P/1 – Claudia, boa tarde. Primeiro eu gostaria de agradecer a tua presença aqui, de ter aceitado o nosso convite. E pra começar eu queria pedir pra você falar pra gente o seu nome completo, local e data do nascimento.
R – Claudia Dragonetti, nasci aqui em São Paulo mesmo, na capital, dia primeiro de maio de 1965.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Maurílio Dragonetti e Ivani Dragonetti.
P/1 – E dos seus avós?
R – Meus avós maternos, Alfredo ___ e minha avó Rosina ___. A minha avó nasceu na Sérvia e meu avô na Alemanha. Vieram pro Brasil e se conheceram aqui. E meus avós paternos, a minha avó se chamava Maria Antonia, ela casou pela segunda vez, então de Maria Antonia Dragonetti ela ficou Maria Antonio dos Santos Pereira. E o meu avô faleceu quando meu pai era criança, o nome dele era Antonio Dragonetti; italiano, veio criança pra São Paulo.
P/1 – E o que você sabe da origem da família?
R – A gente acha que o meu avô paterno veio clandestino. Eu fui procurar alguma coisa no Museu da Imigração, mas não achei. A família é muito numerosa, aquelas histórias bem comuns. Tem aquelas fotos enormes do meu bisavô com aquele monte de crianças, e tinha meu avô lá, criancinha. Mas documentos mesmo a gente não conseguiu resgatar nada. Ele foi morar em São João da Boa Vista. Ele era pintor, nós temos alguns quadros que a gente conseguiu recuperar, que ele fez. Mas na verdade ele pintava igrejas. Ele pintava também parede, mas ele tinha essa veia artística. Temos quadros de todo tipo, até pintado em Eucatex, não era Eucatex que chamava, mas tipo papelãozinho, restinho de caixote. Ele amava pintar. Tem pinturas de paisagem, tem um cristo muito bonito na pedra. E a notícia que a gente tem, que minha avó contava, é que ele adoeceu com 30 anos e dai saíram de São João da Boa Vista e vieram pra São Paulo em busca de tratamento. Mas ele faleceu aos 33, bem debilitado, cego. Isto foi muito marcante na vida do meu pai. Meu pai tinha só oito anos e teve que começar a trabalhar. Minha avó deixou a filha mais velha em São João com parentes, e veio morar em São Paulo com meu pai. E foi muito dura a vida. Meu pai contava – meu pai é falecido há seis meses – que ele tinha que vender gravata na rua. Começou assim. E minha avó também, começou a vender leite, fazia serviço de costura. Acaba sendo outras formas de vender; vender serviço. Por parte de mãe meu avô materno também veio num navio, bem sofrido, sem muito apoio aqui. E começou a trabalhar de operário na Nadir Figueiredo. E minha avó de empregada doméstica. Eles se conheceram, montaram uma lojinha na região do Ibirapuera. A primeira em Moema, a segunda na Avenida Ibirapuera. Minha mãe cresceu atrás do balcão, feito eu, ela e minha tia. E era uma loja muito parecida com a nossa; uma loja de louças, panelas e tudo. Chamava Casa Ivani, que é o nome da minha mãe. Minha mãe se casou, antes dela se casar foi trabalhar de secretária e conheceu meu pai. Meu pai era gerente comercial. Desta vida de menininho pobre, vendendo coisas na rua, ele foi trabalhar num laboratório homeopático, no balcão, vendendo remédio. Depois foi vender rádio no interior de São Paulo. O dono da Semp, hoje Semp-Toshiba gostou muito dele e colocou ele pra trabalhar dentro do escritório e ele se tornou diretor comercial. Mas ele queria ter o seu próprio negócio. Aí, casado já com minha mãe – conheceu minha mãe lá, ela foi ser secretária dele, eles se conheceram lá – eles compraram a loja que foi da cunhada da minha avó. Porque meu avô materno e o irmão dele eram operários e cada um montou uma loja para as esposas. Meu avô Alfredo, com a loja lá em Moema, que minha avó tomava conta; e o Bruno montou a loja na avenida Santo Amaro, que é esta loja que nós temos hoje, que a minha tia Helena tomava conta. Um casal que ficou ali, não tiveram filhos, mas adotaram alguns sobrinhos, algumas crianças. E era uma loja bem assim: minha tia no balcão e as menininhas. Tem gente que confunde e pensa que minha mãe era uma daquelas menininhas. E meu pai, sabendo que este tio Bruno... porque minha avó fechou a loja dela na Avenida Ibirapuera, mudou muito de característica, ela ficou doente, ela fechou e parou mesmo. Foi morar num sito. E a tia Helena pôs a loja à venda e meu pai comprou. Isto em 1965. Chamava Bazar Priscila, mas todo mundo conhecia com loja da dona Helena. A Vila Nova Conceição era completamente diferente do que é hoje; era cheia de chácaras. A minha tia avó, tia Helena, tinha um carisma muito especial. Ela promovia dentro da loja dela encontros entre moças que vinham do Nordeste – era o auge desta migração nordestina – com as donas das casas da Vila Nova - eram casas grandes, havia muitas chácaras lá – pra arrumar emprego. Fazia o encontro na nossa loja. Mas a loja tinha 50 metros quadrados, o Bazar Priscila. Meu pai comprou em 1965, nós fomos morar no fundo da loja. Quase todos os salões comerciais ali tinham esta característica, o salão na frente e moradia no fundo. Moradia bem simples também. Comprou e quis fazer uma loja de presentes, mais sofisticada. Porque nós tínhamos ali naquele corredor o Cesar Bertazzoni, a Gabriel Gonçalves. Isto foi no ano que eu nasci. Eu tinha dois meses quando eles abriram a loja já com o nome de Dragonetti presentes. E a gente foi morar lá no fundo. Minha irmã tinha dois aninhos. E não deu certo. Puseram brinquedos, presentes finos. E as pessoas estavam muito acostumadas com o carisma da minha tia. Então, foi um baque. Meu pai foi trabalhar fora outra vez e minha mãe ficou ali segurando as pontas. E modificando, adequando a loja ao público. Você não pode voltar: nunca ela ia ser uma tia Helena, mas aquele caminho estava equivocado. Então, foi procurando se adequar. Foi indo, as coisas foram melhorando. Eu tinha 14 anos e já comecei a ajudar no balcão. E hoje a gente tem quatro vezes o tamanho desta loja que nasceu em 1965.
P/1 – Mas antes de você falar da relação com a loja, vamos falar um pouco de você pequena: o que você se lembra daquela casa do fundo, como era o espaço, o que você gostava de fazer?
R – Eu quase trouxe uma foto. Era muito apertado. Era tão a nossa realidade porque a minha tia, irmã da minha mãe, também comprou uma lojinha. E meus primos irmãos também viviam essa relação de loja. Pra gente aquilo era muito comum – sabe uma coisa que você nem cogita pra pensar? Mas depois, já um pouco maior, que a gente ia à casa de amigas e tudo, e a gente achava muito estranho esta coisa de que pra entrar na nossa casa tinha que passar pela loja. Ao mesmo tempo que era engraçado, era estranho. Tinha coisa boa porque a nossa mãe estava sempre ali. Era uma mãe que trabalhava fora, mas que não trabalhava fora. Se a gente tinha uma dor de barriga a gente corria lá e ela estava lá (risos). A mãe estava sempre muito perto. Meus primos não tinham isto porque a casa deles era em frente à loja. Então eles reclamavam que eles não estavam tão perto. Imagine que a loja, quando eu era criança tinha brinquedo. A gente queria todos os brinquedos que chegavam na loja. A gente conhecia todos os brinquedos. Eu me lembro bem que na época de Natal a gente recebia aqueles pianinhos de madeira, que vocês acho que não conhecem, que existia. A loja sempre foi muito apertada, agora ela está menos, mas a característica dela era esta muvuca, esta coisa apertada. Então, a gente ficava tocando pianinho no natal. A gente ficava meio de decoração de Natal, mexendo com os brinquedos. A gente sabia explicar todos os brinquedos. A gente não ganhava todos, mas a gente podia abrir, conhecer e depois a gente punha de volta. Se a gente queria ir lá comprar a gente sabia explicar bem como era (risos). Eu lembro que a gente estava sempre enfiada na loja ajudando a atender. Tinha época que vendia coisa de Carnaval, a gente ajudava a ensacar confete. Vinha uns sacos de confete deste tamanho e a gente tinha que por em saquinhos pequenos. A gente sempre trabalhou; tudo era muito difícil. O dinheiro era curto. A lembrança que a gente tem é de sempre ver pai e mãe trabalhando, meu pai trabalhava fora, foi ser vendedor viajante. Ele viajava, passava a semana inteira fora. Quando chegava também ajudava na loja. No final de ano a loja ficava aberta até meia noite, eram outros tempos, completamente diferente, e a gente estava sempre ali, atrás do balcão trabalhando junto. Hoje a gente fala assim: é uma vida bem sacrificada, mas faz parte, foi assim.
P/1 – E você se lembra se seu pai chegava a contar historias destas viagens que ele fazia como vendedor viajante? O que ele vendia? Pra onde ele ia?
R – Era muito importante porque acabava contribuindo com a loja. Meu pai trabalhou muitos anos na porcelana Schmidt, a gente vendia porcelana também. Ele sempre conseguia alguma coisa. Tinha lotes de porcelana branca com pequenos defeitos; coisa que hoje não existe mais. Vinham aqueles caixotes de porcelana. Então, meu pai visitava lojas do mesmo tipo da nossa no interior de São Paulo. Ele sempre trazia alguma novidade do que ele via lá: um pacote de presentes diferente, uma exposição diferente. Tinha esta relação muito gostosa. Eu cheguei a viajar com ele, a minha irmã também viajou. A gente falava que a gente carregou pasta. A gente trabalhou junto com ele um pouco. Quando era férias ele levava e a gente visitava os clientes juntos, olhava a loja dos outros e via como ele trabalhava, como ele vendia. Foi uma escola para as duas. Mas a minha irmã foi trabalhar em banco uma época, ficou afastada, depois voltou. Mas eu acho que a gente aprendeu muito com esta convivência.
P/1 – E das brincadeiras. Do que vocês gostavam de brincar quando estavam juntas?
R – Imagina que no fundo da Avenida Santo Amaro, e a gente andava de bicicleta naquela avenida. Era completamente diferente do que é hoje. Uma das coisas que a gente mais adorava, que meu pai comprou, parecia um triciclo, mas ele tinha uma caixinha atrás de madeira, e ele reformou. E a gente saia vendendo geladinho nas oficinas da avenida. Sempre aprontando alguma coisa. A nossa brincadeira sempre foi trabalho, nenhuma das duas nunca foi boa de bola. Duas patinhas assim. A meninada se juntava na rua pra jogar queimada, jogar vôlei, nós éramos péssimas nisto. Nós estudávamos em escola pública, que ficava três quadras pra cima da loja. Alguém levava a gente a pé, a gente voltava a pé, e quando a gente não estava na escola a gente estava na loja. Ficava um pouco lá dentro assistindo televisão, mas a gente gostava de ficar por ali no balcão, mexendo na papelada da minha mãe, fuçando em coisas, brincando de banco imobiliário, brincando de dinheiro, brincando de loja. Tinha aquelas caixas registradoras de brinquedo. A gente gostava de brincar de contar dinheirinho de mentira. Era assim. Esta coisa bem parecida com o dia a dia dos pais era a nossa brincadeira.
