Projeto: Memória Dieese
Entrevistado por: Nádia Lopes e Carolina Ruy
Depoimento de: Fausto Augusto Junior
Local: São Paulo
Data: 21/09/2006
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Código: Dieese_TM005
Transcrito por: Ana Lúcia Queiroz
Revisado por: Juliane Roberta Santos Moreira
P/1 ...Continuar leitura
Projeto: Memória Dieese
Entrevistado por: Nádia Lopes e Carolina Ruy
Depoimento de: Fausto Augusto Junior
Local: São Paulo
Data: 21/09/2006
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Código: Dieese_TM005
Transcrito por: Ana Lúcia Queiroz
Revisado por: Juliane Roberta Santos Moreira
P/1 – Eu gostaria, para começar, com você dizendo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Fausto Augusto Junior, São Paulo, data 19 de dezembro de 1954.
P/1 – Qual é a sua formação?
R – Eu sou cientista social.
P/1 – Você estudou onde?
R – Estudei na USP , na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, na FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas].
P/1 – Qual foi seu primeiro trabalho? Ele teve alguma relação com a sua formação?
R – Não, meu primeiro trabalho foi na área técnica, porque antes de ser sociólogo eu sou eletrotécnico. Então, meu primeiro trabalho foi desenhista copista de projetos.
P/1 – Daí...
R – Bom, daí eu fui para a Eletropaulo, trabalhei um tempo na Eletropaulo, da Eletropaulo eu fui para a TVA [Televisão Abril], quando a TVA começou a surgir, fazer trabalho técnico na TV por assinatura. Quando eu estava na TVA eu entrei na Universidade, aí da Universidade eu fui dar aula no Estado, da aula no Estado eu vim para o Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos].
P/1 – E antes de você ingressar no Dieese, qual que era a ideia que você tinha desta instituição? O que você tinha ouvido falar do Dieese?
R – Eu já tinha vindo no Dieese quando estudava no ensino médio, era aqui no parque já. O Dieese era um fornecedor de dados, você olhava o Dieese muito parecido com o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. Então, você geralmente pesquisava coisas no IBGE e no Dieese. Então, a relação que a gente tinha era muito essa: um lugar aonde eu vou buscar dados. O que é muito comum da maior parte das pessoas que se conhece, que falam sobre o Dieese. Basicamente é isso.
P/1 – Você via alguma diferença entre o Dieese e o IBGE? Uma diferença de base ideológica ou alguma coisa assim?
R – É que na verdade, a lógica de você perceber a base ideológica, etc., é uma coisa que leva um pouco mais de tempo. Eu vim aqui muito estudante, muito no início do segundo grau, então essas referências são muito relativas pra você. Você geralmente vem por conta de um trabalho escolar que tem que fazer, procura a base de dados, na época não tinha internet, provavelmente se tivesse internet eu conheceria o Dieese pela internet hoje, e você vem pesquisar as bases de dados, mais uma questão ou outra, mas na época eu não percebia nenhuma questão ideológica. Eu vou conhecer o Dieese, muito tempo depois na universidade, aí como outro Dieese.
P/1 – Então, antes mesmo do seu ingresso você chegou a vir ao Dieese?
R – Eu vim ao Dieese duas vezes antes de estar como funcionário do Dieese: uma vez, há muito tempo, quando eu era aluno do ensino médio, e depois, quando eu estava na universidade, porque aí eu já tinha alguns amigos que trabalhavam aqui. Daí vão mudando um pouco os perfis.
P/1 – E quando você estava no ensino médio, que tipo de trabalho você pesquisou?
R – Era trabalho demográfico. Era emprego, desemprego, características da população brasileira… Eu não me lembro bem, mas acho que era de geografia ou alguma coisa nessa linha. Na época tinha Ospb [Organização Social e Política Brasileira], tinha aquelas coisas assim, também então...
P/1 – Os professores indicavam o Dieese como fonte ou você veio por conta própria?
R – Olha, eu me lembro como indicação, então do tipo “Ah, vocês vão pesquisar sobre esse assunto”, “Ah, quais lugares?” “Ah, pesquisa aqui, aqui e aqui”. E também tem um detalhe importante: a biblioteca do Dieese também era uma coisa importante porque, como você tinha… é, sem internet, é que o mundo com internet é um outro mundo. Sem internet você tinha as grandes bibliotecas, ou você tinha as bibliotecas das universidades, ou você tinha a Biblioteca Mário de Andrade, e depois você tinha algumas bibliotecas específicas. O Dieese tinha uma biblioteca aberta, então isso também facilitava o acesso. O IBGE, por exemplo, eu vim aqui, eu me lembro de ter pesquisado coisas do IBGE na biblioteca do Dieese. Porque era isso, você chegava como estudante e tinha pessoas para te atender. O IBGE era um pouco mais distante, esse acesso, essa discussão sempre foi um pouco mais.... Então o Dieese era muito mais usado por conta disso, que inclusive é uma das coisas que a gente faz hoje, talvez tenha até perdido um pouco, até por conta que a internet ocupou esse espaço. Você tinha uma equipe de pessoas que faziam isso, então, o que a gente chama de atendimento técnico - vocês devem ter ouvido falar - atendia e atende o mundo, não atende só o dirigente sindical, a famosa pastinha que você atende o telefone, o sujeito que quer que você ajude ele a calcular a mensalidade do pagamento da casa própria dele, que é calculado sobre a base da categoria, ele bate aqui. O fulano que quer - agora tem menos mas antes tinha muito - fazer o reajuste do aluguel, e quer confirmar se o valor que o senhorio tava pedindo estava certo, então, ele ligava aqui. Então, sempre teve muito essa relação, de atendimento ao público, e as pessoas eram preparadas muito para fazer este atendimento. Depois uma das minhas experiências vai ser fazer este atendimento. Então, quando eu vim para cá acho que foi por isso, acho que foi por indicação. Acredito que tenha sido por conta disso.
P/1 – Como você relataria esse seu ingresso no Dieese?
R – O Ingresso, a entrada no Dieese? Quando eu entrei no Dieese aconteceu uma coisa muito engraçada: o Dieese abriu uma vaga para auxiliar técnico, que é um cargo em extinção hoje, quase. Mas, que era o patamar inicial do quadro técnico do Dieese. Normalmente eles pegavam estudantes. Geralmente, pegavam estudantes mais no começo do curso, eu já estava no final do curso, na época eu acho que tava no terceiro ano, na metade do terceiro ano. Eles geralmente pegavam as pessoas no segundo, então, tinha um amigo meu que tinha entrado aqui no segundo ano. Abriu a seleção para uma vaga e eu vim concorrer. Na época eu tinha deixado de dar aula, fui um dos famosos professores excluídos do processo, quando teve os cortes no governo do Estado. Eu era professor ACT [Admitidos em Caráter Temporário], o atual OFA [Ocupantes de Função-Atividade], que era professor sem concurso, quando em dezembro há a reestruturação da Secretaria de Educação, eu não consigo pegar aula e fico desempregado. Eu já tinha saído da TVA há algum tempo: eu fico desempregado em dezembro, acaba o ano e eu não consigo pegar aula em janeiro. O Dieese abre a seleção em março, eu sabia que tinha a seleção, esse meu amigo me avisou e entrei no processo de seleção.
P/1 – Como tinha sido divulgada a seleção?
R – O Dieese sempre fez...agora é a mesma coisa. Ele abre a vaga, sai um edital, o edital é colocado nas universidades, normalmente é divulgado, hoje é mais fácil, mas era divulgado nas universidades, botava no mural da universidade. Como eu tinha um amigo que trabalhava lá, ele me avisou. Avisou eu e toda a universidade. Uma coisa linda, tínhamos gente pra “dedéu” aqui. Nessa época eu já tava no CERU [Centro de Estudos Rurais e Urbanos], fazia pesquisa, ao mesmo tempo que eu saí. Eu saí do Estado em dezembro, em janeiro eu ingressei numa pesquisa que era uma pesquisa de memória e de reconstrução do processo de imigração japonesa no Brasil, lá pela USP.
P/1 – CERU, o que é CERU?
R – É, Centro de Estudos Rurais e Urbanos, que é um centro que tem lá na Universidade de São Paulo, na FFLCH. Eu comecei a trabalhar com eles, fazendo a pesquisa das famílias japonesas, isto foi em janeiro, fevereiro, e tentei, fiz a seleção em março. Aí no processo da seleção fiz uma prova e depois uma entrevista. A prova falava sobre salário mínimo e questões de cesta básica, relação entre salário e custo. E na entrevista, eu fui entrevistado – não sei se vocês já entrevistaram – pela Vera, Ana Claudia e pela Kátia: são as três técnicas que ainda estão no Dieese. E na entrevista eu fui selecionado.
P/1 – Qual ano foi?
R – Isso foi em 1996.
