Pessoas: Contar para Viver
Depoimento de Marco Aurélio Pinho Del Fiol
Entrevistado por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 09/05/2018
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV674_Marco Aurélio Pinho Del Fiol
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Então, confesso que eu tô achando engraçado, que eu tô achando que você já vem com tudo pronto, porque tanta entrevista que você viu, que você falou: “Agora, já vou…”, falei pra Rosana isso no carro: “O Marco já deve saber tudo o que ele quer falar, porque…
P/2 – Você já veio editado…
P/1 – Eu tô um pouco nervosa com isso, mas vamos em frente.
R – Eu acho que nos últimos tempos, por conta do filme, eu tive que dar muita entrevista e também dei aulas, MasterClass, essas coisas e esse exercício acabou me fazendo olhar muito pra minha trajetória profissional e pessoal misturadas. Ao mesmo tempo, como a gente tá passando agora… a Jasmim, minha cunhada tá com câncer e ela tá com dois filhos muito novos, um tem oito anos, o Samuel, que é uma idade que pra mim, quando eu era criança, foi a idade que eu me senti… que eu me entendi vivo, de certa forma, assim, ele tá com sete anos, sete pra oito, foi bem nessa idade. E isso começou a revirar muita coisa em mim, aí eu comecei a escrever, eu tenho de sete em sete anos, eu tenho um surto assim, de escrever. E aí, eu comecei a escrever um livro sobre esse ano, 79, que é um ano que eu morei no Rio de Janeiro, que é 1979, o ano internacional da criança. Então, eu tô com muita coisa revirada, talvez não tão organizada…
P/1 – Aí que bom.
R – E eu fico um pouco nervoso, assim, antes de começar, né, às vezes, eu não durmo quando tem que fazer esse tipo de coisa, assim, que você fala: “Putz, isso aqui é importante assim”, é importante porque tem a ver com o legado, né, o que você deixa. Então, eu fico um pouco nervoso e aí, eu procuro não me planejar muito e nem… porque eu trabalho mais com a confiança e com o risco e é um pouco como eu faço as coisas.
P/1 – Como a gente ficou vários dias fazendo, é normal que você…
R – A pauta é essa, começa assim e termina assado… não, eu procuro não responder o que eu vou fazer, eu fujo disso.
P/1 – Então, vamos fazer aquele exercício só pra gente, todo mundo se alinhar nesse momento inicial (barulho de respiração profunda). Então vamos começar pensando na respiração, pensando na parte de baixo assim, da sua barriga, embaixo do umbigo, procura pensar nesse pedaço do seu corpo e quando você respirar pelo nariz sente o ar descendo até esse pedaço, quando ele chegar lá, sente um toque, um ligeiro contrair bem pequeno embaixo do umbigo.
(Silêncio)
P/1 – E quando ele sair, sente todo ar esvaziando do corpo.
(Silêncio)
P/1 – E quando ele entrar de novo, o ar, tente que ele entre com delicadeza e visite os ombros, depois, ele desce, passa por esse pedaço embaixo do umbigo e ele sai também devagarinho lá de baixo.
(Silêncio)
P/1 – E mais uma vez.
(Silêncio)
P/1 – E pensa nessa respiração e vai sentindo ela como se ela fosse muito…
(respiração profunda)
P/1 – Primeiro, uma respiração profunda
(respiração profunda)
P/1 – E depois uma como se a gente estivesse escondido dos nazistas, assim, no armário, uma bem silenciosa, mas ela vai pelo corpo inteiro, também.
(Silêncio)
P/1 – E pensa nisso de você estar num lugar onde ninguém, nada pode te ouvir, mas você precisa respirar. Então, você tem que estar consciente de cada pedaço do seu corpo em que ela passa, bem lentamente.
(Silêncio)
P/1 ¬– E na próxima respiração, você sobe esse ar para cima, pelo corpo, e quando você expirar bem lentamente, tenta resgatar, sentir essa imagem, a primeira que te vem à mente, uma das primeiras da sua vida e deixa assim, sua mente, o seu coração, o seu corpo passear por essas primeiras imagens que você tem da sua vida.
(Silêncio)
P/1 – Pode passear de uma pra outra, até que uma vai ficando. Essa que for ficando, quando você respirar, você vai ficando com ela.
(Silêncio)
P/1 – E aí, ela vai entrando no seu corpo na próxima respiração.
(Silêncio)
P/1 – E começa a ver ela, olha na sua frente como se fosse um filme. Se olha olhando ela. Ela é um borrão? A parede, ele tem que cor? Está desbotada ou muito colorida? Tem uma forma definida? E continua a respirar bem lentamente. É como se fosse uma câmera, vai passando essa imagem na sua frente. Tem alguém? Tem movimentos? Tem sons? Tem silêncio?
(Silêncio)
P/1 – Tem emoções? E se deixa invadir por essas emoções, se tiverem emoções. Tem cheiro? Se deixa invadir pelo cheiro.
(Silêncio)
P/1 – E passeia por esse momento.
(Silêncio)
P/1 – E se olha vendo a imagem. Se olha hoje. Se olha na cadeira, escuta o silêncio da sala.
(Silêncio)
P/1 – Escuta todo o ruído que tem na sala.
(Silêncio)
P/1 – Escuta a sua respiração nessa sala.
(Silêncio)
P/1 – Escuta o tempo nessa sala. E olha você para a imagem e olha você para você agora na sala. E pega a imagem e sai do filme e respira ela de novo e vai chegando na sala nesse estúdio, nesse bairro, nessa cidade, nessa quarta-feira, nesse ano, nessa manhã, nessa hora e respira. E quando você sentir que voltou, que entrou nessa cadeira, que ouviu todos os ruídos, que você chegou aqui, você pode chegar, na hora em que você sentir. Vamos começar da imagem?
R – Vamos. É engraçado essa coisa de primeiras lembranças, né, porque eu lembro muito pouco da minha vida até sete anos. Tudo que aconteceu antes de sete anos, eu tenho pouquíssimas lembranças, são poucas coisas. mas o meu pai filmava muito a gente, fotografava muito, então tinha muito Super 8, muita foto. E sempre que tinha um aniversário ou vinha alguém da família, que a gente morava em Curitiba, depois a gente mudou para o Rio, depois pra Brasília e com 14 anos, a gente veio pra São Paulo. Então em… no Rio eu não lembro se isso acontecia, mas em Brasília, eu lembro que acontecia bastante e isso já deveria acontecer, que era o seguinte, quando tinha um aniversário, quando tinha Natal, vinha um parente para a casa da gente e tal, meu pai projetava esses filmes da nossa infância. E chegou uma hora que eu falei assim: “Nossa, se me falarem que esse menino aí não sou eu e é um outro e me trocaram com sete anos, eu acredito”, talvez eu não seja esse menino. E as imagens que me vêm da infância, que me vieram são imagens de fotos e de filmes. As minhas primeiras imagens são imagens que eu assisti. Então, quando você fala: “Assiste como se fosse um filme”, mas era um filme. Mas veio uma sensação assim, que quando a gente morou em Curitiba que eu nasci em 71 e a gente morou lá até começo de 78, eu acho ou final de 77, nevou acho que em 75 e o meu pai fez um Super 8 desse dia da neve. Isso foi um negócio muito forte, assim. Eu não tenho lembranças que não sejam do filme do dia da neve, mas hoje eu consegui sentir, assim, a luva, porque eu queria ser adulto logo, eu queria ser velho, era como se eu tivesse saudades de ter cabelo branco, assim. Eu queria ser velho. Não gostava muito de ser criança. E nesse dia da neve, eu peguei a luva do meu pai e peguei o chapéu dele. E eu parecia um espantalho assim (risos), aquele menino… eu sempre tive o braço comprido e com a mão desse tamanho (risos), e com o chapéu, parecia um espantalho na neve (risos). Mas eu senti dentro da luva, sabe? A mão na luva. Aquela… acho que era uma lã de carneiro, de ovelha. E a mão ali dentro… tipo uma coisa de… de proteção e de acolhimento, de conforto. Que é engraçado, aí depois veio essa outra coisa que você puxou essa coisa de “respira como se você tivesse num armário, escondido de um nazista”. Eu acho que durante muito tempo da minha vida, eu me escondi. E eu nunca soube do que. Outras duas coisas que vieram antes de você pedir uma imagem, veio um dia que a gente brincou em Brasília, e eu devia ter uns nove anos. A gente morava no Lago Sul, que tem aquelas… um sistema de ruas que é como se fosse uma coluna vertebral, você tem uma rua principal e saem ruas paralelas que vão subindo, acho que quatro ruas paralelas. E aí, a gente tinha uma vida muito na rua, brincava muito na rua, tinha um convívio intenso ali, muito forte. E eu tinha vindo do Rio de Janeiro, que foi uma experiência meio oposta. No Rio, a gente, no primeiro dia, desceu pra brincar no prédio e em Curitiba, eu morava em casa, e roubaram a bola do meu irmão, de futebol. Minha mãe e o meu pai ficaram muito assustados, né, no primeiro dia, já é assaltado, tal, “Essa cidade é violenta, isso aqui não é seguro”, e a gente ficava muito no apartamento. E no final de semana, a gente saía. Então, era um negócio de choque de expansão e recolhimento muito grande, assim, porque o Rio era majestoso, exuberante, é uma escala ali de criação, de natureza e de intensidade de gente, de cor, de movimento, que era tipo, você ficava olhando para uma parede branca a semana inteira (risos), ficava recolhido e quando saía, era aquele negócio, ou ia para o parque, o Jardim Botânico, Parque Lage, sei lá, era tudo muito, muito… e depois, ia para aquela coisa recolhida. E em Brasília, não, a gente tinha uma vida na rua. Era totalmente na rua, eu pegava a bicicleta, ia sozinho do lago Sul para o Lago Norte, eu tinha uma vida coletiva e minha, recolhida das minhas coisas muito intensa. E uma brincadeira que a gente fez um dia na rua, que juntou três ruas para brincar disso, era um policia e ladrão com todo mundo. E lá, tinha essa coisa das casas funcionais, também, casas do governo que às vezes, ficavam habitadas e às vezes, não. Uma cidade ainda em construção, muito nova, então tinha muito terreno baldio. E a gente entrava muito em terreno baldio, a gente invadia casa. E nesse dia da brincadeira, eu lembro que me prenderam no banheiro de uma casa que eu não conhecia, num banheiro tipo banheiro de piscina, assim, trocador, um banheiro pequeno. E aí, eu acho que eu fiquei umas duas, três horas nesse banheiro, sentado, ali, preso. E aquilo foi… eu me senti muito confortável preso. Eu vi que aquilo era uma coisa que eu… hoje, olhando assim pra trás, eu vejo que eu tinha aquilo, assim, a experiência do cárcere e da prisão, do confinamento e de certa forma era… eu precisava daquilo. Aquilo me fazia falta, ficar quieto e ficar parado e ficar sozinho e ficar em silêncio. E a outra imagem que veio foi eu em cima de uma árvore, também, nessa época em Brasília, que era outra coisa que eu fazia, era uma espécie de confinamento num lugar aberto, que eu subia… tinha uma árvore no quintal, eu subia e ficava lá horas. Ficava lá pensando. E eu era uma criança sociável, mas eu sempre tive… alternava muito, assim, entre o momento de ir para fora, falar, brincar e o momento de recolher, que eu acho que é um pouco essa coisa… tinha hora que eu tinha que entrar dentro da luva, eu tinha que estar dentro da luva e sentir que eu estava na luva. E é engraçado isso, é uma luva adulta, né, não é aminha luva assim, de… é como se fosse uma luva do vir a ser. Uma luva de quem eu sou em outra instancia, mas que eu ainda não sou aqui. Essa coisa assim, eu queria ser quem eu era e não criança. Eu não sou essa criança. Eu sou outra coisa.
P/1 – Desde quando, a primeira vez que você teve isso? Você consegue fazer esse exercício? Dessa sensação que eu não tô no corpo certo. Quando você era criança. Quando você lembra desse mal estar?
R – Era um conjunto, assim, era um conjunto de coisas. Tem uma… em outro filme que o meu pai fez de um Natal, teve um Natal, eu devia ter o quê? Uns cinco, seis anos. Eu pedi um guarda-chuva de presente porque eu achava que guarda-chuva era coisa de gente adulta, gente velha e que se eu tivesse um guarda-chuva, isso me daria um status assim (risos), alguma seriedade. E tem esse filme lá que eu apareço andando com um guarda-chuva.
P/1 – Com cinco, seis anos, você aparece com um guarda-chuva?
R – Apareço andando com um guarda-chuva. Eu não lembrava disso, minha prima mais velha que fala: “Marco…”, isso ela falou a sei lá, uns dez anos atrás: “Marco, eu queria saber por que você pediu um guarda-chuva de Natal?” (risos).
P/1 – E você lembra de você ter pedido esse guarda-chuva?
R – Eu não lembrava. Mas aí quando ela falou isso, eu lembrei. Lembrei assim, veio claro e eu tinha essas… eu ia pra escola, isso já em Brasília com pasta executiva, que o meu pai deixava de usar, eu não levava mochila, não tinha muito essa coisa de mochila que nem tem hoje assim, mas tinha… as crianças levavam em (risos) dispositivos infantis de carregar material escolar e eu gostava de ir com a pasta executiva, abria assim, cleck, com (risos), abria a pasta e tirava o caderno (risos), deixa a pasta do lado, mas eram coisas assim, absurdas que… absurdas, não, eu não entendia que isso era estranho. Eu achava que era normal, mas eu lembro assim, de várias passagens. Eu lembro de eu estar com dez anos nessa época de Brasília, sentado e eu falava assim… eu pensava assim: daqui a oito anos, eu vou ter 18 anos e eu vou poder fazer tudo o que eu quero. daqui a oito anos, acabou.
P/1 – Acabou o quê?
R – Acabou essa coisa de ser criança, era uma coisa assim, de… e é engraçado, que eu gostava de brincar, eu gostava de fazer as coisas de criança também, mas tinha uma coisa de um cansaço, eu tinha um cansaço de ser criança, era cansativo. Queria ser velho, eu queria ter orelha grande, queria que a minha orelha crescesse. E nessa época, assim, nesse período, eu lembro também de estar sentado lá na casa lá em Brasília e pensando assim… eu tinha visto uns dias antes no livro de Matemática, tinha um desenho que era umas montanhas, uns vales e os números vinham assim: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez… e se perdiam no infinito. E embaixo estava escrito: “Os números são infinitos”. e eu sempre tive também uma coisa muito forte com religião, um vínculo, aquilo me falava profundamente. E a ideia da vida eterna também me assombrava, assim, era uma coisa que eu pensava muito e eu falava assim: “Nossa, então depois que eu morrer, eu vou viver… eu tô com oito anos, eu vou viver mais oito, depois eu vou viver mais 20, 40, 100, mil, um milhão, um quaquihão e isso não é nem a metade, por quê que eu tenho que viver tanto?”
P/1 – Você lembra de você pensando isso?
R – Lembro. Eu falava: “Por quê que eu preciso viver tanto?”, e era um… não que isso me consumia assim, mas essas coisas eram muito fortes. Por quê que a gente tá aqui? Eu tô falando… engraçado falando essa coisa do Samuel, o meu sobrinho, ele tem ficado com a gente uma vez por semana e a semana retrasada, ele chegou pra mim e falou assim: “Por quê que eu tô vivo?” (risos), com sete anos, assim. Engraçado, mais ou menos a menos idade e ele se faz perguntas muito parecidas. Eu não sei se isso é… a vida é estranha assim, a gente tem um espelhamento, as coisas, os lugares, muitas vezes, assim, parece que é uma exteriorização das nossas questões ou a gente se vê refletido nas pessoas e nos espaços. Eu acho que eu gosto de falar disso, do assombro, do espanto, né? Eu acho que eu sou uma pessoa que desde a infância, eu fui assombrado pela vida, pelo fantasma da vida (risos).
P/1 – Então agora falando disso de fantasma, de… você consegue lembrar assim, das primeiras noites da sua vida? Pode ser noites com sete anos, podem ser noites com nove anos…
R – De algumas coisas eu lembro.
P/1 – O quê que era que você sentia na noite, assim?
R – Às vezes, eu tinha muito medo.
P/1 – Me conta. Era medo do quê? Como era essa noite?
R – Eu lembro de alguns pesadelos, assim. Eu tive um pesadelo que eu era devorado, que me era… era um ritual de antropofágico, me cozinhavam e me comiam. Eu tinha medo daquilo (risos), de ser comido. Mas eu sempre dividi o quarto com os meus irmãos. Eu tinha um irmão mais velho, eu sou o segundo, tenho um irmão mais velho, o Gui, aí tem eu, tem a Heloisa e tem o Beto.
P/1 – Você dividia com todo mundo?
R – Com três, os meninos ficavam num quarto e a menina no outro. Então… tem… eu tinha um cobertor azul. Eu tenho pouca coisa da minha infância, porque a gente mudou muito de casa e muito de cidade. Uma das coisas que eu tenho da minha infância é esse cobertor azul, que eu me sentia muito protegido com o cobertor azul. É engraçado, agora voltando a essa coisa da luva, eu não sei, tinha uma coisa de embalagem, de embalagem do corpo. Se eu tivesse embalado por esse negócio, eu tava bem. Então, eu gostava do cobertor azul porque me dava uma proteção.
P/1 – E esse pesadelo, antes de dormir, você tinha medo dele, você tinha medo acordado? Como era essas…
R – Engraçado, acho que essas coisas impressionam mais a gente, não é que todo dia eu tinha medo de dormir e tal, mas essas coisas me calavam fundo, porque era o convite do invisível, do desconhecido ou talvez, do encontro marcado, assim, com… que essa coisa que eu tinha de… eu tinha uma coisa de me esconder, de não me acharem (risos), mas no sentido… era como se eu quisesse que não me descobrissem. Assim, e descobrir quem? Um menino, descobrir? Eu achava que tinha um jogo invisível, um pega-pega acontecendo na vida, era meio que um jogo de esconde-esconde com coisas que eu não via e que eu não sabia o que eram, mas que tava acontecendo. Isso eu lembro muito claro no Rio de Janeiro, que aí tinha a ver também com querer ser adulto, que era como se eu fosse adulto, eu poderia jogar esse jogo direito: eu posso fazer o que eu quero, eu não preciso estar tão escondido que nem eu tô agora.
P/1 – Você lembra de pensar claramente isso?
R – Era… algumas coisas, sim, muito claro. Tinha um incômodo, era mais um incomodo do que uma realização dessas coisas.
