dias, o delegado virou pra mim e falou: “Aqui não consta nada, mas caso alguma coisa acontecer, a senhora descobrir o verdadeiro, a senhora nos procura”. Me deu uma carta, tudo bem. E naquele momento foi uma coisa muito triste, pressão todo dia. Cada dia era um que vinha me pressionar pra eu falar. Aquele ditado: pra uns eu falava de um jeito... não. A palavra que era um, era com todos que vinham. Então eu me vi numa situação muito séria, até que, nesse momento, depois, fizeram uma assembleia e nessa assembleia, se Deus não entra no meio, provavelmente seria eu que talvez não teria voltado. E aí eu, daquele dia em diante, provei pra eles que não, mas mesmo assim a carta estava guardada, do delegado, e eu entrei numa depressão muito grande. Durante três anos eu tomei remédio pra depressão. No momento da depressão eu entrei numa coisa que eu nunca tinha feito na minha vida, beber. Eu passei a beber. Perdi todos os amigos, de ponta a ponta. Porque quando você - o ser humano conhece você de um jeito – muda, tem duas coisas na vida: ou ele pergunta pra você o que você tem, o que te levou a fazer o que você está fazendo, mas naquele momento eu não tive nenhum dos dois lados, porque a pessoa que eu tinha, que eu podia clamar, primeiro Deus, depois a minha mãe e eu não tinha mais. Naquele momento veio tudo: o problema da associação, o assassinato... a perda da minha mãe primeiro; o problema da associação; o assassinato do meu filho e a perda de um neto. Tudo encarreirado. Aí fui socorrer, com uma vizinha, que mora ali onde a menina foi comprar água, ela pediu que eu fosse com ela no Hospital de Franco da Rocha e eu fui pra lá, porque lá elas faziam tratamento, ela foi lá pra pegar um atestado pra ver se conseguia aposentadoria, aí ela falou pra mim: “Cida, você não quer aproveitar e passar no médico? Fala pra ele o que está acontecendo com você”. Psiquiatra. Eu passei. Menina, você sabe que eu saí de lá com setecentos comprimidos. Eu levei uma doente e a doente era eu, pelo que eu entendi. Saí com trezentos e cinquenta Diazepam e trezentos e cinquenta antidepressivos. Eu tomava Diazepam pra dormir e o outro pra sobreviver, quando eu acordasse. Tomei por um tempo. Passou o medicamento, eu entrei na bebida. Eu levantava cinco horas da manhã e eu bebia. Catava material, o primeiro material que eu catava, já catando, já esperava a adega abrir pra eu comprar. Tudo isso por coisa que eu não devia e eu estou aqui. Foi até aquele dia, o pessoal da igreja veio fazer uma oração naquele dia e eu estava. Eu conto pra todo mundo: eu tinha três Corote de cachaça e meia no corredor, no armário, aqui e aí, naquele dia eu pedi: “Deus, eu não vim com ela e com ela eu não vou. Meus filhos precisam de mim e eu preciso de Ti”. Mas até essa altura, ninguém, nem por parte da minha família, que também estranhou eu beber e nem por aqueles que um dia disseram que eram meus amigos, me perguntaram: “O que está acontecendo com você?” Ninguém. Hoje todos parecem chegar, parecem esquecer, mas eu não. Foi até o dia que Deus me livrou disso. Eu levantei de madrugada e falei: “Deus, eu não vou beber” e eu joguei tudo fora. Passava, um dia minhas filhas... eu já via que eu não sabia mais, que eu não tinha mais força, a bebida já estava tomando conta de mim. Eu estou falando isso, porque elas nunca escutaram isso. Elas não sabem o que eu vivi. Aí eu levantei cedo: “Precisa comprar as coisas” “Não, mãe, deixa que eu vou”. Aí passaram três dias e elas viram que eu não bebi nada. “Eu vou em tal lugar” “Não, a senhora não vai sozinha. A senhora vai passar num lugar e vai sentir cheiro”. Eu falei: “Não vai ter... se quem me curou foi Deus, não vou sentir cheiro de nada, eu tenho que viver, eu preciso vencer”. E assim foi. Eu consegui vencer essa batalha, pra eu poder chegar no que eu sou hoje. Aí começo a catar esse material. A palavra pra mim era essa: “Virou mendiga? Lixeira? Com esse saco nas costas parece fantasia”. Muitas noites eu chegava aqui dentro, à noite eu chorava, pedia à Deus. Eu não era assim. Por que eu vou ter que viver isso? Mas lá atrás, hoje eu entendo, Deus já tinha um plano na minha vida. Eu disse: “Eu não vou desistir de catar o material”. Muitas vezes eu saía pra catar de manhã, o pessoal colocava fezes de cachorro no material que eu ia catar. Mesmo assim eu não desisti. E eu catei. Pedi esmola, catei na feira, pedi ajuda, renegada, muitas vezes, parei um tempo de catar, que direto catava e guardava, aí fui assessorar minha prima, há uns quatro anos, dar uma força pra ela, na cooperativa dela, lá em Vargem Grande. Foi o tempo que eu pedi pra Deus porque, na verdade, esse pessoal não me aceitava, não aceitava esse tipo de trabalho, achava que a casa ia encher de rato, que tudo ia mudar. Ajudar, não. Não ajudava. Aí passei, eu catava na rua, segunda-feira, quarta-feira e sexta-feira eu fazia [Jardim] Lucélia todinha, eu saía às cinco da manhã, cinco e meia, catava... tinha dia de eu catar, você sabe o que é catar quinhentas PETs por dia? Você sabe o que é refrigerante? Você conseguir catar quinhentas PETs por dia e pôr aqui? Porque naquela época não tinha catador. Não era valorizado material reciclável. Aí chegou ao conhecimento da subprefeitura da Capela do Socorro, foi quando eles abriram as portas pra mim e ali eles me incentivaram: “O que você quer?” Eu falei pra ele: “Eu acho que é o emprego do futuro”. Eles falaram: “Vai ser do futuro”. Aí os caminhões da Cofarja saíam lotados, aí consegui fazer as escolas me darem material, as caixas de leite. Eu ia nos lugares e conseguia fazer palestra. Ali onde hoje é o Largo Treze, eu ia dar palestra pro pessoal que estava despejado, eu ia pra lá fazer os artesanatos, que assim eu aprendi. Antes disso, eu consegui fazer... ela que é culpada de tudo isso, é essa que mora aqui em cima. Ela estava com nove anos, em 1992 pra 1993, ia fazer dez anos e ela perguntou: “Mãe...” - foi quando houve todos os problemas pesados na minha vida – “... tem como você comprar uma árvore de Natal pra mim?” Eu falei: “Não tem. Não tem nem o que comer, vou comprar árvore de Natal! Mas eu vou ver o que eu faço pra você”. Aí eu saí daqui, andei, andei, andei, lá em cima, no Noronha, eu achei uma arvorezinha de Natal desse tamanho, de garrafa PET, de ‘refri’ pequeno. Aí catei mais material. Aquilo me subiu, me animou, falei: “Não, não posso perder a fé”. Voltei pra casa, aí comecei a buscar. Buscava material na rua, o caminhão levava e eu fazendo artesanato, aí comecei a fazer árvore de Natal. Fiz a primeira pra ela, árvore de Natal. Aí aprendi a fazer samambaia, fazia antúrio, fazia as flores. Trabalhar com papel machê. Aí eu falei: “Agora, quem vai me tirar do serviço, Deus? Agora eu vou ficar”. E aí colocava tudo pra vender: você e você vão pra uma feira, você e você… - dividia em três, porque as duas pequenas não iam ainda. Então vão três: dois, dois e dois, tudo pra feira, cada um vendia os trocadinhos lá e trazia. E assim foi. Aí eu dei o estudo pra eles, até onde deu pra eu dar, quem não quis estudar mais foi problema e decisão deles e aí, dentro disso, é onde veio tudo isso. Desse problema que houve lá comigo, em 1992, é que eu estou aqui hoje, trabalhando em reciclagem. Aí, nesses quatro anos que eu te falei, não fui só pra reciclagem. Lá as portas abriram, onde você viu aqueles certificados que estão ali. Ali eu comecei. Aí a minha prima falou: “Precisa ir em tal reunião”, “estou indo”; “Precisa me representar em tal lugar”, “estou indo”, e aí eu fui me informando com o povo como eu fazia. E aí foi isso. Aí, quando eu voltei, quando deu três anos, que era pra eu dar entrada na minha aposentadoria, eu falei pra ela: “Agora eu vou trabalhar de novo, pra mim”. Aí voltei, fiz um panfleto com material reciclável, teve uma reunião, eu levei e hoje eu consegui fazer esse trabalho de conscientização, aqui dentro. Mas até então, ainda só material. Aí entra a Márcia, do Capacita, quando em 2020 ela me adota e passa a me ajudar. Com esse material, no ano de 2019, conseguimos fazer uma festa pra molecada aqui na associação, tanto de Natal, quanto no Dia das Crianças, com sorvete, bolo, tudo e presente. Ano passado a gente conseguiu, em cima desse trabalho, que ano passado eu fui pro Carnaval e já tinha tido Covid, porque o Covid é 19, é 2019 mesmo. Não é 2020, como ele decretou, é 2019 mesmo. Ele está aqui desde julho de 2019, mas só foi decretada no ano de 2020. Porque no dia sete de julho de 2019 tudo que o pessoal sentiu lá dentro do hospital, eu senti aqui dentro de casa. Me tiraram daqui, porque eu ia morrer aqui dentro. Já fazia oito dias que eu não comia, não sentia sede, não sentia a água, o sabor da comida, o corpo… parecia que eu estava dentro de uma panela de pressão, mas os médicos não sabiam, porque nem eles sabiam que doença era. O médico só me disse que era uma pneumonia do ar, mas me entubaram, me colocaram um bocado de aparelho e queriam me internar lá, eu falei: “Aqui eu não vou ficar, ainda não”. Por isso que eu estou aqui e Deus não me deixou ficar lá, eu fiquei aqui, pra eu poder contar pro povo que realmente eu tive a Covid lá no começo. Aí veio janeiro, ele decretou o negócio, veio a Márcia e passou a me ajudar. Aí eu entro na Campanha Solidária de Alimentos pro povo, as Casas Bahia me patrocinam pra ajuda e estou aí hoje. Pessoal, quando eu consigo ajuda de alimento, alguma coisa, pergunta pra ela, são duzentas, trezentas famílias aqui nessa porta, aí vem o caminhãozão, aqueles caminhões enormes, deixam as cestas, né Neide? E atende todo mundo que dá pra atender.