P/1 – Você falou da escola. Conta a sua primeira lembrança da escola.
R – Quando a gente mudou pra lá o meu pai tinha um cargo na Semp, era outro padrão de vida. Quando meu pai casou com a minha mãe e minha irmã nasceu eles moravam numa casa na Mooca. Quando nós mudamos pra Vila Nova Conceição nós fomos pra uma escolinha particular. Quando as coisas ficaram difíceis eles precisaram colocar a gente nesta escola pública. Então, eu lembro bem, que marcou mais pra minha irmã do que pra mim, o choque que foi aquele escolão. A gente estava acostumada numa escola pequenininha, que a professora era a tia, de repente, na década de 70, você ia pra uma escola pública, todas as professoras eram velhas, pra nossa cabeça. Porque uma escola pública bem localizada todos os professores estavam em final de carreira. Porque escola é assim: você vai melhorando e vai vindo para os bairros mais centrais. Então, foi um choque pra mim, e muito mais pra minha irmã. Depois a gente foi se habituando. A escola pública naquela época era melhor do que hoje, infelizmente. E a gente foi se adaptando com tudo: com esta diversidade de colegas, a sala muito mais numerosa. E a gente se adaptou.
P/1 – Você se lembra de alguma matéria que você gostava mais?
R – Eu gostava de História. Sempre gostei muito de História. História era minha matéria favorita. Tinha uma professora de História que era um fenômeno, era uma coisa fora do comum. Eu me lembro das aulas dela até hoje. Isto no ensino fundamental, que a gente chamava de ginásio, na época. Quando eu era bem criança eu fiquei muitas vezes doente porque a casa era úmida. Eu lembro que tive muita amidalite, muita otite. Eu precisei ser operada das amídalas, depois tive uma nefrite. Então, esta idadezinha, da primeira à quarta série, eu faltava muito na escola, era complicado. Tinha uma professora que foi muito marcante, na terceira série, que se chamava dona Carmem, que eu lembro bem que a gente fazia a prece atribuída a São Francisco de Assis antes de começar a aula. Todos os dias. Isto ficou muito marcado porque achei isto muito bonito. E depois no ginásio teve esta professora de História que foi muito marcante. E nós fomos uma turma, interessante porque anteontem a turma da minha irmã se reuniu na loja, a gente tem um espaço gourmet lá e fizeram o encontro dos ex-alunos. E foi emocionante porque lá pelas três horas da manhã, depois que todo mundo estava bem, comendo bem, bebendo bem, um lembrou do hino da França que eles aprenderam. Tinham 25 cinqüentões cantando o hino da França. Quando chegou a minha vez já tinham tirado o francês da escola pública, só tinha o inglês. Mas nós éramos muito unidos, essa turma. Nós estávamos lembrando que quando chegou à oitava série, que todos iam sair daquela escola – que ela ia só até a oitava série, hoje nono ano – a gente resolveu fazer uma viagem pra Foz do Iguaçu e alguns não podiam pagar; escola pública tinha todo tipo de pessoa. Então, a gente promoveu gincana, promoveu festa da primavera, festa de não sei o quê, pra juntar dinheiro pra que todos pudessem ir. Só quem não quisesse ir mesmo. Então, eram cinco oitavas séries, cada uma com 30 e tantos alunos. Todo mundo foi fazer a viagem. Na época, fizemos um jornalzinho, chamava impacto, cada um escrevia alguma coisa. O pessoal se virava bem. O negócio do mimeografo (risos). Mas era gostoso. Foi muito bom. Uma época muito boa.
P/1 – O que na sua meninice você queria ser quando crescesse?
R –Professora. Sempre quis ser professora. Professora também é uma vendedora. Acho que quando a gente tem o veio das vendas a gente... O professor vende alguma coisa, então, fica tudo muito por ali. Eu cheguei a dar aulas um tempo. Mas empresa familiar te suga. É difícil você negar ajudar seu pai e sua mãe. Teve um momento nas nossas vidas que a minha irmã trabalhava no banco e eu me dividia: dava aulas e trabalhava na loja. E a gente vai olhando tudo, vai vendo o comércio e fala: poxa, tem esta sementinha aqui. A loja era pequena, tinha só 50 metros quadrados. Dá pra aproveitar. Aí eu e minha irmã decidimos assumir mesmo. E a gente trocou o que a gente pretendia fazer pra ficar no comércio. Foi bom.
P/1 – Como foi a continuação da sua formação? Você teve que mudar de escola depois da oitava série, onde você foi estudar?
R – Eu fui fazer o curso de magistério, porque eu sempre tive a vontade de ser professora. Naquela época, o curso de magistério equivalia ao ensino médio. Você tinha esta opção. Eu fiz ali perto, numa escola perto, mas já decidi fazer a noite. Logo que eu saí da escola pública eu fui pra um colégio de freiras próximo a Moema. E eu não me adaptei porque estava muito acostumada com a escola pública, que a gente tinha uma certa liberdade; que a gente fazia as coisas acontecerem. Então, a gente se dava muito bem com os pais que participavam da APM. Pra mim aquela escola mais tradicional foi um choque. Ai, eu fiquei este ano sem estudar. Pedi pra minha mãe que eu queria dar um tempo pra pensar e fiquei trabalhando na loja. Trabalhava o dia inteiro na loja. Tinha esta escola muito perto, uma escola que nem existe mais, estas escolas eram só técnico e supletivo que abriu o curso de magistério. Eu fui fazer o magistério a noite. Ficava na loja de dia e fazia o magistério a noite. Depois fazia o estágio e fui fazendo as duas coisas ao mesmo tempo. Trabalhei nesta mesma escola que me formei, trabalhei com crianças de segunda série. Era minha paixão. Prestei um concurso na prefeitura na época do Janio Quadros, entrei, fui lecionar numa escola no Campo Grande. Aí entrei na faculdade de pedagogia. Mas não fiz vestibular num monte de faculdade, fiz numa só. Entrei naquela e naquela eu fui. Porque era pra tudo ser muito perto porque eu nunca me imaginava abandonado a loja. Eu tinha uma preocupação com a minha mãe; e logo a minha avó adoeceu e veio morar conosco, sabia que a gente ia ter que cuidar dela. E não existia uma estrutura no nosso comércio de empregados. A gente fazia, a gente punha a mão na massa pra loja poder sobreviver. Nós pegamos uma fase muito difícil nos anos 80, que foi a construção do corredor da Santo Amaro. A gente passou por toda esta descaracterização da Santo Amaro e a obra levou muito tempo. E ninguém andava ali nem de carro nem a pé. Ficou um barro só. E o bairro todo ficou se desconstruindo também. Todas aquelas casas, as nossas freguesas antigas mudaram dali. E começaram a surgir aqueles prédios que tem hoje lá, só que até o bairro ficar habitado de novo leva um tempo. A loja ficou muito... você fala assim: vai fechar. Não tinha clientes. Só que como morávamos no fundo, estava todo mundo muito habituado com aquela situação, a gente foi mantendo o negócio. Era inviável pensar em contratar muitos funcionários. Era eu e minha mãe trabalhando e um funcionariozinho pra ajudar num serviço mais pesado. Mesmo dando aula eu sempre estava na loja fazendo o que era necessário.
P/1 – E o que precisa numa loja, num comércio, pra ser um bom vendedor, pra ter um bom atendimento?
R – Primeiro você tem que gostar do que está fazendo. Uma loja pra sobreviver hoje não pode mais ser aquele salãozinho com produtos esperando o cliente vir. Isto mudou completamente. O varejo mudou radicalmente. Hoje, se você quer comprar uma coisa você compra em qualquer lugar, até na sua casa, na internet. Então, a loja tem que ser mais do que isto. Antes tudo era diferente. Você botava um balcão, o cliente chegava lá pra comprar uma coisa. E parecia até que você estava fazendo favor em vender pra ele. Uma relação estranha. Hoje o cliente entra na sua loja, ele é a sua principal visita. E a mercadoria tem que estar bem oferecida pra ele, bem exposta, à mão dele. Eu me lembro quando a gente entrava na farmácia. Não era assim? O balcão e você chegava: quero isto, quero aquilo. Depois as próprias farmácias foram se modificando, você vai passando e vai pegando. Então, todo layout da loja teve que mudar, toda a exposição teve que mudar. A loja precisa do elemento humano, que é o vendedor, mas ela precisa de uma disposição nova. A mercadoria tem que estar muito bem exposta pra ela ser objeto de desejo daquele cliente. Este cuidado que antigamente não se tinha. Até loja de roupa era assim. Vocês não devem se lembrar, mas tinha um balcão e você pedia: quero a camiseta P, M ou G, a pessoa ia lá, buscava num lugar e apresentava pra você. Não era esta coisa de você poder ficar olhando nos cabides, hoje a loja tem que ser lúdica. Ela tem que ser atrativa pra você passear nela e ficar mexendo nas coisas e tudo. Acho que a primeira coisa que precisa é isto: a mercadoria estar bem exposta. Quem estiver por ali tem que conhecer o produto; ter bom argumento de venda. Por que você tem este copo, este e aquele? Pra que serve este? Pra que serve este? Pra que serve aquele? Tudo tem que ter uma explicaçãozinha junto; tem que ter um argumento de venda. Um vendedor que, por exemplo, na nossa loja, que é uma loja basicamente de cozinha e de objetos pra casa. A pessoa que é totalmente desencanada com casa e com cozinha não pode trabalhar lá (risos). Pra trabalhar lá a pessoa tem que gostar; tem que ser uma pessoa observadora. Uma pessoa que se importe se o copo é assim, se é um copo só de brinde. Quer dizer, tem que ser apaixonada por aquilo que ela vende pra poder ser um bom vendedor.
P/1 – Quando você falou do lúdico da loja. Você acha que teve alguma coisa nessa sua formação de pedagoga que te ajudou a ter um olhar como esse, ou que te deu ferramentas pra olhar a loja?