P/2 – E os seus pais, como é que eles viam isso? Isso era perceptível ou era muito no seu universo?
R – Eu perguntei para o meu pai… quando eu comecei a ver essas coisas de adulto, dessas esquisitices, essas peculiaridades, eu perguntei para o meu pai: “Pai, como eu era como criança?” “Você era muito alegre, muito…”, e eu era mesmo, mas era isso um pouco que eu falei, assim, tinha o lado social, normal assim, cotidiano, tal e ia na boa, isso não era problema, então isso não me ocupava. Mas esses redemoinhos, essas coisas, essa inquietação interna não era compartilhada, eu não dividia isso com ninguém. Eu tinha uma vida em segredo, assim, que não dividia. Então, quando a gente mudou para o Rio de Janeiro e a gente foi pra escola, e a escola tinha aquele muro com aqueles Mickeys fora de proporção, Monica fora de proporção, eu olhava aquilo e eu falava assim: “Isso aqui é mentira, estão me enganando, tem alguma coisa aqui que não tá certa, isso não é de verdade”. E eu era muito desconfiado. Eu desconfiava de escola, eu não gostava de escola, não gostava de ter que repetir, eu não gostava de ter que fazer provas, e eu não sei o que aconteceu, meus pais mudaram a gente de escola no Rio para o Pueri Domus, que era uma escola que não tinha Mickey, não tinha pato Donald deformado, mas era um castelo em Santa Teresa. Então aquilo era um negócio extremamente sedutor, assim, de você: “Nossa, um castelo…”, imagina o que dispara numa cabeça suscetível a delírios de imaginação, assim! E quando teve que fazer a prova de adaptação pra ver em que série vão te colocar e tal, eu lembro que tinha uma pergunta que era: ‘Qual é a 13ª letra do alfabeto?”, era o M, enfim, aí tinha: Opção A: N, B: O; depois um M e depois um M de quatro pernas. Aí, eu lembro disso, assim, era como se fosse o Mickey torto de novo: estão querendo me enganar. E eu marquei o M de quatro pernas.
P/1 – De verdade, sabendo que tava errado?
R – Sabendo que tava errado, eu falei assim: “Eu vou marcar o errado”. Tinha uma coisa assim, quando eu acabava a prova primeiro, tinha a prova e eu acabava a prova, eu nunca era o primeiro a entregar, nunca queria ser o primeiro a entregar. Eu esperava uns três entregarem e aí, eu entregava. Imagina, não sou superdotado, nunca fui, nunca fui… depois, em Brasília, uma vez, uma professora pediu minha caderneta e eu fiquei supernervoso, ela falou: “Hoje eu vou começar a fazer uma coisa que eu nunca fiz. Eu vou anotar na caderneta quem são os bons alunos”, rapaz, a partir desse dia, eu passei a ser um péssimo aluno (risos). Era uma coisa assim, eu não conseguia… não péssimo, mas eu deixei de ser um bom aluno. Eu não gostava que me pegassem, que falassem… sei lá, eu não gostava de ser um objeto da escola. E eu tive muito… durante muito tempo da vida, já um jovem adulto, até 20 e poucos, quase 30 anos, quando eu tinha algum pesadelo, o pesadelo era na escola, sempre acontecia na escola. A escola era um ambiente extremamente inóspito.
P/1 – Então, vamos voltar agora assim, pra a vida assim, em Brasília, você ficou até que idade?
R – Dos oito aos 14.
P/1 – E em Curitiba?
R – Curitiba, do nascimento, até seis, sete.
P/1 – Então, você tem pouca lembrança, né?
R – Uhum.
P/1 – Só conta assim, o nome do seu pai, da sua mãe e o que você lembra dessa casa, seus irmãos nasceram lá? O que você lembra dessa situação da sua infância.
R – O meu pai é Raul Antônio Del Fiol e minha mãe chamava Marta Lecknim Del Fiol. Eles são de Tatuí, do interior aqui de São Paulo, meu pai cresceu num hotel, meu avô tinha um hotel em Tatuí, o hotel ainda existe lá, Hotel Del Fiol. E minha mãe…
P/1 – Ele era italiano, o seu avô?
R – Meu avô era descendente, o pai era italiano, os pais vieram em 1888, chegaram aqui no Brasil, fugindo da fome. E o meu bisavô, eu não conheci, ele tinha um comércio, aí depois, um restaurante, tal, acabou com uma pensão e a pensão virou hotel. Aí quando ele morreu, o meu avô começou a tomar conta do hotel. Aí, o meu pai já nasceu no hotel. E minha mãe, o pai dela, o José era um pequeno agricultor, assim, ele plantava frutas, basicamente frutas, vendia no Ceasa, aqui em São Paulo. E o meu pai fez Engenharia, fez ITA, assim que ele saiu, apareceu uma oportunidade de trabalho em Curitiba, na Telepar.
P/1 – E como ele conheceu a sua mãe?
R – Tatuí, né, cidade pequena, aí tinha… ele era um pouco mais velho, só. Ela tinha namorado um primo do meu pai e aí, depois, terminaram, tal e depois, começou a namorar o meu pai (risos). Aí foi coisa de juventude, mesmo, acho que nessa época, também, tinha isso de namorar e casar, né, as relações não eram tão dinâmicas como são hoje. E aí, os dois foram morar em Curitiba por causa do trabalho do meu pai. Antes, eles moravam num apartamento, não tem foto, então eu não me lembro porque eu não lembrava mesmo. Meu irmão, acho que… eu não sei, eu acho que eu morei pouco nesse apartamento e depois, a gente foi pra essa casa, que eles construíram. Era uma casa grande… é engraçado, é grande quando era criança, né, depois eu voltei para ver a casa, eu não reconheci, quando eu já era adulto, eu olhei por fora, não consegui identificar e também, eu prefiro a casa da infância, assim (risos), a casa da imaginação, da lembrança do que a casa real. Mas a casa da imaginação era enorme! A casa que eu estava lá enquanto criança era enorme. A sala era gigante, tinha jardim, tinha uma escada, abria duas portas… a porta abria em duas e tinha uma escada que descia para o nível da rua, tinha uma garagem embaixo e tinha um gramado, um declive, assim. Mas eu lembro da sala, não lembro do quarto e a sala muito por causa dos filmes, que quando tinha aniversário, fazia… minha mãe fazia docinho, tudo decorado, tinha aniversário com tema, então ela fazia tudo caprichado, tinha o copo, recortava crepom e botava cara de indiozinho no copo, o bolo era uma taba (risos), fazia tudo…
P/1 – E essa cena é um filme?
R – É, é um filme. Então, claro, tem os filmes, então isso eu lembro muito bem por causa do filme. Mas lembrança, lembrança, eu lembro de pouca coisa, eu lembro disso da luva, eu lembro de virar um álbum de figurinha de desenho da Hanna Barbera. É uma lembrança muito pequena, sabe assim, muito fechada numa coisa… não é assim: lembro do dia que isso aconteceu.
P/1 – Do nascimento dos seus irmãos mais novos?
R – Nada! Não lembro de nada.
P/1 – Aí vocês foram para o Rio. O Rio já é um lugar que você tem amis lembranças, então?
R – Tenho. Muitas.
P/1 – Vocês foram morar onde no Rio?
R – Afrânio de Melo Franco, no Leblon, na frente… perto ali do Escala? Como que chamava lá que pegou fogo? Um teatro…
P/1 – Casagrande.
R – É?
P/1 – Pra trás, então?
R – É um conjunto de prédios, assim.
P/1 – Escala, chamava Escala.
R – Escala, né? É, era um conjunto de prédios, não era condomínio, mas tinha… o quarto do meu pai e da minha mãe tinha uma sacada, assim, que dava para a Lagoa e a gente via o Cine Drive-in, dava para ver o Cine Drive-in, metade da tela, assim…
P/1 – Era na Selva de Pedra que você morava, que tem muitos prédios, assim?
R – Acho que sim, porque aí, de uma outra janela, você via só prédios, uma praça e muitos prédios. Só prédios. E ali… dessa época, eu lembro muita coisa e não tem filme e nem foto, então eu sei que isso são lembranças, mesmo.
P/1 – Vocês foram morar lá porque o seu pai, então, foi trabalhar em outro lugar?
R – Aí, ele foi pra Embratel no Rio de janeiro. E deixou a casa que era nossa e fomos para… alugou a casa e a gente foi para esse apartamento, lá, no Rio. E a gente ficava muito tempo no apartamento.
P/1 – Fazendo o quê? O quê que você lembra desse apartamento?
R – Ah, eu lembro que eu via “Sitio do Pica Pau Amarelo”, eu lembro que um dia, me deu um negócio, eu falei: “Vamos soltar aviãozinho de papel até encher o chão todo, o chão todo ficar branco”, lá desse pátio que tinha embaixo do prédio. E aí, os meus irmãos gostaram da ideia, tinha uma pilha de papel, assim, do meu pai, de trabalho, aí a gente pegou aquilo e começou a fazer aviãozinho e foi enchendo o chão, o chão foi ficando branco, não deu pra encher tudo, mas… porque depois chegou, não lembro quem chegou, se foi a minha mãe ou o meu pai e deram uma bronca na gente porque o zelador, o sindico, sei lá quem falou: “O quê que tá acontecendo? O quê que é isso? (risos) E era uma coisa assim…
P/1 – E a sua mãe ficava em casa?
R – Era engraçado, porque a minha mãe saía e a minha mãe ficava em casa. A minha mãe levava a gente muito… eu lembro muito de ir para a Cobal, supermercado. Uma vez, eu lembro, não sei porque, minha mãe levou só eu para ver um filme que era a história de Jesus, era um filme dividido em duas partes. E eu assisti só a segunda. E eu lembro que aquilo era… eu lembro da minha mãe me pegando pela mão e vendo cartaz do filme, assim, porquê que ela me levou, eu não sei. Porquê que foi só eu, também não sei. Dessa época, tem muita lembrança. E muita coisa relacionada a cinema, também, porque eu gostava muito de ver os cartazes e as fotos, né, que nessa época tinha o cartaz e tinha três, quatro fotos do filme. E eu gostava de imaginar como que uma foto dava na outra, como que isso tava, que percurso era esse de meio ligue os pontos, né, dessas imagens. Então, muitos filmes, eu ficava imaginando e tinha essa coisa também dos filmes de 18 anos, tinha censura acho que até 21 anos. Acho que muito dessa coisa de querer ter 18 anos era poder ver aqueles filmes, “Tubarão”, imagina aquele cartaz do “Tubarão”! Aquilo, eu achava o máximo! Morria de medo, mas achava incrível aquilo. “Guerra nas Estrelas”, “Guerra nas Estrelas” eu vi no Rio, minha mãe não pôde me levar, eu não tinha… acho que era a censura dez anos, eu tinha sete ou oito, aí meu irmão foi comigo, só que o meu irmão já tinha, eu acho que eu tinha oito, ele tinha dez. Aí, ele entrou e eu fiquei pra trás, aí tinha uma mulher, eu peguei na mão da mulher assim, como se fosse minha mãe e entrei (risos), entrei com ela no filme. Acho que essas coisas todas assim, do cinema, do filme na tela grande, de tudo aquilo acontecendo no espaço, mesmo que não fosse “Guerra nas Estrelas”, e ao mesmo tempo, a coisa espetaculosa do Rio, que era sair, andar nas ruas do Rio, nas praias, nos parques. Aquilo era tudo muito, muito forte de impressão, assim. De gravar na memória e de… era como se eu não tivesse memória antes e aquilo tudo me pegou e me fez…
P/1 – E a escola, sua relação com a escola, então, nessa… você entrou na escola no Rio, então?
R – Eu acho que… eu ia pra a escola em Curitiba, porque eu era canhoto, isso é uma história também que me contam, eu também não lembro, eu era canhoto e me obrigaram a escrever com a direita e acho que foi um dos motivos que me tiraram de uma escola para a outra em Curitiba. E aí, eu fiquei manualmente quase que incapacitado, porque a minha letra é uma letra de criança.
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje e eu não desenho direito, eu pego a caneta, o lápis como um canhoto com a mão direita. Eu admirava muito desenho, pintura, eu achava incrível quem conseguia fazer essas coisas e eu não conseguia. Talvez seja isso, sei lá, posso chutar essas hipóteses, assim, de… eu tinha uma coisa que essa era outra história que a minha mãe contava em Curitiba, que uma vez, o meu pai me levou para passear e ele trocou o lado dos sapatos, o esquerdo com o direito. E eu fiquei andando com esse sapato o passeio todo, tal, não sei o que, quando eu voltei, minha mãe tirou o sapato, viu que tava trocado e o meu pé estava cheio de bolha e ela falou assim: “Por quê que você não reclamou? Por quê que você não falou com o seu pai?” e eu tinha uma coisa de não reclamar, não chamar a atenção sobre mim, que era um pouco isso que me incomodava na escola, assim, de você ter que se mostrar, você ter que se provar, você ter que aparecer ou se destacar, essa lógica de tentarem entender quem você é através de provas ou dessas situações. E eu tinha uma relação, assim, com o sofrimento e com a dor… eu tive duas pneumonias quando eu era criança e tomava muita Benzetacil que doía muito, depois não conseguia mexer a perna e tal. Aí, na hora que eu tava pra tomar a Benzetacil, eu ficava pensando assim: pense no que Jesus sofreu (risos), uma criança muito dramática, né? Pensa no que Jesus sofreu, você só vai tomar uma injeção, Jesus ficou preso na cruz (risos) com uma coroa de espinhos, você só vai tomar uma injeção. Então, eu achava que… é engraçado, eu não sei da onde saiu isso, essa lógica, esse temperamento, mas tem a ver um pouco com essa coisa do sapato de não reclamar e de passar as coisas, achando que as coisas… sei lá, não sei se eu não queria… é louco falar isso, se eu não queria machucar o meu pai ou assim, a chance de ter o meu pai passeando comigo era uma coisa tão especial, que eu não queria atrapalhar aquilo. Ou se o preço a se pagar para passear é ter um sapato apertado, tudo bem, vamos. É pouco.
P/1 – Então, você falou isso do seu pai, ele era uma pessoa distante? Como que era a sua relação com ele?
R – Não, ele… o meu pai era muito focado no trabalho, mas quando ele tava com a gente, ele sempre queria fazer coisas, queria levar a gente pro mundo, ele queria mostrar coisas pra gente. Então, tipo no Rio, a gente foi pra tudo quanto é lugar no Rio de Janeiro no final de semana. Ele sempre foi… e acho que isso é do temperamento dele, ele era uma pessoa… ele foi um menino criado em hotel, que gostava muito de ouvir rádio. Então, ele ouvia muito as histórias de fora, dos viajantes, quem vinha contava uma coisa e ia embora. Vinha de tal lugar, vinha fazer isso, vinha fazer aquilo e depois ia embora, então tinha uma dinâmica muito grande de repertorio de gente. Muita gente entrando e saindo, muita gente trazendo coisas, roupas diferentes, sotaques diferentes, línguas diferentes, jeitos, caras. E acho que… e é engraçado, porque a minha vó e o meu avô que moravam no hotel, não só trabalhavam, eles moravam, todo mundo morava no hotel, não viajavam. Viajavam muito pouco, muito pouco mesmo, a vida toda, viajaram pouco. E acho que o meu pai foi contaminado por essa coisa do fascínio pelo deslocamento, pelo mundo, pelos sotaques, por tudo isso, porque o meu pai viajava muito, muito. E não só a gente mudava muito de cidade, como ele viajava e viajava pra lugares, assim, pouco usuais. Muito por conta do trabalho. Meu pai foi para o Irã na década de 80, foi pro Japão, e isso eu achava incrível. Meu pai assinava “National Geographic” desde 70, sei lá, quando eu nasci, já tinha e “National Geographic” em casa. Era uma coisa… eu achava aquilo lindo, lindo. Eu achava a melhor revista do mundo. Eu nunca li uma matéria da “National Geographic” até hoje, mas as fotos… aquilo me… aquilo me tomou assim, como… me embebeu como uma esponja ali, mergulhava naquilo, porque tinha a vida selvagem, tinha a paisagem, tinha o interior, a casa das pessoas e era bonito, era que nem a Bíblia, assim, pra mim.
P/1 – Marco, você falou de Jesus, da Bíblia, como é que você começou a ter a vida religiosa?