R/2 – Não são só cestas que eles trazem. Eles trazem mais coisa de higiênico, lanche, agasalho…
R - ... roupa…
R2 – Tudo, num global.
R – E foi bom, que hoje, lá, quer dizer, eu penso assim: foi doído lá no começo, de começar a catar, foi, mas hoje eu vejo que Deus abriu a mente, já está abrindo a mente do povo, e aí eu consegui passar pra eles. Então, hoje, se eu demoro a buscar, o celular toca: “Cida...” - ontem à tarde, mesmo, de tardinha, a Sandra – “... você vai vir buscar?” Aí, vou buscar. Então eu busco, tanto o pessoal traz, mas hoje eles próprios já não conseguem mais passar por lixo comum, pra levar embora. Eles mesmos já trazem. E aí está aí. Eu pretendo continuar com o meu trabalho. O que falta pra mim é um espaço pra eu trabalhar. Como eu te coloquei: falta um espaço pra eu trabalhar. Eu peço, assim, pra quem puder me ajudar, uma renda que dá pra eu ressarcir as pessoas que queiram trabalhar porque, dependendo do local, é muito material, mas eu não dou conta, porque o espaço é pequeno. E não tem como eu comportar pessoas pra pagar pra mim, porque eu não sou filiada em cooperativa, então não tenho ajuda de renda. O pouco que entra é do material, mesmo, que eu cato e vendo. Mas eu já pedi pra várias pessoas, se puder me ajudar, ao menos um tempo num aluguel de um espaço que eu possa trabalhar e me ajudar, umas quatro, cinco pessoas, três, quatro pessoas, pra poder me ajudar, pra pagar. Porque ela vem, eu a tenho e essa que falou aí agora, eu até ajudo dessa maneira e elas me ajudam, mas como eu não tenho muito, quando elas vêm, eu procuro pagar 25 reais por dia. Mas aí as coisas apertaram agora. Então esses últimos quase dois meses eu estou catando sozinha, porque eu ainda estou devendo pra elas duas, dos dias que elas trabalharam. Então eu preciso de um lugar pra eu colocar, mas eu preciso de alguém que possa me ajudar.
P/1 – Dona Cida, quando você começou a catar?
R – Eu comecei a catar no dia dezesseis de outubro de 1992. Direto, né? Catava alguma coisa ali, uma ou outra, mas a partir desse dia, em cima da tal árvore de Natal, foi que a coisa começou a apertar. Mesmo eu fazendo ‘bico’ de outras coisas na vida, mas não deixei de catar, não. Então fez 29 anos. Porque meu neto vai fazer 29 já em fevereiro, então ainda falei essa semana: “Já estou fazendo 29 anos de catar”. E, assim, eu gosto desse trabalho que eu faço.
P/1 - O que o Saulo sugeriu é que você… quando a gente estava preenchendo seus dados, falou que você teve muitas profissões...
R – Tive várias profissões.
P/1 – Quais foram?
R – Eu fui... vamos começar lá, então: babá de cachorro, babá de criança, e registrada: profissão de montadora de rádio, cozinheira, lactária de berçário, fora os meus cursos, e hoje eu me dediquei mesmo, que eu falo pro pessoal que eu casei com esse trabalho, eu gosto de ser catadora. Me sinto bem em ser catadora, não tanto assim, é ajudar o meio ambiente, foi uma coisa que eu deixei claro lá, onde eu estive, no Carnaval, eu não sei se você viram, eu vou mandar pra você, eu falando com duas TVs, tiveram duas TVs que me cataram lá, né, Neide, pra me entrevistar, porque perguntaram quem poderia falar sobre o trabalho de catadora e aí a Valquíria, que faz parte do CMR, pegou e falou: “Tem uma aqui que pode contar, que ela é mais velha do que eu na história”. Aí foi quando eles me entrevistaram pelo pessoal da ANCAT, acompanhado pelo pessoal da ANCAT e Ambev. E aí eu dei a entrevista pra eles, diz que foi parar até na TV, que eu mesma não me vi até hoje, mas o povo disse que me viu, né? Diz o povo.
R/2 – Eu também não vi, não.
R – O povo diz que me viu: “Cida, eu vi você”. Então tá. E aí eu coloquei pra eles o que significa a reciclagem. Então, vamos beber, vamos brincar, mas vamos respeitar o meio ambiente. Porque da hora que você consegue pegar aquela latinha e colocá-la no lugar dela, colocar o material onde ele deve ser colocado, você ajuda a nação, o meio ambiente e você mesmo. Vou mandar esse pedaço daí pra você. Então a gente respeita tudo. Vamos respeitar o meio ambiente. E aí foi o que eu coloquei e isso foi parar longe, mas deu tudo certo (risos). Eu gosto. Eu falo, aqui dentro de casa mesmo eu falo pras meninas assim: “Engraçado, eu cato lá fora, educo os outros e vou catar na minha casa?” Hoje todo mundo já sabe o que é reciclado. Mas é assim, já sabe, todo mundo já sabe. Tinha dia que eu não tinha pão, não tinha pão de manhã, não tinha café, aí eu olhava, não tinha nada pras minhas filhas comerem. Aí cinco e meia: “Vou sair”, dava uma saída, já catava aquele punhado de material, já separava, quando abria o primeiro ferro-velho eu estava lá, era tempo de eu trazer aqui, já comprava o pão, o açúcar que estava faltando, ou café, alguma coisa pra elas, deixava aqui e voltava. Então eu catava das cinco ao meio-dia, uma hora da tarde. Aí ia separar. Então eu trabalhava de segunda-feira a sábado, mas tirava o domingo. Hoje está difícil eu tirar até o domingo. Hoje mesmo eu aproveitei e falei pras meninas: “Olha, eu vou aproveitar que eles vão vir aqui, eu não vou trabalhar nem sábado, nem domingo dessa semana, porque vai 365 dias do ano, se deixar”. Porque não adianta você falar que não, que depois que você educa a pessoa, o pessoal já não consegue mais ficar, aí um liga: “Cida, Cida, Cida”. Eu só não tenho buscado em lugar mais longe, porque eu não tenho condições, não tem como. Eu ganhei esse carrinho, chegou em maio agora, dia dezessete de maio e eu tive aqui uma entrevista com o pessoal do Capacita, ano passado, em dezembro e chegou ao conhecimento da Maju, repórter da Globo, teve mais umas outras pessoas, uns empresários que estavam me ajudando, eu falei com eles e perguntaram o que eu precisava, eu falei que precisava de um carrinho. O meu carrinho de trabalho é esse. Eu te mandei a foto? Esse aqui é o meu Manda-Chuva. É com esse aqui que eu busco uma tonelada, uma tonelada e pouca de material.
Esse aqui eu ganhei, mas só busco numa rua, que é grande e, quando vem de lá, uma carga só, de uma pessoa só, já enche demais o carrinho. Mas é com esse daqui que... como diz? O meu ganha-pão, que me ajuda. E aí fazer isso, ano passado eu ganhei, agora em maio, chegou esse. Veio de Minas Gerais. Pra mim, sozinha, ele é pesado. Então tem que ter um ajudante, pra me ajudar. Ou então um carro aberto, pra que eu possa ir buscar onde ‘coisar’ porque, se eu for buscar nos lugares que eles ligam, aí é material demais. Aí precisa de espaço. Mas por enquanto aqui está dando pra pegar uma tonelada, duas toneladas, duas toneladas e meia de material, por mês. É que caiu muito material. Caiu bastante. O valor está bem escasso, porque o papelão não está quase sendo construído, fabricado no Brasil. Está fora, né? Eles estão achando que o papelão, no Brasil, está muito caro.
P/1 – Com quais materiais vocês trabalham?
