P/1 – Vanda, você pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Vanda Alves Rocha
P/1 – Você nasceu aonde e quando?
R – Eu nasci em Fortaleza no dia três de Novembro de 1953. Tô completando 60 anos.
P/1 – E seus pais, são da onde?
R – Meus pais, já falecidos, minha mãe é de Mulungu e meu pai é de Fortaleza.
P/1 – E você sabe o que seu pai fazia?
R – Meu pai ele era da Refesa. Ele trabalhava, era carpinteiro, ele trabalhava, era chefe de departamento de mecânica dos pessoal maquinista, tudinho, mas ele também trabalhava como carpinteiro.
P/1 – E sua mãe?
R – A minha mãe era dona de casa, batalhadora, lavando roupa, vivia lavando, mas era batalhadora, não era muito caseira, muito... não era muito... ficava só em casa mesmo, cuidando da casa.
P/1 – E você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Rapaz, isso foi meu engraçado. Minha mãe, ela morava, a mãe veio pra aqui pra Fortaleza como retirante. Minha mãe ela morava, tanto que não conseguiu nem um pedaço de terra, trabalhou como agricultora em Mulungu e não conseguiu. Aí veio embora com a família todinha, veio embora pra cá, foi que minha avó conseguiu arranjar uns padrinhos pra ela, pra cuidar dela, senão ia passar fome. Aí, como ela era muito querida, fazia tudo, aí lá papai ele morava em João cordeiro, os padrinhos dela, meu pai conheceu. Ia pra pracinha pra lá, conheceu ela na Aldeota, aí se casaram, casaram na Parangaba. Isso contando a história, né, ali naquela igreja, ele morava em Parangaba. Sei que eles se conheceram assim. Aí pronto, até hoje. Ela morreu agora esse ano, tá com, em Maio desse ano, morreu com 94 anos. Ele já morreu com 88.
P/1 – E eles casaram e vieram morar em Fortaleza? Como é que foi?
R – Eles casaram aqui em Fortaleza mesmo, ela veio embora de Mulungu porque pra não passar fome, da seca né, eles foram retirantes. A família todinha, as irmãs dela, a minha família tudo ficaram espalhada. A mãe dela teve que arranjar uns aí parentes que não podia...
P/1 – E aí em Fortaleza eles casaram e foram morar em que bairro?
R – Primeiro eles moravam lá em Jacarecanga. Passei a minha infância em Jacarecanga, depois ele conseguiu uma casa. Tem a casa dos ferroviários, em Carlito Pamplona, aí nós fomos morar lá.
P/1 – Como que era essa casa? Quantos irmãos vocês são?
R – Ah, a casa é tão engraçada. Olha, dizem que era terreno dos índios, a casa era com lenha e tudo, quando eu cresci. Eu fui pra lá morar com cinco anos, cortando lenha, fazendo fogo, a mamãe ensinou a gente a cozinhar. Graças a Deus, isso aí eu tenho dela, se virava, fiz comida. A gente não passou fome por causa dela, porque quando o papai, teve uma época aí que o papai era carpinteiro, aí foi uma história tão engraçada que a gente cresceu ouvindo isso aí. Meu pai foi preso político. Preso político porque ele não sei se foi os federal que madrugada carregaram ele, levaram ele, uns homens de preto, tudinho, por que ele não sei, porque ele era carpinteiro, ele falava com todo mundo. Aí tinha um líder sindical lá da Refesa, pediu pra ele fazer uns jazigos, umas coisas de madeira, aí ele teve que acertar, conversar com ele. Aí entregaram ele dizendo que ele tava conversando, era subversivo, tava conversando com um subversivo, naquela época da Revolução de 64. Aí a gente não passou fome. É porque eu ia contar esse história...
P/1 – E aí ele chegou a ser preso?
R – Ele chegou a ser preso. Aí foi preso, aí pra não passar fome, sabe como é casa de pobre? Não falta galinha no quintal, não falta farinha, carne de sol, carne pendurada. Aí a gente se virou com isso porque nem as mercearia, ninguém, papai era considerado como subversivo, ninguém ajudava. Os vizinhos, a gente era muito discriminado. Aí foi que minha mãe salvou a gente com cuscuz, milho, pisava o milho e fazia fubá. Mãe, tudo ela fazia coisa assim, que ela aprendeu mesmo no sertão. A gente não passou fome por causa dessa vivacidade da minha mãe.
P/1 – Quanto tempo ele ficou preso?