R – Quando a gente se forma como professora, principalmente quando a gente faz o curso de magistério, a gente trabalha com o nosso lado criativo. De alguma maneira isto ajuda, porque quando você tem um olhar mais criativo pras coisas você avalia melhor o produto. Uma xícara não é só uma xícara, você presta atenção nela: como é a alcinha, que é o design? Você pensa na pessoa que criou aquilo. É um olhar de quem teve oportunidade de estudar um pouco mais as ciências humanas. Eu acho que isso ajuda, sim. O curso de pedagogia ajuda também a entender o outro. Uma loja também, como a nossa, que é uma loja de rua, ela tem muito de atendimento, tem muito desta conversa. Ela não está ali só pra oferecer produto. Esta coisa gostosa da troca de experiências das amizades que a gente faz com os nossos clientes faz parte de uma formação mais humana. Que eu acho que o curso de pedagogia favorece isso. Você aprende a lidar com as crianças você vê as pessoas, todas têm um pouquinho de criança. É gostoso.
P/1 – Você também falou que as pessoas que estão lá pra ajudar na sua loja precisam ter este olhar, este cuidado. Como são as orientações para o funcionário? Vocês dão treinamento?
R – O treinamento é constante porque os produtos mudam muito, sempre aparece uma coisa nova. Hoje a gente conta muito com o apoio dos próprios parceiros para fazer este treinamento. Empresas grandes, ou empresas de porte médio sempre levam alguém, os próprios representantes sempre estão ali ajudando a fazer treinamento. Os nossos funcionários são antigos, acho que a funcionária mais nova ali deve ter três anos de casa. Tenho funcionário de dez anos, 20 anos. Então, nós somos uma família. Nós somos 20 e tantas pessoas muito comprometidas com aquilo. Todo mundo almoça a mesma comida, divide o mesmo espaço das refeições. Eles almoçam lá mesmo. Nós temos uma cozinheira que faz o almoço. A gente faz festas no final do ano. Sem hipocrisia mesmo, a gente forma uma grande família. Faz muito tempo que eu não entrevisto ninguém porque os funcionários são antigos mesmo, mas é claro que quando se propõe a trabalhar lá a gente sempre fala: você gosta de cozinhar? Você se interessa por isto? Porque se for aquela pessoa que fala “ai, Deus me Livre, odeio”, aí não serve. E todos ali têm um interesse. Uns mais e outros menos, mas todos têm interesse naquele tipo de produto. Aí vai de perfil. Tem funcionário que tem o perfil pra ficar mais atrás de máquina e têm outros que tem o perfil pra ficar no atendimento. Estes que são mais assim ficam na parte do computador, em outro tipo de serviço. Hoje tem serviço de vários... A gente fala “ah, ficou mais fácil, informatizou”, mas antes você pegava um menino, punha as coisas no malote e ele ficava na fila do banco. Hoje você faz as coisas pela internet. Mas para fazer as coisas pela internet você precisa de um profissional que tenha algum domínio de computador. Então, são outras necessidades, você acaba abrigando outros tipos de funcionários, não só aquele que vai lidar com o público, que vai vender. Você tem outras pessoas trabalhando nos bastidores da empresa, cuidando do site, da parte de assessoria de imprensa, do marketing, cuidando do financeiro. Agora os que ficam no chão de loja mesmo têm que ter esta característica: gostar de conversar; gostar de pessoas.
P/1 – Agora que você falou do processo de informatização, que mudou. Como foi este processo no caso de vocês, da Dragonetti? Como foi chegando este processo de informatização? O que ele mudou?
R – Isto foi bom, foi o momento que a minha irmã veio trabalhar conosco. Como ela trabalhava em banco ela tem uma outra característica; ela não é falante assim como eu. Então, ela veio e trouxe esta... foi um trabalho: primeiro você pegar tudo que estava a mão, naquelas pastas de plástico, e passar tudo pro computador, depois ir filtrando. Então, é um trabalho muito lento, um trabalho de 20 anos que não para nunca, porque a exigência... Sempre vem uma coisa diferente: uma hora é o cupom fiscal, agora a nota fiscal eletrônica. Nós acabamos de implantar um software novo, dia três, faz dez dias que ele está rodando. Então, as ferramentas você vai sempre buscando atualizar. A ferramenta hoje facilitou muito o trabalho. Então, eu falo assim: hoje... Até porque você não pode mais ser aquela loja que o cliente chega e “eu quero um abridor de lata”, ai você pegava três abridores e colocava em cima do balcão, “então vou levar este”. Hoje não é assim. Eu devo ter na loja uns 20 modelos de abridores de lata que fazem parte de outras coleções. Então, o abridor de latas combina com o espremedor de alho, que combina com o cortador de pizza, que faz parte desta linha que tem a grife x; e tem o outro que tem a grife y. Então, você vende hoje conceitos, marcas. Não vende mais só o abridor de latas; você vende um kit. O kit tem que estar todo exposto perto, convidativo. Então, demanda mais trabalho porque você tem que estar sempre antenado com os lançamentos e com esta exposição. A gente ganhou que a gente não tem mais tanto trabalho com cálculo, com fazer etiquetas a mão. Você tem uma ferramenta, que é o computador, que faz isto tudo pra você; que te apresenta o que vendeu, o que não vende mais. Antes tudo isso era na mão. Uma coisa compensou a outra. O trabalho hoje do comércio ficou mais criativo; ficou menos racional. Você não perde mais tanto tempo. Há 20 anos, na época da hiperinflação as nossas etiquetas eram feitas a mão. Nós ainda não estávamos informatizados. Tudo que chegava era calculado na maquininha – era meu pai que fazia – e você já tinha que imaginar quanto ia custar na semana seguinte. Porque nós tivemos neste país um período de 89% de inflação ao mês. E se você não reajustasse – porque as pessoas falavam “mas já está aí; você já pagou; você vende pelo preço e pronto”. Não, porque você não repõe. Você perde dinheiro porque você não pode vender tudo que tem na loja. A não ser que você queira fechar, aí você vende tudo que tem na loja. Você quer manter uma loja você tem que atualizar os preços, porque aquilo é seu estoque, seu patrimônio. Então, você vender o produto, você vai repor pra vender de novo, se você pagar o preço que você vendeu você não ganhou nada. Então, era obrigatório reajustar. E não é uma loja que nem um supermercado que podia pegar e botar aquele preço... O supermercado também ficava louco etiquetando tudo. Mas muitos botavam só o preço na gôndola. Outras lojas eu lembro que a gente ia, tinha um código e o vendedor pegava uma lista e ficava procurando o preço, e depois mandava o computador fazer outra lista. Mas nós sempre tivemos a característica de ter muitos itens. Nós chegamos a ter 30 mil itens na loja. Imagina se você vai procurar 30 mil itens numa lista! Então, ele fazia tudo na mão. Minha mãe fez uma época, eu fiz em outra: cortava a cartolina, punha “preço”; depois punha “promoção”; depois punha “com desconto”. A gente punha quatro preços na mesma plaquinha. E pegava uma tesourinha e ia cortando. Você imagina hoje? Isto é coisa de louco! Ninguém fazia, mas fazia. Só que você tinha quatro pessoas envolvidas nesta operação, que hoje não precisa mais. Essas pessoas precisam fazer outras coisas; precisam arrumar melhor a mercadoria. Foi trocando de trabalho. O trabalho hoje é mais criativo, menos escravizante. Ele é mais de pesquisa, de busca de produto novo.
P/1 – Voltando à questão das ferramentas, destas mudanças. O que você lembra de máquinas antigas? Como funcionava a registradora, como é hoje?
R – Eu me lembro daquela maquininha de cartão carbono, que você tinha ficar esfregando e o carbono escapava, não saía nada. Nossa! A gente fazia conta de somar naquela máquina de fita, com alavanquinha. Depois ficava ticando tudo. Você tinha que fazer nota fiscal à mão. Quando vinha uma compra grande dava até aquela preguiça. Quando era um cliente que não era profissional, que a gente atende muita empresa, punha lá utensílios diversos, punha o total e estava tudo bem. Mas “não, precisa discriminar”; então aquela nota grande! Dois carbonos. Você tinha que ficar ali, escrever coisa por coisa à mão, o nome das coisas: colher de sobremesa, referência tal, preço unitário; fazer a multiplicação. Era muita loucura. Hoje aperta o código e o computador faz. É fantástico. Não tem nem o que dizer, como facilitou. Também uma coisa: paga-se mais imposto porque quando você faz a nota à mão, acaba que uma coisinha baratinha você fala assim: “Depois eu faço”. Então, era uma prática comum não se fazer 100% de nota. Qualquer pessoa que teve comércio há 30 anos era comum. Ilegal, chegava no final do mês você queria bater o balanço você fazia uma nota geral de tudo. Nessas alguma coisa acabava escapando. Hoje, não, hoje é tudo muito certinho. Hoje, no nosso 100% e acho que dificilmente alguém hoje se arrisca. Então, qualquer coisa, uma coisa de dez centavos vai passar pelo caixa e vai sair um cuponzinho. Então, a gente paga mais imposto e paga mais custo. Porque você põe a comissão pro cartão...Todo mundo nesta operação... Acabou ficando mais cara porque tudo tem um papelzinho, quando imprime alguma coisa, tudo tem um custo. Antes não, no tempo da minha avó e dos comerciantes mais antigos enfiavam no bolso, faziam o troco no bolso. Não era? Hoje não. Hoje o caixa tem que bater todos os centavos. A operação ficou mais cara e o lucro ficou reduzido.
TROCA DE FITA
P/1 – Como foi que se deu esta transição dos produtos?