R – Engraçado, tinham algumas coisas… uma das primeiras lembranças que eu tenho também, das poucas que eu tenho de Curitiba e eu devo contar umas quatro, só, é eu na casa de alguém, que eu tinha ido dormir com os meus irmãos, não sei porque, na casa de quem que era e tinha na TV tocava aquela música [cantando]: “Feiticeira, feiticeira…”, e eu tinha medo dessa música (risos), eu tinha medo da música da feiticeira. Tinha uma mistura que não era só a religião, mas era esse mundo do invisível, dos fantasmas, dos espíritos e isso falava muito fundo pra mim, muito alto, assim. A coisa da religião, eu acho que pra mim foi no Rio de Janeiro, minha mãe era presbiteriana, meu pai é católico não praticante. É engraçado falar “não praticante”, porque o meu pai é muito cristão, mas não é de igreja, ele é praticante da vida prática, mesmo, não de ir lá na igreja e fazer a… enfim, ele não precisa disso para a vida dele. E minha mãe era filha de presbítero, né, na igreja presbiteriana, é um líder religioso ali, meio comunitário. Meu avô era, que eu conheci pouco, porque ele morreu quando eu era bem novo. E no Rio, eu tenho essa sensação de que eu andava com a minha mãe procurando igreja. Eu acho que até essa coisa dela me levar para ver o filme de Jesus era um pouco isso, porque eu acho que no Rio, ela não achou uma igreja presbiteriana e a gente andava… eu lembro também de estar passeando e ver uma igreja e ver Jesus, porque a igreja presbiteriana não tinha Jesus, né, você não tem imagem, não tem o Cristo na cruz, não tem santo. E ao mesmo tempo, minha vó era católica do lado do meu pai, família do meu pai, católica e ela tinha aquela Bíblia grande assim, com as bordas douradas e abria aquilo e tinham vários quadros renascentistas, tal, com as cenas bíblicas. Aquilo era meio “National Geographic” pra mim, sabe? E mais ou menos, também, o exercício de ligar as fotos no cartaz dos filmes. Eu ficava vendo aquelas imagens, a sequência das imagens e tudo muito forte na cova dos leões, ainda mais Antigo Testamento, né? A vida de Cristo é forte, mas o Antigo Testamento é um negócio… Moisés abre o Mar Vermelho, as sete pragas… é só… Caim e Abel, irmão mata irmão. O pai que vai sacrificar o filho porque Deus falou que ele tem que matar o filho e no final, era uma prova, as provas, né? Isso sim é uma prova, não saber que o M tem quatro pernas ou tem três (risos), isso era bobagem. Prova é isso. E aí, aquilo era muito forte, me falava muito e eu tinha muito interesse. Em Brasília, já, a minha mãe achou… Brasília era uma cidade incrível para criança, não só para criança, mas acho que pra gente ali, e pra mim, especificamente, foi muito bom. Uma, porque tinha gente de todos os lugares, então todo mundo era estrangeiro, que no Rio todo mundo fala com sotaque, né? “Garrfo”, “culherr”, todo mundo fala com sotaque e o Rio se encerra em si. É a capital do Império até hoje. E ser estrangeiro no Rio é uma coisa que não passa despercebida, que em Curitiba fala “leeite queente”, você chega numa escola falando desse jeito, cara, não tem como você ficar invisível. E essa coisa do sotaque, né, em Brasília, tinha tudo quanto era sotaque. Na minha classe, tinha um menino que chamava ____01:08:25_____, que era filho de um funcionário da Embaixada da Índia, eu achava aquilo a coisa mais incrível, incrível assim! Como a pessoa chama ____01:08:34____, que coisa maravilhosa! Tinha asiático, tinha negro. No fim da rua tinham os funcionários de uma fábrica da Nova Baixada, eu acho que era da Nigéria. Então, abria muito o leque, assim, de como são as pessoas, era mais ou menos morar dentro de um hotel (risos). Brasília era como um hotel, também. As experiências… acho que a vida tem um movimento meio que espiral, você passa pelos mesmos lugares, mas expandindo ou recolhendo, mas as situações, vira e mexe, elas se repetem. E Brasília tinha essa dinâmica de famílias que mudam, você tava na rua, uma hora a família ia embora porque acabou o mandato do pai. E nisso aí, em Brasília tinha… claro que ia ter igreja presbiteriana, assim como tinha templo budista e hoje você passa em Brasília, tem lá uma parte lá que é o setor religioso, que tem tudo quanto é igreja, uma do lado da outra (risos). E eu ia muito na igreja com a minha mãe, mas eu achava a igreja presbiteriana meio sem graça, porque não tinha imagem. Não tinha Jesus na cruz sangrando, aquela coisa do sofrimento, o drama da religião (risos) não tinha, mas eu ia, escola dominical, não sei o que, mas minha mãe se desentendeu na igreja, porque começaram a perseguir uma mulher que tinha sido… que divorciou, que se separou do marido e aí, na igreja, começaram a exclui-la das atividades e a minha mãe falou: “não, isso não é cristão, isso não é uma atitude de quem tem uma conduta religiosa e aí, minha mãe caiu fora. Eu estudava no colégio marista em Brasília, que era dos irmãos marista, Marcelino Champagnat, tal, então eu tinha aula de ensino religioso, tinha muita oração, e nessa época que é a época que eu comecei a me perguntar sobre a vida eterna, a vida depois da morte, eu falei: “Eu quero ser padre, porque os padres sabem o que acontece”.
P/1 – Isso, você tinha quantos anos?
R – Uns oito.
P/1 – Então, oito foi uma idade que…
R – Oito pra nove… não, em Brasília devia ter nove. Nove anos, nove pra dez, porque dez é quando eu cheguei em dois dígitos, e eu falei: “Nossa, eu já tenho dois dígitos, tenho dez anos”, foi uma conquista assim, mas ainda faltava muito pra chegar em 18. Mas ali, nessa época dos dez anos, eu pensava essas coisas: eu quero ser padre porque aí, eu vou saber dos mistérios aí da vida e da morte depois da vida, a vida eterna, o que tem para fazer na vida eterna. Eu achava que eles escondiam coisa da gente, porque não contavam tudo. E lá no colégio, tinha uma capela e uma luz meio neon, assim, com uma sanca, parecia uma luz e uma porta no fundo assim, atrás dessa parte que era o palco… palco é engraçado, né, (risos), onde ficava o padre ali, e aí, eu achava que atrás daquela porta estavam todos os segredos, que se eu atravessasse aquela porta, lá iam ter todas as respostas da existência, da vida, da morte, da criação. E eu achava que eu só poderia passar aquela porta se eu fosse também padre e por isso, eu queria ser padre. Mas na minha classe tinha um menino que era muito mal comportado, era um péssimo aluno, péssimo. Fazia tudo errado, tudo que não podia e ele passava de ano. E a mãe dele era dona de uma agência de turismo lá em Brasília e os irmãos marista, quando dava as férias de julho, quando voltava agosto, eles apareciam lá tudo rechonchudinho, assim, os irmãos velhinhos com o cabelinho branco, gordinho, com a blusa do Mickey. Eles iam pra Disney, eu falava: “Meu, esses irmãos não estão nem aí pra vida eterna, eles querem ir pra Disney, eles passam aquele menino de ano, filho da dona da agência pra ela dar passagem pra eles irem pra Disney” (risos).
P/1 – Você pensou isso naquela época?
R – Naquela época. Aí, eu falei: “Não, eu não quero mais ser padre”, e na época, eu tava lendo muita ficção científica, Júlio Verne, Wells, essas coisas, “A Ilha do Doutor Moreau”, essas coisas, eu falei: “Eu quero ser engenheiro genético, porque a ciência deve saber mais coisa, esses caras de religião não sabem nada, é um bando de gente que só quer saber de ir viajar”. E aí, eu botei na minha cabeça que eu ia ser engenheiro genético, que aí, eu ia… alguma coisa eu ia descobrir. Mas tinha uma outra coisa no Rio que aconteceu que tem a ver com religião. Uma vez, o meu pai e a minha mãe viajaram e eles mandaram a gente para ficar com o seu Flavinho. Seu Flavinho era o motorista da Embratel e era um senhor negro, ele tinha um filho que devia ter uns 13, 14 anos. E a gente ficou na casa dele um final de semana. E tava tendo festa de rua, uma festa na rua, ali onde eles moravam, eu acho que era Nilópolis. E era Cosme e Damião. E era um negócio tão lindo e tão vivo e tão quente, a relação com a religião, com os santos, essa coisa, a experiência da luva, de entrar na luva assim, você fala: “Nossa, é um lugar…”, eu não conheço essas pessoas, eu nunca tinha visto negro em Curitiba e ali, tava cheio de gente negra, e naquela festa, naquele afeto, naquele acolhimento, mesmo. E era uma experiência religiosa diferente da igreja que tinha uma carga dramática e densa. E aquilo era leve e era uma festa pra criança, né? Na igreja, não tinha festa pra criança, pelo menos eu não lembrava de festa pra criança. Tinha uma coisa mais doutrinarias, assim, de te ensinar a vida de Cristo e tal, não sei o que, mas como uma prova, até. Uma experiência parecida com a da escola. Não era assim, prazeroso, eu tinha interesse naquilo, mas aquilo não me dava o que eu queria. Os doces, tinha doce… imagina (risos), aquilo era incrível! São coisas assim, às vezes, eu fico perguntando pro meu pai: “Quem teve essa ideia de mandar a gente pra casa do seu Flavinho?”, a gente não tinha parente no Rio, provavelmente, a gente era recém-chegado na cidade, meu pai deve ter tido que ir viajar para alguma outra coisa, sei lá, com a minha mãe, falou: “Flavinho, meus filhos podem ficar na sua casa?” (risos). E aí, esse menino fazia também umas decorações… o filho dele com isopor, fazia uns estandartes de time de futebol com lantejoulas, essas… purpurina, esses negócios, fazia do Flamengo, do Botafogo, do Vasco e o meu irmão era louco por futebol, meu pai também, então para ele, aquilo tinha… pro meu irmão, assim, ver aquilo de fazer uma coisa do time dele (risos). Engraçado. Foram dois dias muito especiais. Talvez tenha sido um dia, talvez a gente nem tenha dormido lá. Eu acho que eu dormi lá, eu lembro disso assim, muito forte. E eu passei… mesmo depois que eu falei: “Eu quero ser cientista”, e tal, me interessavam as coisas todas, histórias de fantasma, assombração…
P/1 – Então, você lia muito?
R – Lia, eu lia muito. Muito. Adorava ler.
P/1 – Você era o único que lia na família? Todo mundo lia? Quem que te passou esse…?
R – Meu pai lia, meu pai tinha biblioteca. Meu pai, eu queria ser tudo o que o meu pai era, queria fazer o que o meu pai fazia, assim, meu pai tinha uma biblioteca com todo o Sitio do Pica Pau Amarelo em capa dura. Tinha todo Dostoievski, tinha Tolstói, eu achava aquilo lindo! O mundo dos livros, a Bíblia… a Bíblia, acho que a Bíblia, culpa da Bíblia (risos).
P/1 – Mas aí, ele levava a biblioteca para as casas…
R – Levava. Ele levava a biblioteca, a biblioteca ia junto, a gente se mudava e levava a biblioteca.
P/1 – E aí, como que você começou a ler, assim? Como é que foi…
R – Eu lembro de um livro que eu tinha… o meu primeiro livro foi o livro de um astronauta. Eu não lembro o nome, mas era um livro comprido, com capa dura e tinha esse astronauta amarelo e era uma história dele num planeta, ele sozinho num outro planeta. Eu adorava esse livro, eu levava esse livro, assim, era o meu livro, esse livro é meu. E eu tinha essa relação tátil com o livro também, de sentir o papel, da cor, não era só a história e o texto, era o objeto, porque era a relação que eu tinha com a Bíblia, de pegar a capa… eu sinto a Bíblia até hoje, se eu faço assim, eu sinto a capa daquela Bíblia, do papel, o barulho daquele papel fino dobrando, a letra miúda e quando chegava na página que tinha o quadro, que o papel era outro, era liso, bem liso, mais grosso. E você virava e tinha lá um facho de luz caindo entre Daniel e o leão (risos), aquilo era incrível! Incrível! É um poder de história e de drama, dos desafios. Imagina, a baleia que engole… quem que é mesmo que vai?
P/1 – Jonas.
R – Jonas na baleia, Jonas viaja na barriga da baleia, é incrível. São histórias maravilhosas. Acho que não tem nada mais impressionante do que a Bíblia, assim, pra uma criança. Uma criança ser submetida aquela intensidade de drama, de horror, de milagre, de maravilhas! Como que você não vai ficar impressionado por aquilo? Chuva de gafanhotos (risos). É muito incrível, o filho que a mãe bota a manjedoura num cesto, joga num rio, aí o filho é adotado pelo rei e depois, vira o inimigo do rei? É uma história maravilhosa. E aí, depois que a minha mãe se afastou da igreja e eu me afastei dos irmãos marista, eu comecei a ler muito ficção científica que por outro lado, eu acho que o que me interessava assim, era essa experiência transcendental, que é o que vai além do que a gente conhece, dessa coisa não é tacanha, mas dessa coisa cotidiana e mais limitada, assim, limitada à vida, acordar, comer, tomar banho, dormir, ir para a escola, não, não pode ser isso. Por que a vida vai ser infinita pra gente ficar fazendo essa coisas? isso é muito pouco! Não pode ser. Eu achava que era mais coisa. Tinha mais coisa.
P/1 – Então, a sua procura foi por um pouquinho da religião, leitura, tinha algum outro momento assim, maior de procura por essa experiência?
R – Então, aí o que aconteceu foi já aqui em São Paulo, quando a gente mudou com 14 anos, começou a morrer muita gente na família. Morreu minha vó, morreu minha tia que era mãe do meu pai, que cuidou da minha vó, era oncologista. Morreu meu primo que pra mim, era como um irmão mais velho, eu projetava muito nele, assim, ele morava aqui em São Paulo, ele era mais velho que o meu irmão, ele gostava de música que eu também gostava, gostava de livro e depois, morreu o pai dele, quando a gente mudou pra São Paulo, a gente morava na Cauibí e eles na Campevas, era mais ou menos assim, o quarteirão aqui, minha casa aqui e a deles aqui, dava fundo com fundo. E esse tio tinha um VHS, tinha vários filmes pirata em casa, então eu também assisti muita coisa de filme ali e esse tio morreu logo em seguida do meu primo e depois disso, morreu a minha mãe. Então, foi uma leva assim numa janela de acho que… uma janela de cinco anos, morreu muita gente. E aí, nessa época, comecei a ler livro espirita, o Evangelho segundo o Espiritismo, o livro dos espíritos, do Allan Kardec. Minha mãe, quando ela tava doente, meu pai… um vizinho do prédio ofereceu ajudar, ele era espirita e aí, ele chamou a gente, eu, meus irmãos, o meu pai, a gente ficou em volta da cama no quarto dela, ela deitada, aí ele e a esposa fizeram uma prece, fizeram um trabalho ali com meia luz pra ajudar ela e aquilo foi forte também assim, sabe, de ver. não tinha mais jeito, fisicamente, não tinha mais jeito a situação da minha mãe. mas meu pai tentou tudo, tudo! E o meu pai é um homem da ciência, ele engenheiro. E ali, o que tivesse, ele ia tentar. Mas não deu, minha mãe morreu rápido, assim, depois que… não vou nem falar que descobriu, porque o meu pai escondeu da gente, ele não quis contar, então na hora que já não dava mais para contar foram dois meses.
P/1 – E aí, o quê que você lembra disso? Você tinha quantos anos?
R – Eu tinha 19, já era grande, né?
P/2 – Eles se separaram, você tinha quantos anos?
R – Não, eles não se separaram. Sempre… mas é engraçado você falar isso, porque minha mãe quis se separar na véspera assim, dela adoecer de vez. Ela… acho que a minha mãe teve uma vida… minha mãe tinha uma dinâmica muito diferente da do meu pai. Meu pai era esse cara com essa sede de mundo, é esse cara que quer viajar, que quer aprender, quer conhecer, quer ler, quer saber, quer ir, quer encontrar a gente, quer aprender língua e minha mãe foi criada em sitio, assim. Ela tinha uma relação com a terra, com a família. Ela era uma pessoa, assim, profunda de raiz, assim. E essa coisa da gente ter ido para Curitiba, depois ter ido para o Rio, depois ter ido pra Brasília e não termos residência, porque as casas eram do governo, né? Não eram nossas casas. A gente estava sempre ocupando um espaço que não tinha uma construção, não tinha um vínculo e que a gente deixaria, a gente estava sempre de passagem. Quando a gente voltou para São Paulo, aí o meu pai tinha saído do serviço público e o meu pai sempre foi uma pessoa muito honesta, então ele era meio que considerado um bobo para o ambiente do funcionalismo público, porque ele saiu lá sem roubar, sem ter feito um caixa por troca de favor ou seja lá o que for. E quando a gente veio para São Paulo, tinha a casa de Curitiba, mas não tinha… a gente não tinha um endereço fora, e a minha mãe sempre falou para o meu pai: “Compra um apartamento em São Paulo, que os meninos quando crescerem, vão estudar lá”. Quando a gente foi pra São Paulo, o meu pai tava… antes, o meu pai tava na Telebrás em Brasília e quando… isso foi tudo em Brasília, foi forte, assim, a gente viveu as Diretas Já em Brasília. Eu fui no dia da votação (risos) lá na Câmara, fui na Esplanada, né, e eu lembro que eu tava de Havaianas e a rampa tava molhada e o chinelo Havaianas gruda e solta, eu voltei pra casa com um pé só de Havaianas (risos). A gente tinha uma vivência… engraçado, Brasília também te deixa muito perto das lógicas do poder ali, de quem tá no poder. A filha do Amaral Neto estudava na minha classe, Amaral Neto, o repórter que era deputado na época, eu não lembro se ele era deputado ou senador, mas acho que era deputado. E ela era hostilizada, assim, ela pelo pai dela, né, as coisas que o pai dela falava, tal, que ele era um cara mega conservador e com ideias bem ultrapassadas ali para o momento que a gente tava… já era… tinha passado a abertura do Geisel, tava no Figueiredo, já tava na transição. Mas enfim, quando morreu o Tancredo e o Sarney assumiu, o Ministério… a Telebrás foi para o Antônio Carlos Magalhaes que era aquela figura notória, enfim, do coronelismo baiano, tal, e aí, o meu pai falou: “Não dá para trabalhar, o ambiente fica impossível de trabalhar”, aí ele saiu e foi trabalhar aqui em São Paulo, na Promon que era uma empresa que ele achava que tinha a ver com o que ele acreditava. meu pai tinha sido convidado para trabalhar na NEC no Japão e ele falou: “Não, eu quero trabalhar pelo meu país”, ele tem uma coisa nacionalista assim, pouco ufanista e muito prática. Então a coisa dele era; “A gente tem que botar telefone no Brasil todo. Como que a gente faz para botar telefonia no Brasil?”. Depois, já na iniciativa privada, ele conseguiu ganhar a concorrência de chinês, enfim, de empresa chinesa que não é fácil. Mas ele tinha essas grandes coisas, assim, olhava muito longe acho e às vezes, olhava pouco pro que estava perto. E quando a gente foi pra São Paulo, minha mãe ficou muito frustrada, assim, de voltar para uma condição, já com os filhos grandes, grandes assim, eu tinha 14, meu irmão, 16, minha irmã 12 e o mais novo, 11. Meio que de recomeçar, sabe, de estar sempre recomeçando, recomeçando, ter que fazer uma casa de novo, montar uma casa de novo, achar escola, onde que faz supermercado, quando é a feira. As coisas práticas da vida. E ela quis morar, falou: “Já que a gente vai, vamos morar do lado da minha irmã”, que era essa minha tia. E pra gente foi um choque também, assim, porque abria a janela do quarto e dava pra um prédio. Em Brasília é aquele céu na sua cabeça. Eu tinha muito nítido, assim, a hora que a gente… era engraçado, essa primeira impressão de chegar num lugar. A hora que a gente chegou em Brasília, eu lembro da cor, que era mais opaco, era tudo mais opaco, que a gente chegou acho que em maio, junho, era outono, as cores não eram vividas, tinha uma coisa da secura, tinha um… o jeito que você chega, né, nos lugares e que eles te pegam.
P/1 – E aqui?