P/1 – Você, quando entrou no Dieese, qual a diferença que você sentiu? Porque antes você vinha para pesquisar. Quando você entrou o que você percebeu de diferente, o que te chamou a atenção logo que você entrou?
R – O que é diferente é aquela a casa. A casa do parque é muito diferente. Porque quando você vem como estudante você para na porta da casa. Normalmente, a gente parava na primeira sala, naquela salinha lateral que, enfim, a bibliotecária ou quem vem te atender te perguntava o que você queria. Ela trazia algumas coisas e você ficava trabalhando. Quando você entra na casa, e a gente brinca sempre, é o mito da cozinha, quando você está na sala você conhece todo mundo, na cozinha é outro mundo. O quarto… a sensação que você tem é um pouco essa: existe um mundo por trás daquela porta e é um mundo que você não conhecia. Então, essa é a primeira sensação. Depois quando você vai entrando, vai modificando muita coisa, porque como eu tinha vindo de empresa, de situações muito diferentes, de empresa pública, empresa privada, Estado, como professor, e depois no Dieese. Então você sente diferenças muito fortes nesse processo, em especial entre empresa privada e a instituição. Então, essa é uma primeira entrada. É muito forte, você chega muito duro na instituição. Você imagina que está entrando numa empresa como qualquer outra. A impressão que você tem quando você entra é essa. Como eu digo, é assim: a relação ideológica, ela é uma construção e ela não acontece antes, ela acontece no processo. Raramente há pessoas, são raros os casos, claro que tem, as pessoas que entram sabendo exatamente o que é o Dieese. O Dieese vai se configurando com o passar… Ainda mais eu que entrei no banco de dados que é um setor de retaguarda da instituição, que tem uma cara muito mais operacional, inclusive. Imagine, eu entrei para fazer checagem de digitação, pegar aquelas listas de papel contínuo e ficar checando. Então, isso não era muito diferente do trabalho que eu fiz quando eu fui estagiário na Eletropaulo, que era checar planta, eu ficava checando se o sujeito tinha feito a planta certa, enfim, o trabalho para mim não era muito diferente. E você chega desse jeito, o que vai alterando é quando você vai no processo, quando você vai no seu cotidiano. É muito comum você vir trabalhar de terno, não foi o meu caso, mas eu vinha bonitinho: de camisa, tudo certinho, de sapato, depois você relaxa, você vai mudando, mas isso aí uma outra conversa [risos]. Mas acho que essa sensação é a primeira sensação. Você vem como se fosse para uma instituição como outra qualquer, não tem muita...
P/1 – Você entrou no banco de dados e depois como foi a sua trajetória? Os trabalhos que você foi desenvolvendo? Como isso foi evoluindo?
R – O banco de dados era uma coisa muito incipiente na verdade. Eu cheguei, na reestruturação do banco de dados. O banco de dados surge - ele surge antes até – a Vera certamente vai falar, deve ter falado disso melhor do que eu - mas ele, do ponto de vista mais estrutural que se chamava Sacc [Sistema de Acompanhamento de Contratação Coletiva], ele começa a acompanhar de maneira mais efetiva em 1993, que na verdade vai se efetivar em 1994, porque você começa a olhar para as convenções de 93 só a partir de 94. Eu faço parte da segunda geração do banco, a primeira geração era a Vera, Kátia - nem Kátia ainda - era a Vera e Ana Cláudia, depois entra Kátia e Eliana, na reestruturação saem a Ana Cláudia e Eliana e eu entro numa dessas vagas. Então é a primeira grande modificação do banco de dados, saem todos que entravam, então uma mais velha ali chamada Vera, e a Kátia que tinha um ano um ano e pouco do banco. Mas era um banco também de dois anos, dois anos e meio. Então era um processo em que você tava reorganizando, re-olhando para o banco, que é muito difícil para você olhar para um banco que tem um ou dois anos, porque na verdade ele tem muito pouco material de análise. Era uma aposta. Então, quando você entra para isso, você fala, “sei lá, né?” “Interessante, vamos ver as possibilidades”. Eu entro para mexer com isso. Então eu entro nesse trabalho, é um trabalho meramente braçal, ou sei lá como pode se dizer isso, porque era um trabalho muito chato mesmo, que era você ficar checando digitação. Por que, como é que funcionava o banco? A gente pegava as convenções coletivas, uma por uma, cláusula por cláusula e codificava. Codificar é colocar um bocado de números em relação a um padrão que tinha sido construído, uma metodologia. Então você pegava cláusula por cláusula e ficava lá: um zero cento e um, um zero cento e dois, palavra chave a, b, c, “blá, blá blá”. Quem fazia a codificação eram os técnicos mais velhos e nesse caso basicamente era a Vera e a Kátia. Cabia a mim e ao Jorge, que era o outro auxiliar técnico, fazer a checagem desse processo. Para a gente essa apropriação foi muito relativa. E o Dieese começa a surgir com alguns outros produtos nesse momento, quando a gente tá no meio aí, entre 1996, 1997. O Dieese começa a migrar - acho que era uma coisa muito interessante que ele tinha um boletim que fazia a divulgação de uma série de coisas. Além da cesta básica, etc., ele fazia o quê? Ele fazia a divulgação dos reajustes que iam surgindo, que as categorias iam fechando e das greves que ocorriam. Naquele momento a gente começa um processo de discussão de, em vez de fazer só a divulgação, fazer também o acúmulo desta informação. Então eu digo que o meu grande primeiro trabalho no Dieese é transformar aquela divulgação de reajuste salarial, que era uma divulgação que você divulgava o que tinha chegado e depois descartava tudo aquilo para o mês seguinte que fosse relativo ao mês anterior e passava a acumular as informações deste mês, do mês que vem. Que, em vez de fazer aquela divulgação mensal fazia a divulgação semestral que é o que a gente faz hoje. Então o primeiro grande trabalho que eu posso dizer que eu fiz, no Banco de Dados, foi isso: foi me dada essa base de dados, “oh tá aqui, nós estamos fazendo desse jeito, o que você acha? Você trabalha em cima disso”. E em cima disso, nós fomos reorganizando e transformando isso para o banco de dados, que a gente chama hoje de banco de dados salariais. E a mesma coisa foi sendo feita com as greves. O banco das greves ficou por conta do Jorge, que era o outro auxiliar técnico. Então, isso também foi uma das coisas que surpreendeu a gente enquanto auxiliar técnico, porque pra gente isso foi uma coisa interessante por “n” motivos. Você de repente ser responsável por uma área, por um trabalho muito específico, porque você vai migrando aos poucos de um trabalho meramente braçal para um trabalho que vai agregando. E, o que eu acho que foi um grande diferencial pra gente, é você propor: “Olha, isso aqui não é legal, vamos fazer diferente”, e apostar nisso. E as pessoas permitiram que se apostasse nisso. E o Banco de Salários e Banco de Greves surgem desse jeito, surgem na mão de dois estagiários, era eu e o Jorge. Eu ficava fazendo Banco de Salários e ele ficava fazendo Banco de Greves. Ele surge basicamente desse jeito, a partir de um conhecimento que a gente aprendeu com a Vera, que era o banco de dados das contratações coletivas. Então esse é o primeiro trabalho no Banco de Dados. E eu fico no banco de dados até 98. E aí muda. Tem uma coisa importante em 98, em 98 eu tô me formando, então esse é um dado significativo para mim, eu tirei um grande peso das costas, saí da universidade. Em 1998, eu saio do Banco de Dados e nesse período da minha saída, na verdade, o Dieese estava fazendo uma coisa chamada Pcda, vocês já devem ter ouvido falar, que era o Programa de Capacitação para Dirigentes e Assessores Sindicais. O Pcda talvez tenha sido a minha porta de entrada para o mundo técnico como técnico e a relação mais pesada com o movimento sindical. Porque eu passo a ser, eu sou um dos auxiliares técnicos selecionados a fazer o Pcda. Então, eu faço o Pcda 1998. Quando eu volto do Pcda no final de 1998, eu sou transferido, promovido para técnico e vou para uma sub seção. E aí eu vou para dentro do movimento sindical. Então eu saio do escritório, saio daquele mundo de retaguarda e vou para a assessoria propriamente dita. E aí eu vou trabalhar com a construção civil. Eu vou para a Federação Estadual dos Trabalhadores da Construção Civil.
P/1 – Antes de você entrar no movimento sindical, dá para você contar essa sua experiência no Pcda, que até então você não tinha experiência com movimento sindical e lá você vai ter contato, inclusive com dirigentes.