R – Eu era garota, mas me lembro que surgiu uma pessoa aqui em São Paulo que abriu uma rede de lojas de brinquedos que tinha um conceito. Isto era aquilo que eu estava falando de como o varejo teve que se adequar. Todo varejo teve que ficar com cara de supermercado, que todo mundo pudesse entrar e mexer em tudo. Da loja de roupa à loja de brinquedo. Eu me lembro desta pessoa que criou o conceito do supermercado do brinquedo, a loja chamava BB Brinquedos, ele abriu várias, em vários bairros. E a proposta dele era giro alto e (marcap?) baixo. E como eles eram uma rede isto inviabilizou lojas como a nossa, porque ele jogou o preço lá embaixo. Tinha um poder grande de compra por causa da quantidade. É o conceito hoje das PB Kids, das Hi Happy. Só que ele foi o pioneiro na década de 80, comecinho de 90, e aquele pouco brinquedo que a gente tinha a gente acabou liquidando, fazendo uma promoção e não tendo mais porque surgiram lojas especializadas em brinquedo e mudou toda a cultura. Você levava seu filho na loja pra ele escolher. Na época que meus pais colocaram brinquedo lá tudo era diferente. Dizia que a criança ia ganhar aquilo e os pais ficavam meio ano pagando aquela boneca. E a criança ficava muito feliz com aquela boneca. E ela ganhava só no Natal, ou no dia das crianças. O conceito de loja de brinquedo tipo supermercado fez com que o brinquedo fosse uma compra quase diária. Você sai da escola, passa e compra um brinquedo. Mudou muito. Dificilmente uma loja consegue fazer este mix. A gente sabe que tem concorrentes nossos que ainda deixam dois corredores com brinquedos, mas é outro público. Até por esta mudança da Santo Amaro, do bairro ter modificado, da loja ter ficado muito sacrificada com a poeira na época da obra, não dava pra ter brinquedo. A embalagem ia ficar horrível, entendeu? Nem os presentes finos que tinha. A loja tinha prata, tinha estanho, tinha coisa de latão, tinha cristal. Não cabia mais. Vieram os shoppings também. Quando meus pais abriram a loja não tinha shopping, nenhum deles. O shopping trouxe outra ideia. Vieram as listas de presente. Lembro-me quando casei, eu casei em 1983, eu achava vergonhoso fazer lista de presente. Achava feio, achava falta de educação. “Eu fazer uma lista? Imagina. Deixa as pessoas darem o que querem dar”. Era feio! Já em 1986, quando a minha irmã casou, ela fez a lista de presente. Fez na GG, na Gabriel Gonçalves, porque a gente já não tinha muitos presentes. Hoje quem não faz lista de presente? Todo mundo faz. É comum, mas não era assim. E na lista de presentes, você tem que ter uma loja muito na área de presentes. E a nossa loja já não estava com este perfil, as instalações estavam feias. Isto lá atrás, hoje ela já até recuperou este mercado outra vez. Mas por tudo, pela obra, pela poeira que estava na Santo Amaro, não tinha condições. Então, a nossa loja ficou voltada para o institucional. A gente tinha equipamento pesado de cozinha: panela grande, utensílio grande, para restaurante, e muita porcelana branca, que é uma cosia que hotel e restaurante usam demais. E a própria mudança do bairro trouxe muitos restaurantes pro bairro. Então, os restaurantes falavam: em vez de ir ao Centro, buscar este panelão deste tamanho – que você não encontra no supermercado, só encontrava no Centro – então vinham à Dragonetti. E foi assim que a gente começou a fazer amizades e conhecer este mundo dos restaurantes, dos chefes de cozinha. Entender um pouco a necessidade deles e ir atrás de produtos que atendessem este público, o público de restaurante. E assim a gente ficou uns dez anos. Muito firme neste segmento de restaurantes. Como tudo na vida vem os concorrentes. “Ah, tem uma loja na Santo Amaro. Não vai na Rua Paula Souza?. Então também vou montar uma”. (risos). Aí um monta uma três quadras abaixo da sua, outro monta outra. Agora tem que procurar outra coisa. Tem espaço pra todo mundo. Não é porque outra loja perto da sua que você vai perder automaticamente a tua clientela. Mas dependendo do potencial deste concorrente que vem, se ele é um concorrente que tem várias lojas e tudo, ele também tem um poder de compra maior que o meu que sou uma pequena, de uma loja só. Então, a gente vai fugindo daquelas coisas de briga e vai tentando ter produtos diferenciados. E eu falo que a gente já atende os restaurantes menores, os bistrozinhos, aqueles que buscam uma coisa diferenciada. Não os restaurantes que também são atendidos hoje diretamente pelas fábricas. Porque as fábricas também, até pela necessidade de combater este monte de coisa chinesa, e tudo, elas buscam alternativas. Elas também criam dentro do departamento comercial delas uma área que vai atender direto aos restaurantes. A gente vai sempre desviando, que nem labirinto, vai desviando da concorrência pra se manter.
P/1 – Como que, falando dos produtos e de todas estas mudanças, como funciona a questão de estoque, de fornecedor? Onde vocês iam buscar antes os produtos?
R – Quando a gente foi enxugando o número, não o número de itens, mas o tipo de item: tirou os presentes finos, tirou brinquedo, ficou muito voltado mais para o institucional. Até aumentou o número de itens porque você pega, por exemplo, uma xicrinha de café e existem 20 modelos de xicrinha de café; talher... se você quer ser uma loja disto o seu cliente não pode chegar lá e falar: “Tem xícara de café?”. Têm umas quatro xícaras ele fala: “Só isso?”. Tudo vai fazendo que você amplie o número de itens. Você diminui o mix, tirou brinquedo, tirou não sei o quê, mas o número de itens vai crescendo. Daí a gente buscava sempre os parceiros antigos. Então, a mesma porcelana Schmidt, que meu pai trabalhou, que ele vendia o aparelho de jantar, decorado, fino, para o presente de casamento, é a porcelana que ele vende pra este outro cliente também. E assim o talher e as coisas. Na época que o Collor abriu a importação deu aquela remexida. Você falava: “Nossa, como vai ser agora?”. Porque antes era tudo muito básico. Aquela história do espremedor de alho: você tinha três modelos do espremedor de alho, que você punha assim e o cliente nem fazia questão. Porque ele ia ficar dentro da gaveta, ninguém ia mostrar. De repente o utensílio também se tornou quase um objeto de status. Sabe? Porque as cozinhas tomaram um lugar mais nobre dentro da casa. Tem um texto no meu caderno de receitas que eu me lembro disto. Em 80, quando você ia ver uma planta de apartamento a cozinha era um corredor. A gente tinha aquela coisa assim: quanto menor, melhor. Ninguém queria entrar na cozinha. Naquele momento a moça que ia casar dizia: “eu nem sei fritar um ovo”. Eu achava o máximo também ela não saber fritar um ovo. Porque era meio feio cozinhar. Cozinhar era para a “nona”, pra aquela mulher... E hoje não, hoje quando você vai vender um apartamento você tem que ter espaço gourmet, varanda gourmet. Cozinhar hoje é bacana. Receber os amigos na... É o resgate do antigo, né? Receber os amigos na cozinha é o máximo hoje. Todo mundo quer ter uma cozinha pra receber os amigos. E antes não, ninguém ligava. Do mesmo jeito que a cozinha ganhou este espaço nobre dentro da casa os utensílios também. A panela tem que ser bonita. Se estiver preparando um prato e pegar um espremedor de alho da feira, aquele bem feio, “o que é isto? que horror!”. Então, tem que ser um espremedor de alho bacana. Eu lembro a primeira campanha da Tramontina pra tentar fazer frente aos importados, porque lá fora isto já estava acontecendo. As pessoas viajavam e enlouqueciam com os utensílios que achavam lá fora. Entrava numa loja tipo Willians Sonoma era o paraíso. E aqui aquela coisa muito... Os meus clientes falavam: “Não é possível, o Brasil está muito atrasado. Porque lá fora você já tem o abridor de latas que abre na lateral. Que já dobra e depois você pega aquela tampinha e coloca de volta na lata. Você já tem o espremedor de alho que vira ao contrário e limpa os furinhos, este tem que pegar o palito de dentes”. Então, vinha o cliente e falava assim: “Este escorredor de pratos é horrível. Minha filha mora nos Estados Unidos tem escorredor de pratos que tem a bandeja que a água cai dentro da cuba da pia”. Umas coisas que a gente falava assim: “Mas isso existe?”. Pra nós era uma coisa que a gente achava que não existia. E hoje a gente já tem tudo aqui no Brasil. E as indústrias tiveram que correr atrás disto. Eu estava falando que me lembro da primeira campanha que a Tramontina fez no cinema. Fui assistir a um filme no cinema e de repente na telona uma propaganda da Tramontina. E era bem o espremedor de alho. Eu falei: “Nossa, acordaram!”. (risos) E aí vem com tendência de cor. De repente o cabo preto é o máximo, aí o cabo preto não é mais; é o branco. Depois é o vermelho, depois o laranja, agora é o púrpura. E ela está acompanhando uma tendência quase que nem roupa. E a pessoa troca. “Ah, ta feio, está velho”. Dá pra alguém e põe um novo. Mudou muito. Na época que o Collor entrou ficou pulverizado, tudo que aparecia de importado a gente colocava. Depois a gente falou: “Não, espera, isto vai virar uma...”. Aí vieram a lojas de R$1,99 e os produtos de baixa qualidade. Todo mundo começou a copiar as coisas bacanas, alemãs e tal, e fazer coisas ruins. Com cara bonita, mas que você ia usar e era ruim. Aí todo mundo já entendeu que isto também não servia mais. E a nossa loja ficou na dúvida. Você fica no muro: “e agora? Vou pro R$1,99 ou vou pro sofisticado?” Nós estamos na Santo Amaro, não estamos nos shoppings. Surgiram as Spicys, as Suxxars, as Raul’s, todas estas surgiram ai nesta época, final de 80, 90. Era chique ter loja de utensílios de cozinha. Porque antes não tinha loja de utensílios de cozinha. Você comprava na feira, no supermercado, ou comprava na Dragonetti. Antes não tinha. Porque não era glamour, não precisava ter. Imagina uma loja de panela! “Ah, é panela? Qualquer uma!”. Na lista de casamento mesmo você via tudo: faqueiro, prata, mas a panela! Qualquer uma. De repente a panela ganhou status. A gente tinha na loja um corredor de quatro metros com panelas. Hoje, a gente tem um salão de 60 metros quadrados só de panela. Muita panela, de tudo quanto é tipo e modelo. Porque surgiram. E a gente fez, analisou, ficou em cima do muro, pra que lado vai. Esta foi a decisão mais difícil da nossa família. Os quatro, eu, minha irmã, meu pai e minha mãe a entrar num consenso. Pra onde você quer ir? Quem você quer alcançar? Quem é seu público? Tudo bem, você está na Santo Amaro, passa muita gente, então, vamos botar um caixa lá na frente, um monte de cestas, uma loja tipo 25 de março. Dá? É a nossa cara? Ai gente decidiu ir pro outro lado. A gente tem o produto popular, mas de boa qualidade. É popular porque tem preço bom. Eu tenho abridor de latas de um real, se você quiser, e tenho de cem reais. Mas este de um real é bom, ele tem marca. Então, a gente definiu que a gente ia estreitar os parceiros. Então, a nossa loja já há quatro anos faz um serviço de arrumar o espaço por marca. Foi uma decisão assim. Você entra em uma farmácia hoje – eu sempre gosto do exemplo da farmácia – você entra na farmácia você tem lá o cornerzinho da Vichy, da Nitrodima, da L´Oreal, da Nívea. A gente decidiu seguir este caminho. Se você entra na Dragonetti você tem o espaço da Silit, então, você vai encontrar a Silit arrumada, no expositor; como você encontra em qualquer outra loja de outro país. A gente criou um espaço Bialetti, que é outra marca famosa no mundo inteiro. E ali você vai ter o espaço Bialetti. O que existir de Bialetti no Brasil tem ali. Então, é conceito. Nós temos a nossa marca que é a Dragonetti, mas a gente vende marcas. A gente tem o espaço Tramontina, espaço Bialetti. Então, a gente valoriza a marca, valoriza o logo, valoriza a embalagem do nosso parceiro. Porque aí você muda a relação. Não é só uma pessoa que vai me vender hoje e depois se ele quiser vender de novo pra mim e fizer um super preço eu vou pensar se eu vou comprar deles. Não, eu tenho parceiros. Eu tenho parceiros que se eles lançam produtos, vamos colocar. Então, a gente troca. Eu sou um ponto de venda dos meus parceiros. E pra poder fazer isto bem feito você evita muita competição dentro do seu espaço. Senão começa a ficar inviável. É claro que você tem marcas concorrentes, mas concorrentes leais; concorrentes que também se vêem como parceiros, que tem bom relacionamento. Aquele concorrente que não foi muito ético com aquele que é nosso parceiro, não entra. Você tem duas boas marcas de copo de vidro, duas boas marcas de copos de cristal. E assim a gente vai definindo quem tem os espaços lá dentro. E são 46 anos. Também existe uma relação afetiva com muitos parceiros. Existe uma história que caminhou junto. Eu gosto muito da Tramontina, eu tenho um ótimo relacionamento com o seu Clóvis, de afeto, de carinho. Isto começou lá atrás quando pra vender uma faca Tramontina você tinha que fazer discurso porque a pessoa só queria faca da outra marca. Pra vender um talher dele... Entendeu? Então, a gente acompanhou este começo deles. Hoje eles são uma potencia, mas não era assim há 30 anos. A gente acompanhou esse crescimento, assim como outras marcas que são parceiras. É gostoso porque muitos ali cresceram juntos. Hoje a gente tem quatro vezes o tamanho que a gente tinha. De 2000 pra cá a gente já é três vezes maior. Então, em 10 anos a gente triplicou. E outros também juntos com a gente. Outras importadoras, outros parceiros. Isto é gratificante.