R – Aqui era cinza, 85 era cinza, cinza. Barulhento, feio, não tinha essa coisa da rua, não era plano. Brasília, pegava uma bicicleta e ia para qualquer lugar. Não tinha essa dinâmica de rua, eu não fiz amigos na minha rua. Meus irmãos fizeram, eu não consegui. Tinha uma coisa muito agressiva, defensiva nos meninos. Aí, eu fui fazer amigo na escola, não na oitava série, oitava série foi muito difícil. Uma classe que só tinha homem. Nunca gostei desses ambientes que são só masculinos. Time de futebol, estádio, Exercito, acho um horror isso. E eu fui estudar no Bandeirantes e era uma classe masculina, eu cai na pior classe que também tinha essa separação por nota e logo no começo, um menino, um gordinho, ele tinha um cabelinho de anjo, assim, chegou e me deu um soco na barriga assim. E eu fiquei sem respiração. Eu nunca tinha tomado um soco, eu não conseguia brigar e eu queria, várias vezes, eu quis brigar, queria brigar e eu não conseguia. E o jeito, aquele bando de menino de 14 pra 15 anos juntos numa sala quente, ou fria, ainda no último lugar da escola, numa escola bem competitiva, foi um horror. Um horror. Aí, no primeiro ano… eu não era alguém com dificuldade, assim, eu sempre tive amigos, poucos, mas sempre tive nesses anos de escola. Primeiro ano, eu fui pra Biológicas, porque eu queria fazer Genética e também era uma classe só de homens, mas era um corredor que tinha muita mulher. Aí, foi um alivio, assim, estava equilibrado,, mas era uma coisa distante, né, porque porra, cara! Não era uma coisa de convívio, assim, na aula que você ouve a pessoa falar e tal. Você ficava vendo as meninas ali, mas você nem sabia que voz elas tinham. E tinha uma tensão. Imagina, cara, você bota 50, 100, 150 meninos de um lado, 150 meninas do outro lado, com 14, 15, 16 anos! Não pode! Não pode separar, é uma sacanagem, né? Tanto que acabaram com isso depois, demorou, mas acabaram. Mas aí no segundo ano, eu fui pra Humanas, porque no primeiro, eu vi que eu não ia ter jeito com Biológicas, porque o livro de Biologia era desse tamanha assim e a única coisa que entrava, realmente, na minha cabeça era a parte de Genética e isso eu ia bem, o resto eu não conseguia. Sempre tive e ainda tenho dificuldades com a área médica (risos), com o universo da Medicina. Me interessa… claro que interessa o funcionamento do corpo, das plantas, dos animais, tal, da vida, né? Isso me interessa, mas acho que de uma forma mais… me interessa mais pelo mistério e não pela… por dessecar (risos), é isso, o assombro que eu falei do assombro… essa coisa de ser assombrado pela vida, assim, a vida quando você olha uma célula e vê como funciona, quando você vê como que é a estrutura da planta, da raiz, do caule, da folha, da flor, do fruto, fala: “Nossa, que negócio impressionante, como é isso? Como que isso existe? Como que isso funciona? Pra quê que isso é assim? Por que cada coisa é de um jeito? Por que tem mamífero no mar?”.
P/1 – Mas aí, nesse momento, você saiu e falou: “Vou mudar de área”?
R – Aí, eu falei: “Eu vou fazer Cinema”. Cinema pra mim tinha uma… com essa coisa de mudar de cidade, porque às vezes, a gente mudava assim, quando a gente foi do Rio pra Brasília, meu pai deixou a gente… meu pai era muito prático, então, pensava sempre no jeito prático de liar com as coisas, com as situações. Ele deixou a gente no acampamento em Tatuí, no sitio do Carroção e aí, quando a gente voltou, a gente já foi pra Brasília, a gente não voltou para o Rio. Então, eram rompimentos, também, assim de: não olha pra trás, era mulher de lote, né? “Não olha pra trás que você vai virar cinza”(risos), olha pra frente. Então, não tinha um… era um corte seco, não tinha uma fusão: “Tchau, tô indo, vamos mudar para não sei onde, daqui um mês eu vou para o Rio de Janeiro, eu vou para Brasília…”, não tinha. Virou, deixava tudo pra trás, tava no outro lugar. E aí, eu sabia que onde a gente fosse, ia ter um cinema. Então, cinema era meio a minha igreja, sabe, minha mãe procurava igreja e eu procurava cinema e o cinema era essa luva, esse lugar que você sentava, era escurinho, você não via ninguém, aí você cia um filme, você sonhava de olho aberto, via as fotos. Qualquer cidade que eu tivesse, ia ter um cinema, até em Tatuí tinha cinema, como que não ia ter cinema em Brasília? Como que não ia ter cinema no Rio? Então, o cinema era a minha igreja, assim, nesse sentido de… era o meu armário. Eu me trancava ali, eu ficava ali e eu via aquelas histórias incríveis que nem tinha na Bíblia. Juntava, as fotos vinham todas seguidas, inteiras, e eu ficava vendo aquelas histórias.
P/1 – Marco, eu queria voltar para esse momento da morte da sua mãe. Primeiro, você falou que ela queria se separar, então me conta um pouco como era essa relação, você percebeu que ela queria se separar já doente, inclusive…
R – Não, não é nem que eu percebi, ela falou, ela chamou todo mundo e falou que ia se separar e tal. Eu lembro do meu pai dormindo no sofá da sala e aquilo chegou nele assim, muito sem ele perceber, sabe? E foi muito doído ver aquilo, ver o sofrimento dele e dela.
P/1 – Foi a primeira vez? Essa situação não tinha acontecido…
R – Eu lembro deles terem brigado quando eu era criança, mas não lembro direito porque, o meu pai é uma pessoa muito tranquila, assim, ele não é uma pessoa explosiva, nem nada, ele não se altera muito. Minha mãe, não, ela tinha uma carga emocional ali forte, ela brigava, chorava, ela expressava muito assim, o sentimento.
P/1 – E aí, me conta esse dia que ela falou que ela ia se separar.
R – Ela tava muito infeliz, eu me lembro que ela falou que tava muito infeliz, ela… eu já tinha, antes, falado pra ela, assim, que ela precisava trabalhar, que ela precisava achar alguma coisa, que a gente já tava grande, ela precisava fazer alguma coisa dela, pra ela, que ela quisesse fazer. E nessa época, assim, ela tentou trabalhar em imobiliária, hoje assim, agora pensando, assim, claro que ela ia trabalhar em imobiliária, tanta casa que ela morou, porra (risos), ela sabia ver uma casa e ver se a casa era boa ou não era boa, qual que era o problema, qual que era a qualidade de uma casa, já tinha passado por tanto lugar, em tantas cidades. A experiência que ela tinha era essa, de ver casa! Mas não deu certo porque acho que ela também não tinha perfil de venda, o negócio dela não era ser vendedora. Minha mãe tinha muitos talentos assim, além da coisa da casa e do acolhimento que ela era muito boa nisso, ela cuidou muito bem da gente, foi uma excelente mãe. Meu pai também foi um excelente pai e ainda é, mas essa dinâmica deles, eu acho que não… eu acho que o meu pai não entendeu que ela era feita de uma outra coisa.
P/1 – Ela chamou o seu pai, chamou vocês e…
R – Chamou a gente e falou… eu não lembro direito também, eu não sou um cara que tem uma memória fotográfica das coisas, eu lembro mais da sensação, eu lembro mais do que eu senti…
P/1 – O quê que você sentiu?
R – Talvez nada do que ela tenha falado e eu tenha sentido ou escutado do meu jeito.
P/1 – O quê que você sentiu na hora?
R – Tristeza, uma tristeza enorme ali, eu fiquei pensando como que essa pessoa guardou essa tristeza tanto tempo. Não pode! Como? Tanta insatisfação, tanto tempo guardando. Vai comendo por dentro, né? E aí foi logo depois que ela adoeceu. Eles não se separaram.
P/1 – Por que não se separaram?
R – Não sei, mas eu acho que aí foi… eu acho que não é que ela queria se separar, sabe, eu acho que ela queria mudar. Não sei se o problema era se separar, o problema era mudar. Então o jeito de externar isso é falar: “Eu vou me separar”. É um jeito de falar assim: “Para, você tá fazendo errado”. Você, ela e ele, né, como dinâmica de casal, assim. A gente tá fazendo nesse negócio errado, tem alguma coisa que não tá funcionando para mim, porque para ele tava, então foi o jeito dela falar: “Não, pra mim não tá funcionando”. E o meu pai é muito aberto, mas muito fechado. Depois que a minha mãe morreu teve um dia dos pais, eu deveria estar com… sei lá, ainda com 19 anos, eu não sabia o que dar para ele. Aí, eu comecei a escrever, escrevi uma carta para ele e falei assim: “Eu ia te comprar um presente para você, mas eu não sei o que dar, eu não sei quem você é, assim, não sei do que você tem medo. Eu sei as coisas que você gosta, tal, do dia a dia, mas eu não te conheço de verdade, de verdade. E eu também não conseguia falar, mas conseguia escrever. Aí, eu dei a carta pra ele de dia dos pais. Aí depois, ele veio chorando e falou assim: “Nunca mais faça isso comigo”. E ali, eu vi assim, que era uma limitação que ele tinha, que eu acho que foi melhorando, assim, é emocional mesmo, de lidar com alguns assuntos mais profundos, e que meio: aqui eu não consigo entrar. E eu sempre fui estranho pra ele, assim, as minhas escolhas de vida sempre eu fui… é engraçado essa coisa de ser segundo filho, né, em quatro. meu irmão mais velho era o mais velho, minha irmã era a menina e o Beto era o caçula, eu era o segundo. E sempre foi um lugar, para mim, cômodo, porque era o lugar que eu gostava, um passinho pra trás, ali. Eu fazia natação, eu gostava de nadar, mas na hora da competição, eu nunca era o primeiro, porque eu não queria ser o primeiro, então eu sempre chegava em terceiro, porque eu queria ganhar medalha, mas eu não queria ser o primeiro. Então, essa coisa de se esconder, de ficar atrás, de errar a resposta de propósito era um lugar que me dava um certo espaço, um folego assim, é como… não tem uma pressão em cima de eu ser alguma… não tem uma projeção de: “Eu vou ser isso ou eu vou ser aquilo, eu vou dar certo na vida”…
P/1 – Você não pensava nisso?
R – Não gostava que isso tivesse em cima de mim, essa carga.
P/1 – Você tinha uma…?
R – Eu tinha.
P/1 – O quê que você queria ser?
R – Eu acho que eu queria ser bíblico, eu queria ter uma vida daquela (risos), eu queria ser… essa coisa, eu queria ser atropelado pela vida, eu queria que a vida me tomasse, sabe? Da mesma forma que toma uma árvore e a árvore, quando tem a cerca, ela cresce em cima da cerca. Eu queria essa força. Eu queria… cadê a vida? Essa coisa que eu tinha quando eu era criança: “Cadê a vida?”, cadê esse negócio que toma as pessoas? Que arranca de um lugar e leva pro outro? Que faz o cara atravessar deserto, abrir o Mar Vermelho, eu queria isso, eu queria a experiência de estar vivo, essa intensidade assim, e era uma intensidade que era interna, não era uma coisa externa, assim, de fazer grandes obras e pá, pá, pá. Não, era sentir essa força, que é a experiência religiosa, é essa dessa religação e desse contato com a força da vida, com esse assombro, essa… é uma possessão, eu quero ser possuído pela vida, era isso, que pra mim, Deus era a vida, pra mim, Deus é vida. Vida é Deus, assim. E nisso, não com essa clareza, mas assim, eu queria fazer filme, eu queria fazer filme porque enfim, eram as pessoas com quem eu dialogava, com quem eu me identificava, elas estavam nos livros e nos filmes.
P/1 – Tinha algum tipo de filme específico que você…
R – Claro!
P/1 – Qual?
R – Ah, eu lembro a primeira vez que eu vi Fellini, “Amarcord”, a gente morava em São Paulo, eu tinha 15 anos, passava na Globo, tinha essas sessões Coruja, sei lá, uma e meia da manhã, tal, não sei o que, eu ficava acordado, eu dividia o quarto com os meus dois irmãos, tinha uma TV que ficava numa cadeira e aí, eu pegava o lençol ou o cobertor azul, se fosse inverno (risos), cobria a TV e me cobria assim, eu ficava dessa distância da TV, botava o volume baixinho e fazia esse cineminha só meu e eu ficava lá de madrugada vendo filme. Eu lembro de Fellini, quando assisti “Amarcord”, assistindo eu ficava assim: ‘Nossa! Pode isso? Pode ter isso num filme? Um filme pode ser assim?”, que essa coisa do assombro, né, nesse caso, com a linguagem, o que é possível, como que eu posso falar? Eu posso falar assim? Posso fazer assim? Eu posso ser assim! Eu não preciso ser formatado, sabe, encaixado. Na! Eu quero expandir, eu quero explodir, assim, e isso que eu acho que eu via ali no Fellini, essa coisa… essa exuberância, assim, da vida, não tem vários narradores, o filme vai para um lugar, vai para o outro, não sei o que… era vivo, aquilo era vivo, vivo de verdade! E aquilo ali, eu falo: “Nossa, isso aqui e muito bom, isso aqui…”, e tinha a imagem, né, que a Literatura, eu gosto muito, eu gosto do texto, da palavra, mas a imagem, a imagem, você… o livro, você faz o filme na sua cabeça e cada um faz o seu. Mas o filme, não, você dá o seu livro, ali, em imagem pra alguém, você coloca ali, você fala: “É assim… eu vi assim, eu vejo assim”. É aquela cena do… que tem um menino que tá ali, prestes a entrar na puberdade, e ele vai para a escola de manhã e tá aquela neblina e ele vai andando, ele começa a ouvir um som, não há respiração e ele vai ficando com medo e aí, quando ele olha, tem um touro na frente dele. E ele para assustado e aquele touro respira [som de respiração profunda], nossa, é isso que eu queria fazer, era isso! Porque aquilo tem uma forca, assim, desse menino se deparando com essa virilidade, com a coisa da potencia, da vida ali, da força, da energia concentrada ali para se colocar em movimento e você jovem, se deparando com a vida adulta, com um potencial realizável, tanto ali de tudo, de força, de sexo, de… o bicho adulto, né, o animal adulto é uma coisa muito bonita, você ver um animal adulto, ele é meio uma… a realização plena da vida, da criação, desse mistério, do mistério, mesmo um gato, você vê um gato adulto subindo no muro, andando, atravessando uma linha fina, assim. É bonito e o filme tinha isso, assim, não tinha uma fala, não era o diálogo, não tava escrito, era imagem, uma atrás da outra com som. É isso, eu quero fazer isso. Tinha a ver com sonho, mais do que com Literatura, com a palavra escrita. A palavra escrita, ela é uma forma, né? A imagem, às vezes, ela é… é revoada, ela é profunda, ela é quase de pegar. O quê que a gente tava falando?
PAUSA
P/1 – Eu queria retomar, perguntando assim, qual foi a sua primeira experiência reconhecível com sexo, que você lembra na sua vida.
R – Acho que a primeira coisa não foi… claro, tem a ver com sexo, foi na escola, tinha uma menina, lá no Rio, achava ela linda assim, ela tinha um cabelo preto, escorrido e ela tinha um tom de pele, ela parecia uma índia. Eu achava ela linda, linda. E eu tava fazendo prova, tinha acabado a prova e eu não gostava de entregar em primeiro, eu tava esperando alguém entregar. Aí, um cara entregou, um outro menino, aí ela entregou, aí eu entreguei a minha porque quando terminava a prova, a gente ia pra uma varanda que tinha na escola que era um castelo, no Pueri Domus. Eu lembro de ficar eu e ela e esse outro cara ali, esse outro menino que não interessava, mas assim, tinha alguma coisa assim, de estar com alguém que eu achava interessante, que eu queria que ela me visse, também, porque eu tinha essa coisa de não ser visto e na hora, tinha hora que eu precisava ser visto e era um dilema, assim: e agora que eu preciso ser visto, o quê que eu faço? Como que eu faço para ela me ver? Era mais essa coisa assim, da tensão de estar com alguém que você deseja, né? Mas isso, assim, foi só nesse… acho que foi a primeira vez que eu percebi assim, que havia uma atração muito forte no sexo oposto e que eu olhava e que aquilo me puxava, assim, aquilo… eu queria estar com aquela pessoa, sei lá, eu queria pegar naquela menina (risos), eu queria abraçar, eu queria beijar, eu queria… é isso, então eu acho que a primeira vez, assim, que eu me dei conta disso foi ali, ali de… e de me sentir como alguém que… alguém convidado, sabe, um convite, assim, mais do que um convite, é meio que um empurrão, é uma força que é maior do que você e que você fala: “Nossa, esse negócio aqui me tomou, eu quero isso”. Depois… engraçado, são duas experiências no Rio. Uma vez, a gente foi num sitio que acho que era uma fazenda que tinha sido de escravos no Rio e tava o meu pai, tinha um outro amigo dele do trabalho que tinha duas filhas, a mais velha era encrenqueira, ficava brigando com o meu irmão e a segunda filha era da minha idade e a gente se dava bem. E eu achava ela linda, assim, não linda que nem essa moreninha lá, índia, que era uma coisa que eu não sabia direito o que fazer. Era uma que era mais moleque, então, eu conseguia brincar, eu conseguia pegar, conseguia me relacionar, assim, não tinha um culto estético, enfim, um distanciamento quase de obra de arte que você fala: “Não, isso aqui eu não posso pegar”, não pode botar a mão, nessa, não. E aí, eu lembro que tinha essa coisa da fazenda e que tinha um lugar que era dos escravos, tal. E a gente pegou um saco de carvão e a gente se pintou todo de preto, mas aquilo de estar ali com ela, de ter se pintado e de uma alegria, um prazer, um prazer de estar com uma mulher assim, não tinha o sexo, não tinha, tinha oito anos, mas aquilo era bom. Ali tinha um negócio que era incrível! Eu era um pouco tímido, assim, sempre fui muito desconfiado e eu sou desconfiado, eu chego num lugar, eu meio que sinto o lugar, é meio automático assim: essa pessoa posso confiar, essa aqui não, essa aqui tenho que ficar atento. E antes, com essa coisa de mudar muito de lugar, eu sempre fui muito observador, eu chegava e ficava olhando para entender que língua esse pessoal fala, como que eles se comportam, como que eu vou fazer. Em Brasília, a gente tinha essa vida muito de rua, tinha muita menina junto ali, com a gente, mas não tinha meninas da minha idade, elas eram mais velhas e geralmente, elas se interessavam por mais velhos, né? E aí, sempre tinha na minha classe umas que eu gostava e tal, mas eu não tinha ímpeto, assim, de namorar, de beijar, de… eu não conseguia. Mas eu gostava disso, tinham duas meninas na minha classe que eu adorava e era assim, tinha sempre uma que era uma relação meio estética, de nossa, ela é linda, tal, tal, tal, mas é demais e aí, tinham essas que eram meio moleques, assim, que nem eu que eram engraçadas, que eram espontâneas e essas, eu sempre me dava bem, assim, e tinha uma relação mais fácil, né? Eu lembro que teve uma festa da escola e foi todo mundo pra um churrasco na casa de alguém, tinha piscina, tal, não sei o que e aí, tinham duas coisas que aconteceram comigo, engraçadas. Uma, um menino chegou e mostrou um baralho com um monte de mulher pelada e eu achava… eu tinha um pouco de essa coisa de igreja, meio de culpa, sei lá o que e falava: “Não, isso não é para a minha idade”, mas logo depois teve uma brincadeira na piscina e aí, uns meninos estavam correndo atrás dessas duas meninas que eu gostava e eu defendi elas, elas ficaram todas felizes e ficaram me abraçando e as meninas molhadas me abraçando, nossa, eu achei aquilo o máximo (risos). Esse dia eu ganhei o dia (risos). E aí, em Brasília, quando começou, que eu tava com 14 anos, quando eu comecei a ir nessa coisa de bailinho e ter as pessoas que eram da minha idade, as meninas que eram da minha idade, de dançar música lenta, tal, não sei o que, fomos pra São Paulo.