R – Todos. Eu trabalho com todos os tipos de plástico, tem a latinha, tem a PET, tem vidro, a manteiga, todo material que vem e que é reciclável, eu trabalho com ele. Só não trabalho com esses que são descartáveis, que eles falam ‘rejeito’. Parece que eles estão com uma proposta de trabalhar com o ‘rejeito’ também. O ‘rejeito’ dá pra fazer, trabalhar, eles fazem telha, essas caixas de contenção - mistura lá no meio do cimento – de esgoto. Então, por enquanto, esse daí está sendo mandado embora. Mas aí, tirando disso, a gente trabalha com todos. Não trabalha só com latinha. Latinha só não é reciclável. A latinha é um meio do ser humano sobreviver, mas ela sozinha não é reciclável, porque ela já é um negócio pro retorno. Então a gente tem que trabalhar com as coisas que vão voltar que, daqui mais ou menos uns quinze, vinte dias, eu coloco pro pessoal: “Tudo que eu reciclo aqui, daqui uns quinze, vinte dias, toda a cadeia de reciclagem, daí quinze, vinte dias, trinta dias, tudo aquilo está de volta no mercado e você fala ‘embalagem nova’. Mentira, é aquela embalagem lá que foi refeita e volta, então ainda bem que tem”. Já pensou se fosse tudo isso... que, quando você vai nas represas, nas beiras dos rios, você vê a judiação que é, a situação da água que a gente está pagando, a luz, o preço que está, que diz que agora só pra abril que vai melhorar, então como é que a gente faz? Acho que a gente pode tentar passar a educar a população porque aí, você ajudando a população... apesar que eu fiz uma cobrança séria. No ano passado, antes do Bruno [Covas] morrer, eu tive uma conversa com ele. Veio um pessoal fazer uma entrevista comigo, aqui, ver o espaço da creche e aproveitou e descobriu o meu trabalho e, assim que eles descobriram o meu trabalho, me chamaram, pra eu falar com eles. Aí eu mandei pra eles no vídeo, que eu falei com eles no vídeo: “Por que não passar uma cartilha pra toda população, educando a população a reciclar? Ajuda tanto o governo lá, municipal e estadual, como ajuda a nossa água, a nossa luz e principalmente nós”. Porque eu falo pro pessoal: “Se vocês forem aonde limpa a água pra nós bebermos, vocês não vão bebê-la nunca mais. Eu já fui, o negócio é feio. O tratamento da água, quando a água entra lá, pra ser tratada, pra chegar na nossa torneira. Então se nós cuidarmos aqui” - eu falei pra eles - “... vocês cobram do ser humano, lá do governo, tão alto de um lado e não educa do outro. Se isso estivesse vindo lá do princípio, a educar a população, a nação, nós não estaríamos com isso, porque, pelo que eu entendi, daqui pra 2025 a 2027 e já está chegando lá, antes, o racionamento da água e tudo isso faz parte da gente não trabalhar com o reciclável”. A Represa do Guarapiranga eu já limpei, ela é feia de sujeira. Já fiz parte lá com o Alckmin, fui lá, fiz um trabalho com ele lá, é muito material. Quando você olha lá dentro, é sofá, geladeira, tudo lá. E sabendo que aquilo tudo nós vamos beber de volta. Então acho que a gente tem que fazer um trabalho pra educar a população.
P/1 – Como foi começar a conscientizar a sua vizinhança?
R – Olha, é que nem eu falei pra vocês: eu fui lá na minha prima, eu procurei cutucando, eu falei: “Pra não ficar levando só nome de mendiga, eu vou mostrar pro povo o que é o meu trabalho. Quero que o povo me enxergue não como uma catadora e sim como uma educadora, o que é o reciclável e o que não é”. Aí andei, aprendi bastante coisa, quando deu um certo tempo, eu falei: “Agora estou pronta, posso voltar pra casa”. Cheguei aqui e coloquei, fiz um panfleto, tirei da matéria do que é o reciclável, que eu tenho os livros, falei, mostrei, tirei: “É isso, isso, isso”. Mandei tirar, tirou xerox e distribuí em cada casa. Distribuí nas 82 casas. Aí começou a vir um hoje, outro amanhã, um hoje, outro amanhã. Hoje já não dá mais. Na verdade, quase todo mundo, das 82, já colaboraram. Aí tem o pessoal ali da mata também, que mora do outro lado, que é o Projeto Anchieta. Então eu consegui fazer assim. Eu tenho cadastrado quase mil e duzentas famílias, com esse negócio dessa ajuda da campanha solidária. Aqui eu tenho cadastrado todo esse pessoal. Então você não viu chegar aqui aquela…? Depois que eles descobriram o trabalho que eu faço, então eles vêm perguntar se eu tenho comida pra dar, se eu tenho coberta pra dar. Então aqui o pessoal traz fogão. Se tiver em um estado que dá pra usar, eu dou. Esse ano eu já doei fogão, uns quatro fogões; já doei colchão. “Cida, tem colchão de casal aqui”. Eu falei: “Pode trazer”. Então eu vou lá buscar. “Põe aqui. Vai descer alguém aí”. Aí já aparece. “Se souber de alguém que esteja precisando de colchão, me avise". Tinha duas famílias ali que não tinham colchão. Arrumei. E assim vai. Então, é roupa. O quarto do fundo está lotado de roupa que o pessoal traz, que é pra doar pra quem aparece. Então, ela já veio atrás. Eu falei pra ela: “Vou ver hoje o que eu posso fazer”, porque ainda não tinha caído cesta. Está difícil pra doação de cesta. Então, eles vêm. Mas é que aí eles já colocam na cabeça: “Vamos lá na Dona Cida, que no trabalho dela lá tem”, mas precisa alguém que possa me ajudar pra, quando chegar uma pessoa assim e me pedir, eu ter, pra poder ceder à pessoa. É assim. Mas é muito bom ajudar o povo e conscientizar, já posso dizer que só aqui, agora, está tudo na paz.
P/1 – E, Dona Cida, pensando no seu começo como catadora, alguém te explicou sobre esse trabalho ou você que pensou e falou: “Agora eu vou, eu vejo valor nisso”?
R – Não. Eu mesma comecei a catar, eu catei, mas aí eu pensava, lá no começo, hoje não, eu não limpo, mas se falar que é pra limpar, eu limpo. Aí o que eu fazia? Encontrei esse pessoal pela subprefeitura da Capela do Socorro, o que eles falaram pra mim? Precisava do material limpo. E, naquele tempo, não tinha cooperativa. Aí eu fui uma das primeiras. Nessa região aqui da Zona Sul, desse pedaço aqui, eu fui a primeira. Até o movimento do CMR é mais novo do que eu, na captação. Eles são de 2005, por aí. Quando eu falei pra eles que eu vou fazer 29 [anos como catadora], eles falaram… eu falei: “Mas é. A minha caçula estava pequena, meu neto aí já é pai, já”. Aí eu comecei a limpar, mas aí eles queriam assim: pra eles ia sem rótulo, sem a tampinha e sem essa gargantilha. As PETs. Os outros tipos de materiais, de Cândida, essas coisas, tinha que tirar a mesma coisa, tudo limpinho. E aí fui conhecendo, então o pessoal fala plástico, são vários tipos de plástico. Tem o PAD, tem o PP, tem o PS. Então você tem que saber todo tipo de material. Aí, olha, porque é plástico, não pode pôr no mesmo lugar, porque não é o mesmo que aquele, olha embaixo, tem quando ele é reciclável, quando não é reciclável e aí eu aprendi e assim a gente vai. Aí eu procuro passar pro pessoal que está comigo.
P/2 – Essa caixinha Tetra Pak, como é?
P/1 – A embalagem longa vida.
R – Então, a caixinha eu tiro - antes eu não tirava, agora eu estou tirando – a tampa dele, porque não adianta falar, o pessoal fala: “Passa água”, mas você não vai conseguir porque, de um dia pro outro, aqui, chega mais de cinquenta. E cada dia que eu vou buscar... aquele ali, por exemplo: esse aqui é pedaço de lona, porque eu estou sem bag, então eu acho uns pedaços de lona e eu fecho, faço um saco, pra eu pôr material, porque eu estou sem. Então quando eles vêm buscar, eles têm que trazer os bags. Eu queria ter os bags pra mim, mas eu não tenho. Aquele ali é caixinha de leite. Aí eu já descobri uma maneira que eu faço com ela, aí o pessoal reclama, por causa do cheiro. Agora eu tiro a pontinha dela daqui, que ela vai ser desfeita, mesmo. E agora eu estou tirando todo líquido dela, deixo escorrer, dobro em duas partes, essas duas pontas e ponho lá. O pessoal não gosta, porque eles falam que dá muito rato, por causa da ‘coisa’. Realmente, eles gostam, mesmo, porque o leite chama, atrai mesmo. Mas aqui até que não. Eu uso aquele ali. Tem um outro tipo de saco, que é esse que vem colchão, sabe aquele? O rato não vai ali. Ele não vai naquele tipo, por causa que agarra os dentes, então ele não vai, porque aquela linha segura, então ele não vai. Eu coloco ali, eu fecho a caixa bem fechada, num lugar, uma coisa e está aí. Esses aqui, só aqueles de leite ali, foi um dia de serviço. O saco é grande, está lá embaixo.
P/1 – Faz tempo que você trabalha com a embalagem longa vida?