R – É claro que a gente não pode falar que não teve contato com dirigentes no Banco de Dados. É claro que você tem, você liga pra um, conversa com outro, ajuda a montar um trabalho, vai auxiliar num trabalho que outro técnico vai fazer. Mas o Pcda é muito intenso. O Pcda são 45 dias que você fica internado num lugar. Então, são três módulos de 15 dias com intervalo de 15 dias. Então você fica, são três meses que você passa metade do mês dentro e metade do mês fora. Então você entra dentro de um universo maior. É um outro mundo. Eu digo pras pessoas que raramente as pessoas vão entender o que a gente fala se não passou pela experiência. É quase um grande Big Brother, se a gente fosse comparar com alguma coisa. Por que? Porque você fica mergulhado lá dentro. Mergulhado, estudando. Mas eu digo assim, eu aprendi muito do ponto de vista teórico. A discussão era sobre reestruturação produtiva, era muito interessante. Agora, o grande aprendizado lá é com essas relações que vão se tecendo. E o Pcda faz uma coisa, que talvez seja, ou fez uma coisa, porque não existe mais. Mas ele fez uma coisa que está na espinha dorsal da instituição, que é colocar dirigentes de tendências sindicais diferentes juntos, estudando juntos e produzindo juntos. Então esse é o grande, para mim pelo menos, foi o principal aprendizado do Pcda. Quer dizer, aquele mundo que lá fora é absolutamente impossível de acontecer, lá dentro você vê acontecer efetivamente. Você tem dirigentes opostos, de posições políticas divergentes trabalhando em conjunto, e se percebendo enquanto semelhantes. Eu acho que isso é uma coisa importante. Isso desconstrói um conjunto de informações, de preconceitos que geralmente quem está de fora não consegue - e mesmo quem está dentro da política sindical comum - não consegue perceber. E que é o mote de sobrevivência da instituição, que é conseguir perceber que os diversos podem conviver, porque tem algo acima, que é o interesse da classe trabalhadora. Então, assim, o Pcda possibilitou isso pra mim. Fazer essa percepção. Esse contato com o dirigente desmistifica o dirigente para o técnico, o que também é absolutamente importante. Por quê? Porque a visão que você tem de dirigente é a mesma visão que hoje a gente tem de político. Político é aquela coisa que está lá, que ninguém sabe o que é, que você tem medo de pegar na mão, o artista, enfim. Essa coisa que a sociedade midiática acaba fazendo com a gente. E o dirigente, para quem tá dentro do Dieese aqui na retaguarda, acaba virando um pouco isso: “o dirigente vem visitar a instituição” “Ah imagine, o dirigente!” Quando você passa a conhecer o dirigente, ah enfim, o dirigente é como qualquer outro ser humano, com suas idas, iras, amores, dissabores. É, isso é uma coisa importante nesse processo: você olhar para o dirigente como um igual. E aí é como um igual mesmo: nem como superior, porque você detém um conhecimento, com milhões de aspas, do que ele teoricamente não deteria e, ao mesmo tempo, também você não é um empregado daquele dirigente como tradicionalmente você seria numa empresa. Então essa relação de igualdade que o Pcda possibilitava, talvez para mim tenha sido a principal conquista. E possibilidades, que isso vai gerar depois, que vão facilitar muito a minha vida, deu muita tranquilidade. Mais do que o conhecimento técnico, eu ainda gosto de dizer que o conhecimento técnico você pode se apropriar em livro, não tem problema nenhum, você senta lá, com aquele monte de apostilas que o homem te deu e aprende. Ah, mas essas relações não são aprendidas em livros, né? Não são lidas, você pode ler o livro de Miguel Chaia, que você não vai entender muita coisa do Dieese se você não viver ali o cotidiano da instituição. Então esse é o “barato” do Pcda. Acho que isso me ajudou, porque quando eu cheguei para dentro - porque é assim - uma coisa é de lá eu passei para dentro do sindicato.
P/1 – Já preparado você foi para a Federação?
R – Isso. Bem, a Federação tem vantagens e desvantagens. Bem a vantagem de uma Federação...
P/1 – Federação da...
R – Federação dos Trabalhadores da Construção Civil de São Paulo. A Federação não é um sindicato, na verdade ela é uma aglutinação de sindicatos estaduais. Então você não vive a vida cotidiana sindical tradicional. Aquela coisa do “miudinho”. A Federação ela está sempre olhando as questões por cima. As relações todas são relações mediadas por cima. Ah, qual a vantagem disso? A vantagem disso é que você tem tempo para se formar. Você tem tempo para criar maturidade para você ir para o embate muito mais direto. E ela tinha uma coisa importante que ela negociava. Todas as negociações do Estado eram centralizadas pela Federação. Então, a Federação fazia a negociação com o sindicato patronal que era o Sinduscon [Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo]. Não só, esse era um dos, mas enfim, esse era o mais importante. Então, eu tenho uma possibilidade de não entrar no mundo sindical de cabeça, quer dizer, eu entro no mundo sindical de cabeça, mas não entro naquele cotidiano “miudinho” do sindicato propriamente dito, entro discutindo as grandes questões da construção civil e fazendo a negociação coletiva da construção civil. Isso me possibilita uma série de coisas, me possibilita estudar o setor, acho que esta é uma das coisas importantes e me possibilita me apropriar de um conhecimento tácito da instituição - que talvez seja o principal dela - que é a competência de negociar. Que é uma coisa que não é das mais simples. É uma coisa que o dirigente se forma no seu cotidiano, ali no cotidiano das negociações. O Dieese teorizou sobre isso e dá seminários sobre isso, mas que você só aprende fazendo. Não tem jeito, negociar se aprende negociando. Então, com essa possibilidade de estar negociando em diversos momentos pela Federação, junto com os dirigentes da Federação, mas ao mesmo tempo não estar sendo soterrado pelas demandas miúdas que normalmente tem um sindicato, me possibilitou estudar e me possibilitou aprofundar teoricamente um bocado de coisas. Em especial o setor, me possibilitou aprender a negociar, me possibilitou essa prática da assessoria da negociação, que vai ser o meu trabalho principal nesse processo. Então, me ajuda muito nesse processo conhecer base de dados, do ponto de vista teórico, de aprendizado, é conhecer as bases de dados, trabalhar com base de dados, reorganizar base de dados e dar, que era uma coisa que eu já fazia no banco de dados, dar materialidade, dar funcionalidade àquilo que você fazia aqui. Então, isso você acaba aprendendo lá. Você acaba aprendendo e tendo tempo de fazer isso, de pegar aquele monte de dados que você construiu, que você produziu e transformar aquilo em algo que tem significado para o dirigente. E você vai aprendendo algumas coisas importantes: que a linguagem do mundo real não é a linguagem do mundo acadêmico, não adianta você escrever 20 páginas para o dirigente, usando “economês mais sociologês”, que não vai adiantar nada para ele. Ele quer uma coisa muito prática, três ou quatro páginas que resolvam a vida dele. Isso você aprende com muita tranqüilidade. E numa Federação você tem tempo de fazer esse processo, porque você aprende com a direção. Eu tenho a vantagem de ter entrado no final de uma direção e na entrada de uma nova direção. Então isso facilitou muito a minha vida, porque a nova direção traz elementos novos, traz pessoas novas e traz desconhecimentos comuns. Você aprende junto com ele e ele aprende junto com você. Isso ajudou muito também, acho que isso é um processo muito rico. De trabalhos significativos, a gente fez uma pesquisa setorial, não, um estudo, que a gente chama estudo setorial sobre a construção civil - acho que foi um trabalho importante - porque é um trabalho que se utilizou de maneira mais concreta e com um viés sindical muito forte, a base de dados da PED, da Pesquisa de Emprego e Desemprego. Então o lidar com a pesquisa de emprego me possibilitou conhecer melhor a pesquisa e as potencialidades dela, me possibilitou investigar o setor nas suas especificidades e construir teoricamente algumas discussões. Ao mesmo tempo, fazendo exercício de, em vez de escrever 200 páginas, você escrever 50. O que também pode parecer para a média das pessoas absurdo dizer: ser mais fácil você escrever 200 do que escrever 50. Mas é mais fácil você escrever 200, porque 200 você vai vomitando lá tudo o que você acha pelo caminho, agora, para você escrever 50, 30, 25, você é obrigado a aprender a olhar e achar o que tem de mais interessante, mais importante nesse processo.
P/1 – Depois da Federação é que você foi para um escritório...
R – Da Bahia, isso.
P/1 – Como foi isso?