P/1 – Mas então assim, a sua primeira experiência afetiva foi aqui?
R – Foi. Foi em São Paulo. Não, não foi aqui em São Paulo, a primeira vez que eu beijei alguém foi na praia.
P/1 – No Rio?
R – Não, em Santa Catarina. A gente ia muito pra Santa Catarina. Quando o meu pai morava em Curitiba, quando a gente morava em Curitiba, meu pai comprou uma casa em Camboriú, depois ele vendeu, mas a gente continuou indo para Florianópolis, todo ano a gente ia para Florianópolis, a gente viajava muito de carro, porque todo ano ia para Tatuí e depois, voltava para Florianópolis pra passar o verão em Florianópolis. passava Natal e fim de ano em Tatuí com a família do meu pai e a família da minha mãe e depois, voltava. E aí, já morando em São Paulo, a gente foi para Florianópolis e tinha uma menina lá de Santa Catarina, lá de… ela era caiçara, linda, uma menina super bonita e aí, eu lembro que nossa, eu gastei um latim, eu falei, falei, falei acho que dez vezes mais do que eu precisava (risos), até tomar coragem, porque eu tinha um pouco de medo de rejeição, assim, de falar: “Puta, a menina não vai querer ficar comigo”. E aí, a gente se beijou e eu fiquei super… tinha uma coisa assim, de eu gostar e de outro lado, depois, me dava um medo, não sei, era um negócio muito esquisito, era um negócio que eu recolhia, eu não… avançava e depois, recolhia. E a primeira vez que eu transei, mesmo, também foi lá. Tinha alugado a mesma casa, acho que uns dois anos depois com uma menina que era gaúcha e era bem mais velha que eu, mas aí eu já tava mais… eu tinha entendido mais como que funcionava esse negócio da paquera e de você envolver, ir conversando (risos). Porque era engraçado assim, o meu irmão mais velho e os amigos dele eram tipo os galãs do Bandeirantes, porque eles eram da melhor turma de Biológicas, eram todos sarados, faziam academia e amulherada corria aras deles, tinha essa coisa, assim, de macho alfa, mesmo, que eu nunca tive, nunca fui… não me encaixava no ambiente masculino, assim, eu não gostava de futebol, não gostava de bater em ninguém, dessa coisa de ficar falando de porrada, não gostava de ficar contando vantagem, essas vantagens mentirosas que os caras contavam, não gostava de carro, que era assim, geralmente, era isso, era carro, futebol, e falar de mulher como se fosse objeto mas de uma forma muito burra, assim. Essas coisas não me interessavam em nada, nada, nada! E mulher tinha uma coisa que eu gostava que era… mulher falava de outras coisas.
P/1 – Mas isso aqui, na escola?
R – Isso eu fui perceber aqui em São Paulo, quando a gente entrou em turma mista que era de Humanas. Aí, eu fiquei com quase todas as meninas da minha classe.
P/1 – Você ficou com elas?
R – É, eu fazia um rodizião, lá (risos).
P/1 – Essa sua primeira experiência, assim, foi indo, não foi uma marca especial na sua vida, não foi um momento…
R – Não, porque era tudo muito pontual, não era uma coisa que continuava. Teve essa menina do sul, mas aí, ela foi para Porto Alegre e eu fui para…
P/1 – E qual foi a sua primeira experiência, assim, mais importante em termos amorosos, com sexo ou amor, assim, qual foi a sua primeira…
R – Engraçado, teve uma namorada que… ela tinha um namorado que viajava muito, ele ficava muito tempo fora. E eu era louco por ela, assim, totalmente tomado pela ideia, não só pela ideia, mas era uma coisa que acho que… acho que nesse começo, assim, de convívio com o sexo e com a relação afetiva com outras mulheres, eu era muito ligado à ideia de estar apaixonado, de gostar de alguém, desse alguém e tal, não sei o que e não era tanto na prática, sabe? Da prática, assim, quando eu falo do dia a dia, do convívio, de uma coisa mais cotidiana, era uma experiência da aventura.
P/1 – E essa namorada?
R – E ela tinha um namorado que viajava muito, ficava muito tempo fora, tal, não sei o que e aí, acho que a gente foi num show, Michael Jackson no Morumbi, um negócio assim, e eu comecei a dar em cima dela ostensivamente, assim, tipo assim: “Não quero nem saber que você tem namorado, eu quero ficar com você, eu não tô nem aí, não me interessa, interessa eu e você, a gente. A gente tem um negócio que tem que acontecer”, e aí, aconteceu e foi incrível, foi muito bom, mas ainda era muito no plano da ideia, sabe? Mas só que era assim, eu sentia demais, chorava. Depois quando a gente se separou, a gente beijou até sangrar, era um negócio (risos), um negócio dramático (risos), pessoa descompensada, assim, no sentimento… aí, eu sentia muito… aí depois disso, eu falei: “Quer saber, agora? Eu acho que agora eu preciso me relacionar com prostituta, porque aí, eu não vou me envolver desse jeito emocionalmente”, então… aí eu passei um tempo indo só em prostituta. Aí, eu comecei a achar aquilo curioso, eu gostava mais de conversar, de saber o que era, como, porque. Mas isso foi uma fase, também, que eu tinha uns amigos, tinha essa coisa, é engraçado, né, o universo masculino tem uns roteiros assim, pré-estabelecidos que é difícil você fugir. E quando se aproxima dessa dimensão emocional, de investigar o quê que você sente, como você se sente, como que é, tudo te joga pra você cair fora, né? Não existe um… é como se fosse um tabu essa coisa, isso aqui não pode, você não pode sentir tanto (risos).
P/1 – Mas… é assim, eu só tava querendo traçar, trazer, quer dizer, então isso foi indo, a primeira pessoa que você realmente se envolveu, tal, foi com quem você veio a casar, depois? Como é que foi essa sua trajetória até…?
R – Não, eu demorei muito. Muito pra conseguir me envolver de verdade com alguém, que eu acho que foi só com a Minom, mesmo. Mas aí tem um história longa. Eu achava que eu era meio… eu achava que eu tinha uma coisa quebrada em mim, assim, que eu tinha alguma coisa que não funcionava direito, várias… da minha adolescência até os 20 e poucos, eu sentia várias vezes, assim, vontade de ser atropelado ou de apanhar, que alguém me batesse muito. Que eu acordasse depois de sei lá, dois anos no hospital e tivesse passado dois anos. E eu não conseguia estabelecer quando que eu começava a namorar alguém, que não tinha um impedimento, que gostava de mim, eu gostava dela, vinha um negócio e cortava, sabe? Cortava, era como se eu precisasse mudar de cidade. Precisa ser… eu não conseguia construir um vínculo, não conseguia construir uma relação, eu não conseguia… eu conseguia entrar na pessoa, na mulher com quem eu tava, mas eu não deixava que entrassem em mim, sabe? Eu me protegia, eu me escondia e eu sabia me esconder. E aí, eu levei muito tempo pra conseguir me libertar disso, assim, e foi um processo longo, muito longo, porque aí começa a entrar também, a minha vida espiritual mais prática. Depois que a minha mãe morreu, o meu pai fiou muito mal, muito mal mesmo. E depois de uns anos, dois anos, sei lá, ele começou a aparecer com umas namoradas, ele não mostrava as namoradas, a gente sabia. E aí, uma hora, ele trouxe uma namorada lá dele pra apresentar, que ele acabou casando com ela, ela engravidou, teve a Natália, que é a minha irmã mais nova, desse segundo casamento e essa mulher dele, a Rita e a mãe dela que chama Deusa, elas eram do vale do Amanhecer de Brasília, que era um negócio que mexia muito comigo, quando eu morava em Brasília, a tia Neiva que era a criadora do Vale morreu no ano que eu sai de Brasília e eu achava aquilo muito impressionante, não consigo nem dizer assim, como, mas aquilo mexia muito comigo. E aí, elas tinham essa vivência prática de espiritualidade e abriu um universo pra mim, assim, disso.
P/1 – Exatamente como? Elas te levaram lá?
R – Não, eu quis ir, mas eu não passava nos trabalhos, que tem atendimento de trabalho que você fala com entidade… o médium incorporado com o preto velho, aí você passa… eu não passava nos trabalhos, eu só olhava…
P/1 – Você ia ver?
R – Eu nem passava em passar.
P/2 – Você ia olhar?
R – Eu ia olhar e achava aquilo incrível, tal, só olhava. Mas ao mesmo tempo…
P/2 – Mas aqui em São Paulo?
R – Não, lá em Brasília eu fui ver.
P/2 – Você ia lá?
R – Ela era de Brasília, depois eles mudaram pra Campinas. Mas como ela não… tinha tido um racha ali, delas lá com o Vale, elas acabaram procurando muito outras coisas. E nisso, eu ia junto. Ia ver e participava e tal, acabei fazendo, sei lá, iniciação em Reike, Kriya-Yoga, um monte de coisa, mas eu também não me encaixava nessas coisas que eu experimentava, ali, não… mas foi abrindo, só que foi engraçado porque foi um período de convívio com elas em que eu fiquei que nem aquele menino… eu naquela idade que fiquei preso no banheiro, na brincadeira, foi um pouco isso. Eu me fechei muito, assim, da minha vida, das minhas coisas e pra entrar num universo que era delas, não era meu. E eu me permiti… depois… eu levei tempo pra entender o quê que aconteceu comigo, que foi um… eu tinha alguns ajustes ali que eu tinha que viver com o meu pai e com elas, também, de entender família, de entender vínculo, porque foi como se eu tivesse entrado numa seita assim, sabe? E é engraçado, que a minha vida aqui em São Paulo parou de trabalho, parou tudo, eu não tinha trabalho, não tinha… eu tava muito desencontrado do que eu fazia. Quando eu tinha 13, 14 anos, 14, 15 anos, quando a gente mudou para São Paulo, eu achava que eu não ia chegar nos 25. É engraçado, né, porque eu queria ser velho e quando tinha dez, eu queria ter 18 e quando tinha 18 eu já não lembrava porquê que eu queria tanto ter… estar vivo. Eu achava que eu ia morrer cedo, com uns 24, 25 eu ia morrer. Eu tava de saco cheio já, queria embora, achava esse negócio aqui muito besta, estar vivo aqui. Aí, a Rita um dia, a gente tava em casa no apartamento lá em São Paulo, aqui na Rua Tupi, que a gente morava, na frente do Palmeiras, meu pai é palmeirense, meu irmão também, eles gostavam de ficar perto do Palmeiras. Tava a minha irmã e uma amiga dela e a Rita e a Deusa. E aí, essa amiga da minha irmã tava… tinha entrado em Direito, era uma menina super inteligente e ela tinha comprado esse pacote do estudante de Direito do grêmio acadêmico de esquerda, tal, são uns pacotes que a gente compra mesmo, né? E eu falando pra ela: “Cara, você é muito maior que isso, não se feche nisso, você é amis do que só esse quadradinho, você se fechou num estereótipo”, e minha irmã chorava: “Você não pode falar assim com ela” (risos). E aí, eu sei que a Rita falou assim pra mim: “Você agora tá preparado” “Preparado pra quê?” “Tem um trabalho que se você quiser, eu posso fazer com você” “Tá bom” “Só que você precisa parar de beber uma semana, não pode se drogar…”, e na época, eu bebia muito e me drogava bastante, assim, na verdade, eu já tava parando. Eu comecei… a gente… a vida na cidade aqui em São Paulo, o ritual de passagem para vida adulta é de sexo, drogas e rock and roll, né, assim, nesse sentido. Se você não transa, não bebe, não enche a cara, não fuma maconha ou cheira cocaína ou seja lá o que for, você não virou adulto, que é uma das coisas mais ridículas que tem, mas enfim, é o código. E eu entrei nesse código e também li “On The Road”, essas coisas, Jack Kerouac, Bukowski, Bukowski, zona oeste com 15 anos é um clássico paulistano, né, o cara lá, classe média, achando que é o Bukowski. Coisa mais ridícula que tem, mas são… as vias de transcendência são essas, é uma merda. Hoje assim, ou você… meu irmão que fala, você vai ou pro… ok, você não vai pra igreja? Você não vai procurar nada de religião? O que vai sobrar pra você é consumo e droga, bebida, droga. São as vias de transcendência, assim, bem limitadas. E eu já tava assim, virando… eu já tinha virado aquela caixinha de droga e de álcool e eu falei: “Não tem nada aqui, isso aqui é mais uma ilusão”, essa sede de infinito que eu tinha quando eu era criança, de vida, tal, olhava aquilo e falava: “Não cara, isso aqui é a ponta do engodo”, mas eu tava um pouco assim, na ressaca. Aí, quando ela falou: “Para”, falei: “Paro”, vamos achar outro lugar, esse daqui não dá certo. E aí, cara, eu lembro que ela fez um negócio que eu ficava deitado e eu não sei o quê que ela fazia lá, eu sei que foram três dias, no terceiro dia, saiu um negócio de mim, eu vi, assim. E era um ser, saiu um ser esquálido, assim, seco…
P/1 – Saiu?
R – Saiu, saiu. descolou de mim, saiu.
P/1 – Mas você viu a imagem?
R – Vi. Saiu. E ali, parecia que eu tinha ressuscitado. Saiu um peso de morte de dentro de mim, assim, e era como se eu voltasse para uma coisa fresca, viva e muito pura, assim, sem medo, sem culpa. E eu lembro que aí, eu fui viajar com uma amiga pra Chapada dos Veadeiros. Era muito amiga minha desse período, tinha sofrido muito, tinha passado por esse negócio de droga, enfim… e lá, a gente passou no Vale do Amanhecer no caminho, eu e ela. Não passamos nenhum trabalho, mas achamos aquilo incrível, fomos pra Chapada dos Veadeiros. Isso eu tinha 20 e sei lá… 22, não acho que eu tinha o quê? Vinte é quatro? É, 23, 24 acho. E foi uma coisa assim da natureza, uma reconexão com a natureza que me fazia falta. Quando eu tava na faculdade, isso foi já no fim da faculdade, mas quando eu tava na faculdade, me chamaram pra fazer um trabalho, eu já trabalhava, entrei na faculdade só pra cumprir rotina. Eu queria ter parado de estudar, largado a escola com 15 anos, minha mãe falou: “Não, não faca isso. Você precisa… é um tempo que… é um tempo que nem cozinhar, sabe? Não interessa se você tá gostando ou se você não tá gostando, se você sair da escola, você vai ficar cru”. E foi um tempo mesmo, a escola e a faculdade foi um tempo de cozinhar, ali, de ficar cozinhando, eu fiquei esperando acabar, cumpri e fui embora, foi mais uma obrigação dessa coisa de ser criança, assim, de ter que cumprir essas coisas. Mas na faculdade, eu já trabalhava, eu já queria trabalhar, desde criança, eu queria trabalhar e aí, eu já trabalhava e um dos trabalhos que me chamaram foi pra fazer um making off, na época nem chamava documentário porque… mas enfim, chamava de making off de um registro de uma travessia de balão no Cânion Itaimbezinho, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina e eu falei: “Claro, vamos!”, aluguei uma câmera, tal, raw 8 e fui com esse pessoal, que eu não conhecia ninguém, nenhum deles. E eu não tinha prática de acampar, a gente ia muito pra natureza, tinha muito contato com o mar, o mar era… eu passei a infância indo para o mar, o mar é um negócio muito forte assim, pra mim. Mas eu não tinha a vivência de campo e ali, nesse Cânion, a gente ficou acampado sete dias, com barraca e eles eram muito bons esse pessoal, eram dois irmãos que tinham esses balões, a mulher de um deles e tinham dois fotógrafos, um que era amigo e outro que era contratado pela Fuji, os balões tinham o patrocínio da Fuji, eles iam fazer a travessia, era a primeira travessia de balão do Cânion e o outro fotografo ia fazer fotos para o calendário da Fuji. Eles tinham muita prática, então tinha um acampamento que era restaurante, tinha energia, mas a gente tomava banho no rio, de manhã, com água… sabiam onde acampar, que tinha o rio pertinho, tinha um buraco lá para fazer coco, que enterrava, lá, todo mundo fazia no mesmo lugar. E eu, rapidamente… eu tenho uma facilidade de me adaptar, isso é um dos benefícios de ter mudado muito de cidade, de escola e de casa, de ambiente. E aí, tinha essa coisa do… eu tinha que acordar muito cedo, porque o balão tem que voar logo de manhã, por causa da pressão atmosférica, então acordava, estava tudo escuro, aí a hora que começava o sol nascer, tinham aqueles campos enormes e tinha teia de aranha em todo matinho, você olhava a teia de aranha cheia das gotículas de orvalho, de manhã e aquilo tudo brilhava assim. E quando o dia tava nublado, o Cânion fica quase mil, 980 e tantos metros a nível do mar e a 100 quilômetros distante do litoral. Quando você chegava na borda, você via a praia lá, você tinha um campo de visão de mais de 100 quilômetros e as nuvens batiam no paredão e faziam assim e subiam e quando você tava, você tava no meio das nuvens, assim, parecia um bolo que subia um glacê naquela camada enorme. E aquilo era tão lindo, tal, tão bonito, tudo assim, o negócio do balão, de você voar de balão, o balão não faz barulho, né, só o maçarico que faz [som do maçarico] e aquele negócio faz [som do ar] e o vento leva e você vai indo. Aquilo foi um negócio muito, muito lindo e no final, eles pediam pra escrever, todo mundo escrever um texto falando das impressões, tal, e eu fiquei inseguro assim, de escrever e eu fiz um texto meio… não cínico, mas assim, com um humor meio defensivo. E o fotografo que era um cara fechado, bem paulistano assim, não só o tipo físico, mas o jeito de se locomover e de fazer as coisas, muito sério, muito focado, tal, não sei o que, fazia pouca piada, o cara escreveu um texto, meu, com uma capacidade assim, de se desnudar, de falar que não era piegas, era bonito, era autentico, era verdadeiro e falando da relação dele ali com a natureza, de como ele via as coisas. Eu achei tão impressionante, por um lado, assim, eu me senti tão idiota de ter me defendido, me escondido no texto e não ter falado como aquilo mexeu comigo, porque também ali eu não conseguia dizer o que aquilo fez comigo. Ver aquilo, estar ali, tomar banho de rio gelado, andar. A gente jogava frisbee nesses campos, assim, porque tinha muito tempo sem fazer nada, também, né? O balão só voa de manhã e não voou, esquece. Mas é essa coisa de eventos, assim, que te mostram que é possível, né? Então, eu falei: “Nossa, o cara faz um trabalho desse e tem essa sensibilidade toda e ele consegue, ele é fechado, ele é esquisito, tal, não sei o que, mas ela dá vazão para essa coisa e é um homem, não é uma mulher, é um cara falando dessas coisas, então isso, dá pra ser assim”. E aí, quando eu fui para a Chapada dos Veadeiros com a Mila, essa amiga, teve essa coisa também assim, da natureza. Essa experiência meio religiosa, assim, de você ser tomado pela força da vida, sabe? Você entrar embaixo de uma cachoeira e aquele negócio [som da cachoeira] te amassar todo. O sol, de ver cristal nascendo numa pedra. Teve uma reconexão.