R – Sempre trabalhei, mas o povo fala que não compra, o mundo não compra. Mas quando vem a Valquíria, leva, separado. Aí tem um outro que leva e falou assim: “Pode misturar, que tudo é papelão. Mistura o papelão, a caixa de leite, junto com a caixaria”, que são esses papéis mais finos, que não é o papelão, mesmo. E o papelão eu ponho separado, coloco tudo num bag. Aí quando já tem muito leite, assim, tem o bag, eu já despejo tudo no bag e vou fechando. O dia do material ir embora, eu ponho lá atrás uma boa parte. É que a cerca caiu lá, então está difícil, eu tenho que arrumar lá primeiro. Mas uma boa parte está no fundo da casa, aqui. No dia de ir embora, aí eu pego, se tem bag, eu abro tudo aqui, o pessoal já concorda, já tiram os carros, tudo, aí eu abro os bags todinhos, aqui, aí vou colocando cada material no seu lugar, mas aí ele já está separado, não é que eu vou separar na hora. O que separa, chegou hoje, se dá eu já separo, senão amanhã eu já separo, amarro tudo já separado, já mando o rejeito embora pro caminhão comum, e aí no dia de ir embora, eu vou trazendo as sacolas de lá e só enchendo os bags. Que se você deixar pra separar tudo na hora, não dá. Então nós vamos separando tudo, do mesmo jeito que trabalha na cooperativa. Só não tinha o lugar para colocar o material. Aí eu virei essa mesa de ponta-cabeça, a fecho com plástico e vou ‘coisando’. Aí apareceu aquele ontem, essa semana, aquela caixa. Aí uma outra mulher me deu outra caixa. Aí dentro daquela caixa dá pra despejar o material, um mais um, dá pra separar tudo e jogar, aqui eu ponho as sacolas, a gente vai jogando cada um dentro de uma sacola, quem é quem e pronto. É assim, é o jeito, mas sempre foi aqui dentro. Eu separo tudo direitinho, ferro. As tampinhas, agora eles pediram pra eu tirar as tampinhas, aí eu tiro as tampinhas porque, se eu não tirar aqui, vai ter que tirar lá. Aí se falar pra mim: “Tem que tirar os rótulos”, eu vou tirar. Outro dia eu vendi pro rapaz aqui, ele falou pra mim... “Você tira?” Ele falou: “Eu tiro. Porque, se a gente tira, o valor é melhor”. Eu falei: “Ah, é? Então tá bom. Então, quando vocês quiserem, podem me avisar. A partir de agora eu posso limpar, mas aí você me paga um preço maior, melhor do que você paga quando vem com rótulo”. Eu falei: “Então tá bom”. A caixinha de leite é assim: eu escorro todo leite dela, pra não ter problema. Mas sempre trabalhei com a Tetra Pak, eu fazia até bolsa com ela. Agora que eu descobri que dá pra fazer cada coisa. Você faz parede, que nem o pessoal estava fazendo, eu me juntei com um pessoal, eles estavam fazendo cobertas para os catadores, para os moradores de rua se cobrirem agora, no inverno. Entrarem debaixo daquela lona da Tetra Pak, pra não sentir frio. Então, Tetra Pak tem muita saída. E a proposta é trabalhar com a Tetra Pak.
P/1 – Ah, é?
R – Não, vocês.
P/1 – Não. Aqui é um projeto do Museu da Pessoa, em parceria com a Tetra Pak. A Tetra Pak que falou do seu nome. Foram eles que falaram, sugeriram a gente vir até aqui, entendeu?
R – E é?
P/1 – Foi.
R – E eu não sabia (risos).
P/1 – Pra você ver!
R – Ô, meu Deus! Eu não sabia disso, não. Que bom!
P/1 – Foram eles.
R – Mas esse daí que você está falando, é pelo que a gente trabalhou no Ibirapuera que ela foi entrevistada ou não?
P/1 – Não.
R – Não, mas eu acredito que deve ser...
R/2 – Deve ter alguma coisa...
R – Estou falando: nesses 29 anos sai cada coisa!
P/1 – Alguma relação, né?
R – Já tive, sim, um trabalho...
P/1 – Dona Cida, desde o momento, há 29 anos, que você começou a catar, até hoje, quais foram as maiores transformações que você pôde observar?
R – As maiores transformações. Um lado eu digo eu mesma, eu penso assim. Tem hora que eu falo assim, deito na cama: “Mas Deus, como eu podia, um dia, imaginar que eu estaria fazendo um tipo de trabalho desses e que esse trabalho bateria naquilo, coisas que às vezes você pensa: ‘Isso não é certo’, porque quando a gente não é catador, a gente tem uma imagem igualzinha as que eu encontrei”. Então, pra mim, foi uma experiência muito grande dentro disso, que foi uma das coisas que eu me deparei que, quando você não conhece o trabalho, o outro lado, você imagina, como o pessoal imaginava. Quando você se depara dentro do trabalho, você vê que você, realmente, se transforma, quando você começa a reconhecer que aquilo é um trabalho digno e decente. Hoje eu me sinto... essa foi a primeira coisa, quando eu me deparo comigo, que nem eu acredito que eu estou, consegui. Talvez, dentro de uma empresa, eu não ficaria o tempo que eu estou. Muito que eu entrei na empresa, três, quatro, cinco meses, no máximo um ano. E o trabalho mexeu tanto comigo, que dá quase trinta anos dedicando, como se eu estivesse dentro de uma empresa, é uma coisa que eu peguei e com amor, eu gosto de trabalhar com esse tipo de coisa. Eu gosto. As meninas falam: “Mas a senhora não tem jeito, mesmo”. Aí ontem eu falei pra elas assim: “Todo pai e mãe deixa uma herança para o filho. Se eu fechar os olhos de hoje pra amanhã, quem vai levar o meu trabalho?” Vai ser difícil. Porque a geração de hoje está totalmente diferente. Pode ser, mas eu acredito que a hora que eu fechar, vai fechar tudo junto. Não vai caminhar. Não vai. Tenho certeza que não. Mas enquanto eu estiver fazendo o que eu quero e o que eu gosto e Deus permitir, eu vou continuar. E outra coisa que mexeu bastante é quando eu consigo fazer essa virada da população entender o que é o trabalho reciclável. Hoje eu já encontro as meninas aqui na área, elas falam: “Caramba, Cida, eu queria ser igual a você. Você é doida demais. Você está em reunião, faz trabalho social, cata, trabalha, separa tudo isso. Cida, a gente não tem paciência nem pra colocar lá dentro da sacola e você consegue pôr”. Eu falei: “Então, cada um tem seu lugar”. Se você olha pro material reciclável, é a mesma coisa quando você, dentro da sua casa, consegue colocar a roupa em cada lugar, sapato no seu lugar. Você não separa tudo? É a mesma coisa. A única diferença é que é plástico”. Mas as duas coisas que me surpreenderam foram essas. E as pessoas aceitarem e não entra, não, pra você... até a minha própria família aceitar que era isso que eu ia fazer e continuar.
Essa é a autora da árvore de Natal. Olha aqui o pessoal.
P/1 – Prazer!
R/3 – Tudo bem?
R – É através dessa aí que nasce a árvore de Natal. E nasce o material reciclável.
P/1 – Dona Cida, antes de você começar a trabalhar com material reciclável, como você enxergava a reciclagem? E agora, depois de começar a trabalhar, mudou?
R – Não, é o que eu coloquei pra você: quando você não vive o negócio e não conhece o objetivo do trabalho, você imagina: “É doida. Revirar lixo, isso dá sustento?” Isso também passava na minha cabeça antes. Você entendeu? Apesar que os meus irmãos, no passado, eu tinha um irmão que não ficava sem as coisas dele, porque ele catava, vira e mexe ele catava. Catava pra beber, mas catava. Está entendendo? E a primeira coisa que a sua família já fala é isso: “Mas você não precisa disso. Tem outra coisa que dá pra você fazer. Tem outro tipo de trabalho que você possa crescer”. Eu também escutei muito isso. Quando eu comecei a catar: “Você está doida? Nem vou na casa da Aparecida, que a casa da Aparecida é cheia de material”. Escutei da própria família. Hoje eles viram que até eles mesmos ressarciram da maneira que eu imagino: “Deus, obrigada, eu não sabia que o lixo ia fazer uma diferença na minha vida, como fez”. E está aí. Isso me surpreendeu e vai surpreender. Cada dia que passa, a gente vai aprendendo cada dia mais. Porque quando você vê que você consegue conquistar o povo, compartilhando com você o seu trabalho... eu mando as fotos por aí, o povo admira o meu trabalho. Então quando dá pra filmar eu trabalhando, tem hora que eu falo pras meninas, eu estou pendurada lá: “Filma aí pra mim, manda pra mim”. Aí mando pro pessoal, vai pro Instagram. É só você pegar e entrar lá, que você vai ver. Está lá. Falei: “Agora o negócio é começar a participar, mandar mais coisa, porque...”, mas é assim que a gente vai conseguindo. E vai educando. Essas meninas pequenas que tem aqui, as crianças, às vezes estão chupando alguma coisa lá: “Cida” “Oi” “Cida Preta, posso colocar aqui?” “Pode”. E assim vai. As crianças já nascem chamando Cida Preta e os que nascem já me conhecem trabalhando com material reciclável. E assim vai indo aí.
P/1 – Cida, explica pra gente como funciona o seu trabalho: você recolhe... conta desde receber o material e como você vende.