R – É, isso é um outro… enfim. Aí, o que aconteceu? A Lavínia, que era supervisora da Bahia, teve uma filha e tirou licença maternidade, tinha umas férias acumuladas, aquela coisa toda. Ela tirou seis meses, sete meses de licença. Precisava de um técnico para lá, que se dispusesse a ir para a Bahia, que se dispusesse a ficar pouco tempo na Bahia. A direção me consultou se havia interesse de eu ir para lá, eu falei que sim, que nesse momento me interessava ir para lá. Para mim, isso significava muitas coisas, a experiência de ser supervisor de um escritório é uma experiência muito forte e profissionalmente valeria a pena; eu seria promovido para Técnico II, que é o técnico pleno na instituição; e isto para mim também era algo importante do ponto de vista profissional e do ponto de vista financeiro. Eu vou para lá. Sinceramente eu não sei o que motiva direito o convite. O Wilson fez o convite, ele deve ter entrevistado outros, aí é uma coisa muito particular dele e eu não cheguei a discutir isto com ele. Existia uma outra discussão de eu sair de lá e ir para o escritório nacional, enfim, tinha uma série de possibilidades na época, ele me faz essa proposta e eu vou pra Bahia. Isso muda a inserção também, porque muda a forma que você vê a instituição. Uma coisa é você ver ela [a instituição] sob o ponto de vista de dentro do staff do banco de dados, outra coisa é você ver a instituição do meio e uma outra coisa é você ver a instituição como supervisor. O supervisor é um cargo de confiança da direção, você tem acesso a informações que um técnico comum não tem, você tem uma responsabilidade diferente e você tem que fazer um serviço que é muito difícil. Eu, particularmente, acho que é o serviço mais difícil no Dieese, que é vender a instituição, não do ponto de vista mercadológico, mas do ponto de vista que é levar a instituição para onde ela não está e manter a instituição onde ela está. Esse é um trabalho muito difícil, porque nem sempre o dirigente… Primeiro, do mesmo jeito que eu não conhecia o Dieese uma boa parte dos dirigentes não conhecessem o Dieese, então você tem que levar o Dieese para o sujeito, o que já é uma dificuldade. O dirigente que se filia ao Dieese, não necessariamente se filia – há um milhão de motivos pelos quais ele se filia – nem sempre o motivo pelo qual ele se filiou é o motivo que você está trabalhando para ele e você tem que garantir essa lógica de interesses. Você, na supervisão, tem que aprender a fazer o link entre a direção técnica e a direção sindical, você faz isso o tempo todo, essa mediação. Porque nem sempre os interesses da direção técnica são exatamente iguais aos interesses da direção sindical, e você tem que fazer essa mediação. Em especial, quando a direção sindical é regional, porque a direção sindical nacional ou a direção de São Paulo tem um contato mais direto: o Ortiz [Carlos Andreu Ortiz, presidente do Dieese] tem um contato cotidiano com o Clemente [Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese]. Agora, o dirigente da Bahia não necessariamente tem esse contato cotidiano, então você tem que fazer essa ponte. Você tem que administrar o caixa do escritório. É um trabalho absolutamente administrativo, controlar quem pagou, quem não pagou; aí quem não pagou você tem que ir lá discutir com ele, porque não pagou, renegociar a dívida que ele tem; tem que controlar o gasto do escritório, pagar conta de luz, telefone e essas coisas todas, organizar tudo isso; fazer toda essa relação com o escritório nacional, com a parte da tesouraria e do administrativo daqui; tem que gerir pessoas. Então, eu trabalhava, além do escritório, ainda tinha dois técnicos na pesquisa de emprego e desemprego em uma subseção, mais um pesquisador do Cnpq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], mais um auxiliar técnico, mais uma secretária. Então, você também vai ter que aprender a lidar com as pessoas ali no ambiente de trabalho, mais fazer todo o trabalho que o técnico faz: assessorar o movimento sindical, fazer negociação, dar curso. Enfim, o trabalho de supervisor é um trabalho muito complexo, muito difícil, mas ele te dá uma “cancha” fantástica. Ele te dá a possibilidade de ver a instituição como um todo, e participar de fóruns que você não participa normalmente, um fórum de discussão ou pelo menos um fórum de consulta do Dieese é o fórum de supervisores e, nesse processo, eu participo de duas reuniões com supervisores e é importante.
P/1 – Nessa atividade que você colocou, que uma das tarefas do supervisor é colocar o Dieese para fora, é divulgar o Dieese, você lembra de você desenvolvendo esta atividade, colocando o Dieese para fora, em algum momento?
R – Lembro de... seis meses é muito pouco. E esse processo de namoro é um processo lento. Eu estou dizendo com uma entidade. E eu me lembro de ter feito duas conversas muito fortes, uma com o sindicato dos professores da Bahia, que era a Aplb [Associação dos Professores Licenciados do Estado da Bahia], e outra com o sindicato dos federais, não me lembro o nome do sindicato, enfim, o Sindicato dos Servidores Federais da Bahia, de maneiras muito diferentes. Uma foi um seminário, que eles convidaram a gente para fazer o seminário, nós fomos lá e fizemos o seminário para eles. E é muito mais fácil, porque quando você é demandado você vai, apresenta, faz o seminário, mostra o seu trabalho, todo mundo acha muito legal, porque não conhece e, enfim, aí fica mais fácil: você discute, você conversa, se filia, não se filia, enfim, esse processo é mais simples; o outro processo é um processo mais difícil porque o presidente, o presidente não - como é que chamava? – o diretor regional do Dieese, o diretor sindical regional do Dieese: coordenador regional. O coordenador sindical do Dieese, ele era de uma tendência do movimento sindical que era da mesma tendência dos dirigentes deste sindicato, ele faz o primeiro contato de aproximação, uma conversa, etc., e depois a gente vai lá conversar. Eu, particularmente, não sou muito bom nisso, sendo bem sincero, não é uma das coisas que eu sei fazer com mais facilidade, que é pegar aquele monte de panfleto, monte de catálogo e ir lá explicar para a instituição, explicar o que é a instituição, ver as dificuldades do sujeito, etc. Não tenho problemas em falar sobre o que é o Dieese, mas tenho muito problema em falar o que o Dieese pode fazer para o sujeito, porque é um exercício isso, um exercício de você entender a demanda que ele tem, uma pessoa que você não conhece, não sabe quem que é, conhece o sindicato, conhece um pouco da realidade dele, mas que necessariamente, o que você vê como necessidade, é a necessidade que ele quer. Então você tem que fazer essa costura, isso você vai aprendendo com o tempo, né? Hoje em dia a gente sabe que é mais fácil você chegar num lugar e deixar o cara falar um montão. No começo você tende a falar mais do que ele, então são coisas desse tipo que a gente vai aprendendo.
P/1 – Vindo dessa experiência você retornou para o escritório nacional e passou a exercer que tipo de atividade?
R – Então, quando eu volto para o escritório, eu volto para a equipe de educação do Dieese. Bem, aí tem razões mais concretas. Eu digo que as razões pelas quais eu fui substituir um supervisor são razões muito particulares da direção, da qual eu não tive acesso, então não tenho muito como te falar. Com relação à educação é mais simples, a minha vinda para cá era mais fácil. Eu vinha para cá - a equipe de educação era uma equipe que estava se reestruturando - eu fazia formação sindical já há algum tempo, desde a época da Federação da Construção Civil eu fazia muita formação sindical. Por conta do perfil de federação - um dos trabalhos fortes da Federação é dar formação sindical para os diversos dirigentes no estado, etc. - então o ato de fazer, quer dizer, eu fui obrigado, obrigado não,eu fui encaminhado a fazer formação pela instituição. Ao mesmo tempo, eu comecei a estudar educação, porque eu terminei meu bacharelado e quando eu estava na construção civil eu ingressei na licenciatura, então fui estudar educação um bocadinho. Fui estudar sobre a ótica de uma outra educação que não a educação tradicional, então, eu fui para dentro dos cursos de formação de construção civil. Então, eu fui estudar um pouco o que eram os processos de alfabetização de adultos, na construção civil, fazia parte da representação sindical do antigo alfabetização solidária, então a construção civil participava. Eu fui indicado pelo sindicato para representar o sindicato nessa discussão de alfabetização solidária. Então, eu construí um processo de envolvimento com a área de educação, tanto teórico quanto prático. Então, era natural que, se eu viesse para cá - em um processo de reestruturação da educação - eu ia trabalhar com educação. Essa é uma das razões fáceis de identificar.
P/2 – Como era a relação com as pessoas a quem você dava o curso? Você já foi professor, no caso. Você pode fazer uma comparação?