P/1 – Isso foi depois desse evento…
R – Depois que saiu essa coisa de mim, aí. Teve isso e aí, eu senti necessidade, que ficou um buraco. Eu, fisicamente, sentia um buraco, que esse negócio ocupava dentro de mim um lugar. E aí, ficou um buraco. E aí, eu vou encher esse buraco de natureza, né, que era a experiência que eu tinha tido naquela viagem, toda viagem lá e eu falei: “Agora eu vou e vou de cabeça nesse negocio”. E foi… aí, desde então, nunca mais perdi essa relação com a natureza, com a natureza bruta, assim, meio intocada, esses grandes templos de vida, da vida em que a gente não foi lá meter a mão e fazer besteira, ainda, dentro do possível. Então, de tempos em tempos, eu sempre vou para um lugar assim, preciso estar nesses lugares. Mas aí, voltando, que tudo isso é pra responder a minha dificuldade de me relacionar. Eu fiquei muito na orbita, uma assim, a Natalia, essa irmã, quando ela nasceu, eu fiquei muito, muito envolvido com ela, assim, a gente tem até hoje, uma relação muito forte. Tem vezes que eu sonho que ela tá chorando, eu acordo e falo: “Preciso ligar pra Natalia, ela não tá bem”, aí eu ligo, eu falo: “Oi”, ela começa a chorar: ‘Tá acontecendo isso…”, então eu tenho um vínculo muito forte com ela. E aí, minha vida em São Paulo parou com os 28 anos, eu falei: “Quer saber? Eu vou mudar para Campinas”, meu pai estava morando lá, aí eu fico mais perto da Natalia e saio um pouco daqui de São Paulo, estava morando perto do Minhocão, e depois de ter tido assim, esse contato com a natureza, eu falei: “Não dá, eu preciso mudar meu ritmo, acho que a vida tá me tirando daqui, tá tudo fechando”. Aí eu vendi o apartamento que eu tinha ali perto do Minhocão, comprei um em Campinas, no centro bem mais tranquilo e falei: “Vou fazer site”. Na época, eu tinha já trabalhado com publicidade, filme publicitário, tinha trabalhado na MTV, aí eu falei: “Quer saber? Eu vou fazer site, vou aprender a fazer site, vou fazer site, vou parar com esse negócio, não tá funcionando”. E aí, quando eu… eu estudei, aprendi a fazer, fiz um pra mim, fiz outro, tal, fiz um outro, nunca fiz pra ninguém, botei um anuncio no jornal: “Faço sites”, achando que isso ia resolver a minha vida. No dia que o anuncio saiu, me ligou uma amiga chamando para fazer um documentário de um registro de um projeto de Educação chamado “Escola que Vale”, feito pelo CEDAC, que era uma ONG da Teresa Perez… é, vocês fizeram também, só faltava eu ter feito o de vocês, mas era na mesma leva, acho que o Alex fez, o Alex Gabassi fez Museu da Pessoa, foi. E eu fui pra outra cidade, eu fui pra Açailândia. E eu fiz em Açailândia um registo de contação de história. E nessa época, assim, eu… já tô abrindo muito, senão, eu vou para outro lugar aqui…
P/1 – Vamos voltar pra…
R – Aí, eu voltei a trabalhar, eu trabalhava pouco em Caminas e muito em São Paulo, mas os trabalhos não eram em São Paulo, eu viajava, era sempre pra gravar fora e tal e aí, eu comecei a fazer a minha coisinha ali em casa. Mas minha vida orbitava entre esses trabalhos que eu fazia, a Natalia e essas coisas espirituais, ali, com a Rita e com a Deusa. Mas eu fui tolhendo muito assim, minhas amizades, eu fui encolhendo, acho, por um lado a minha vida, mesmo com a expectativa, assim, de fazer as coisas de documentário, mas muito com um caráter um pouco messiânico de: vamos mudar o Brasil pela Educação, sabe, era muito utilitarista assim, não tinha tanto viés poético da coisa, de fazer imagens. Sempre tinha, claro, tal, mas era muito ancorado nessa desculpa de que eu estava fazendo para melhorar o mundo. Essa ideia de que vamos melhorar o mundo, vamos melhorar o mundo, que é a coisa bíblica assim, nesse sentido messiânico, missionário, franciscano, parecia que eu tinha feito um voto de pobreza, assim. Minhas casas, primeiro apartamento que eu morei, eu não tive sofá, não tinha nada, tinha só um colchão (risos), duas cadeiras e uma mesinha. E eu vivia com muito pouco, sempre. Nunca tive… sei lá, eu tinha uma relação difícil com dinheiro, também. Meu pai se recompôs e conseguiu trabalhar, ganhar dinheiro, se estabelecer, ele é uma pessoa bem de vida, assim. E eu tinha um pouco de dificuldade com essa coisa do dinheiro, também. Eu tinha culpa, eu tinha muita culpa, culpa… eu era uma pessoa com uma experiência católica assim, sem ser católico muito enraizado, aquela coisa dos santos, de São Francisco… e essa experiência com elas acabou me levando para essa coisa tolhida da igreja, sabe? De se diminuir um pouco para caber naquele lugar. Por um lado, foi uma experiência boa pra eu aprender várias coisas, mas foi muito bom no sentido em que eu fui me espremendo pra me adequar aquilo, fui me espremendo, até a hora que eu falei: “Eu não caibo aqui, o meu lugar é outro”. E eu só consegui sair disso, dessa situação que eu me coloquei porque quando eu já tava com 37 anos, foi dez anos atrás, eu falei… e nessa época, eu no conseguia arrumar namorada, eu não conseguia nada, era impressionante! É como se eu tivesse bloqueado, como se eu tivesse aquele imã, fazia assim, não chegava mulher, não tinha! Foi uma loucura, eu passei anos sem… passei acho que uns dez anos sem sexo. Assim, foi a experiência do Catre. Eu fiquei ali, como se tivesse num mosteiro, tendo uma vida que eu acordava cedo, que eu fazia as minhas coisas, eu me entendia, tinha essa relação com a Natalia, tal, mas a dimensão sexual foi meio que… não foi sublimada porque ainda tinha, sabe, eu tinha vontade de me envolver com alguém, de me relacionar, mas eu não conseguia e era um campo, mesmo, que impedia. Aí, chegou… vai fazer dez anos, exatamente, foi dia 30 de abril. Eu falei: “Quer saber? Eu vou lá no Vale e vou passar nos trabalhos como paciente”.
P/2 – Você não tinha passado, ainda?
R – Nunca! A primeira vez que eu fui lá, eu tinha 24 anos, eu tava com 37, 13 anos, eu cheguei a ser batizado no Vale com 33 anos e nunca tinha passado nos trabalhos, eu falei: “Eu vou passar nos trabalhos”. Aí, eu sentei lá para ser atendido, tinha muita gente…
P/2 – Em Brasília?
R – É. Muita gente na minha frente. Aí, começou um ritual lá que levou sei lá, duas horas e interrompeu o atendimento. Eu falei: “Hoje eu não saio daqui, não saio daqui sem ser atendido”. Aí, passou mais sei lá, mais uma hora, sei lá, acho que eu fiquei umas três horas esperando, quatro horas, sei lá, foi muito tempo. Aí, a hora que eu sentei do lado ali, do preto velho, ele pegou minha mão e falou assim: “Meu filho, você demorou, mas você chegou”, eu desabei a chorar e eu senti, assim, que eu tinha chegado em casa, que essa coisa que eu procurava, que eu encontrava na natureza e não conseguia achar em outro lugar, sabe? Um descompasso que eu tinha com a vida e com… um desencaixe dessa coisa aí, a coisa da luva, assim, de chegar e falar assim: “Nossa, é aqui”. Aí, ele me falou um monte de coisas da minha vida, me falou um monte de coisas e era engraçado, porque eu já tinha ido em centro espirita antes, e sempre me falavam assim: “Você tem todas as mediunidades. Você tem poder de cura, você deveria ser médico”, eu falava assim: “Eu não tenho nada”, eu pensava assim comigo: eu não tenho nada. Ninguém vai mandar em mim. Eu não vou fazer nada disso, não tenho mediunidade nenhuma, não quero ver nada, não quero nada, nada! E eu acho que eu bloqueei isso, assim, com essa teimosia minha. Foi uma teimosia mesmo de falar: “Não quero aceitar essa parte da minha vida”, eu tinha muito interesse, estudava tarô, estudava, enfim, tudo que você imaginava, eu estudava, astrologia, tal, mas eu não entrava. Essa coisa que eu falo na relação, também, com as mulheres, que eu não deixava elas entrarem em mim. Eu ia pro mundo, mas não deixava esse mundo chegar em mim, não deixava vida me tomar, a não ser com a natureza. A natureza… como a natureza não é uma pessoa, não é uma ideia, não é um conceito, ela é uma experiência muito imediata, muito física, não passa pela mente, aquilo pra mim não teve jeito, aquilo me pegou, né? E foi… a porta de entrada para me reconectar foi a natureza. E aí, esse preto velho falou um monte de coisas pra mim e eu falei assim: “Eu quero começar agora a trabalhar, agora!” (risos). E aí, de fato, eu voltei para Campinas, descobri onde que tinha um templo, ali, do Vale e falei: “Olha, eu quero começar”. E aí, dia 11 de maio eu comecei. Eu sei poucas datas da minha vida, bem poucas. Essa é uma que eu sei com precisão. E aí, eu comecei a trabalhar e aquilo começou a… lá tem dois tipos de mediunidade: incorporação e doutrina. Incorporação é o que tem no Candomblé, tem enfim, você se coloca ali, à disposição, o espirito vem, ocupa o seu corpo, tem no kardecismo, tal, e ele fala, faz o trabalho, tal, acabou, ele vai embora; e doutrina é uma mediunidade que você está consciente o tempo todo, é um outro tipo de trabalho. É um trabalho em que você faz uma conexão entre céu e terra, entre o que é daqui e o que é de lá, chamando assim, mas na verdade, as coisas são todas juntas, e você trabalha muito com o encaminhamento de energias, isso é meio que alquímico, assim, você transforma, manipula energias densas e a sutiliza por um processo magnético e isso é feito depois que você passa por uma série de iniciações em que o seu corpo sutil é trabalhado. Liga uma chave no seu corpo sutil e no seu corpo físico. E a medida em que você vai trabalhando, você vai aumentando a sua capacidade de manipulação de energia. Tem vários trabalhos que são feitos lá e são, basicamente, trabalhos de atendimento para pessoas que se dispõem a ir lá, como paciente. E tem toda sorte de problemas e todo tipo de gente, então essa coisa missionaria minha que eu coloquei na Educação durante muito tempo, no final, ali, eu achei o lugar certo, de conseguir fazer alguma coisa por alguém, de conseguir ajudar alguém, de conseguir fazer… tirar uma pedra ali, que tá atrapalhando alguém no caminho. E o trabalho foi me reconectando assim, porque quando eu falo magnético, é magnético, mesmo. O que acontece é que dá uma aprumada, o trabalho deu uma aprumada na minha vida, assim, no sentido de eu ir ao encontro do que é meu e não pensar mais no que é do outro. E nisso, assim, pessoas que eram próximas se afastaram, pessoas distantes se reaproximaram e minha vida foi… muito rápido, foi ganhando uma velocidade, uma intensidade porque eu acho que também eu tava muito pronto pra entrar nisso e pra deixar isso me tomar, a vida me tomar e era a minha vida que tava chegando. lá tem trabalhos de atendimento para público e tem trabalhos pra gente, que fala que é do mestrado, pessoas que foram iniciadas e depois que passam de um certo grau, tem um trabalho que acontece uma vez por mês em que a gente conversa com espíritos desencarnados, com os quais a gente tem uma relação de dívida, assim, que a gente fez algum desatino aí, prejudicou e ficou um laço mal resolvido, é uma espécie de terapia, né? A Minom fala que é tudo metáfora, no começo, ela falava: “Essas metáforas, tem horas que você pega umas metáforas invocadas dessas aí, é difícil tratar como metáfora”, e aí a primeira vez que eu fui nesse trabalho, nessas coisas, eu me jogo muito, eu falei: “Deixa eu ir”, porque você tem a opção de ir com um médium de incorporação sozinho ou ir com um doutrinador mais experiente e ele fala com o espirito por você. Ele te ajuda a conversar com esse espirito, porque não tem essa prática da conversa com… porque no Vale, o que se chama de os espíritos menos esclarecidos que são esses que ainda não compreenderam que tem uma jornada que não se encerra aqui, na tridimensionalidade e nesse plano mais denso, eles não se comunicam com os pacientes, só espirito de luz fala lá, os outros, não, eles são para serem atendidos, curados ali nas dores e tal. E a primeira vez que eu fui nesse trabalho, eu fui lá todo: “Vamos fazer, tal”, aí a menina incorporou, aí quando incorpora, eles fecham, assim, travam porque a assistência espiritual que trabalha ali traz esses espíritos, às vezes, amarrados, tanto que não tem esse negócio de espirito sair chutando, tal, não sei o que, de vez em quando acontece, mas essa é outra história. E aí, eu sei que esse espirito chegou ali, olhou pra mim assim, de olho fechado, mas eles estão te vendo e falou assim: “Esperei muito pra ver você aqui. Você sabe por que nenhuma mulher chega perto de você? Porque eu não deixo. Você sabe o que você fez? Você estuprou a minha mulher na minha frente, depois matou ela. Você fez isso com várias da minha tribo”. Aí, eu gelei assim, aí eu falei: “Mas você não tá vendo como tá a minha vida? Eu não encosto numa mulher a mais de dez anos, eu não faço mais essas coisas”, ele falou: “Eu sei, por isso que eu vim aqui. Você demorou pra chegar, agora você tá livre, é por sua conta. Mas você continue fazendo o que você tá fazendo, não tenho raiva de você, eu te perdoo e eu vou embora, eu e o meu povo, vamos todo mundo, você tá livre da gente”. Aí, eu conheci a Minom já porque eu tinha trabalhado com a Jasmim e com a Asa na época que eu me batizei, com 33 anos e aí, eu conheci a Minom a primeira vez lá com elas, eu olhei e falei assim: “Nossa, que mulherão, rapaz, o que é isso!” (risos). E depois, eu fui uma vez no apartamento da Jasmim e a Minom tava com um namorado lá, aí eu falei: “Vixi, ela não leva isso a sério, não”, assim, de olhar: “Ela não leva esse cara a sério, não, isso aí não é nada, não”. A gente trabalhava… eu trabalhava com a Jasmim, irmã dela e a Jasmim, a gente fez uma coisa juntos, um vídeo lá que elas não sabiam o que fazer, não sei o que e eu editei e a Minom é que… aí dessa vez, a Minom que falava comigo, porque eu já tinha feito outras coisas com a Jasmim. E a Minom falava assim… porque nessa coisa da minha vida monástica, eu chegava pra trabalhar oito e meia, nove horas e seis da tarde, fechou, eu ia embora, porque eu vinha de uma experiência de trabalho muito desregrada na publicidade, tal, essas coisas, de virar à noite, de se entupir de café. Um dia, numa filmagem de madrugada, eu tava tomando uma Coca e aí, eu falei: “Nossa, essa Coca tá com um gosto estranho”, e no final, tinha uma bituca, eu falei assim: “Caceta cara, eu tomei essa Coca quase inteira com uma bituca, eu não tô sentindo, eu parei de sentir as coisas, eu tô adormecido, esse negócio aqui tá errado, eu tô fazendo… não é por ai”, então eu sempre fui muito intenso, assim, nas coisas que eu me coloco, né? E eu quis ter uma experiência mais regrada de trabalho, de não virar à noite, de ir até às seis, aí dava seis da tarde, eu ia nadar. E a Minom, também, uma pessoa intensa, mas numa coisa já desregrada de trabalho e tal, falava assim: “Não, eu preciso falar com você, tal” “Só até às seis, seis horas eu paro”, aí ela ligava seis e um, eu não atendia, aí ela ligava no outro dia puta comigo e falava assim: “Pô, você não me atende…” “Ué, o quê que eu vou te fazer? O que você precisa falar comigo às seis da tarde que você não pode falar amanhã às nove? Morreu alguém? Vai acabar o mundo? Rapaz, segura a sua conta aí, nove da manhã a gente se fala” (risos) e ela ficava… aí depois, eu soube que ela falou pra Jasmim assim: “Você pode trabalhar com qualquer pessoa, menos com esse seu amigo” (risos). Aí, aconteceu que teve um trabalho de Educação que era oficina de foto, tal e vídeo e eu já tinha feito isso lá com o CEDAC, com os