P/1 – Como veio esta decisão de crescer e pra que espaço vocês foram? Como foi este processo de reforma?
R – A primeira reforma foi imposta porque o prédio era gêmeo e era alugado. E aí quando o proprietário pos a venda ele pôs os dois: ou comprava um ou não comprava nenhum. Meus pais ainda moravam lá. Hoje minha mãe ainda mora no fundo da loja, ela saiu, reformou, construiu uma casinha lá no fundo. Foi diferente. Daí a loja, nesta primeira reforma de 2000 que ela dobrou de tamanho, foi esta imposição: os sai ou faz isto. Daí fez. Como meus pais voltaram a morar no fundo, quer dizer, ela era uma linguicinha assim. Ela tinha um salão comercial e a loja foi invadindo a casa. Quando decidimos demolir toda a casa, que foi a casa que eu cresci, que estava muito ruim, e fazer uma nova, acabou que não ampliamos a loja de fato. Só inverteu de posição, em vez de ficar assim, ela ficou deste jeito. Então, não teve o aumento nas vendas que era necessário. Porque tinha muito produto e estava mal exposto. Então vamos, a avenida toda foi passando por aquela mudança, muitas lojas fecharam. Do lado estava meio que abandonado. A gente foi fazendo acordos e fazendo estas mudanças. Foi pegando as lojinhas do lado e fazendo as adequações sempre com este espírito de não virar um lojão, de continuar tendo as salinhas. Então, se você quiser ver porcelana branca você vai entrar numa sala, que tem hoje 21 metros quadrados, e lá só tem louça. Parece que você está numa lojinha de louça. Você quer ver vidro, você fica numa salinha que só tem vidro. Pra não perder um pouco desta coisa da lojinha. E foi surgindo. Hoje a gente paga imposto na frente, como bebidas e outras coisas. Antigamente pagava ICMS depois que vendia, hoje a gente paga na compra. Há dois anos entrou esta lei. A substituição tributaria no nosso segmento aqui em São Paulo. Então o estoque ficou mais caro. Você paga na frente o imposto, seu estoque já está com imposto pago. Todo mundo reduziu o estoque, que eu saiba, e nós também. Nós tínhamos de estoque pra dois anos. Era cultura. “Ah, isto aqui é bacana”, você já comprava. Ficava lá. Entendeu? Também na época da inflação você ganhava dinheiro com estoque. Tudo mudou. Mudou esta coisa porque o produto fica desatualizado, porque tem lançamento todo ano. Muda cor, muda tendência, muda embalagem. Então o estoque hoje não é um bom negócio. Hoje é melhor você ter um estoque pra um mês e meio, dois, no máximo, do seu giro. Pra ele estar sempre atualizado. Só que pra quem tem um comércio há 46 anos, mudar esta cultura é um pouco difícil. E também tirar aquilo que ficou lá, você tem que ir aos poucos. Aos poucos fomos reduzindo o nosso estoque e, onde já existíamos, mas como depósito, nós fomos transformando em área de venda. Então por isto que a loja nestes dois últimos anos cresceu, na verdade aqueles lugares eram ocupados já, mas como estoque. A gente só mudou a disposição das coisas. É mais trabalhoso porque tem que estar comprando mais vezes, mas é melhor pra todo mundo.
P/1 – E falando deste espaço da loja hoje, com todas estas mudanças e características, qual o cantinho de lá que você mais gosta?
R – Agora é este nosso espaço gourmet, que a gente até dois meses atrás ele ainda estava misturado; a gente tinha a louça junto com o espaço gourmet. Há dois meses a gente conseguiu fazer uma sala só pra louça, e neste espaço gourmet não é um espaço de produtos de alto giro. Ali a gente tem os eletros-portáteis, que também são eletros-portáteis de marca top. Tem livros de culinária e tem uma exposição de coifas, cooktops e fornos. Mas ali todo sábado tem uma chefe de cozinha fazendo alguma coisa, ali a gente toma café, ali parece que a gente está na cozinha da casa. A cozinha é o espaço mais gostoso da loja, mesmo.
P/1 – Como foi a ideia de implantar este espaço. Por que ele surgiu?
R – Esta tendência das lojas de utensílios domésticos de colocar um fogão e alguém cozinhando, eu acho que pioneiro aqui em São Paulo foi o João Batista, quando ele era dono da Suxxar antes da Suxxar virar Espaço Santa Helena. Acho que ele foi o primeiro a colocar ali. A Spicy da Gabriel tem um chefe lá. Você vai às feiras de utensílios, os stands que vendem utensílios tem um chefe cozinhando. Você começa a observar isto, você “não está dando pra não ter mais”. Só que nós éramos muito apertados. A gente falava assim: “Aonde nós vamos por?”. Não tinha espaço. A ideia surge porque seus concorrentes começam a fazer. Isto não adianta “ai, eu fui o primeiro”. Eu não sei quem foi o primeiro aqui no Brasil, mas certamente quem pôs aqui viu lá fora. E nas feiras isto já existia. Acho que todo mundo copia as boas ideias de todo mundo. A questão é como você faz. Qual é a essência? De que jeito você vai arrumar isto? Essa cozinha vai ficar no meio com todo mundo passando? Ela vai ficar mais reservada? Que jeito a gente faz? E a gente foi discutindo muito em família. Uma cosia muito de feeling, da nossa personalidade, do nosso jeito de ser. E a ideia foi se formatando. Tanto que ela estava de um jeito e há dois meses ela já está de outro. A gente vai adaptando conforme a gente sente a reação do público. Eu acho que o mais importante pro comerciante é ele não perder de vista estar na loja. Porque se ele não está ali, se ele fica só no escritório, ele perde um pouco desta possibilidade de entender como seu cliente está reagindo. É a reação do cliente que faz você se aprimorar, se modificar. No fim quem dita as regras é o cliente, o comentário dele. Tem coisas que são muito engraçadas: um dia.eu precisava mudar umas coisas e peguei as panelas de pressão – elas estavam numa parede, em prateleiras, uma do lado da outra, uns 25 modelos de panela de pressão. Um dia eu falei assim: esta parede só com panela de pressão não precisa. Peguei umas torres assim e coloquei as mesmas 20 e tantas panelas de pressão, mas assim, uma em cima da outra, numas torrezinhas. Estou por ali e escuto o cliente falar assim: “Não tem mais panela de pressão na loja?”. “Não, tem, ta aqui”. “Nossa, mas antes você tinha uma parede com panelas de pressão”. “São as mesmas”. Volta pra parede. (risos). A gente aprende com os comentários dos clientes. É assim que funciona, você vai observando. A gente muda muito as coisas de lugar lá, até porque é gostoso. Você muda e cai a venda daquele produto. Aí vai lá, não ficou bom, muda de novo. E vai adaptando. As ideias vão surgindo assim. A setorização por marca pra mim foi muito marcante quando eu tive com uma pessoa da Alemanha que veio fazer um treinamento sobre a panela Silit, que é uma panela alemã e a preocupação dele de mostrar pra gente as fotos de como esta marca quer que o produto fique em todos os pontos de venda foi o que chamou a minha atenção. Identificar o produto na exposição é o que este fabricante quer e é o que todos deveriam querer, porque cria identidade visual do produto. E aí a gente começou a fazer isto, sugerir até para os nossos parceiros brasileiros: “Vamos fazer um móvel com cara da sua marca. Vamos criar esta identidade”. E eu sempre digo pra eles: “Não estou falando pra você fazer para a minha loja, gostaria que você fizesse uma coisa que você padronizasse e levasse pra outras também”. “Nossa, por quê? Não basta fazer pra sua?”. “Você pode fazer só pra minha, mas eu estou te sugerindo que se você fizer, nem que seja uma coisa simples, tipo Elma Chips, em todo lugar que você olha, a Elma Chips expõe do mesmo jeito”. Porque isto dá confiança em quem está adquirindo o produto daquela marca. Ele fala assim: “Se aqui está identificado deste jeito é porque o preço é bom; se eu tiver algum problema com o produto vou poder voltar aqui porque esta loja responde por esta marca”. Surgiu assim, desta observação.
P/1 – Claudia, com toda esta nossa conversa você foi falando do cliente, um pouquinho de como ele mudou. Como a Dragonetti faz para atraí-los? E qual o perfil deles hoje? Porque eram os grande restaurantes e agora passou pra...
R – Os meus chefes a gente continua recebendo, a gente tem muita amizade. Numa daquelas fotos estou com o Alan, que foi o primeiro chefe, que daí trouxe outros. A nossa festa de 45 anos estava o Ravióli, estava o Bassoleil. Existe uma coisa de carinho, até porque a loja é familiar; se você for lá estou eu, está minha irmã, minha mãe, até pouco tempo estava o meu pai. Tem este aspecto de parece que estou no interior, que eu conheço. Não tem aquela coisa fria, plástica. Estes clientes continuam. Eles são ainda meus clientes, eles indicam a loja pra família deles, para os clientes dele. Então, meu público hoje é pequeno restaurante, é o gourmet, é o aluno de gastronomia; é muito forte. Porque os professores também indicam a loja. A gente não pode achar: “Ah, já tenho todos os clientes do mundo, não preciso fazer mais nada”. A gente procura ficar na mídia, sem muito investimento, porque a gente não tem pra fazer anúncios caríssimos, mas a gente procura ter um bom relacionamento com produtoras de objeto, que pegam produtos emprestados. Então, tem aquela mídia espontânea. Sempre sai alguma coisinha nossa desta forma. Fazemos parceria com alguns fornecedores, fazemos anúncios juntos, eles bancam uma parte e a banca outra. E a gente procura contar muito com este boca a boca. O cliente que vai lá e gosta bastante conta pra outro, e assim a gente vai indo.