R – É muito diferente. É muito diferente. A primeira diferença é que são adultos, adultos, senhores, todos formados na sua vida, todos são dirigentes, isso é uma coisa importante: dirigente é uma posição de direção, então isso também tem suas diferenças importantes. Então são muitas diferenças: acho que a primeira delas é você lidar com educação de adulto: é muito diferente do que você lidar com educação de crianças ou de adolescentes, no meu caso eu dei aula antes no Estado de 5ª à 8ª série, então pegava aí de 12 a 15 anos. Muito diferente. Você trabalha, isso é uma diferença, a criança ela tem - o processo de legitimização do professor é um processo dado - é claro que você constrói a sua relação, você constrói ao longo do tempo, você tem um ano para fazer um trabalho e em seminário você tem três dias. Mas a posição do professor na escola, dizem que isto está sendo muito questionado hoje - pelo menos meus amigos professores dizem muito isso, mas a posição do professor na escola é uma posição muito clara, muito dada, muito legitimada. O professor é o professor, no limite ele bota o aluno para fora, é isso que acontecia: dar bronca, dar nota – você tem uma série de instrumentos ali que são instrumentos de dominação, são instrumentos que você usa enquanto professor, e que faz esse processo e faz parte do processo. Tem livro didático, enfim, tem direção, tem currículo básico, tem todo uma linha. Sem falar que você está lidando com um sujeito que, no caso do adolescente, ele é um sujeito absolutamente crítico, porém crítico sem direcionamento, ele não sabe muito bem o que ele está criticando, ele é contra você e contra o mundo. Até aí tudo bem, e que você o conquista por motivos diversos: desde que você é um professor legal, até porque você enfim, porque ele gosta de você, porque você é bonitinho, porque, “poxa”, tem de tudo, na sala de aula as razões são as mais diversas, porque você é bravo, então, é, na escola tem muito isso. Com adulto isso é muito diferente. Com adulto, primeiro, você lida com adultos, no caso do Dieese, que tem níveis de formação muito diferentes. Então você pega desde um dirigente que cursou o primeiro grau ou as primeiras quatro séries do primeiro grau e, às vezes, nem isso, a dirigentes que terminaram a universidade – e, às vezes, no mesmo grupo - que é o caso de alguns cursos que a gente já deu, com uma diversidade de conhecimento formal muito vasta. Então você tem que aprender a lidar com isso, isso já é uma dificuldade muito grande; você vai aprendendo que de repente você não pode dar texto para ler num curso, necessariamente, se você quiser dar um texto para ler você vai ter que explicar, você vai ter que saber quem. Porque, de repente, não sabe ler o texto, não consegue ler o texto. Por que? Porque ele não está alfabetizado. Já trabalhei com rurais, por exemplo, e eu, como eu trabalhei com construção civil, isso era muito comum, então essa é uma dificuldade muito grande: você saber quem está do outro lado em um espaço de tempo muito curto, três dias, no máximo cinco. Então, você tem que fazer esse processo decolar com o sujeito no primeiro meio dia, porque senão o curso já acabou. Então, isso é uma coisa, aí você tem, com o próprio dirigente, ele tem uma relação muito interessante: eu vou ter pessoas que são absolutamente submissas ao processo de educação, o que é horrível, porque não é esse o tipo de educação que a gente acredita, então o sujeito te vê como o dono do conhecimento, que veio para cá derramar saber para mim, aquela coisa, então você tem um grupo que tem isso muito claro, porque afinal de contas veio de uma educação formal tradicional que quase que pregava isso, como um dirigente que é crítico a isso e não somente a isso, afinal ele é um dirigente sindical que tem na lógica crítica a essência do seu trabalho, da sua atividade, do seu processo. Então, você vai tendo que aprender a lidar com as duas situações, porque o dirigente que é crítico a tudo, é crítico, inclusive, ao conhecimento sistematizado, e você tem que dizer para ele: “tudo bem, você pode ser contra, mas esse conhecimento é o que está sistematizado e é bom que você o conheça para poder criticá-lo”. Então você faz essa passagem que é maravilhosa, acho que este é o maior “barato” desta história que você pega situações que são muito fortes [choro]. Desculpa, é que eu me lembrei de uma história muito complicada, muito complicada não, muito interessante. É… é que é assim… como é que a gente consegue lidar com isso, acho que é uma coisa... muito aprendizado, uma dificuldade muito grande. Você vai aos poucos lidando com essa situação. Eu aprendi muito com a lógica da solidariedade, as pessoas se ajudam muito nesse processo. Desculpa, desculpa… [choro]. É que eu tenho um envolvimento muito particular com a educação, de todas as atividades que eu trabalhei e trabalho. Essa apropriação de conhecimento, essa construção que o sujeito faz naquele curto espaço de tempo, naquelas dificuldades que ele é obrigado a superar; que você começa a entender o seu real papel aqui dentro. Até então, você é um assessor, o assessor ele tem uma carapaça técnica muito forte que o protege de algumas coisas, muito fortes. Quando você vai para uma mesa de negociação, quando você vai sentar com o dirigente ali naquela relação, você tem sempre a fala técnica, e a fala técnica tem poder, você sabe que essa fala técnica tem poder, você usa o poder que lhe é dado porque faz parte do processo da assessoria, o sujeito, ele pergunta, porque ele precisa daquela informação, é uma relação quase que individual que você tem com o dirigente. E quando você vai para a mesa de negociação na assessoria, você usa e abusa desse conhecimento, dessa autoridade que o conhecimento lhe dá. Na mesa de negociação, o técnico tem um papel, ele tem o papel de dizer pro outro lado que o lado de cá não é bobo, que sabe porque tá pedindo e sabe o que quer. Então, o poder do técnico ele se sobrepõe muito, ele é muito claro, e tem um momento que você corta e fala: “daqui pra frente o dirigente decide”, mas o seu papel de técnico é muito claro. Na educação isso não é assim. Na educação, você tem que aprender a se despojar desse conhecimento, dessa arrogância que você possa vir a ter, não só arrogância, mas normalmente é o que acaba acontecendo, para olhar para a necessidade do outro e para possibilitá-lo construir o conhecimento que ele vai se apropriar. Então, você muda o teu foco, você muda o teu foco de atuação; depois que você passa por isso muda inclusive a tua atuação como assessor, também isso é muito importante. Isso é uma coisa que para mim foi uma coisa muito marcante, muito forte, você pegar e possibilitar esse processo, quer dizer, trabalhar a construção do sujeito, trabalhar a possibilidade dele se perceber além do que ele é – talvez essa seja a parte mais interessante – é o fascínio, você tem um sujeito que acha que não sabe absolutamente nada, então ele chegou para o seminário porque ele precisa de conhecimento, porque se ele não tem conhecimento ele não é grande coisa e você vai num processo lento e dinâmico, mostrando para ele que isso não é verdade, que todo o conhecimento que você sistematizou aqui pelo Dieese tem como origem ele. Isso é extremamente importante, o pesado do conhecimento que a gente produz aqui tem como origem a experiência do dirigente sindical, é um processo muito rico e que o sujeito sai de lá diferente, sai o formador e, enfim, o participante do curso. Isso modifica e com adulto isso acontece de uma maneira muito rápida, o que não necessariamente acontece com a criança. A criança é fascinante, porque - eu digo que talvez - o mais próximo disso seja você alfabetizar uma criança, porque de uma hora para outra ela começa a escrever, mas nas séries intermediárias do ensino formal essa realidade não é tão clara, ainda mais na época em que eu dei aula, as mudanças ainda estavam surgindo na discussão da educação no Brasil, pelo menos no Estado. Nos outros lugares isso já tava acontecendo há muito tempo. Mas com adulto isso acontece, você percebe isso no final do curso, você percebe isso no mesmo dia. E o grande “barato” da educação é isso: o impacto da tua ação ele é imediato, ele não necessita de tempo de maturação. Eu digo assim: quando você senta para escrever uma pesquisa, você escreve um texto, o texto pode ser lindo maravilhoso, mas o tempo dele chegar e fazer alguma coisa com ele, aquilo virar alguma coisa que seja importante para as pessoas, é um tempo muito longo, às vezes nunca vira. É só você entrar nas universidades e ver quantas teses de mestrado nunca foram retiradas, quantas teses de doutorado, você...eu já fiz várias vezes, você vai pegar e consultar uma tese de doutorado, você é o primeiro a consultar aquela tese, a pessoa dedicou cinco anos de sua vida e o negócio fica depositado ali. Faz parte da lógica da ciência, é claro. Mas assim, e educação, a educação ela transcende isso, ela possibilita a atuação ali. Agora é óbvio, ela é uma atuação absolutamente cotidiana, ela é absolutamente miudinha, bem micro, então é… E essa talvez seja a principal diferença que eu sinto. Hoje eu diria que as diferenças talvez fossem menores porque quando dei aula era muito novo. Eu fui dar aula com dezenove anos. Então, assim, seu grau de maturidade para isso é muito fraquinho.
P/1 – Você lembra, você até chegou a citar a história, você lembra de alguma história quando você estava educando, dirigentes, o pessoal adulto?