R – Não, ele ficou pouco tempo, e eu não fui atrás desse negócio. Papai é anistiado, né? Porque o papai, mesmo que o papai era vivo, dizia assim: “Não vai atrás”. Papai sofreu tanto, sofreu tortura, que ele disse que eu não fosse atrás. Ele não queria se lembrar, não queria, “Não, não vai atrás”, e fiu, tem até uma≥ você encontra uma carta, ele escrevendo pra ela pra procurar, se a gente passar fome, um determinado lugar, uma mercearia, pra gente pegar uns mantimentos, sabe? Mas aí eu não acho essa carta. Ele dizendo que tava preso, não sei o que. Ele foi preso assim, rapidamente, a gente não sabia nem por que ele foi preso. Quer dizer...
P/1 – Mas ele tinha uma atuação política?
R – Tinha não, ele era carpinteiro, ele era na dele, nunca teve. Foi preso inocentemente, torturaram inocentemente.
P/1 – Quanto tempo ele ficou preso?
R – Eu acho que, diz ele, eu não me lembro bem não, diz ele que não foi nem um mês, mas eu acho que foi, para mim parece que foi tanto tempo, porque a gente sentiu muita falta dele. Eu era pequena, cinco anos, a gente pra se lembrar assim. É porque minha mãe contava a história.
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras de infância?
R – Ah, meu Deus, era jogar pedra, aquelas pedras, brincar de carimbo, brincar de esconde-esconde. A infância, correr, brincar de pega-pega, não tinha esse negócio de violência. No dia que chegou a televisão foi a maior festa, televisão. A gente só podia assistir televisão depois que fizesse as tarefas do colégio, tomasse banho. Era um tempo muito bom a infância. Que saudade.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Foi engraçado, eu entrei já grande. Eu entrei, não sei, com mais de sete anos, oito anos, por aí, dez anos. Num coleginho público que tinha lá perto.
P/1 – E que lembranças você tem da escola? Lembra de professor?
R – Bom, lembro dos professores. É, tinha recreio. Agora, eu gostava da merenda escolar, adorava. Muito boa, diferente dessa de hoje, né? Os meninos tudo comendo xilita, comendo… né, comendo sanduiche, não tinha isso não. Quando não tinha merenda escolar, mamãe enrolava uma frutinha do pé, que a mamãe plantava muita fruta, a gente levava, a gente torcia pra hora da merenda. Mas o almoço da gente era só uma panela de feijão com farinha pra todo mundo.
P/1 – E você tinha assim algum desejo “Quando eu crescer eu quero fazer tal coisa, quero ser tal coisa”?
R – A primeira coisa que eu queria era ajeitar a casa assim, que a casa fosse grande, tivesse um fogão, que era fogão a lenha. Mas o sonho era uma casa, um carro, (riso). Até hoje eu não tenho, a casa, um carro.
P/1 – E ser alguma profissão, você tinha?
R – Ah, sempre eu gostei de correr, ser uma atleta assim, viajar pelo mundo afora mostrando o que eu sei. Porque sempre no colégio eu participava de atletismo. Mas meu pai nunca deixava eu viajar, papai tinha medo. Eu participava, ganhava, mas ficava por ali mesmo, nunca fui assim.
P/1 – Quando que você começou a correr?
R – Não, eu corria só nos colégios mesmo, mas não fui... Aqui nos correios que eu passei a correr, depois dos 40 anos é que eu fui participar do atletismo.
P/1 – Mas na escola você gostava disso já?
R – Gostava, mas nunca desenvolvi porque meu pai não deixava eu participar, não podia viajar, né, não podia, aí eu ficava por isso mesmo.
P/1 – Mas você já corria bastante?
R – Corria, mas depois de um certo tempo eu parei. Depois dos 40 anos, meus filhos já tava crescido mesmo, aí eu comecei a participar das corridas aqui dos Correios. Aí sempre tirava, passei mais de oito anos ganhando e tirando o primeiro lugar aqui nos Correios. Eu fui a primeira mulher a correr os dez quilômetros aqui dos Correios. Porque as mulheres aqui que ganhava, elas não se interessavam em correr dez quilômetros, nem viajar pra Brasília. Aí eu disse assim: “Peraí, mulher aqui que corria só cinco quilômetros, homem dez quilômetros e o dinheiro era menos da mulher, o do homem era mais, corria dez”. Aí eu fui. O primeiro ano ainda corri cinco quilômetros, ganhei. “Não, o próximo ano eu vou treinar junto com os homens e vou ganhar o mesmo tanto dos homens”. Foi um desafio, né, eu sei que uns ficavam assim sem acreditar que eu ia correr os dez quilômetros. Aí eu aceitei o desafio, disseram “Vanda, você vai correr os dez quilômetros? Tá aqui a premiação pra mulher igual do homem. Você vai correr os dez quilômetros”. Aí eu corri, ganhei e fui pra Brasília. Ainda fiquei entre os 15 classificados e aí depois comecei a participar de são Silvestre. Corri também umas oito São Silvestre e sempre ficava entre os dez colocados.