P/1 – Quem vai mais comprar as coisas de cozinha são as mulheres? São mais os homens?
R – Hoje está bem dividido. O cliente masculino é um cliente que vem muito aos sábados. Há famílias inteiras que vêm, cozinheiras, governantas. É muito dividido, não sei dizer pra você quem é mais. Está bem dividido. É claro que em termos de número meu cliente PJ pesa mais porque ele compra já uma quantidade que os valores são mais altos. Mas circulando pela loja tem muita dona de casa, muita gente comprando aquelas coisas que você precisa repor no dia a dia. E muito aluno. Muita gente interessada em aprender a cozinhar. Não só os alunos dos cursos superiores de gastronomia, mas destes cursos esporádicos. A pessoa começa a se interessar. Ou mesmo quem não está frequentando uma escola, mas que acompanha programas de TV. A gente procurou ficar bem especializada no gourmet. Naquele utensílio diferente. Nós não temos mais presentes. Até pouco tempo a gente até tinha a lembrancinha, o porta retrato. Agora a gente não tem mais. Se pensar em forminhas a gente procura ter todo tipo de forminha; se pensar em cortadorzinho de biscoito a gente procura ter tudo. A gente foi se especializando em algumas linhas, faca. Sou eu que faço as compras. Então, o critério é assim: pode ser barato e tem que ser bom. Se for extremamente caro e não justifica ser tão caro, aí não compro. Não é uma loja sofisticada, de produtos só muito caros e também não é só muito barato. Ela fica ali no meio termo.
P/1 – Você tem algum produto que é mais vendido? Algum tipo dele, não precisa ser uma marca e tal. Por exemplo: faca ou panela.
R – Você sabe que há três anos o produto mais vendido na loja – é claro que se pegar como categoria faca é o produto mais vendido. Porque faca tem de muitos tipos, então, pulveriza em vários tipos de faca. Mas faca é o produto mais vendido. Depois o produto que é um só, que não pulveriza, é a máquina de macarrão. Prá nós também é uma surpresa ter tanta gente que compra máquina de macarrão. Fazer macarrão em casa. Aí você percebe esta coisa da volta, de querer fazer a massa em casa, compartilhar com a família. E depois, panela de pressão. Panela de pressão é uma coisa muito, muito vendida.
P/1 – E falando destas vendas, já falamos um pouco de clientes, como é feito o pagamento destas peças, destes itens? Qual o sistema mais usual? Como foi o impacto da chegada do cartão?
R – O cartão é lógico que no começo, “há, vamos ter que pagar comissão pro cartão!”. Mas o cartão se torna um parceiro. Você faz uma boa negociação com o cartão e ele é garantia de recebimento. O cliente pagou você com o cartão, depois se ele não paga o cartão, é problema dele com a operadora de cartão. 80% das nossas vendas são com cartão. Não aceito mais cheques. O cartão é muito bem vindo. Não existe nenhum tipo de “ai, vai pagar com cartão”. Nossa venda é basicamente no cartão, ou de credito ou de débito, e a gente faz também cartão parcelado. Como sou eu e minha irmã, nós somos boas consumidoras, eu e minha irmã, (risos), a gente gosta de comprar. Porque também pra você ser comerciante você precisa gostar de comprar. Porque se for aquela pessoa assim “ah, não eu só compro se for...”. Tem que ser um pouco consumista pra trabalhar com isto. Porque tem este negócio de comprar. Eu, por exemplo, adoro comprar DVD, CD e livro. É meu ponto fraco. É uma delícia comprar parcelado. Então, os clientes também podem comprar parcelado. Paga lá, 50 reais por mês. Renovou a cozinha. Produto de cozinha, se você cuidar bem dura 20 anos, 30 anos. Então, é gostoso, você paga baratinho e fica com a casa renovada.
P/1 – E falando assim do começo da loja, 46 anos. Tinha aquele sistema de você conhecer bastante o cliente, fazer meio fiado?
R – Nossa, muito. Meu pai falava que a maior herança que ele recebeu da nossa tia era um caderno deste tamanho, de capa dura (risos). Você não tem ideia do que era aquilo. Era um fiado, assim. Era todo o pessoal do bairro. Tudo bem porque a minha tia ainda falava assim: “não, não paga tudo porque assim você volta”. Então, tinha aquela coisa, “deixa cinco, dez reais – naquela época não sei a moeda - aqui devendo que assim você volta e compra mais”. Era uma conta corrente que as pessoas tinham. Quando a minha mãe ficou, porque meu pai ficou muito pouco tempo, precisou sair, ganhar dinheiro fora. Quando a minha mãe ficou ela modernizou aquilo. Botou umas fichas, mandou fazer na gráfica uma ficha bonitinha, punha nome, endereço, telefone, e tinha as colunas, igual caderno de conta corrente mesmo: débito, crédito, saldo, a data e mais ou menos o que a pessoa tinha comprado naquele dia. A ideia era até por nota fiscal. Tava lá, NF, você punha o número da nota fiscal, o que a pessoa comprou, quanto ela deu. Bem organizado. De A a Z, eu me lembro que eram duas caixas deste tamanho só com estas fichas. Quando veio a inflação aquilo ficou inviável. Como você vai por juros? Aí falava pra minha mãe – porque as pessoas ficavam um ano pagando aquela conta – “mãe, você precisa cobrar juros”. Meu pai falava. Eu tinha doze, treze anos, nesta época que estava começando. Já na época da hiper inflação eu já tinha mais de 20. Ele falava assim: “não pode, tem juros. Você vai comprar de novo o produto é mais caro”. “Ah, mas é minha amiga”. E daí era aquela dificuldade. E a pessoa também começou a ter... mudou, as pessoas não estavam mais morando ali, porque o bairro mudou. Então, elas se esqueciam de ir lá pagar a conta, ficavam dois, três meses sem aparecer na loja. Isto comprometia demais o capital de giro da empresa. E foi um trauma acabar com isto. Foi um trauma geral. Foi um trauma para as clientes, porque daí foi meu pai, né? Você tem que arrumar alguém. Meu pai que ia lá e falava: “Olha, a partir de agora, pegava as fichas: “Você pode deixar os cheques?”. Depois era eu que fazia: “Olha, nós não estamos mais trabalhando deste jeito, mas deixa o cheque, nós vamos segurar”. Era o famoso cheque pré-datado. Aquele monte de cheques pré-datados. Esta prática do cheque pré-datado ainda ficou um bom tempo. Até eu começar a falar: “Vamos trocar por cartão?”. Cartão, cartão. Até a gente radicalizar. Isto foi tudo muito lento, e dizer: agora só cartão.
TROCA DE FITA
P/1 – Agora eu queria perguntar qual o grande diferencial pra Dragonetti de ser uma loja familiar? O que isto traz pra ela? O que isto agrega valor à loja e afeta o cotidiano dela, as atividades?
R – Pelo que eu converso com os meus parceiros, porque eles visitam outras lojas e estão sempre por ali, a gente troca ideia: como você vê? Primeiro a nossa presença ali, a presença dos donos, isto é diferente de outros lugares. Invariavelmente nós estamos ali, uma das duas, e até pouco tempo meu pai era muito presente ali. Então, você tem aquela coisa, “vou lá ver como está a minha amiga”. Você não vai só fazer compras, você vai tomar um cafezinho, vai bater um papo, saber como está a vida. Eu falo pouco, né? (risos) E conversar. Eu tenho muitos funcionários que têm esse perfil: de conversar, de chamar pelo nome, de perguntar como está a família, e tudo. Este atendimento bem diferenciado eu acho que é um dos nossos diferenciais, aquilo que você não encontra muito fácil por aí esta proximidade, este ambiente. É claro que tem cliente que eu não sei o nome, cliente que sai; tem todo tipo. Mesmo que ele entre e não se comunique, e faça a compra dele e saia; ele percebe essa atmosfera, sabe? Ele percebe esta atmosfera muito... Às vezes a gente fala assim: “Será que não está exagerado?”. Porque chega a ser muito informal demais. Meus pais moram no fundo, agora a minha mãe sozinha. Então, a minha mãe está circulando por ali com as amigas dela; minha irmã mora em cima, tem um menininho de seis anos. Então, ele está passando ali pela loja. Meu filho chega. E meu filho é mal acostumado neste sentido, porque quando ele era pequeno eu ficava ali no balcão fazendo pacote, ficava no caixa muito tempo, e ele ficava no carrinho do lado, assim. Então, ele chega, se eu tiver com uma cliente ele não está nem aí: “oi, mãe”. Chega, abraça. (risos). Tem esta cara de família. Acho que isto faz a diferença. Quando eu pergunto pra algumas pessoas elas falam, não dá pra dizer com palavras, mas tem um cheirinho diferente. Tem um astral diferente. Que eu acho que é este astral de família mesmo.
P/1 – Indo pra sua parte pessoal, de volta, de você fora de lá. O que você gosta de fazer nos seus momentos de lazer? Pra onde você sai?
R – Eu gosto de estudar. Eu adoro estudar. Eu não tive muita oportunidade de estudar lá atrás, porque eu sempre estudei a noite e trabalhava durante o dia. Isto afeta um pouco esta oportunidade. Hoje eu estudo mais do que eu estudava quando eu era adolescente. Estou sempre lendo alguma coisa. Fiz cursos na Casa do Saber, fiz cursos no Lasar Segall. Eu frequento uma casa espírita, sou espírita há muitos anos. Então, a gente está sempre estudando a doutrina, fazendo palestras sobre a doutrina. Eu gosto disto. Eu gosto de conversar. Eu falo que troco qualquer tela de computador por um bom papo. E bons papos inteligentes. Papo com quem está estudando, papo com quem ta a fins de ponderar, filosofar um pouquinho. É isto que eu gosto de fazer.
P/1 – E os seus lugares pra fazer compras? Onde você gosta de olhar as lojas, passear?
R – Eu gosto de ir ao shopping. Não gosto de shopping muito grande. Mas pra comprar vestuário eu gosto de ir ao shopping. Mas normalmente eu faço compras em loja de rua. Estou pertinho da João Cachoeira, a João Cachoeira me atende muito bem. Quando eu quero espairecer um pouquinho eu desço a Santo Amaro duas quadras, pego a João Cachoeira, vou até o fim dela lá e me divirto ali.
P/1 – E o que você gosta mais de comprar?
R – CD, DVD e livro.
P/1 – E como é o seu dia a dia hoje? Como você divide as suas atividades?