R – É, eu tenho uma história que não tem a ver com… Eu tenho várias histórias. A história que mais me emociona e eu tenho sempre que tomar muito cuidado quando conto, porque eu não consigo não chorar. Foi por isso que eu chorei àquela hora. Eu tava num processo de educação de adultos de formação profissional. Na época eu tava no conselho de formação da Sert [Secretaria do Emprego e das Relações do Trabalho] pelo sindicato, pelo Dieese, eu era conselheiro lá de um dos programas. Eu acompanhei a formação de uma turma de pedreiros, de desempregados pedreiros. Esta não é uma história tradicional do Dieese, mas eu acho que vale a pena, essa foi a que mais me marcou na vida. Eu me lembro de uma professora, hoje eu posso dizer, muito mal preparada, e eles dividiam os cursos entre habilidades básicas e habilidades específicas, habilidade básica era português e matemática e habilidade específica era fazer lá a casa, aprender a construir, então tinha um professor do Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial] e uma professora. Na aula de matemática eu que vinha de uma formação matemática pesada na minha área técnica, nós formulamos um conjunto de exercícios para os alunos fazerem e foi corrigir o bendito dos exercícios. Eu digo que ela cometeu um dos maiores crimes que as pessoas fazem, mas era muito comum o professor fazer isso até muito pouco tempo atrás, que era pegar por as continhas na lousa, colocar as continhas na lousa e mandar os alunos escreverem, isso é muito comum com criança, é um problema muito sério com criança, agora você imagina fazer isso com adulto. Agora você imagina com adulto que não sabe fazer a conta, na frente de uma sala de vinte e tantos alunos. E eu me lembro do sujeito parado na lousa, ele não era muito velho, que é pior ainda, era um adolescente, devia ter seus dezenove, dezoito anos por aí, no final da adolescência. Parado, na frente de uma conta de multiplicação e não conseguia fazer a conta. Ele ficou lá, uns cinco minutos...parado. O que mais me marcou foi ver um sujeito saindo do fundo da sala [choro], ele levantou e ensinou o menino na lousa. Isso me marcou muito porque ele era um dirigente sindical de motoristas, desempregado. A situação… era de uma grandeza o ato, que é difícil você não, não ficar marcado. E só isso mudou a minha visão de educação. Isso. Eu não tava na equipe de educação do Dieese, eu tava na construção civil, lidando com trabalhadores da construção civil. E nessa hora eu percebi um monte de coisas que outros técnicos mais velhos que lidavam com educação, muitas vezes falavam. O cuidado que você tem que ter em dar um texto para as pessoas lerem, porque você não sabe se o outro sabe ler ou não. Então uma coisa muito comum da gente fazer - porque a gente aprende isso na escola, isso é muito feito na escola, cada um ler um parágrafo - pode ser absolutamente constrangedor para quem não sabe ler. Então, isso é muito forte, isso marca a tua forma como você vê o outro e o teu respeito que você tem com o outro. Mas também mostra como você pode resolver o problema, de uma maneira muito simples, muito solidária. Este para mim é o ato que me marca do ponto de vista da educação, durante anos. Depois eu dei muitos cursos para construção civil, para trabalhadores e isso muda a forma como você vê a história. E eu nem tava dando aula nesse dia, eu tava meramente assistindo às aulas para fazer as avaliações que a gente fazia para o programa. Por que? O que acontecia? Os professores faziam uma série de cursos, os cursos se transformavam em apostilas e depois viravam referências. Então, eu nem estava dando formação, mas acho que isso muda. Muito.
P/1 – Com essa sua experiência - você passou por vários estágios no Dieese - teve um material que o Dieese produziu, que são os kits temáticos. E você teve uma certa participação, inclusive tem algo também sobre educação nesses kits. Você poderia falar um pouco sobre isso?
R – É, quando eu vim para a equipe de educação o projeto dos kits estavam começando, na verdade, começando, é, isto foi em 2001, provavelmente estava no início da discussão. Bem, aí tem dois movimentos diferentes. O Dieese ele se dispõe, ele tava numa transição importante, que era a transição do Pcda para a produção dos kits. Então, eu acho que são - do ponto de vista da instituição - é muito diferente. O Pcda, ele era uma experiência que você trazia o sujeito de fora: a Fundação Vanzolini, a USP, a Fundação Gerencial, enfim, trazia uma outra universidade e dava um conjunto de cursos. Era muito comum isto. Os kits eram uma tentativa de você criar um material produzido pela própria instituição, com o apoio de outros, mas enfim, produzido pela própria instituição, para fazer a atividade de formação. O Dieese teve a escola, a escola sindical do Dieese - talvez tenha sido uma das primeiras escolas sindicais do chamado Novo Sindicalismo, da nova etapa do movimento sindical - que vai ser de 84, ao final da década de 80, até a década de 90. Eu não estava no Dieese ainda e vou conhecer as pessoas muito tempo depois. Entre esse momento e os kits você tem um hiato do ponto de vista da produção intelectual e teórica do Dieese sobre educação. O Dieese não deixou de fazer educação, muito pelo contrário, continuou fazendo educação, mas deixou de discutir o que é educar, o que é educação. Então esse foi um período. Os kits, são uma oportunidade do Dieese de discutir isso. Na minha visão os kits têm duas grandes importâncias: a primeira importância, que é criar um conjunto temático amplo e criar teorias sobre aquilo, enfim, sistematizar um monte de conhecimento, criar outros, produzir outros conhecimentos sobre temas muito específicos: produtividade, terceirização, tributação, previdência, participação nos lucros, banco de horas, jornada e aí vai, todos os kits. Agora, o grande barato da coisa - que eu achei, para mim pelo menos foi muito forte - foi possibilitar que a instituição começasse novamente a refletir sobre o que é educar, sobre o que é educação, e que educação que nós queremos fazer, uma vez que a escolha que você faz também é uma escolha ideológica. Eu vinha dessas discussões por um outro caminho, que era o caminho da universidade, por um lado, e das discussões que eu fazia por dentro do sindicato sobre educação de adultos, em especial, sobre alfabetização e qualificação profissional. Fazia dentro do Dieese, porque a gente acabava dando os kits, mas nunca discutia isso. E os kits possibilitaram fazer isso, então, as oficinas de formação de formadores e a montagem da oficina de formação de multiplicadores ou de formadores que o Dieese faz, o chamado FM [Formação de Multiplicadores], ela possibilita que novamente a instituição se debruce sobre uma área de atuação importante e discuta isso do ponto de vista teórico. Isso foi talvez a principal contribuição. Eu diria que foi uma experiência rica e dolorida, porque do mesmo modo que você se emociona agora, você se emociona lá também, porque ela te obriga a olhar tudo o que você fez enquanto educador e se criticar e rever suas posições, porque é, você faz muito na imitação – isso é uma coisa muito comum na educação. Quando eu dei aula, com dezenove anos, eu dei aula como os meus professores me deram aula. Eu não tenho a menor dúvida sobre isso, você vai lá e dá aula, dar aula, inclusive, vai lá e vomita um monte de coisa pro moleque. Como você é mais novo e não gostava de um monte de coisas que o professor fazia para você, então você até tentava fazer uma coisa diferente pros meninos gostarem mais. Mas a ideia era essa, era para o menino gostar mais, não achar a aula tão chata. Era o conceito de aula cursinho: vamos fazer uma aula que seja legal para todos. Quando você vem para dentro da instituição você começa a fazer uma série de atividades, mas também não reflete sobre ela. Então você bota os grupos para conversar. Ah, legal, né? Os grupos vão lá conversar. Depois você pega tudo que eles conversaram e dá uma aula em cima. A lógica um pouco é essa. E você vai reproduzindo muito isso, você vai reproduzindo isso sem refletir, você vai fazendo. Por quê? Porque é assim que se faz, porque é assim que o Dieese faz. Quando você reflete sobre isso, muitas das razões pela qual você faz, você entende muitas das coisas que você faz, e que sobre a lógica do que você acredita você não deveria fazer, você percebe que você faz. Então essa é uma construção muito difícil, uma construção que questiona o teu lugar. E isso a gente fez, não posso dizer que foram todos os técnicos. A equipe, em especial, a equipe de educação que o Dieese tinha, na época, que estava fazendo essa discussão mais pesada, alguns técnicos participaram desse processo, mas nem todos que participaram da elaboração dos kits participaram do processo inteiro. Porque os kits tinham essa questão, você ter uma equipe técnica que vai produzir um material teórico, então nem sempre o sujeito que estava envolvido no material teórico se envolveu no material didático. Então, até se envolveu, mas do ponto de vista mais conceitual, não. Então você… Inclusive, esta é uma das discussões que estamos tendo hoje, tentar rever isso daí. Então, os kits proporcionaram isso, e proporcionaram você pensar sobre muitos assuntos, diversos, e sistematizar, organizar, escrever - que é uma outra coisa muito importante - você escreve, né? Um monte de coisas que você sabe que ninguém nunca escreveu, você vai e escreve, você é obrigado a escrever. Produz o texto, guarda o texto, o texto está lá. Ah, você tem uma grande mudança da equipe técnica do Dieese, entre final da década de 90, começo de 2000 e agora. Você vai ter muita produção técnica do Dieese guardada e produzida hoje, graças aos kits, você não teria se não tivesse os kits. E as pessoas não estão mais na instituição. Então os kits possibilitaram que aquele conhecimento que ela tinha fosse sistematizado, então, essa foi uma das coisas importantes dos kits. Então, aonde eu participei pesado, mais nominalmente. Eu participei muito forte da montagem do curso de formação de formadores, que era uma “perna” do projeto que produzia os kits, e que tinha intenção de trabalhar com formadores do movimento sindical, a concepção que nós tínhamos de educação, discutir com eles essa concepção, e ao mesmo tempo apresentar um material pedagógico, do qual tínhamos grandes controvérsias começando pelo nome. O nome Kit não é consensual da instituição, em especial da equipe, porque o kit ele vinha de uma outra ideia de educação, nós fazíamos, o kit já existia, o kit não é uma criação, não é nova. Na verdade, o conjunto de técnicos no Dieese que fazia cursos já tinha o seu material básico e dava sempre o mesmo kit, né: dava, pegava. Na instituição era conhecido mesmo como kit: “ah, pega o kit de negociação e vai dar o curso lá para o fulano.” “Ah, quem fez?” “Foi o ‘Japa’ que fez” “Então, conversa lá com o ‘Japa’, pega o kit lá com ele e leva”. Então, o kit vai virando um pouco isso, e era isso mesmo. Era um monte de tabelas, transparências, grades e cursos que a gente vai lá e aplica. Quando a gente vai fazer a discussão, você vai perceber que não é isso que você faz, isso é um mero instrumento de um curso que você organiza, que você monta, que você propõe e que você, no limite, constrói com o sujeito que está ali fazendo a formação com você, está ali fazendo o processo junto com você. Então essa é uma coisa que a gente fez. Ah, essa foi uma coisa importante. Então, a ideia era apresentar esse material para o conjunto de formadores que já fazem parte do movimento sindical hoje, que não são do Dieese. Então, o Dieese não necessariamente faria só a formação, então, ele estaria fazendo esta ponte desse produto para quem faz formação. Por fim, eu participo de maneira mais forte dentro
do kit de terceirização, eu coordeno o kit de terceirização, a gente faz a etapa toda do kit, acho que isso foi o mais importante. E as participações nos demais são diversas: desde produzir um texto, corrigir um texto a se arrumar uma grade, fazer um seminário piloto, e aí, enfim, uma série de coisas.