P/1 – Lá em São Paulo?
R – Em São Paulo. Corrida internacional. E sempre internacionalmente eu ficava entre as dez na faixa etária. Aí agora que eu tô tirando o terceiro lugar, eu tô cuidando da minha saúde, eu não tô mais ganhando o primeiro lugar. Assim, na empresa, pela empresa, que é aberto. Aí quem chegar primeiro, tem de 20,30, 40 anos, eu já quase 60, né?
P/1 – Com quantos anos você entrou pro Correios?
R – Eu entrei com 19 anos.
P/1 – Como que você ficou sabendo do concurso?
R – Ah minha filha, tão engraçado. Eu estudava no SENAC. Tudo eu tenho uma história pra contar. Eu estudava no SENAC, tava me preparando pra trabalhar em banco, trabalhar em empresas aí. Aí uma colega minha veio falar que tava fazendo um curso, auxiliar de tráfego. Aí foi que eu vi um cartaz que tinha, ia ter concurso pra operador e de máquina de escrever, que era de datilografia. Aí eu fui e me inscrevi. Aí fui fazer a prova, aí na prova eu tirei primeiro lugar. Era cem candidatos, tinha que passar quatro pra duas vagas. Eu tirei o primeiro lugar. Fiz tudo pra tirar primeiro lugar, aí foi que eu passei na prova, disse: “Não, você ainda não passou totalmente não. Você ainda tem que fazer o psicotécnico. Tem que pagar”, acho que era caro, nessa época é como se fosse R$ 300,00. Aí eu disse: “Puxa vida, é pago?”, aí ele disse: “Você venha hoje à tarde”. Eu fiz de manhã a prova, né?”, ele disse: “De tarde você vem”. Não, eu tinha passado, “Aí você tem que fazer o psicotécnico”. Aí eu fiquei de pegar o dinheiro. Isso foi de manhã, à tarde já era a prova. Aí eu pedi dinheiro pra minha mãe, a mamãe disse: “Olhe, não diga nada a seu pai, é escondido”, aí tirou o dinheiro todinho das economias que tinha no bolso. Ela tava lavando roupa, aí disse: “Ó, passe, não passe, você tem que devolver esse dinheiro”, eu disse: “Mãe, eu vou passar. A senhora vai ver”. Aí eu passei, aí ela ainda fez uma promessa sem me dizer nada. Fez uma promessa pra Nossa Senhora que o primeiro salário ia botar todinho na igreja, pra santa. Aí eu tirei primeiro lugar de novo no psicotécnico. Passei, aí entrei aqui como operadora de maquina de escrever, primeiro lugar.
P/1 – O que que fazia?
R – É você no começo você fazia, trabalhava assim, datilografava as contas, a parte financeira todinha. Eu trabalhava no setor de cadastro de lotação, mas a parte financeira, gráfica, essa coisa tinha que fazer. Como eu aprendi no SENAC, bota uma régua, bota uma caneta, faz uns gráficos. Antigamente era diferente, não tinha como hoje, tem o sistema, tem o computador. Aí eu fazia o sistema financeiro. Então eu ia datilografar. Aí depois trabalhava em fichário. Todo mundo que entrava nos Correios eu fazia o cadastro. Era um livrão assim. Quando eu entrei era como fosse uma mascote CLT, o prédio era totalmente diferente, era muito engraçada. Aí trabalho até hoje, né?
P/1 – E quando você começou a correr?
R – Eu comecei a correr, aí já depois, quando eu me separei. Eu tinha dois filhos, eu precisava de dinheiro. Eu vi que tinha dinheiro. A primeira vez que eu fui correr, eu treinava, eu trabalhava ali em frente a rodoviária, numa agência dos Correios, eu treinava ali bem cedo, antes de entrar no trabalho, na pracinha. Dizia: “Eu vou correr, vou correr”, eu tirei o segundo lugar.
P/1 – Por quê? Ganhava dinheiro? Como é que era?