R – Eu retiro nas casas, trago aqui, seleciono tudo, separo cada um no seu lugar, tudo separadinho, aí eu dou uma sacola de... não tem nenhuma aqui. Deixa eu pegar uma ali. Então eu começo assim: de manhã, na base de umas... não dá pra ir cedo no pessoal, mais ou menos depois das nove e meia, dez horas. Aí eu vou nas casas, desço com esse carrinho, ponho as sacolas dentro. Durante a semana… pro mês, é que não deu nem pra comprar, eu estou sem dinheiro pra comprar, essa sacola. Eu compro dois fardos desse, de sacola, que dá pra trocar. A cada oito dias eu deixo uma sacola dessa em cada casa e, a cada oito dias, eu passo pra retirar. Se eu tenho sacola nova, eu deixo uma, retiro a outra e trago. Chega aqui, está tudo misturado. Aí eu chego aqui... primeiro eu faço toda a coleta, aí depois eu pego, coloco, igual eu falei pra você, dentro de um lugar pra eu despejar, aí eu despejo tudo, as sacolas vazias que tem, que já estão usadas, eu as abro aqui, assim e aí, dali onde você está, esse negócio fica, eu vou separando um por um, pego a verde numa sacola; a PET branca em outra sacola; esse aqui, que é o PAD, vai pra outra e assim eu vou separando, um por um, aí deu a sacola cheia, eu vou amarrando e vou levando lá pra trás, por causa do espaço. Aí tiro os rejeitos, o lixeiro passa três vezes por semana, aí eu coloco o rejeito, o lixeiro leva. E assim é minha rotina. Eu faço todas as terças-feiras e quartas-feiras, aí eu procuro, quando não dá, eu tiro qualquer hora que eles pedirem, qualquer dia, mas eu já falei pra eles esses dois dias. A sacola eu procuro, quando é nova, marcar o nome da pessoa, que eu tenho o nome de todos, então eu tenho da casa um à casa 82, eu ponho o nome da pessoa, já coloco pra pessoa as coisas que não são recicláveis, por exemplo: fralda, resto de comida. O que eles têm que pôr. Principalmente, a máscara, agora está dando problema com a máscara. Então eu peço pra eles que não coloquem a máscara, porque a máscara, se não é bem pra você, também pra mim não é. Se afeta você, afeta minha casa todinha. Quando vão colocar material, um exemplo: teve alguns casos de pandemia aqui dentro. Então eu já aviso: a casa que tiver alguém, não me manda, eu não retiro material. Aí vocês mandam pro lixeiro, pro lixo comum. Durante quinze, vinte dias, uns trinta dias. Por quê? Vou perder? De um lado eu vou. Mas eu vou ajudar a mim e a eles também. Eu não posso trazer. Aí eu peço pra eles: “Não põe certas coisas, restos de comida, se puder”. Ainda está meio difícil nessa parte de educar, porque muitos aí não tiram, não sabem ainda tirar, separar, bater a pizza, o resto das coisas lá, mas a gente vai relevando. Tem coisas que dá pra passar. Mas eu passo pra eles o que eles podem pôr e o que eles não podem pôr. E a cada oito dias eu passo nas casas. Chega aqui, eu faço esse processamento do trabalho que tem, das coisas que vieram.
P/1 – E aí, depois, como você recebe?
R – Aí eu vendo. Junto tudo. Então, pra cada um tem que ter um bag separado, aí eles vêm, aí lá eu vou com eles, pra pesar, lá eles pesam o tanto que veio de PET verde, quantos quilos de PET verde; quantos quilos tem de PET branca; quantos quilos tem desse aqui; quantos tem do PAD e assim vai.
P/1 – Quem que pesa?
R – Lá na Valquíria, que a Valquíria eu não preciso ir. Como ela já sabe…
P/1 – Na cooperativa?
R – Na cooperativa. Lá eles sabem direitinho porque, por mais que você trabalhe, você sabe o que sai. Então eles pesam direitinho, ou ela manda pelo celular, pra eu escanear, aí eu escaneio, já tem aquela quantidade de material que deu. Nem eu mesma descobri a quantidade, eu sei que é um bocado. Aí foi quando uma reunião que nós tivemos o mês retrasado, o pessoal do CMR perguntou pra mim: “Dona Cida, quanto de material a senhora pega?” Eu falei: “Tem mais ou menos uns seiscentos, setecentos, mil quilos”. Aí a Valquíria responde: “Não. Ela vai de duas toneladas e meia, quase três. Ela consegue tudo isso” “Quantas pessoas catam?” “Só eu. Aí agora que tem os meninos que vão ali, o carrinho está muito cheio, então eles vão ajudar, mas antes estava eu, sozinha. Mas dá. Se você tem mais pessoas, mais lugares você tem pra buscar. Tem mercado que dá pra eu ir buscar, mas eu não posso, porque eu não tenho como retirar”. Mas o processo é esse. Agora, se eles falarem pra tirar... antes eu tirava esse, a tampinha e isso. Por enquanto eles não pediram, mas se eles pedirem, eu vou tirar. Não tem problema. Está tudo separado, depois é só despejar nos bags grandes. O único que não está dando pra eu levar lá pra trás, que fica pesado pra eu, depois, trazer, é o papelão. Então ali atrás tem... o papelão está mais ou menos da altura que estão aquelas sacolas e esse material que está aqui, ali dentro tem um banheiro que está lotado. E os que eu levei lá pra trás são só dois dias de serviço. Só duas coletas. Se eu fizer dezesseis coletas, eles têm que vir buscar ao menos duas vezes. Tem meses que eles buscam dois caminhões no mesmo dia. Então dá pra tirar uma quantidade boa de material da rua.
P/1 – E você tem algum tipo de incentivo financeiro pra recolher embalagem longa vida?
R – Não tenho. O que me levou a pegar a caixinha de leite é que eu falei assim: “É muita judiação”. Antes, quando eu comecei a pegar, eu passava na rua, o pessoal jogava, não vinha nem pro lixeiro, era tudo jogado. Aí eu falei: “Não, pode juntar pra mim que eu tenho pra onde mandar”. Aí o pessoal manda. E é muito leite. Tem mês que vai trezentos, quatrocentos quilos só de leite. E não chega a um mês, não, porque é muito leite, filha. O povo bebe (risos) leite e não precisa ir longe, não, só aqui dentro.
P/1 – E, Dona Cida, quais são os maiores desafios que você enfrenta no seu trabalho?
R – Olha, agora eu vou falar pra você: nesse pedaço agora, com o pessoal aí eu já não tenho mais problema. Antes eu sentia bastante problema, mas hoje já não sinto mais. Agora, o meu único problema, mesmo, é como eu falei: somente o espaço. Esse é um desafio que eu preciso vencer, um espaço pra eu trabalhar. Porque, na verdade, tem que ser assim. Esse tipo de material não se trabalha dentro de casa. Tem que ter um lugar apropriado pra eu trabalhar, pra reciclar. Mas se eu conseguisse um lugar, pelo menos pra eu trabalhar, não precisava ser grande, mas que desse pra eu estar fora da casa e, quando você coloca o desafio, o problema é assim: na realidade, na maioria das casas entra rato. O primeiro momento foi difícil pra mim. Até o povo entender que não era daqui, que o rato já existia. Então eu estando em um lugar já não vai ter esse tipo de reclamação. Mas, tirando isso, está tudo bem. A pessoa já até entendeu que realmente não dá pra misturar casa lá. Lá pra dentro é uma coisa, minha casa está lá, em ordem, mas meu trabalho é aqui, mas quando eu termino, também, de trabalhar, na volta da tarde, aqui eu deixo mais ou menos desse jeito aqui, o pessoal: “Mas a cooperativa que quer”. Não, não é porque é cooperativa, que eu vou... só fica cheio mesmo quando é pra ir embora. Agora, sabendo que dá pra trabalhar com o longa vida, não vou ter mais receio de pegar. Já não tinha, agora melhorou.
P/1 – E, Dona Cida, você sente que seu trabalho é valorizado pelas pessoas?
R – Hoje eu acredito que sim. Hoje eu acredito que o pessoal dá mais valor. É tão difícil. Não é só daqui. Tem gente que vem de longe, que vem lá do outro lado, mas não vem todo dia, quando vem, vem com os carros cheios, o pessoal traz material pra mim, de carro. Tem um que entrega todos os domingos, está entendendo? Anteontem mesmo eu fui comprar o pão e os garis iam passando, na quarta-feira, quando eu cheguei ali, ele falou: “Não é a senhora catadora?” Eu falei: “Sou” “Toma aqui pra senhora, nós íamos deixar lá na sua porta”. Como eles vinham buscar meu material, eles iam deixar aqui mais ou menos uns quatro quilos de latinha. Toda vez que vinha para esse lado, a gente... eles descem aqui, eles falam pro pessoal: “Não põe material reciclável pra nós, não. Dá pra aquela mulher lá, que aquela mulher cata”. Então os próprios garis já conhecem o meu trabalho e eu falo pra eles do ecoponto, tudo isso, então o próprio gari que vem buscar, dão valor. E o pessoal daqui já está começando a melhorar, graças a Deus.
P/1 – E, pensando na sua trajetória do seu trabalho, qual foi o momento mais marcante, que você se lembra?