P/1 – Depois da sua participação nos kits, ou até paralela a ela, você teve um trabalho junto a uma subseção. Como foi essa experiência? Qual o papel do Dieese na subseção?
R – Então, eu já tinha trabalhado na subseção na construção civil, então, o papel é basicamente esse.
P/1 – Só que agora é um sindicato.
R – É, só que agora é um sindicato. Eu também vou para lá por uma questão muito objetiva ali, da qual as discussões, de novo não faz muito sentido, não tem uma explicação lógica para te falar. Existe uma grande oportunidade com a abertura dessa subseção...
P/1 – Qual sindicato?
R – Que é o Sindsep, que é o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de São Paulo. Qual a grande novidade dessa subseção? É uma gestão nova no governo, é a gestão da Marta. A Marta faz uma proposta de negociação, de criar um fórum de negociação com o movimento sindical no setor público, isso é muito novo, porque a negociação coletiva no setor público, ela não é regulamentada. Na verdade, há entendimentos jurídicos que, inclusive, é proibida. E há uma aposta dentro do governo, junto com o conjunto de sindicatos, de investir no processo de negociação. Então, é algo absolutamente novo, não que os sindicatos do setor público não negociassem, eles sempre negociaram, mas de você formalizar um processo de negociação no setor público, que é o quê? É sentar cotidianamente para discutir os problemas, enfim, escrever acordos, escrever regimentos, escrever normas, fazer o diálogo cotidiano com a instituição, com o governo. Essa era uma oportunidade muito especial para o Dieese, especial porque o Dieese tinha uma entrada, não diria pequena, mas uma entrada menor no setor público e esta era uma experiência nova, que a gente avaliava que tenderia a crescer, que tenderia a se disseminar em outras esferas do setor público. Me convidam para participar desse processo, dessa subseção, num primeiro momento eu reluto porque eu estaria saindo da equipe de educação, que é uma coisa que eu gosto muito de fazer. Dialogo um bocado sobre as possibilidades disso e aí eu vou pra lá. E aí é uma longa etapa, eu vou para lá no final de 2002 e fico até muito recentemente, fico até maio de 2006. Fico lá mais de quatro anos. Ah, e aí alterasse muito o meu trabalho, porque o trabalho do técnico, como eu te falei, na Federação era um, na supervisão era outro e na educação era outro. Na subseção o trabalho é muito focado. A tua relação com o dirigente é cotidiana, diária e em muitos casos, pessoal. Porque afinal de contas o sujeito confia em você, você está cotidianamente com ele e ele te pergunta coisas, você responde, você pergunta as coisas para ele, ele te responde, e você está, enfim, você está no cotidiano: você almoça com o sujeito, você vai negociar com ele, sai da negociação às duas horas da manhã, enfim, pega um táxi junto com ele. Enfim, a tua vida cotidiana é muito colada a dele. Isso é muito diferente, é muito forte, porque você vive a dinâmica da política sindical mais do que na Federação. E nesses casos você vive a dinâmica de uma contradição, que na minha visão é muito forte que é: a contradição entre um governo petista e um sindicato cutista, que é uma contradição difícil, pesada de lidar, com dificuldades. E apostando em um pressuposto novo, que era o pressuposto de que nós podemos negociar, nós podemos criar um espaço democrático dentro da administração pública que é o Estado brasileiro - é um Estado absolutamente autoritário e montado sob bases autoritárias, isso é, reconstruir o nosso marco da democracia construído em 88. Então você construir um espaço democrático de relação do trabalhador-governo dentro da administração pública, para a gente era um desafio muito grande, porque no setor público a tendência é o sujeito prefeito, ou governador, ou o presidente, ele se ver como o grande pai. Então, “eu dou o reajuste”, “eu dou o vale-alimentação”, “eu dou não sei o quê, eu dou aquilo”. Nunca é uma relação que os trabalhadores conquistaram isso, que é algo mais comum no setor privado, e no setor público não, porque como no setor público tudo é absolutamente legal pelo princípio da legalidade, nenhum ato dentro Estado pode ser feito sem um anteparo legal, sem uma lei, um decreto, uma portaria. E tudo, lei, decreto, portaria, sai com a assinatura do prefeito, então, há necessariamente essa relação. Era um desafio também porque tinha uma ideia de que só o sujeito que detém o poder abre mão dele, essa é uma tese que a gente trabalhava. E o que modificava nessa história? O setor público tinha, não bem uma tradição, mas é comum, uma lógica de trabalho com o movimento sindical, de que o apoiador, o sujeito próximo ao poder é beneficiado por ele. Então, a entidade sindical, a linha sindical que estivesse mais próxima do prefeito tinha as benesses de ser prefeito, de apoiar o prefeito e aí ganhar reajustes maiores, etc., conquistas maiores. Quando o sindicato, neste caso o Sindsep opta por entrar nesse projeto, ele opta por um projeto ambicioso, que é abrir mão da relação preferencial que eu tenho com a administração petista, afinal de contas você conhece o prefeito, você conhece o secretário, você conhece todo mundo na administração, então, você abre mão disso para formalizar o processo. Formalizar o processo significa abrir uma mesa de negociação com um outro lado que é indicado pela prefeitura, com o qual você vai negociar e com o qual você vai ter que sentar com outros pares seus, então, a mesa de negociação no setor público e na prefeitura de São Paulo era uma mesa de oito sindicatos diferentes e de tendências diferentes, dos quais só dois eram cutistas. Eu tinha dois sindicatos cutistas, um sindicato próximo ao PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira], outro sindicato próximo ao PFL [Partido da Frente Liberal], do ponto de vista partidário. Então, eu tinha sindicatos na mesa dos mais diversos. E só o ato destes sindicatos cutistas abrirem mão dessa lógica preferencial que historicamente construiu o setor público, possibilitava abrir a mesa de negociação. E eles optam por fazer isso, optam por fazer isso por acreditar que amanhã não seremos mais poder, o prefeito que será o novo prefeito pode não ser próximo a nós e nós queremos um instrumento para negociar com ele, independente de quem esteja lá na cadeira. E é nesse processo que nós vamos entrar de cabeça. O Dieese vai entrar sob duas pontas, nós vamos entrar na assessoria direta ao Sindsep, na ajuda ao processo de negociação e ajudá-los significa ajudá-los em várias coisas, desde as informações técnicas que é tradicional da assessoria que a gente tem, até ajudá-lo no processo de negociação, que para ele era algo muito novo, quer dizer, para um sindicato do setor privado é comum você sentar numa negociação e fazer uma ata de negociação, para os sindicatos do setor público isso não existia: ele sentava com o prefeito, despachava ali e um abraço e ficava no “fio do bigode”. Desde as coisas do culto - como a gente chama - do processual da negociação. E foi esse o nosso desafio, quer dizer, levar a experiência que o Dieese tinha em negociação, para o setor público, ajudar o sindicato a trazer uma experiência que vinha do setor privado para dentro do setor público e construir o novo, que é uma coisa que não existia. O Dieese entra nessa ponta, que é aonde eu vou. O Dieese também passa a ser o que a gente chamava de instância consultiva, que era quase uma instância mediadora em alguns momentos, que é quando os dois lados tinham processos de conflitos que não chegavam a termo, a instância consultiva era chamada. Nesse caso quem fazia parte era o Sérgio Mendonça. Eu brinco sempre que depois que ele aprendeu tão bem isso que depois foi para a mesa de negociação no governo Lula. Mas, [risos] era o que ele fazia e, como ele era o diretor técnico do Dieese, ele era a instância de consulta do Dieese, indicado pelos trabalhadores. Então, você tinha cada lado, indicava um conjunto de organizações que podiam fazer a mediação e essa consulta nesse processo. Então, o Dieese participa nessas duas pontas. E aí nós participamos nesse processo fazendo essa assessoria e ao mesmo tempo ajudando, e nesse caso era o Sérgio no processo de mediação. E aí o que a gente faz de importante nesse processo todo é poder organizar, sistematizar, ajudar. Então nós produzimos, a partir disso, um curso que não faz parte dos kits, mas ele está na linha dos, em que nós montamos o curso para gestores da administração pública e para dirigentes sindicais, sobre o que é negociar e o que é o processo de negociação em um estado democrático de direito. Então, nós montamos isso, passamos esse curso para, acho que, cem gestores e dirigentes sindicais ligados à Prefeitura de São Paulo. O que eu acho de bom é que a maior parte deles continuam, porque uma boa parte deles era funcionário de carreira, então eles continuam hoje na administração. E nós nos apropriamos de um conhecimento que nós não detínhamos, que é o conhecimento da negociação no setor público e da própria dinâmica do setor público, e aí é quando eu entro de cabeça na discussão do setor público. E aí é a discussão do setor público desde o ponto de vista estratégico, de concepção - que é Estado? Qual o papel do Estado? Por que? - até das coisas mais simples, de como é organizar um orçamento, como fazer uma emenda orçamentária, enfim, como assessorar o dirigente ali nas suas atividades mais corriqueiras, mais comuns.