R – É porque eu queria, tava precisando, que tem prêmio assim em dinheiro pros funcionários. É um incentivo pros funcionários do correio. Aí ainda tirei o segundo lugar. Aí quando foi nos outros anos eu passei a ganhar primeiro lugar. Mas já tava passando a correr dez quilômetros. Tava correndo cinco quilômetros, aí não me conformei: “Não, vou ganhar igual dos homens, por que eu vou ganhar menos?”
P/1 – Quanto que ganha? Ganha por prova? Como é que é? Ganha por mês?
R – Não, a prova é dez quilômetros. Aí eles fazem a premiação masculino e feminino.
P/1 – Mas você ganha por corrida?
R – Não, aí quem chegar primeiro, que o primeiro, segundo, terceiro, a premiação digamos, esse ano foi maior a premiação. Primeiro lugar dois mil, aí vai baixando. Segundo lugar mil e quinhentos, vai diminuindo, R$ 500,00. Aí eu sei que eu ganhei.
P/1 – Mas esses concursos do correio é só entre funcionários do Correios, que você corre, ou você corre com outros?
R – Não, essa corrida era premiação pros funcionários, mas tem a corrida de fora também, que a premiação é maior, três mil. Só sei que graças a Deus, esse ano tirei terceiro lugar ainda.
P/1 – O que que você sente? Você gosta de correr?
R – É porque eu gosto. Às vezes eu pego no final do expediente, aí eu vou à praia, ali na Praia de Iracema, dou umas carreirinhas, faço uns treinamentos, às vez vou nadas. Inclusive eu não só eu tirei o terceiro lugar na corrida, como eu tirei o primeiro lugar, na minha faixa etária, em natação. Aqui eu vou possivelmente, eu vá participar lá em Belém. Não sei, ainda vai chegar a resposta lá de Brasília. Se eu atingir o índice nacional, que se eu tiver atingido o índice, eu vou concorrer lá. Esse ano vai ser sediado em Belém do Pará e talvez eu vá esse ano pra Belém do Pará representar os Correios daqui do Ceará, me apresentar junto com os outros estados, a natação. Graças a Deus eu nado e corro, eu tô muito satisfeita, essa idade eu acredito que tem gente da minha idade que diz: “Ai, por que eu vou correr? Pra que que tu corre?”. É porque eu gosto, é bom, você desopila, descarrega tudinho na corrida.
P/1 – Qual que é o seu maior sonho, hoje?
R – Meu maior sonho? Rapaz, meu sonho é... Eu não penso nem tanto em mim. O sonho mesmo é tirar essas crianças da miséria, da fome. Às vezes você passa ali no centro, o governo não tá vendo isso? Não investe na pobreza. É gente alugando criança pra pedir esmola, é gente, eu digo , ah enche o saco. A gente pega um transporte coletivo, aí tá os homens pedindo dinheiro, pedindo esmola, a gente chama pra trabalhar, não vai. Mas sonho mesmo, eu não quero ficar rica não, quero ter o necessário pra sobreviver, cuidar dos meus filhos. Mas meu sonho mesmo é ver meus filhos realizados. Que tenho uma filha que já foi embora pro Exterior, trabalha por intercâmbio, filha mais velha, tem 27 anos. E tenho um filho que não sei, meu Deus, entrou numa banda aí de música, banda de pagode, mas dá preocupação porque não terminou os estudos, não posso obrigar. Queria que trabalhasse, que trabalhasse igual os outros, tivesse um emprego. Não quer. Meu sonho é assim, é ver meus filhos se dando bem na profissão e paz. Meu sonho é sei lá, eu queria assim, e tinha sonho, sabe, de correr afora aí, ser conhecida como atleta e passar nas corridas. Onde eu passasse, passasse uma mensagem assim de paz pras pessoas. Meu sonho é assim. Quer dizer, eu fui reconhecida aqui. Ganhei um troféu de mérito esportivo, que fui a funcionária que mais, teve o masculino e o feminino aqui, que mais ganhou troféu, que mais tirou o primeiro lugar, mas isso aí foi bom, ter reconhecimento da empresa. Mas eu queria assim, mostrar às pessoas que pra sair da violência, sei lá, tirar esses meninos de rua, da rua, mas eu não posso fazer, não sou Deus, posso fazer nada. Então só quero mostrar minhas experiências aí afora, mas correndo, né? Sei lá, e correndo de bicicleta, nadando, praticando, fazendo alguma coisa. Meu sonho é esse mesmo, sair, conhecer pelo menos... eu não consegui conhecer o mundo lá fora, pelo menos o Brasil por aí afora.
P/1 – Queria agradecer sua entrevista, super bonita. Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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