professores, por minha vontade, eu montei uma exposição de fotos em Arari com fotos que os professores fizeram na oficina que a gente montou, tinha slides, tinha projeção, tinha tudo, não sei o que lá, e aí eu falei… aí, essa experiência com o CEDAC pra mim foi muito importante, porque mais uma vez, eu me encantei e mergulhei nessa onda de Educação e alfabetização, principalmente. A Emília Ferreiro, tal. E eu vi que várias das ideias da alfabetização na língua escrita, a leitura escrita funcionavam pra vídeo, nessa teoria das hipóteses, né, que a criança vai estabelecendo hipóteses antes de se alfabetizar, a criança pensa, ela convive com o mundo escrito e com vídeo, eu achava que era a mesma coisa, com foto e vídeo, cinema. E aí, eu fiz oficinas que eram estruturadas em cima desse pensamento da Emília Ferreiro pra foto e vídeo. E a Minom tava fazendo um negócio desse e falou: “Chama lá o seu amigo, que isso aqui, ele… isso aqui, tudo bem, ele pode fazer”. E a gente começou a conviver mais próximos, com mais proximidade. Eu tava muito encantado, ali, pelas ideias dela, pelo jeito dela e ela também estava interessada ali com o que eu fazia, e tal e a gente se divertia muito nas reuniões, falava assim, tinha uma cumplicidade de só olhar e já rir por causa do que um outro falou, sabe? Coisa de cumplicidade, mesmo. E aí, eu já tava no Vale e eu tinha acabado de fazer esse trabalho, foi meio que recente, assim, um dia a gente saiu à noite, eu tava lá por causa do rodizio, mas eu tava enrolando ali também pra ficar mais ali. Aí, ela falou: “Você quer ir jantar?” “Vamos”, aí a gente foi jantar, fomos no italiano, aí eu falei: cara, deixa eu assustar ela logo, né, porque eu já tava num momento assim, que eu falava assim: “Senhor, seja feita a sua vontade, porque a minha só dá errado, tudo que eu quero fazer, não acontece”, então, deixa eu já assustar essa aqui e já riscar da lista, né? Aí, contei: “Olha, a minha vida é meio esquisita, eu sou uma pessoa assim, assado…”, aí contei todas essas maluquices de espiritualidade, ela falou: “Ok, já assustei” (risos), só que ela queria saber, ela, realmente, queria saber das histórias e eu fui contando, fui contando. E aí, eu falei pra ela: “Eu tô indo pra Brasília amanha”, que eu ia fazer um trabalho lá, no Vale lá de Brasília. Aí ela falou: “Quando voltar, me liga, quero saber como que foi”, porque eu fui fazer um trabalho sério lá, também, de libertação pra mim, assim. E aí, eu fui, fiz os trabalhos todos, quando eu voltei, eu falei: “Não vou ligar porque ela falou só para ser educada”, né? Claro que ela não queria saber de nada disso (risos), aí o que aconteceu foi que tava rolando o Festival de Paulínia e tinha um cara que já tinham me falado que era muito legal, que eu ia adorar conhecer, que o cara era o máximo, tal, não sei o que, falaram: “É o Pepe, que fez ‘Fabuloso’, ele tá com um filme do Manoel de Barros”, e eu adorava o Manoel de Barros, e aí já tinham me falado dele e desse filme anos atrás. Aí, a Minom falou: “Olha, vai ter o filme de um amigo meu, o Pepe”, ela tinha falado antes de eu viajar pra Brasília. Aí quando eu vi o negócio do festival,. eu falei: “Cara, eu vou ver o filme”. Aí, eu fui lá ver o filme e adorei o filme, né, no dia seguinte, eu fui ver o debate do filme e eu me apresentei para o Pepe: “Sou… a Minom, sua amiga, sou amigo dela também, ela que me indicou para ver o filme aqui, tal”, aí eu liguei pra Minom do meu celular pra ele dar um oi pra ela, que segundo a Minom foi o momento que ela falou que eu era galinha morta (risos), que eu já estava pronto para o abate (risos). Aí, a gente combinou que ia ter a premiação e o Pepe falou que a Minom dava sorte, que era pra ela vir na premiação e tinha uma outra amiga dela também, a Paula que tava com o Pepe, enfim, tinha um pessoal do Rio, a Minom tinha morado no rio e eram amigos do Rio, dela. Aí eu falei: “Venha pra cá”, aí ela passou lá no escritório, a gente foi com o carro dela lá pra Paulínia, ficamos lá nessa cerimonia, tinha uma coisa que eu ainda tava muito desconfiado de mim, mesmo, né? Mas é engraçado, que aí teve uma hora que tava uma conversa sobre casamento, não sei quem que puxou, que aí, eu falei assim: “Cara, eu não dou certo com isso, acho que isso não é pra mim”, aí ela virou pra mim e falou assim: “Engraçado, eu acho que você daria um excelente marido” (risos). E segundo ela, ela não falou isso com intensão, não foi um xaveco, ela falou isso sério, nessa hora eu gelei porque eu achava que eu poderia ser um excelente marido. Mas eu já tinha apanhado tanto, assim, dessa coisa da… ainda não tinha passado por esse negócio do Vale, esse ritual. Aliás, já tinha, desculpa, já tinha, mas eu ainda achava que… eu ainda tava ressabiado, eu tava nessa: vamos ver se é verdade, o cara me liberou, começa a aparecer mulher assim (risos), deixa eu ver se… vamos ver se isso é de verdade, mesmo ou se eu só tô me enganando aqui, mais uma vez. Aí, eu sei que no fim, eu deixei ela no hotel, abracei ela, assim e falei: “Nossa, eu adorei”, mas não beijei, não fiz nada porque eu tava, realmente, ainda muito na defensiva, quero ver se isso é verdade mesmo ou se vão zoar, vão botar o doce na minha cara e vão arrancar, que isso eu não aguento mais. Aí, no final, eu levei o carro dela pra minha casa e no dia seguinte, ela ia voltar cedo pra São Paulo, falei: “Eita, cadê essa mulher que não aparece?”, não ligava, aí eu comecei a ligar pra ela, aí não atendia, não atendia, não atendia no hotel que ela tava. Aí quando deu meio-dia e pouco, tal, ela ligou e falou: “Putz, morreu o pai da minha amiga que tava aqui dividindo o quarto comigo, ela voltou hoje cedo no primeiro voo e à noite foi terrível, ligaram pra ela, o irmão dela ligou de madrugada, tal, eu não dormi nada, então eu acho que eu preciso dormir mais um pouco aqui”, não ela não falou “Preciso dormir mais um pouco”, ela falou: “Eu acordei, passa aqui”, aí tinha acontecido outra coisa, o Pepe ganhou o prêmio de melhor documentário, então teve prêmio, teve morte… aí eu fui lá, aí eu fui nervoso que eu falei assim: “Cara, não dá pra não fazer mais nada, assim, não dá pra não agarrar ela, não dá pra… acho que esse negócio acabou mesmo, essa maldição”. E aí, toquei lá no hotel, ela falou pra eu subir, aí eu subi, ela tava de pijama, lá, deitada na cama, ei eu falei assim: “Puta, fudeu” (risos). Aí, eu já sentei assim, falei: “Olha, eu sou muito complicado, as coisas não dão certo comigo, essa coisa de relacionamento, nunca vai pra frente, me dá um pira e aí, eu mudo e aí, eu caio fora, nunca mais apareço, eu não sou… eu tenho muita dificuldade com isso. deixa eu tirar o sapato que eu tô nervoso” (risos), aí eu fiquei descalço, falei umas barbaridades lá, aí ela falou assim: “Olha, você é a primeira pessoa que discute relação sem nem ter dado um beijo” (risos), aí eu rolei de rir, né, e aí eu beijei ela e a gente saiu só no outro dia do hotel (risos), aí, aí… e esse foi um dia que… aí desencantou, né? Aí, desencantou. Aí, eu falei: isso é de verdade, isso tá acontecendo, virou uma página, minha vida tá mudando. Aí no outro final de semana, eu liguei pra ela: “Vamos encontrar?” “Vamos”, e aí eu fui pra lá, a Amanda não tava em casa, que era uma coisa meio rara, assim, a Amanda, filha dela que tava com 12, 11 anos. Aí, a gente ficou junto e a gente ficou na sala do apartamento eu acho que umas quatro horas se olhando, só se olhando, assim, e se abraçando, se beijando, assim, mas não era uma coisa assim… era uma saudade, era uma saudade, assim, um negócio que não tinha fim, um reconhecimento, assim, de chegar. Aí, depois, a gente transou e eu tinha essa coisa que me assustava, assim, às vezes, eu transava e abria uma visão assim, eu via coisas, às vezes, eu via uma cachoeira, um negócio bonito, às vezes, eu via uma coisa esquisita e eu vi, eu vi a nossa vida, eu vi o que ia acontecer com a gente muitos anos, assim, pra frente. Vi tudo que ia acontecer. Aí, eu olhava pra ela, assim, e eu falava assim: “É você, é você” (risos), ela ficou em pânico e aí, teve uma outra coisa que a cabeça dela quase explodiu, assim, porque sexo é… essa semana eu li um negócio falando que o DNA (corte no áudio)
TROCA DE AUDIO Continua nos 01:11:16 do áudio 2
que toda relação que a mulher tem, o DNA masculino fica, se mistura com o dela, né? É um negócio muito forte o nível que a conexão se dá. E eu tava anos me trabalhando, me purificando energeticamente, tal, não sei o que, eu sei que dei um choque aí a hora que cheguei com a energia muito sutil e ela… não que ela não tenha energia sutil, nada disso, mas é um campo, mesmo. É um campo. E eu cheguei com aquela intensidade, com aquela violência me derramando em cima dela, aquilo fez pá na cabeça, foi uma bomba. Ela começou a chorar de dor de cabeça. Aí, eu fiz umas coisas ali, passou, porque eu sabia, engraçado, eu sabia tudo que eu tinha que fazer, eu sabia o que eu tinha que falar, eu sabia exatamente tudo que eu tinha que fazer e aí, passou e essa hora ela ficou em pânico, né, com essa coisa toda, com a intensidade toda, de tudo ali e ela falou que… sei lá, uns dois meses atrás, ela tava com a mãe dela, a mão dela mora em Itamonte, ela tem uma ecovila num lugar super recolhido assim, de natureza, lugar lindo, assim, que acabou virando um… a gente se casou lá depois, oito anos depois dessa história. E ela tava com a mãe lá e umas amigas e ela olhando pra mãe que tinha se separado do pai há muito tempo e tava sem ninguém há muito tempo e ela entendeu que a mãe tava… ela tava ocupando um lugar ali na vida da mãe que ela era o marido da mãe, ela falou: “Cara, eu não quero essa vida pra mim, não quero ser marido da minha mãe e não quero… os meus relacionamentos deram errado até hoje porque eu nunca me envolvi com alguém espiritualizado, eu preciso de alguém espiritualizado, aí ela falou que logo depois disso, eu apareci nesse jantar falando aquele bando de maluquice, ela falou: “Opa, o homem tá chegando, não é esse aqui, porque esse é muito doido, mas tá chegando”. Então, a hora que ela viu esse negócio chegar com essa força, ela começou a falar pra mim: “Olha, eu não dou certo…”, aquela conversa que eu dei pra ela, ela deu pra mim: “Eu não dou certo, eu só fico quatro anos com a pessoa, não fico mais do que isso, eu sou uma pessoa amaldiçoada e pá, pá, pá”, e começou a falar esse bando de coisa, eu falei: “Você tá achando que eu sou Copa do Mundo, Olimpíadas, que é só quatro anos…” (risos), nisso já se vão duas Copas e duas Olimpíadas e a gente tá junto, ainda. Mas ela ficou muito assustada. Aí, no final de semana seguinte, eu liguei pra ela e falei: “Já sei o que a gente vai fazer esse final de semana” “O quê?” “A gente vai comprar o nosso colchão” “O quê? Mas você é muito abusado, você acha…” “Se a gente vai começar um negócio, a gente tem que começar com pagina nova, não quero saber de colchão de outro, não, vão bora”, e aí depois eu fiquei sabendo que o colchão era o colchão que o irmão dela, quando teve câncer usou, então ele passou um bom tempo com câncer deitado no colchão e também tinha a história com o outro… eu falo que é namorado, né, porque ela não casou com ninguém, ela só casou comigo. O pai da Amanda, ela casou, mas a aliança ele não tinha, ele pegou uma aliança emprestada pra dar pra ela, falei: “Como que um negócio desse vai dar certo?”, mas enfim, aí foi indo e a gente foi se ajustando, sempre se ajustando assim, na relação, mas demorou muito e as coisas pra mim demoram, mesmo pra acontecer, porque eu vou viver muito ainda, eu vou ser muito velho, eu vou realizar o meu sonho de ser velho (risos), então agora que as coisas começaram a acontecer, assim. Antes, foi tudo pra preparar e aí, realmente, depois que a gente ficou junto, depois que eu entrei para o Vale, veio a Minom e a Minom, eu vi que ela também ia entrar pro Vele, que ela tinha trabalho mediúnico pra fazer nesse dia, só que eu nunca falei pra ela, nunca quis me meter, nunca falei pra ela ir lá, nunca! E aí, um dia, uma amiga dela ligou pra ela desesperada que tinha sido assaltada, que tava sem dinheiro, que tava sozinha, a gente tava passando Natal, entre Natal e Réveillon aqui em São Paulo e aí, essa menina tava sozinha aqui e ela falou que tinha sonhado com uma mulher que falava que eu podia ajudar ela e essa mulher era um tipo de entidade que trabalha lá no Vale. Eu falei pra ela: “Não, eu posso ajudar, mas lá onde eu trabalho, se ela quiser, eu levo ela lá”. Aí, ela topou, levei ela lá e a Minom na hora que a gente tava saindo falou assim: “Eu vou também”, porque ela ficou em pânico que a amiga doida, achou que a amiga podia chegar lá e armar um barraco, bater, sei lá, aí a Minom foi e no final, ela sentou do lado da amiga e acabou passando como paciente, ela não sabia como funcionava, a amiga dela foi, depois foi ela ali, o cara falou: “Você vai passar nos trabalhos?”, ela falou: “Já que eu tô aqui, eu vou, né?”, na hora o preto velho pegou na mão dela e falou: “Filha, você é aguardada há muito tempo nessa casa, você tem missão”, e ela não me contou nada, ela falou: “Esse preto velho não sabe de nada, quero ver, vãos de novo, vamos ver se ele fala a mesma coisa”, aí voltou lá outro dia com outro cara incorporado de outra entidade, falaram a mesma coisa, falaram: “Você tá com medo, né?”(risos), enfim, mas essa é a história dela e ela acabou entrando, desenvolvendo e a gente trabalha muito junto, mas ela tinha uma ânsia… é engraçado essas coisas, né, depois que a gente tava junto já há um tempo, falei: “Vou mudar pra cá, chega, não aguento amis ficar vindo de Campinas pra cá e dormindo cada duas noites numa casa, eu quero ficar com você, eu quero morar com você, vamos procurar uma casa, porque aí a gente monta um escritório na casa, não paga aluguel, tal, e a gente começa a nossa vida juntos”, aí procuramos um monte de casas, pá pá pá… batemos na… “Olha que rua incrível essa aqui, a rua é demais”, tinha uma casinha linda, não tinha placa pra venda, a gente foi a pé vendo os lugares, tal, aí o vigia da rua falou: “Essa casa tá pra vender, não tem placa, mas tá pra vender”, aí a gente entrou, viu a casa, o dono tava lá, quando a gente chegou no quarto dele, tinham dois quadros, um do Fernando Pessoa, um desenho lindo dele, assim, e um São Francisco, colorido também, bem simples, bonito e são duas coisas que a gente, assim, se fosse escolher duas pessoas, eu acho que escolheria esses dois, sabe? E ela também. Então, a gente olhou aquilo e falou: “Bom, é aqui”, eu falei pra ela, né, “É aqui, essa e a casa, você tem alguma dúvida?”, que ela ainda era muito: “Não, como assim, não dá, não sei o que”, e acabou rolando. Compramos a casa, mudamos pra lá, estamos lá até hoje. Mas depois disso, a vida foi acontecendo com uma velocidade e intensidade muito grande, assim, começaram a aparecer os filmes, filme da Marina, que é uma das feiticeiras lá dessa música que eu tinha medo quando eu era criança. Uma era a Rita, outra era ela e tem outras bruxas aí, sempre… vira e mexe, aparece uma bruxa que eu tenho que lidar. Mas aí é isso, assim, eu acho que a partir desse encontro ali, que eu dei a mão, né, engraçado falar da luva e agora eu dei a mão para o preto velho e ele pegou na minha mão, ali encaixou e as coisas voltaram a fazer sentido, sentido de direção, mesmo.