P/1 – Como é que você vê a importância do Dieese para a sociedade?
R – Para a sociedade… Bem, existe um lado instrumental do Dieese para a sociedade que a gente começou a conversa: que é o lado de você vir enquanto um grande gerador de informações e dados. Esse seria o mais simples, o mais visível, dado o desemprego; existe um viés que é o viés de produção de conhecimento que possibilite a governos, sociedade, sindicatos tomar decisões, esse lado de produção de dados é muito forte. Você precisa de bons indicadores, você precisa de boas avaliações para poder fazer propostas de mudança, para direcionar caminhos, para avaliar programas, isso o Dieese faz, que é, como a gente chama, o “jornal Dieese” e imprensa, que cotidianamente você vai ver pelas mídias da imprensa, esse é um papel. O outro papel, na minha visão muito particular, é que o Dieese possibilita trazer à sociedade uma outra visão que normalmente é solapada do processo – eu digo que é muito pessoal porque eu venho acreditando muito nisso. Boa parte do conhecimento gerado, boa parte das informações mobilizadas são produzidas pelo lado empresarial, são produzidas pelo capital, estão sob a égide do capital. O Dieese possibilita produzir um conhecimento sob um outro ponto de vista, isso modifica o objeto – a forma com a qual você olha o seu objeto modifica muito o objeto, pelo menos eu acredito muito nisso – então essa talvez seja a grande, a maior contribuição: é ser o contraponto nessa disputa por uma hegemonia ideológica. Da qual eu diria que nós historicamente perdemos, mas historicamente nós somos soterrados e o nosso papel é continuar não sendo soterrados, então a gente continua ali. Eu acho que o Dieese tem um papel, aí numa discussão bem teórica, que é a concepção de intelectual orgânico do Gramsci, não intelectual enquanto – de novo – um intelectual tradicional que a gente conhece o conceito de intelectual, o cara da academia, mas no conceito do Gramsci, o intelectual é o sujeito que não necessariamente provém da academia – isso é importante – que homogeneíza um conhecimento de classe. O que significa homogeneizar um conhecimento de classe? Ele consegue trazer da produção da própria classe, da produção do próprio dirigente, que está lá na ponta, um conhecimento e torná-lo acessível a um outro dirigente que está na outra ponta, que não tem condições de gerá-lo, porque a circunstância histórica não lhe permite. Um exemplo clássico: você tem grandes sindicatos que avançaram na sua organização, avançaram no seu processo, avançaram na sua interferência na sociedade, enfim, e produzem conhecimento absolutamente a partir dessa realidade concreta deles. Essa realidade que está aqui em cima não necessariamente chega no sindicato do interior, no sindicato de uma categoria menor, numa categoria nova e o Dieese também possibilita para fazer essa ponte. Então é assim, eu digo que eu acredito muito nisso, nessa lógica de você homogeneizar um pouco o conhecimento de classe, quando você consegue fazer com isso. Além disso, você tenta, pelo menos você tenta, em alguns momentos consegue mais, em outros consegue menos, criar uma ponte entre o conhecimento sistematizado socialmente e o dirigente sindical que também em muitos casos é renegado. Aquele conhecimento que está na academia não lhe é acessível. Isso vem mudando muito, isso é bom. A maior parte dos dirigentes tem caminhado para a universidade, acho que isso é um grande avanço da educação brasileira e do próprio movimento sindical, mas até bem pouco tempo atrás, e eu diria que para uma boa parte dos dirigentes hoje, isso não é uma realidade; então, esse conhecimento que está na academia acaba ficando muito para lá. E aí você vai dizer assim: “isso de novo é para o dirigente”, “o que isso tem a ver com a sociedade como um todo?” É que é um lado, é um lado importante, não sei se é o mais importante, se é um dos importantes, mas o dirigente sindical com todas as suas críticas e possibilidades, seus defeitos e as suas vantagens, ele ainda é o único braço organizado da classe trabalhadora. Nós podemos encontrar outras possibilidades, desde associações de bairro e etc., mas do ponto de vista de organizado historicamente, que tem história, que tem uma organização, que tem sobrevivência política e econômica – isso é um dado significativo para a maior parte das organizações dos trabalhadores, o movimento sindical faz isso, e o Dieese ajuda isso.
(Fim do CD).
P/1 – O que você achou de contar um pouco dessa sua trajetória no Dieese para o projeto memória Dieese 50 anos?
R – Eu acho extremamente importante, porque é um momento especial da instituição se rever. Eu acho que quando ela começa a olhar para si, começa olhar para a sua história, ela começa a perceber a razão pela qual ela existe. E o Dieese vive ciclos, como qualquer empresa, ou como qualquer instituição. O ciclo que nós estamos vivendo hoje é um ciclo de grande renovação da própria instituição. Muitos técnicos mais antigos saíram, outros técnicos estão entrando e estão entrando muitos novos técnicos. Você poder ter a oportunidade de ter esse material guardado é extremamente importante para a instituição. Em vários momentos se olhar de novo e se marcar, até que ponto ela faz parte do processo de transformação, ela tem que mudar, mas também para ela poder ao mudar, não deixar de ser o que ela é. Então, isso é uma coisa que eu acho absolutamente interessante. Acho importante para a própria classe trabalhadora enquanto fenômeno que ela criou, essa instituição chamada Dieese. Porque esse é um grande problema nosso também. Você tem muito poucos registros, a história soterra, a história é a história dos vencedores, nunca é a história dos vencidos, ela soterra sempre os perdedores no processo. Não que eu ache que os trabalhadores já tenham perdido, mas historicamente a história do movimento sindical e a história da luta dos trabalhadores é uma história sempre soterrada que, quem quer estudar, vai ter muita dificuldade em acessar dados e informações. Vai ter, mas é sempre uma luta de diversas instituições, tem vários centros de memória, etc., que tentam fazer esse processo, dos próprios movimentos sindicais e etc, que é uma tradição que vem lá da década de 10, da década de 20, de você poder estar o tempo todo registrando essa história. Mas, ela não está na história comum, ela não está nos livros didáticos, ela não faz parte, não tem heróis. E essa é uma oportunidade de a gente poder ter isso guardado. Não sei o que faremos com isso depois, quem fará, o quê fará, mas eu acho que essa é a intenção.
P/1 – Muito obrigada.
R – Obrigado a vocês.Recolher