R – Ai, meu Deus! (risos) O mais marcante foi o reconhecimento do povo. O povo reconhecer e não me julgar, porque julgavam. Mas hoje já viram que não dá pra julgar, mais. Está entendendo? Hoje eles já compreenderam que dá pra eles entenderem que, se você não separar, vai ser pior pra nós mesmos. Aí eu vou nas casas e falo assim: “Estão vendo? Está pagando a água e a luz caras? Então, se nós tivéssemos sido educados lá no passado, nós não estávamos fazendo isso” “É verdade, né, Cida?” Eu falo: “É, então. E agora vai piorar, que ele disse que vai até abril”. Eu falo pra eles. Essa semana mesmo eu passei e falei: “Olha, vai até abril, hein! Se não educar agora, daqui até abril, vai pagar cada dia mais caro a água e a luz”. O pior momento era esse, mas agora não tem mais, não. Já consegui, já deu pra ver que eles já começam a valorizar. Eles mesmos já estão se educando, por si próprios.
P/1 – E quais foram os seus maiores aprendizados, desde que você entrou na reciclagem?
R – É dar valor a todos os garis e catadores que tem. Porque, quando você faz o levantamento, quem limpa a cidade não são as cooperativas; quem limpa a cidade, somos nós, catadores avulsos. Nós que limpamos a cidade. É totalmente diferente falar quem está dentro da cooperativa é catador. Não, ele é colaborador. Ele separa, certo? Ele já recebe o material. É o mesmo que você entrar dentro de uma empresa e estão lá as peças lá, você só vai encaixar as peças. Agora, você cavar o chão, pra você tirar, é totalmente diferente. É o que eu falei e falo, o pessoal do CMR eu já avisei pra eles: “Quem limpa a cidade não é o movimento. Quem limpa a cidade são os catadores”. Por exemplo: como esse pessoal dos maquinários. Eu fui num lugar, não sei se você já foi, ali do lado da Imigrantes, a colônia japonesa, esse pedaço, pra aquele pedaço lá. Eu fui lá trabalhar num evento. Primeiro eu tive um encontro lá, pra conhecer peças, maquinário. Aí eu olhando, mas curiosa, perguntei: “Pra que isso?” “Pra prensar” “Isso eu sei” “Tem um moedor de cada tipo de material”. Eu falei: “Legal. Qual é a vantagem?” E ele respondeu pra mim: “Dá pra gente fazer um bom trabalho, a gente já vai trabalhar com tudo triturado, tudo isso”. Eu falei: “Tá bom. Mas com que material?” Ele falou: “Por quê?” “Com que material?” Daí ele falou: “Com o que a gente receber”. Eu falei: “Que os catadores catarem, né? Porque, se o catador não catar, vocês não têm material reciclável”. Ele olhou pra mim, eu falei, a Valquíria olhou pra mim: “Vocês não vão tirar a gravata e ir lá catar o material pra poder pôr na máquina. A máquina é sua, mas o material é nosso. Nós que catamos o material”. Aí ele olhou e falou assim: “Essa mulher é sábia”. Eu falei: “Presta atenção: o que está ajudando o Brasil é o catador, porque o catador retorna e gasta menos do que você fazer a matéria-prima”. Que nem a Vividros, esses tempos atrás estava sem vidro pra trabalhar. E a Vividros trabalha com vidro reciclável. Pra fazer o vidro dá muito mais trabalho. E ele, com o reciclável, trabalha, aí o pessoal estava atrás: “O negócio agora, a venda é vidro”. Porque a Vividros estava precisando de vidro reciclável. Entendeu? Então tem que dar valor pra gente que é catador, sim. A gente tem que se honrar e se respeitar. Nós temos direito de cobrar o que é nosso, de direito. A gente limpa a cidade, a gente educa, ajuda na saúde e no meio ambiente. É isso que a gente tem que fazer. A gente tem que falar pra eles: “Tem que juntar os catadores e fazer um trabalho assim, não é nem pra brigar, falar merda, a gente tem que falar as coisas certas. Nós somos, abaixo dos grandes lá, em primeiro lugar”. Uma pergunta que eu fiz outro dia aí, eu iria, se eu estivesse na frente do Bolsonaro, eu falava pra ele: “Onde você coloca seu material reciclável? Pra onde você leva?” Porque o governo e o presidente não dão valor à gente. Onde eles colocam o material deles? Eu queria entender. O que sai da casa deles, pra onde vai? O Bruno não conseguiu me responder. E assim os outros. Eu falei pro Dudu, pro pessoal do CMR: “A gente tem que dar valor à gente. Catador pra catador, tem que se valorizar e agradecer àqueles que estão nos apoiando a levantar a bandeira, que a bandeira da reciclagem é velha, só não foi desenvolvida”. E tudo isso eu venho aprendendo conforme as minhas caminhadas, nesses 29 anos, onde eu devo entrar e onde eu não devo entrar, o que eu devo falar e o que eu não devo falar. Mas eu tenho que respeitar o trabalho deles, mas eles têm que respeitar e dar valor ao nosso trabalho, ao nosso sacrifício, porque a gente se arrisca. Você vê, quantos garis que não perderam o braço? E se fosse a educação, não colocaria caco de vidro, tipo de material cortante dentro do lixo, do material. Está entendendo? Eu acho assim: do mesmo jeito que ele quer exigir do ser humano, educa. É a mesma coisa: se eu quero que os meus filhos me respeitem, eu tenho que educá-los pra que eles, amanhã, eduquem os filhos deles. Está entendendo? É assim que tem que ser. Eu penso dessa maneira. Mas, tirando disso, a gente vai tentando levar a vida. Eu tenho 22 catadores comigo aí, cadastrados comigo. Aí eu vou lá e explico pra eles como tem que ser. Tem uma aqui atrás, essa daí eu vou ver se a encaixo dentro desse negócio da Tetra Pak aí, que o Luiz falou da gente procurar as pessoas onde estão indo, da Tetra Pak. Todos que trabalham comigo de agora pra frente. Quer dizer: ‘trabalham comigo’ entre aspas. Eles catavam, iam ali e vendiam. Catavam, iam ali e vendiam. Aí eu os ensinei trabalhar como eu trabalho: primeiro junta, separa, onde eu vender eu indico vocês, pra vender o de vocês. O valor é mais excessivo e mais reconhecido. O ferro-velho não valoriza. Ele está lá como ferro-velho, vai tratar tudo do jeito que está... está entendendo? Mas se você mostrar pro catador que ele tem valor dentro do trabalho dele, você o anima a trabalhar. Aí hoje tem 22 catadores. Esse trabalho do Capacita, a ajuda que ela me dá, ela traz até a minha porta, não é pra se associar a população, em si. Ela coloca: “Nós vamos ajudar toda a população, mas vamos respeitar o que vem aqui, vem em cima desse trabalho, em cima do catador que a gente valoriza o trabalho e podemos ajudar vocês. Então quem puder trazer o material e separar o material pra Cida”. E é isso que está acontecendo. Eu mostrei pra esses catadores que tem como eles terem uma renda melhor. Porque se pegar todos de um carrinho e vender, ele não vai ter lucro nenhum. Mas se ele fizer ao menos um pouco, como eu faço, a cada quinze dias, ele vai ter uma coisa melhor. E assim eles estão fazendo. Tem a Andreia aqui, tem outro pessoal e tem mais uns outros que estão separando e juntando na casa deles, eu falei: “Não é pra mim. Eles vão catar pra...” “Dona Cida, onde que vai?” “Não, é pra vocês. Vocês vão catar e arrumar um lugar pra vocês guardarem. Vocês só procuram juntar uma quantidade que dê pra vocês viverem”. E assim tem esses catadores que estão aí. Eu tenho os ajudado, qualquer dúvida eles vêm aqui, eles perguntam, se eu não sei, eu vou atrás do pessoal pro pessoal me informar. Que nem agora, com esse negócio que o Luiz mandou, pra procurar os postos do lugar que está trabalhando com a Tetra Pak, vou passar pra eles. O que eu vou fazer? Vou incentivá-los a trabalhar mais, também, o lado da Tetra Pak. Porque às vezes você vê a caixa de leite, não está nem aí, mas eles sabendo que vão ter um trabalho reconhecido, eles vão trabalhar. Eu vou passar pra eles, então.
P/1 – Dona Cida, como foi se tornar mãe? O que a maternidade representou pra você?