R – Nós tivemos um ano muito difícil. Meu pai esteve doente faz um tempinho e este ano foi o mais difícil. O ano passado ele já ficou mais internado do que em casa e este ano ele foi hospitalizado em janeiro e só saiu depois que ele desencarnou em abril. Então, foi assim: vai pro hospital, vai pro hospital; vai pro hospital. Foi muito desgastante este ano. Quando a gente para pra pensar este desgaste já vinha há dois, três anos. Então, quando acaba, quando a pessoa querida parte e acaba este estresse da saúde, que por um momento está sendo quase um pesadelo, mas aquilo está preenchendo a sua vida de alguma maneira. Então, quando acaba você fala: “Nossa, e agora o que eu vou fazer?”. Dá um negócio meio assim, sabe? Então, a gente acaba se enfiando no trabalho, até por fuga. Às vezes a loja fecha e eu fico lá arrumando prateleira. Porque eu gosto muito de arrumar prateleiras com a loja fechada. Eu preciso me policiar pra sair um pouco de lá. Quando eu não estou lá eu vou ao cinema, vejo um filme. Ou estou na casa espírita, ou estou lendo. Estou fazendo este tipo de coisa. Eu não gosto de balada, de lugar barulhento. Eu não gosto de praça de alimentação, de shopping. Não gosto. Se eu for ao shopping, vou durante a semana que ele está mais vazio. Final de semana eu evito. E adoro ficar em casa. Tenho cachorro. Eu gosto de ficar em casa. Eu trabalho sábado até às seis da tarde, eu saio da loja às seis. Quando falam assim: “O que você faz nas suas horas livres?”. Eu só tenho domingo livre. E o domingo faz assim. Eu gosto de ir a restaurantes. Eu gosto de prestigiar os meus clientes. Quando eu posso no domingo vou almoçar em algum restaurante que é cliente.
P/1 – Você falou do seu filho. Conta um pouco dele. Qual o nome dele? Quantos anos ele têm? Como foi pra você esta experiência de ser mãe?
R – Isto dá mais três horas de entrevista (risos) porque meu filho é... Eu falo assim: meu filho nasceu depois de eu ter perdido cinco bebês. E depois dele eu ainda perdi mais dois. Ele foi a minha sexta gestação. Nasceu super prematuro, ficou quase dois meses internado e algumas vezes desenganado, logo no começo. Então, foi uma vitória ele ter sobrevivido, de não ser um menino sequelado. De enxergar bem, ouvir bem, andar bem. Ele é um milagre de Deus. É uma coisa muito especial. Na escola ele é um menino muito criativo, muito falante, muito extrovertido. Então, ele deu alguns problemas na escola. Também tem uma mãe muito extrovertida. A mãe também não se conformava com algumas posturas de algumas educadoras. Então, da sexta a oitava série eu perdi a conta de quantas escolas ele passou. Foi terrível. Pra mim, pra ele, pra todo mundo. Aí ele teve a bênção, sei lá, de conhecer o Gilberto, de fazer parte do projeto aprendiz. E o Gilberto o colocou pra trabalhar com os alunos daquela escola Max, que ia ser fechada, e o projeto chamava Alunos Luz. E a incumbência do meu filho, Victor, era enxergar luz naqueles alunos. Naquelas oficinas que estavam sendo feitas naquela escola. E isto foi uma experiência boa para os dois porque trouxe a luz na vida deles, mostrou a luz na vida daqueles meninos. E esta exposição foi um marco nas nossas vidas. O Victor tinha 17 anos, eu já tinha incentivado na fotografia, já tinha colocado na Panamericana. Saía com ele pelo centro de São Paulo tentando mostrar para ele algumas coisas. Ele demonstrava interesse pela fotografia e eu achava que ele tinha jeito. Falava assim: “Vamos lá ver o Municipal”; apresentei o Mercadão. “Dá uma olhada naquele ângulo”. Levei-o em muitas exposições, na Pinacoteca. Então, ele tem este olhar diferenciado. E hoje ele é um menino que tem bastante trabalho. Mas foi difícil. Até porque eu me separei quando ele tinha sete anos. Foi quando eu escrevi o meu livro. Como eu sempre gostei muito de livros, e tudo, quando eu me separei eu falei: “Vou buscar um livro pra ler para ele”. A única obra que eu encontrei, que eu achei que me ajudou foi O Menino Maluquinho. A gente fez overdose de menino maluquinho. Não só no livro como no filme. Mas não achava, tinha muitos livros, agora não sei, muitos livros infantis sobre separação. Agora não sei; faz 15 anos que me separei. Mas não tinha nada que eu achasse bacana. Aí eu pensei: “Vou escrever”. Aí escrevi o livro. O livro foi lançado cinco anos depois da minha separação. Primeiro porque o processo de amadurecer dentro de mim deu mesmo pra ter coragem pra tirar da gaveta e encontrar uma pessoa. Porque eu não queria pagar para o livro ser publicado. Então, eu queria que alguém comprasse a ideia. O livro foi publicado pela Edusp, foi levado pra ECA e foi ilustrado por um aluno e editado por outro. Então pra mim foi uma... fiquei muito feliz, o livro, hoje, toda vez que tem bienal... Ele é o único livro infantil da Edusp, mas ele está lá. Era um projeto que chamava Com Arte, que era a editora que ficava dentro da Edusp. Isto foi muito marcante, pro meu filho também, porque, é lógico, ele é o personagem do livro. Então, trabalhar tudo isso: a separação, estes problemas que vieram na escola, o olhar das orientadoras educacionais sobre ele. Algumas dizendo que eu precisava levá-lo pra uma escola pra crianças com necessidades especiais. “Ah, porque você tem que levá-lo no neuro, oftalmo. Porque ele nasceu muito novo e deve ter uma cicatriz que não deixa ele aprender matemática, física”. Pra quê? Pra passar no vestibular. E eu como educadora, pedagoga ouvindo isto. Era muito difícil. Era muito difícil deixar falar “Ah, vamos seguir”. E aí você acaba tendo uma porção de culpas. Mas no fim deu tudo certo.
P/1 – E como foi o lançamento do livro? Ver ele pronto?
R – Um segundo filho. Quando alguém disse pra mim: “Você tem que fazer um boneco. Mandar só o texto pra uma editora, não rola”. Tem um amigo querido, que é um amigo da minha irmã, que é o que desenha o dragãozinho da loja, que tem muita habilidade no desenho, fez uma ilustração. Ele fez uma ilustração muito bonitinha, e tudo, mas comum. Um menininho de franjinha. Ele até fez um menininho que lembrava o meu filho. Então, aquele boneco foi pra Edusp. Só que o Plínio falou: “Nós vamos fazer só que vamos mandar pra um aluno da ECA ilustrar. E quando veio a ilustração ela veio completamente diferente. Ela veio muito mais artística. Não desfazendo da outra, mas veio uma coisa muito mesmo. Uma obra prima. Aquilo foi um impacto. A escolha do menino negro. A maneira como ele identificou... O texto do livro é um poema. Então, cada estrofe foi representada numa página com uma ilustração. E o Marcelo captou bem a mensagem daquela estrofe. Então, quando o menino está se sentindo muito oprimido ele fez os pais gigantes, o menino pequenininho. O texto do livro fala em um brinquedo perdido. Quando eu escrevi o brinquedo perdido eu nem imaginei que brinquedo. Pra mim era brinquedo perdido. Porque criança perde muito brinquedo. “Mãe, cadê aquele brinquedo? Cadê aquele não sei o quê?”. Você fala que ta na caixa, procura e não acha. Então era um brinquedo perdido, eu nunca me preocupei que brinquedo seria. E o Marcelo desenhou um palhacinho. E foi tão legal porque daí quando eu mostrei o livro pronto pra um irmão de um amigo do meu filho, que na época estava com quatro, cinco anos e os pais estavam se separando também, e ele não sabia ler ainda. Mas ele via as ilustrações e a mãe leu pra ele mais de uma vez o livro. E quando ele me viu – porque tem uma foto minha na orelhinha do livro – ele falou assim: “Você é a moça do livro do menino que perdeu o palhacinho?”. Perder o palhacinho é uma conotação fantástica pro livro. Porque o menino ta triste. Eu falei: “Nossa, está aí”. É muito prazeroso, você ter conseguido com as palavras atingir o coração de uma criança. É bonito pra caramba.
P/1 – E como era pra você ter o seu filho na loja, como você estava com seus pais? Como você sentia isto?
R – Mas aí ele ficou um tempo, depois eu percebi que aquilo não ia ser saudável. Que aquilo ia repetir a minha história. A gente não deve falar mal de nossa própria história. Sua própria história é sua história. Você é resultado dela. Mas o grande desafio de quando você é mãe e pai, é mudar a história. Eu estava percebendo que estava indo pro mesmo caminho. E eu não quis isto. Então, assim que eu pude eu pus o Victor em escola integral, ajeitei horários para que ele não ficasse ali. Nunca quis que ele trabalhasse comigo. Se amanhã ou depois ele se interessar, o que pode acontecer, ele gosta de gastronomia, é depois. Ai é uma escolha dele. Primeiro ele tem que traçar o caminho dele. Acho que o maior desafio da maternidade é você mudar. É você não repetir o que seus pais fizeram com você. Porque a gente tende a fazer o que a gente conhece.
P/1 – Indo pra uma parte mais avaliativa, de reflexão, quais foram as lições que você tirou do comércio, ao longo de sua carreira? De toda esta tua vida.
R – O comércio é fascinante porque você precisa se modificar o tempo todo. Isto é uma coisa muito fascinante. Não dá pra parar. Não existe uma rotina de trabalho. Não existe uma coisa assim, “agora eu já sei esta técnica”, não tem. Todo fim de ano é diferente. Você pode pegar as experiências. Por exemplo, a gente chegou ao ultimo trimestre do ano. Fechamos os três primeiros e agora vamos avaliar as vendas do último trimestre do ano: outubro, novembro, dezembro. Você pega o que vendeu no ultimo trimestre do ano passado, do ano retrasado. Aquilo vai ser um mapa pra você. Mas pode ter certeza que não vai ser nada daquele jeito. Então, é desafiador porque é sempre muito diferente. Porque é gostoso. Além do contato, da troca com as pessoas. Daquilo que eu estava dizendo de você ver uma empresa crescer. De você ver outras que estão tendo posturas pouco éticas. Parece que está naquele sucesso, mas você olha e vê que não demora muito ela cai. A gente acaba presenciando concorrentes que vêm muito afoitos, que acham que vão te engolir. Então, vêm com uma ganância, vêm com uma coisa e depois você vê que eles não sobrevivem. Essa observação é interessante. Mas o mais enriquecedor de você trabalhar no comércio é o contato humano com as pessoas. Você tava sabendo, aí você encontra a pessoa, “ah, como ta lá a fazenda?”. Porque a pessoa contou pra você da casa da fazenda, da dificuldade. É gostoso. Sabe que o filho estava fazendo um curso lá fora. Sei lá, você acompanha um pouco da vidinha de todo mundo.
P/1 – Eu acabei de me lembrar que você falou de um caderno de receitas que vocês fizeram.