R – (risos) Eita! Mãe, pra mim, foi... quando você é mãe, você já vê que você já se afasta um pouco do umbigo da sua mãe. Ali você já é uma família, quando você coloca o primeiro filho, você já é uma família. Mesmo quem mora com a mãe, na casa da mãe, a mãe é uma família, você já é uma família, você já concebeu filhos. O primeiro momento foi difícil pra mim, porque meus pais eram daqueles que não engravida pra casar, se engravidar vai ter que casar, não importa como foi. Foi o que aconteceu comigo. Quando eu engravidei do meu primeiro filho, meu pai queria que eu casasse, mas o cara não queria casar, e aí fui no cartório, o ______ me tirou sete vezes, pra casar, no cartório do Brooklin. Aí um dia eu virei pro meu pai e falei: “Hoje eu não vou”. Meu pai falou: “Você vai”. Falei: “Não vou”. Ele falou: “Por que você não vai?” Eu falei: “Não. Se ele não foi durante essas vezes, não é hoje que ele vai. Se eu casar com ele, eu acho que eu vou é sofrer, em vez de viver com ele. O filho eu vou criar, com ele ou sem ele”. Aí meu pai falou: “Mas você vai”. Falei: “Não vou. Se quer casar, casa o senhor. Vai lá no cartório, porque eu não vou”. Eu era bem assim. “Eu não vou”. Aí passou, ele calou, quando o meu filho completou três meses, ele me mandou embora, aí o pai mandou embora, onde eu tinha que viver? Aí fui pra dentro da casa da família dele. Eu vivi lá. Trabalhava pra ajudar. Aí já não era um filho. Lá eles eram sete irmãos. Uma boa parte tudo menor. A mãe dele era aposentada... não era aposentada, vivia da pensão do marido dela, que era tratorista, morreu de acidente de trator. Fizemos o filho, mas não era aquele amor pra viver. Aí vivi na casa dele durante um tempo, mas se meteram, porque você viver com um filho na casa da família dele, você tem que... ali eu engravidei da Tânia. Como a gente não dormia na mesma cama, a gente saiu e eu engravidei, ele disse que o filho não era dele. Aí minha filha nasceu, eu ainda disse pra ele: “Se for sua, dá tempo de você correr”... não: “Se não for sua, tu me corre pro hospital”. Fazia o pré-natal do convênio do meu pai. E ela nasceu em casa. Ele saiu pra buscar o carro e o dinheiro, quando ele voltou, a nenê já tinha nascido. A tive em casa. Quando ela completou oito dias, ele teve uma discussão com a família e eu dei uma recaída após o parto e ele desapareceu, pra nunca mais. Criei meus dois filhos. Ela ainda não conhece o pai dela. Está com 44?
R/4 – Oi?
R – 44, né? 45, né? E o outro vai fazer cinquenta. Ele conhece, mas nunca mais nos vimos, não sei como ele está, mas ele leva o destino dele. É uma coisa que mexeu bastante, mas eu criei. Daquela hora em diante, a responsabilidade era minha. Aí criei morando com a minha mãe, tudo, depois conheci o pai desses, eu tive três, fora também do casamento, em 1979 eu casei. Aí o casamento também deu ruim, porque fazer um filho comigo e fazer lá fora não dava certo, então ele tinha filho lá fora e comigo, até o dia que eu falei: “Chega”. Mas não por discussão, nem por briga, nem por se agarrar, nada disso aconteceu na minha vida, com ele, não. Simplesmente não dava porque eu não ia ficar com a vida cruzada. Aí quando eu vim pra cá, ele não quis vir. Até pra consertar o casamento, porque meu pai e minha mãe disseram que o casamento era eterno. “Vamos pra lá” “Não, não vou”. Falei: “Então, eu vou”. Tanto que, quando eu consegui receber minha casa, ele apareceu, aí a gente não era divorciado, na verdade o juiz queria que eu vendesse a casa, pra dividir. Eu não deixei. Falei: ‘Não, doutor, ninguém o conhece, nunca viu, a casa é minha, eu tenho sim 81 famílias comigo, que construiu a casa” “É verdade?” “É verdade” “Então tá, então você não tem direito e ainda tem que pagar a pensão das meninas” “Está ótimo”. Pagou a pensão uns três, quatro meses só, das duas caçulas e aí entramos, já conseguimos o divórcio, elas foram minhas testemunhas no divórcio e aí estão aí. Tirando isso, mas eu continuo sendo aquela mãe que, da primeira vez que eu fui lá, ainda estou até hoje. Se tiver que deitar o cacete, eu deito. Está casado, não adianta falar, mas quando precisa, no aperto, sou eu que estou por aqui. Mas os sete, pra coisa errada não deram, não. Criei bem-criados. Não vou falar pra você que eu dei moleza, que eu dei muito cacete na vida deles também, mas está tudo bem. A minha criação lá não é a de hoje. Antes eu batia, minha mãe batia. Hoje você chama atenção. A lei, o que fez com o ser humano? Tirou autoridade de pai e mãe. Você sabe o que é quando tira autoridade? Quando você não pode chamar atenção, não pode repreender, não pode bater, porque hoje as crianças conseguem ir lá no celular e ligam pra polícia e denunciam o pai e a mãe. Isso tem acontecido aqui por perto.
P/1 – Como foi se tornar avó e bisavó?
R – Foi muito bom. A primeira... é assim: eu nunca reclamei de coisa, não. O problema é que, às vezes, não quer assumir, vai assumir. Mas foi muito bom. Quando ela falou pra mim, quando ela me avisou da gravidez, no dia que ela me avisou da gravidez, foi no dia que aconteceu o negócio, em 1992. Foi no dia que ela me avisou da gravidez, que ela falou pra mim: “Mãe, hoje eu vou fazer um almoço pra você e vou falar um negócio com você”. Porque, assim: eu trabalhei aqui, na mesma época que nasceu a associação, teve essa parte debaixo, que é a Vila Nascente, que é a mesma terra e tem a Chácara do Conde, onde eu falei pra você do Jardim Campinas, que não era Chácara do Conde ainda, era o Jardim Campinas. Então a Chácara do Conde, ia sair a mesma invasão que nós conseguimos aqui, a gente conseguiu lá. E pra ela conseguir uma casa lá - ela já namorava há mais de cinco anos com o rapaz – ela tinha que ter filhos. Aí ela resolveu, já com dezenove pra vinte anos, ser mãe. Aí o dia que ela me deu a notícia, antes dela me dar a notícia, que ela não me deu a notícia, ela estava na beira do fogão, quando ela ia me dar a notícia. Foi quando a polícia chegou pra me buscar, entendeu? Nesse mesmo dia, em 1992. A polícia voltou, veio pra me pegar, foi quando eles me levaram. Eu fiquei dezesseis horas detida. Aí depois fiquei feliz da gravidez dela, aí essa daí teve o primeiro dela, aí eu não tive só aquele. Aí ela engravidou, a Tânia, aí foi quando o outro também... então eu fui avó em seguida, assim. A Tânia falou. Antes do Tânia fazer um ano, nasce o Juninho, que eu falei pra você que morreu de leucemia, com oito anos de idade. Ele ia fazer oito anos, no dia treze de janeiro e faleceu uns dias antes, faltando três dias pro aniversário dele. Mas ele morreu de leucemia. A gente não conseguiu a transfusão de sangue que pudesse ajudá-lo. É isso. Estamos aí. Hoje é isso. Ontem mesmo tinha quantos aqui? Ontem foi a visita dos bisnetos. Ontem vieram três bisnetos: o Pedro, o Davi e o Daniel, que é um dos netos... uma das netas colocou o nome no filho dela de Daniel, que é o nome do meu filho que foi assassinado. Então ontem tinha três bisnetos aqui.
P/1 – Dona Cida, como a pandemia impactou seu trabalho e a sua vida pessoal?
R – Olha, não empatou, não. Foi uma vitória. Eu não parei. Como eu tinha tido, lá no mês de julho do ano passado, a situação, aí não dava pra parar. Essa clientela estava aqui, aí o que eu procurei? Só saía com luva. E continuei, não parei um dia. Na verdade, aumentou a quantidade, porque as cooperativas estavam fechadas, aí foi quando eles indicaram que eu estava trabalhando: “Na Zona Sul, lá no Grajaú, tem a Dona Cida, a Dona Cida continua trabalhando”. E aí foi quando veio o negócio do jornal, mas eu não parei, não, eu continuei trabalhando do mesmo jeito, graças a Deus deu tudo certo. Ela não empatou, não. Deu pra aguentar. Na coleta, na venda, deu tudo certo. Foi quando a Valquíria me indicou, pra eu vender, porque eles não podiam estar recebendo material, que estava fechado, por causa da pandemia. Durante o tempo que ficou parado, ela mesma me indicou a pessoa que era pra me passar o material. E até agora não deu problema, não. Procuro fazer as coisas certinhas, não entro nas casas, já pego o material do lado de fora e é assim. Então, não deu, graças a Deus, até agora Deus me supriu.
P/1 – E qual é a importância, o que representa a catação e a reciclagem, na sua vida?
R – Hoje em dia, mesmo, representa uma conquista, porque é gostoso quando você trabalha e você não volta nem aborrecida, nem nervosa, por aquilo que você fez. Está entendendo? Você consegue agradecer a Deus. Por exemplo: eu faço a minha coleta das dez até... tem dia de eu pegar até tardinha, dependendo das pessoas. Se elas não estão em casa, eu tenho que respeitar. Aí, quando acaba, que eu coloco tudo aqui, eu falo: “Obrigada, Deus, por mais esse dia, ser ressarcida até esse momento”. Então não me abala, não. Graças a Deus que dá pra conciliar os dois lados.
P/1 – Antes da gente encerrar, eu queria saber quais são seus maiores sonhos.