R – Esqueci de trazer. Foi uma ideia assim, meu pai doente, a gente muito triste, mas a gente queria fazer uma festa de 45 anos, que foi o ano passado. A loja completou 45 anos. A loja tem a minha idade. E o que vamos fazer? Daí nós tivemos uma reunião com a assessoria de imprensa que era na época. E elas “ah, podia fazer isso; podia pegar um chefe bacana, fazer um livro de receitas com o patrocínio da Dragonetti”. “Mas isto já tem tanto”. Aí veio a ideia, aquelas ideias que alguém sopra na sua orelha, vamos fazer um caderno com cara de caderno de vó. Aquele caderno que vai ter página em branco, que você pode rabiscar. E vamos pedir para os nossos chefes amigos escreverem a mão. Primeiro foi um espanto: “eles não vão querer escrever a mão”. “A gente não quer uma receita muito difícil. A gente quer uma receita que ele faça de cabeça. Você chega pra ele e fala assim: “Me ensina a fazer o seu macarrão com abobrinha”. Entendeu? Ele vai lá e faz. Isto surgiu porque eu tenho uma receita escrita a mão, de uma pessoa muito querida, que era um penne com berinjela. Toda vez que eu ia fazer este penne com berinjela eu nunca tive o... “ah, vou passar a mão esta receita”. Ele pegou, essa pessoa querida, que inclusive está hospitalizada, um senhor, sabe aqueles formulários antigos de fazer depósito em banco? Ele pegou aquilo e escreveu a receita pra mim daquele jeito, e daquele jeito eu guardei, nunca passei a limpo. E era um prato que meu filho amava. Com dois, três anos, pequenininho, ele comia... Era a receita da minha vida, aquele macarrão com berinjela. E eu achava uma graça aquilo estar escrito a mão. E no final ele pôs assim: “Sirva com um bom vinho e bom apetite”, com um ponto de exclamação. Eu falei assim: “Vamos fazer um caderno com essa cara, com 45 receitas com esta cara. Vamos escolher 45 chefes amigos, que se disponham a isto, que vão doar esta receita e que se disponham a escrevê-la a mão. E todo mundo ficou meio assim, bla bla bla, “vamos fazer!”. E fizemos. Todo mundo amou o resultado. É um caderno que distribuímos gratuitamente, não foi pra vender. Fizemos uma capa dele de tecido, que nem a avó da gente fazia mesmo, com um papelão, colou um tecido. E deixamos 45 folhas em branco pra que a pessoa também possa brincar, escrever suas receitas ou pedir pra alguém escrever. Pra poder bancar esse custo a gente convidou alguns parceiros pra fazer propaganda no meio. Fizemos os chefes em ordem alfabética. O A é o Alex Atala, todo mundo: “Ai, que máximo!”. Também a gente conheceu o Alex ele não tinha nada da fama que ele tem hoje. Quando ele ia lá, super fofo, super simpático. E todo mundo recebeu muito bem esta ideia. Esse caderno está lá. Quer dizer, deve ter um pra mostrar pra vocês. Não tem pra vender. É aquela coisa que não tem preço. Foram algumas pessoas que ganharam, clientes, amigos muito especiais. E esta lá. Talvez a gente faça uma reedição. Estamos pensando.
P/1 – Falando de toda esta paixão pelo comércio e de ter este cuidado com a cozinha. Queria saber como é a sua cozinha.
R – Ela é um corredorzinho, porque é apartamento daquela época. Mas ela tem panelas penduradas. Tem aqueles paneleiros, panelas de tudo quanto é tipo pendurada: panela de ferro, panela esmaltada, panela de inox, panela de alumínio. Todo tipo de panela porque quando dá, que é só o domingo, é gostoso brincar e passear por tudo isto aí. A minha cozinha... As gavetas quase não fecham de tanto utensílio que tem. Mas é pequenininha, é bem menor do que eu gostaria. Mas agora a gente tem a da loja pra brincar.
P/1 – Continuando esta parte de encerramento. Como a sociedade vê o comerciante? Onde está a importância nele?
R – Olha, não sei direito. Uma vez eu fiquei magoada com uma pessoa que falou de um jeito meio pejorativo: “Virou comerciante”. Acho que tem um ranço do passado porque muitos imigrantes se tornaram comerciantes porque aparentemente era uma cosia fácil. Você compra e vende. Só isto, você não precisa ter nenhum talento, nenhuma formação. Lá atrás, né? Sabendo fazer conta você comprava e vendia. E existe um, não sei se é um ranço da intelectualidade, não sei o que é, de que lucro é crime. Então assim, ele paga tanto e vende por tanto. Como se aquele lucro fosse um roubo, não fosse uma coisa legítima. Mas isso é uma cultura ultrapassada. Acho que até pela mudança que hoje o comércio passou, acho que as pessoas não enxergam mais deste jeito. Até porque isto deve ter tido sua origem num lucro exagerado, que pode ser que acontecia lá atrás. Ainda a gente sabe que alguns segmentos que a pessoa fala assim: “Imagina, comprou por 50 e vendeu por 200”. Faz uma coisinha ali e... Isto gera algum tipo de mágoa, vamos dizer assim, do comerciante que pode se sentir magoado de se sentir roubado. Do mesmo jeito que a gente tinha esta cultura com o turista. Falava: “Não, turista está escrito trouxa na testa”. Mas isto tudo vem modificando porque com os grandes varejos, as grandes redes, os grandes supermercados, os preços foram diminuindo. Ninguém mais pode brincar com isto. É muito sério hoje. Por isto que eu falei que a relação com os fornecedores mudou. É uma relação de parceria. Eu não posso achar que o comércio vai ganhar mais que a indústria. Você não pode achar que você vai pegar este produto que o fabricante com muito sacrifício está te ofertando por cinco e você vai por 15 no ponto de venda. Isto não existe mais, todo mundo trabalha pra sobreviver; pra cobrir os custos desta prestação de serviços que você dá, que é colocar, aproximar o que a indústria está fazendo do consumidor. Porque se toda indústria achar que vai ter sua loja própria, que isto já é uma tendência que a gente sabe que acontece em muitos países e que talvez venha acontecer aqui, você está diminuindo um elo na corrente. Mas se o lucro do comerciante for legítimo, dor de acordo isto não vai compensar. Porque o custo de fazer isto ele vai ver que vai ser melhor ter o parceiro fazendo a distribuição do meu produto. Eu sempre observo as livrarias. As livrarias também tinham esta cara. Os livros ficavam todos assim, você falava pra o vendedor: “Preciso do livro tal”. Ele ia lá pegava, com uma cara meio feia. Uma coisa meio... Era diferente. Hoje as livrarias são espaços agradáveis, que você senta, pode até ler um livro ali se você quiser. Porque elas entenderam que elas tinham que se modificar porque senão as editoras iam colocar tudo na internet e você ia comprar direto. Não é assim? Então, todo mundo teve que se adaptar. A nossa loja, o nosso ramo, nunca foi um ramo de lucros altíssimos. O que tem são impostos muito altos em cima do tipo de produto que a gente trabalha. Que se tem uma coisa que o comerciante teria que se unir era pra diminuir isto. A gente tem um IVA muito alto, que é o imposto sobre o valor agregado. Que é aquilo que o governo entende que você vai vender. O governo já estima que você vai ter um lucro relativamente alto. Esse __ quando chegou prá nós aí há dois anos, dois anos e meio, o IVA de uma panela, por exemplo, era 81%. Ele acreditava que você comprava por cem e vendia por 181. Mas onde? Ninguém faz isto. “Ah, mas o shopping faz”. Mas o shopping faz 150, a loja da 25 faz tanto e a gente chegou por esta média. Daí todo mundo se uniu e baixou. Hoje está na casa do 58%. Mesmo assim é muito. Existe uma reforma tributária que todo mundo sabe que precisa acontecer. Pra que tudo fique mais honesto e que o consumidor, a comunidade de um modo geral, enxergue no comerciante um prestador de serviços. Alguém que vai te orientar. Alguém que não tá afim de... Ele precisa sobreviver no lucro daquela mercadoria que ele comercializa. Mas ele está ali pra te orientar sobre o produto. Pra fazer a ponte entre você e a indústria. Se aquele produto der um defeito você volta lá; é ele que vai fazer esta ponte. Não é? Pra tornar as coisas mais fáceis. Essa história de que o comerciante é um atravessador, tinha uma época que tinha esta palavra: “Esta atravessando”. Isto tende a acabar. Tende a acabar pela postura dos dois lados.
P/1 – E como foi pra vocês, a Dragonetti, a chegada da internet? Formar um site?
R – O nosso site tem bastante visita, o nosso site é uma ferramenta de publicidade. A gente nota que as pessoas vêem o nosso site depois elas vêm na loja física pra comprar. Existe compra pela internet, mas ela é muito apanhada no nosso caso. Mas eu acho que é o futuro. Eu acho que toda loja tem que ter um site, toda loja tem que ter uma loja virtual. Porque aquele momento que você não quer ir até lá você vai comprar pela internet. Ainda bem que a minha irmã é totalmente tecnológica e que ela cuidou de tudo isso desde o começo. No início desta coisa ela já estava antenada, já estava sabendo. A gente está sempre ali. A gente só não está mais avançada porque não tem verba pra investir nisto. Mas de boa vontade e conhecimento a gente tem bastante. E cuidado também. Porque não adianta você pegar o catálogo inteiro do seu fornecedor e jogar na loja virtual e o cliente pega e você fala: não tenho. Então, é melhor uma loja menor, mas que atenda. Então, a gente atende. Há poucos produtos na nossa loja, mas serão todos atendidos com certeza. A gente sempre preferiu assim: caminhar com passos mais curtos, mas preservando o nosso nome e nossa imagem.
P/1 – E qual o nome da sua irmã?
R – Valéria Dragonetti.
P/1 – Encerrando: Qual o seu sonho hoje?
R – Meu sonho é mudar a Dragonetti de lugar sem sair da Santo Amaro. É fazer uma porta nova pela lateral. Meu sonho é crescer. Meu sonho é continuar podendo ter todos os meus funcionários ali, felizes. Ter até mais funcionários. É crescer. É deixar a loja mais agradável, é ter mais área de venda. Este é o meu sonho hoje.
P/1 – O que você achou de ter participado desta entrevista. De ter sentado aqui e contado mais desta trajetória comercial e trajetória de vida?
R – É gostoso. Eu acho uma delícia. Porque é o momento que a gente para pra reflexão. Porque no dia a dia você não para muito pra fazer estas perguntas. Então, quando alguém faz é uma oportunidade de você refletir. Muito bom.
P/1 – E você quer comentar alguma cosia que a gente não tenha perguntado. De deixar registrado?
R – Não, acho que não. Fora a saudades do meu paizinho. Porque se vocês tivessem me convidado há três meses eu não ia ter dado esta entrevista. Porque eu ainda estava muito deprimida, muito chorosa. Mas não tenho nada pra comentar a mais.
P/1 – Obrigada.
R – Obrigada a vocês.
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