R – Meus maiores sonhos. Um dos que eu queria, se for possível, conseguir fazer essa eliminação de matéria e ver se eu consigo voltar a terminar meu estudo. Se possível for, fazer uma faculdade, é o que eu queria fazer, terminar a minha casa e conseguir fazer meu livro. Eu começo alguma coisa, eu paro, eu começo alguma coisa, eu paro. Então do jeito que eu coloquei pra você, é o que eu quero colocar lá no papel. Já tem umas coisas escritas. Que nem eu falei pras minhas filhas: “Se eu tivesse um computador, na volta da noite eu já tinha feito uma boa parte das coisas”. Se eu tiver, eu vou colocando, aos poucos, tudo. Como diz: “Vou catando milho, mas vou”. Essa semana mesmo, pelo Capacita, eu vou começar um curso de informática básica, pra eu mesma fazer meu trabalho, pra quando eles me pedirem: “Dona Cida, eu preciso de tal documento, de tantas coisas”, eu mesma vou digitar, sem eu precisar estar pedindo porque, às vezes, se você pedir, a pessoa até pode te ajudar, mas nada melhor do que você também aprender. Eu pedi pra ela, se tiver como elas conseguirem um pra mim. Então eu vou fazer a Informática Básica, vou fazer Mulher na Obra e vou fazer um de artesanato, com caixinha de leite. Tudo isso começa daqui pra lá. Dia 28 eu já começo a informática. Todas as quintas-feiras, durante dez dias. Quinta-feira e sábado. Aí, depois, quando elas marcarem os outros: Mulher na Obra, Mulher na Construção. Então eu vou fazer esse daí, de Mulher na Construção. Só falta mais um pra o meu currículo. Eu falei pras meninas outro dia: “Eu vou mandar meus currículos”. Ela falou: “Não manda, não, que você vai humilhar”. Eu falei: “Não vou humilhar, não. Foram minhas coisas, que eu fiz”. Ela falou: “Não, então manda só uns sete”. Aí, acabei, mandei dezoito, aí eles falam que eu estou ‘muito macho’. Vai inteirar 28.
P/1 – Tem alguma mensagem que você gostaria de deixar sobre a importância da educação ambiental, da separação de resíduos, da reciclagem?
R – Ai, meu Deus! O que eu gostaria, que nós, que estamos hoje aqui, pudéssemos passar pros nossos filhos, nossos netos, a importância de reciclar e educar. Era muito bom. Porque daqui uns tempos, os filhos da gente, sobre esse trabalho, sobre água, sobre energia, o sofrimento deles vai ser bem maior. Então, que procurem se educar, passar para o próximo que reciclar, separar, nunca é demais. Até a gente continua ajudando o meio ambiente, a sociedade e a nós mesmos. A gente procurando se educar, eu me educando, eu consigo passar pro próximo o que é educar o meio ambiente. Eu acredito. Vamos procurar usar tudo e jogar cada um no seu devido lugar, cada coisa no seu. Eu acredito que as pessoas vão acreditar que, sem o reciclável, nós não vamos poder, que a gente já está ficando sem o aterro sanitário, não é verdade? A gente já está bebendo uma água escassa. Então vamos cuidar o pouco que Deus deixou pra nós, essa é a maior fortuna que Deus deixou pra nós, foi a água e nós mesmos estamos acabando com isso. Naquele tempo não tinha luz elétrica, mas a água, onde você batia com Deus, você achava. Hoje está difícil. Você vê, por exemplo: se nós fizermos igual... quando nós viemos morar aqui dava 160 fossas. Vamos ver se você me entende. Cada casa dessas seriam duas fossas: uma séptica e uma negra. Mas precisava de um poço, nós não tínhamos água quando nós viemos pra cá. Era um cano de água que vinha lá do outro lado e era uma briga danada, porque ali a mangueira vinha e então, a gente, pra encher as caixas, ia emendando as mangueiras, cada um pra sua casa, pra encher a caixa de um por um, porque nós tínhamos água. Era pra fazer duas fossas, era uma aqui, pequena e aqui, a séptica e a negra. E tinha que ter um poço, uma casa sim e uma não. Ia dar quantos poços? 82 [casas], quantos poços não ia dar? Um poço sim e um poço não. Só que os primeiros que fizeram, eu fiz a fossa aqui e deu água. Já não podia fazer o poço. Os primeiros que fizeram, a água é salobra, porque as veias das águas se encontraram: a veia da fossa, com a veia... então as veias se encontraram, não podia beber. Se nós não soubermos cuidar e ajudar o meio ambiente, que já está um desmatamento fora de série, então vamos ajudar o meio ambiente e nós mesmos. Vamos nos educar. E reciclar. Educar e reciclar nunca é demais.
P/1 – Dona Cida, você gostaria de acrescentar, falar alguma coisa de algum momento da sua vida, que eu não tenha te perguntado, contar alguma coisa que eu não tenha te perguntado, deixar uma mensagem?
R – Não, olha, eu não tenho mais nada a acrescentar. Eu acredito que já deu tudo bem. O que eu tenho a dizer: primeiro agradecer a Deus e a vocês que estão aí pra resgatar um pouco da vida da gente porque, às vezes, o que eu coloquei pra vocês, talvez eu não coloquei pra ninguém, porque ninguém ainda se interessou. E hoje eu consegui tirar de dentro de mim coisas que estavam trancadas e não tinha com quem falar. Então agradecer a Deus por mais esse dia de hoje. E pela presença de vocês.
P/1 – E como foi, pra você, ter lembrado de toda sua trajetória e dividir um pouquinho da sua história com a gente?
R – Foi muito bom. Porque, às vezes, você até pensa, mas aí, quando você começa a voltar, aí você pensa assim: “Caramba, ficar pensando nisso agora, não tem nem necessidade. Vou falar pra quem? Quem vai me dar ouvidos pra um tipo de coisa dessa?” E aí foi muito bom, que deu pra buscar lá atrás e trazer um pouco das lembranças. Quando eu vejo que vai dar pra eu contar um pouquinho de mim, dos meus seis anos pra cá, vai ser muito bom pra mim, muito bom pra quem for ver. Por exemplo: se a minha família for ver, vai lembrar da minha mãe. Minha tia, se ela estiver viva, ela está viva, quanto mais rápido sair, ainda dá tempo: “Tia Nadir, ó o que eu tenho”. Ainda dá pra ela.... você está entendendo? Tem meus primos, minhas primas. Então eles vão ver e vão recordar também o nosso tempo, lá do passado, o que nós conseguimos. Então, pra mim, eu agradeço a Deus por tudo.
P/1 – Eu agradeço demais pela tarde de hoje, por tudo que você nos ensinou, eu agradeço do fundo do coração. Muito obrigada!
R – Tem uma coisa muito importante. Por mais que a dor venha, por mais que você sente, é uma coisa assim: nunca se esqueça daquilo que está acontecendo com você, porque amanhã, quando você der o passo pra frente, você vai falar: “Esse veio pra me acordar e não pra me destruir”. Uns quiseram que destruísse, mas outros não. Quando a gente... só que cada passo, hoje, que eu dou, por exemplo: quando eu vejo as pessoas me procurar, eu agradeço a Deus. Quem ganhou a pedra ano passado, hoje Deus te dá a diferença. Então nunca voltar pro próximo, pra pessoa que te fez, na mesma proporção que ele te fez. Procurar voltar pra ele um estímulo melhor, pra que você até o ajude a repensar o que ele fez e daí pra frente ele será uma nova pessoa, um novo pensamento. Ele vai aprender. A gente nunca deve voltar pro próximo, pra aquela pessoa, o que ele me fez. Eu tenho que voltar pra ele ao contrário, dar pra ele a sabedoria, pra que ele vá caminhar e sempre olhar pra lá: “Ali eu não vou errar mais, porque ali eu já errei. Então vou procurar, daqui pra frente”. Mas eu agradeço muito a Deus por hoje. Esse dia de hoje me compensou 67 anos de vida e 29 anos que um dia eu pensei que eu não seria ninguém. Há 29 anos eu pensei que eu não seria ninguém. Não vou mentir pra você, já pensei até em tirar a vida, de tanta coisa que eu passei, que eu falei: “Deus, eu não mereço isso”. Muitas vezes eu, pra sair aqui de madrugada, passava na represa, pra não aguentar a humilhação das pessoas. Mas Deus ergueu minha cabeça e hoje eu digo: “O povo vai ter que me engolir, enquanto Deus me deixar na Terra, porque aqui eu estou e eu o agradeço por isso”. Hoje, pra mim foi mais um passo pra minha vitória. Isso quer dizer, pra mim, a palavra ‘não desista’. E é o que eu vou fazer.
P/1 – E é um grande exemplo.
R – Então a gente tem que caminhar com Deus, nessa proporção. Agradecer, que nem eu imaginava. Eu deito ali na cama e fico assim: “Ô, Deus, quer dizer que quando eu fui catar lá atrás, o Senhor já sabia antes de eu nascer, então já sabia. As humilhações que eu aguentei, então o Senhor sabia que a recompensa ia vir”. E ela está vindo. Ó como ela está vindo, de todos os ângulos. Eu nunca me imaginei num jornal; numa representação de poder chegar a falar, as pessoas perguntarem e eu participar; dessa mulher que apareceu na minha vida, esse Capacita, o pessoal do Capacita. Uma pessoa que eu agradeço, que está sempre aqui batendo papo, é o Luiz. E eu nem imaginei. Quando você falou, eu falei assim: “Não, acho que eu estou ficando meio doida”. Ela estava aqui, na hora, quando você falou se podia ligar aquela hora e eu falei que podia. Aí quando você desligou, eu falei: “Deus, obrigada. Olha, eu estava certa, o Senhor estava certo, só faltava buscar mais um pouquinho a Ti”. Eu agradeço por isso, que a gente continue se falando, nas caminhadas. Aí vocês vão me mandando as coordenadas do que eu tenho que fazer daqui pra frente.
P/1 – A gente vai te mandar um vídeo de tudo, com tudo pronto.
Recolher