P/1 – Marco, eu queria que você me contasse, você disse que teve dois momentos de trabalhos que te fizeram grande ajuste, ajuste com o seu pai, teve ajustes de trabalho que te realinharam. Tem alguns desses que você…
R – Teve. Teve, o trabalho com a Marina Abramovic do filme que a gente fez “Espaço Além” foi muito intenso, muito intenso assim. A história toda, eu gostava já dela, eu a conheci no começo dos anos 90, numa série de TV holandesa que passou na TV Cultura, era uma série de mesas redondas, acho que chamava “Arte, Ciência, Espiritualidade e Economia no novo Milênio”, um negócio assim. E para cada área do conhecimento, tinha uma pessoa, tinha o Fritjof Capra, eu fui ver por causa do Fritjof Capra e junto, tinha a Marina. E ela começou a falar dos trabalhos dela, de como ela via a Arte, tal, eu falei: “Nossa, cara”, ela falou assim: “Porque o artista tem que ir para o deserto, Jesus foi para o deserto, Maomé foi para o deserto, tem uma coisa no deserto que transforma as pessoas”, ela falava que a arte no futuro seria imaterial, que a arte seria padrões vibratórios, você identificar padrões vibratórios, falei: “Nossa, cara, que incrível, eu quero trabalhar com gente assim, existe gente assim, é isso que une o estético, a arte, a beleza, a Bíblia com as paginas e com essa coisa que não é tão da religião, que é mais libertaria da espiritualidade, não é tão dogmática assim, e que e viva ali, é fluida, não tá amarrada na forma da religião”. E aí, nessa coisa da Arte, eu acabei trabalhando, isso por conta muito da Solange Farkas, que eu não sei o que ela viu em mim, que ela achou que eu tinha alguma coisa pra ajudar ali no que ela fazia e ela foi me passando vídeos para fazer, documentários, DVD, compilação de trabalhos, enfim, e a gente, lá em 99, começou uma relação que se estende até hoje de relação com arte e me aproximou da coisa da arte, do universo da arte, da linguagem que é outra coisa que me pega muito, a linguagem, não só da alfabetização, isso vem lá de criança, desde a minha alfabetização, da coisa de ter que mudar a mão que eu escrevia, mas esse impacto da linguagem e o campo da arte abriu isso muito pra mim. Por conta da Solange, eu fiz quatro temporadas junto com a Jasmim, irmã da Minom de uma série chamada “Vídeo Brasil” na TV e numa delas tinha um trabalho sobre performance e tinha uma performa brasileira que chamava Paula Garcia, a gente ficou amigo, tal e no começo de 20012, ela me falou: “Marco, você não vai acreditar, eu tô trabalhando com a Marina Abramovic, meu…”, ela falou assim: “Cara, tô trabalhando com a Marina, não conta pra ninguém, mas pô, a gente vai fazer um projeto aí no Brasil…”, eu falei: “Paula, o que você precisar me liga, tô aqui:, aí chegou dezembro, ela ligou e falou: “Cara, eu fui nas produtoras, a gente tentou arrumar uma parceria para fazer um documentário, para registrar a viagem, mas os caras não conseguem entender o quê que a gente quer fazer, você topa fazer?”, eu falei: “Claro, só que eu preciso de ajuda”, a Minom e a Jasmim que têm uma produtora já tinham feito longa e tal, eu falei: “E aí, vamos fazer? Isso não bate duas vezes na porta”, aí elas toparam e a gente fez esse filme louco, que a Marina chegou uma semana depois dessa conversa com a Paula, a gente tomou um café da manhã numa padaria aqui em São Paulo, aí dois dias depois, a gente tava no carro indo para Abadiânia lá no João de Deus e aí, foram 40 dias viajando com ela numa intensidade pulando de uma experiência espiritual pra outra e o processo do filme durou 2012 pra 2013, foi no final de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 a gente tinha o filme pronto pra lançar e foi uma relação muito difícil com ela, de lidar com ela, de entender também o lado dela, ela me entender. A jornada do filme acho que foi muito difícil pra todo mundo que tava na equipe, que a gente tem dois que estavam, casamentos acabaram, acho que chacoalhou muita gente, sabe, não só ela. Todo mundo que tava ali foi chacoalhado. Essa coisa de espiritualidade, as pessoas, muitas vezes, quem tá de fora acha que é essa coisa rosinha, anjinho, fofinha, sabe? Meme motivacional. Não tem nada disso, assim, é violento, é intenso, porque envolve você se revirar, né? Eu acho assim, isso é uma coisa que da minha prática e da minha vida, e de atender outras pessoas, as dores, elas querem ser escutadas, a gente guarda as dores todas dentro da gente, todas! Dessa vida, de outras vidas, elas estão todas dentro da gente e tudo o que uma dor quer é ser reconhecida, ela grita, se você não escuta ela, ela… situações são criadas para que se repita essa dor, para que esse ponto volte a doer e você olhe para ele e reconheça ele como uma dor e que você cuide dele e cure ele para que essa dor seja curada, seja amputada, seja curada. E acho que no processo da filmagem, muita coisa se levantou disso de dores em todo mundo, mas em mim também, pra mim foi muito difícil. Uma assim, eu me deparei com coisas minhas muito de personalidade, mexeu… essa coisa de… a Minom tem uma amiga que quando a gente começou a namorar, ela tirou o tarô para a Minom e aí, quando perguntou de mim, da minha carta, saiu o diabo e a amiga dela falou: “Eita, ele e o diabo”, e a Minom falou: “Eu sei”. As pessoas que mexeram com magia negra em alguma vida têm uma carga muito pesada porque é uma manipulação de livre arbítrio violenta e envolve muito a violência também, física, muito derramamento de sangue, muita manipulação de vida alheia, tal e isso envolve você… se você acredita em carma, essas coisas, são minhas crenças. Pode ser tudo delírio. Só pra ficar claro assim, que é uma coisa que eu gosto de falar, eu não tenho uma relação dogmática com tudo isso, com a vida espiritual. Eu acredito muito na experiência subjetiva, então também não tento impor nada das minhas crenças a ninguém, mas acho o seguinte, o pior cenário possível: você só tem essa vida, você morre e vira poeira. pelo menos vamos inventar umas coisas fantásticas, né? Vamos botar um pouco de (risos) magia nesse negócio, não ficar só nessa coisa de… aí, tá ok, você acredita que você vai morrer, vai viver na poeira e vai viver deprimido a vida toda ou senão, sei lá… eu acho uma boa perspectiva, mesmo que não aconteça nada, pelo menos é uma vida cheia de delírios, eu posso ser um louco delirante aqui, falando isso tudo, mas eu gosto desse delírio e ele faz sentido, mais do que gostar, ele me faz sentido, eu me sinto, eu pertenço a isso, a esse sonho, a essa ilusão, a essa história. E aí, eu sei que eu tenho passagem com magia negra.
P/2 – Mas isso que deu conflito com a Marina? Espiritual?
R – É… assim, a Marina também tem… a gente se identifica, né? Quem tem passagem com essas coisas se identifica e aí, revira, isso revira também, traz e vem à tona e vem à tona justamente para ser retrabalhado, essas rusgas e essas coisas. E tinha aí, um nó entre a gente, existe um vínculo…
P/2 – Era entre você e ela, Minom? Equipe?
R – Eu e ela, Minom. Os meninos estavam liberados. Os meninos foram lá desavisados, coitados (risos). Mas ali, eu, ela e a Minom tínhamos e foi bem intenso tudo. E nessa coisa, começou a levantar muita dor nela, ela saiu desnorteada da viagem, assim, depois de passar por tudo aquilo. Pra mim também mexeu muito, só que o processo foi muito longo, tanto pra mim, quanto pra ela e para outras pessoas que passaram. Em 2015, quando a gente já tava quase terminando o filme, eu fiz um mapa astral com uma taróloga que eu nunca tinha feito e ela começou a perguntar da minha infância, falou assim: “Olha, tem alguma coisa aqui da sua infância, você sofreu bullying? Você apanhou? Teve alguma coisa violenta que aconteceu com você?”, falei: “Não, que eu me lembre, não, eu não me lembro de nada antes dos sete anos, se aconteceu, eu não lembro”, e na hora ali que ela tava falando essas coisas, me veio na mente muito claro, assim, abuso sexual, tanto que eu achei que ela tinha falado que eu poderia ter sofrido abuso. E eu fiquei com isso na cabeça. Menos de 15 dias depois, minha irmã foi lá em casa, ela mora em Patos de Minas e ela tava indo comigo pro Vale, pra ser atendida e tava muito trânsito, bem acima do normal, não tem muito trânsito para chegar, eu chego rápido. E aí, essa coisa do trabalho mediúnico, você vai tendo uma intuição muito aflorada. Eu falei: “Ela precisa falar alguma coisa, ela vai falar alguma coisa”, ela começou a falar: “Eu fiz um trabalho de microfisioterapia lá em Patos, tal, não sei o que… que eles fazem a leitura do corpo e vem os traumas que estão guardados no corpo e deu que eu fui abusada”, aí eu falei pra ela: “Eu acho que eu também fui e eu vou atrás disso”, aí esse dia no Vale mesmo, eu perguntei para uma entidade, ela falou: “Meu filho, aconteceu, é uma coisa que você vai ter que trabalhar, não se preocupe, mas tem um registro aí para ser limpo…”, a gente fala de limpeza, parece que é higienização, não é higienização, essa coisa da espiritualidade, o que eu vi que melhor resuma essa coisa da espiritualidade é o Fellini, o final do “Oito e Meio”, que tem aquele cara que é o diretor, o Guido, diretor do filme e não consegue terminar e ele tá com problemas com a amante, com a mulher, tem problema com a igreja, tem crise com a mãe, com o pai, com as figuras paterna, materna e no final do filme, o filme não acontece, mas ele bota todo mundo pra dançar num picadeiro e acho que a espiritualidade é um pouco isso, assim, você acolhe tudo, tudo, você acolhe sua dor, seu medo, seus traumas e você abraça aquilo tudo e fala: “Aquilo tudo é meu, eu sou isso aqui tudo”, então uma coisa muito mais serena com relação a isso tudo, às passagens traumáticas… eu sei que aí, eu fique muito tocado por isso, porque eu sentia isso, eu sentia que essa coisa, essa dificuldade emocional que eu tinha também não era só a coisa do espirito que falava que não deixava nenhuma mulher chegar perto de mim. Eu tinha… e isso eu já sabia, eu tinha feito uma vez um trabalho de… num grupo desse de nova era, que todo mundo entrava, visualizava coisas, mas era bem energia gracinha, assim. Aí, uma falava: “Eu me vi flutuando entre os bosques, os passarinhos”, a outra: “Eu era uma ave, eu voava e não sei o que lá”, a outra: “Era uma santa…”, quando chegou a minha hora de contar, eu falei: “Olha, eu me vi rodeado de sangue, tinha um rio de sangue, tinham muitas mulheres e eu tinha matado todas”, e ficou aquele silêncio (risos), eu sou estraga energia gracinha (risos), me chamam pra visualização dom passado, não sei o que, é só tragédia (risos). Aí, eu sentia já esse peso e essa carga que tinha comigo, sabe? Enfim, sentia dor, sentia isso tudo. Aí, eu fui começar a perguntar para os meus irmãos e foi engraçado, porque as coisas se movimentaram muito naturalmente, depois o meu irmão que mora nos Estados Unidos… porque depois que a minha mãe morreu, cada irmão foi para um canto, deu uma dissolvida assim, na família e a Minom me ajudou muito a reaproximar todo mundo, foi bonito, assim. E eu falando pra ele, né, assim: “Eu acho que aconteceu isso”, aí eu fui fazer microfisioterapia que a mulher lendo o corpo, fala. Ela falou: “Quando você tinha… 79, 99% de chance de você ter sofrido abuso. E eu não lembrava de nada, não conseguia lembrar. E depois, na mesma época, um pouco depois, eu assisti uma série chamada “The Keepers” que fala sobre meninas e meninos que foram abusados dentro de uma escola católica, tinha um esquema e a igreja acobertava, tal, mas as mulheres falando que quando bate 40 anos, 40 e pouco, começa a soltar, assim, a memória começa a vir espontaneamente. E aí, eu fui fazendo as contas com o meu irmão, depois com a minha irmã, aí veio uma história, também, minha irmã contou uma coisa que eu não sabia, que uma tia minha, antes de morrer, falou pra minha prima não filha dela, mas sobrinha dela que era psicóloga, falou assim: “Você precisa ajudar muito a minha filha”, que é a minha prima mais velha “Porque eu tenho muita preocupação com ela, porque ela… o pai dela se masturbava com ela no colo”, isso foi o que ela conseguiu contar, na beira de morrer, ela guardou isso quase 70 anos. E essa prima minha nunca casou, teve um namorado que a minha tia infernizou e aí, não deu certo, o irmão dela morreu num acidente de trem, esse que eu falei que era quase meu irmão mais velho, ele foi estudar em Seropédica, Veterinária e era o dia de eleição, Color e Lula e ele estava correndo na linha de trem, falaram que mudaram os horários dos trens, estava com walkman e não viu… ele era maratonista, ninguém sabia, ele não tinha contado para ninguém e aí, o trem atropelou ele. A minha prima acha que ele se matou. E eu acho que de alguma forma, a gente sabia, acho que ele sabia que eu tinha sido violentado pelo pai dele e ele sabia que o pai dele violentava ele e a irmã. O pai dele depois teve leucemia e ele foi quem… essas relações de abuso em famílias são muito loucas, depois eu li casos assim, porque é uma dinâmica tão esquisita, o jeito que a coisa se compõe pra acontecer um abuso. É como se todo mundo soubesse, mas ninguém falasse. E é como se houvesse um desejo que aquilo acontecesse na família, eu conversei… e essa época, eu tinha necessidade de contar porque me ajudava muito. Nessa época em que eu tava descobrindo tudo e vindo cada hora, eu pegava uma pista num lugar e tal, meu irmão me deu a data, falou: “Nessa época, a gente tava na praia com os nossos tios e aí, teve uma briga entre minha mãe e minha tia e você, não sei porque, você foi pra São Paulo e você ficou uma semana na casa desse tio”, eu não me lembrava disso. De jeito nenhum! E aí, eu escrevi para o meu pai, também, falei: “Putz, será que o meu pai sabe e ele tá fazendo que nem a minha tia? Esperando a última hora para falar um negócio desse?”. E eu fiquei muito assustado, porque a filha da minha irmã, nessa época, nesse período em que a minha irmã ficou em casa, um dia ela veio, veio direto e segurou no meu pau assim e ficou se esfregando, aí eu tirei ela e falei assim: “Caceta, essa menina tem cinco, seis anos, cara, se ela faz isso com um cara desmiolado”, e era um negócio meio que tava rondando, assim, sabe? E eu fiquei muito preocupado dessa coisa, dessa prática de lidar com dores alheias e com as minhas de que se eu não cuidasse daquilo, aquilo poderia se repetir, não comigo, mas com alguém da família. E essa iminência do perigo, também assim, de você ver o drama se repetir, que é uma coisa assim, não é tão absurdo… a gente vê hoje essas dores vindo à tona, a dor da escravidão, a dor da ditadura, a dor das mulheres, essas dores têm que ser escutadas, porque senão, a gente vai repetir. A gente não evolui, a gente não vai pra frente, porque você tem que resolver um assunto, se você não resolve, ele tá ali te esperando, você dá a curva, ele te pega no susto e aí nisso, eu cai totalmente para dentro dessa história. Eu fiz um outro trabalho desse no Vale igual esse que eu contei do primeiro, do cara que falou que eu tinha matado todo mundo e tal, nessa época. Aí veio o espirito, chegou lá e começou a falar: “Você tá achando que você sofreu? Você só foi abusado uma vez nessa vida, que teve outra que você pagou, mesmo, aí você pagou o que você fez, porque você era ruim”, e falou lá todas as desgraças lá que eu fiz, que tinha a ver com igreja, tinha a ver com abuso de gente dentro da igreja, tal. Isso que a Minom fala: “Pode ser uma metáfora”, pode ser tudo um psicodrama, assim, você cria um cenário, cria um roteiro, tem um personagem e tal, mas a dor é verdadeira. E na hora que você permite que essa dor se personifique ali nesse espirito que fala, é uma dor falando e é uma dor sendo escutada, uma dor sendo reconhecida e sendo validada. E aí, tem uma alquimia ali, tem uma cura, tem um assunto que é resolvido, que tem um laço de dor que se dissolve. E foi muito louco assim, porque eu ia falar com a minha cunhada, ela falou: “Eu também fui abusada, meu tio me abusou e a minha vó, eu acho que ela sabia e ela ainda falava: ‘Vocês não vão ver o seu tio? Por que vocês não ver o seu tio?’”. E ela já com filhas, falava assim: “Levem suas filhas para verem o seu tio”.
P/1 – Esse mesmo tio?
R – Não, esse era outro… outra família, outra história.
P/1 – Outra história?
R – Outra história, mas assim, as histórias são meio parecidas. depois quando eu tava lá na Marina, a gente montando… eu fui pra Nova York pra gente fechar o filme, fiquei um mês lá com ela e eu contei essa história pra um grupo de três pessoas que estavam lá, era ela, a Paula e o Rudá que era o xamã dela, que aparece no filme e o Rudá falou assim: “Cara, eu tô nesse mesmo processo, eu acabei de descobrir, tem pouco tempo, que eu fui abusado”, e ele tava com muita raiva, ele falou: “Eu perdi anos da minha vida, minha juventude eu perdi por causa disso”, que é um pouco o que aconteceu comigo, assim, de certo lado. Ali até os 37, dos 28 até 37 foi um… mas mesmo antes disso, porque antes disso, eu também não conseguia me relacionar, eu tinha medo, morria de medo. Era uma coisa… uma vez, eu tava no ônibus, eu tinha 14 anos, voltando da escola, sentou um cara do meu lado, e o cara começou a passar a mão na minha perna, assim, e ele suava, suava e olhava pra mim e eu olhei para o cara e eu paralisei. paralisei, assim, de não conseguir fazer nada e eu fiquei em pânico! Eu não conseguia entender porque eu tava com aquele medo. Por quê que eu não levantei, por quê que eu não falei: “Oh!”? E essa coisa com o meu pai, eu acho que eu fiquei muito… eu demorei e fiquei com ele ali, perto, rondando assim, porque eu queria um reconhecimento disso, de que isso tinha acontecido comigo. E tinha uma coisa, assim, como que você não viu isso acontecer? Onde você tava? E o trabalho que mais me ajudou não foi no vale, foi um que chama constelação familiar, que é uma espécie de psicodrama, não é psicodrama porque é bem mais sutil. Eu fui com a Minom, o marido da minha irmã faz constelação familiar, a gente foi lá, um grupo foi numa manhã atender uma pessoa lá com um caso, outra com outro caso, outra com outro, enfim, as coisas mais… problema de casamento, problema de família, tal, não sei o que, mas tudo conciliável ali, dentro da constelação. Aí, a Minom passou também, foi lindo, aí eu fui por último. Eu falei: “Eu quero olhar para uma situação que tem na minha família que envolve eu, dois primos e minha tia e o meu tio, só a minha prima tá viva, os outros todos morreram. Aí, ele começou a puxar as pessoas, né, que ele vai escolhendo as pessoas que estão nessa roda e cada um faz um papel. Aí, ele puxou uma que eu vi que era a minha tia, puxou que era o meu tio, minha prima e o meu primo. Cada um ficou… eles não se olhavam, cada um ficou num canto e não se olhavam. Aí, ele chamou mais uma mulher, essa mulher foi até a minha tia, tentou virar a minha tia pra ver os outros e ver o quadro, tal e minha tia não quis ver de jeito nenhum. Essa mulher saiu e ficou num canto. Aí, ele chamou mais uma pessoa… não, antes de vir essa mulher, ele chamou uma outra mulher que veio do lado do meu primo e ficou deitada do lado dele.
PAUSA
R – Vocês conhecem isso? Essa que eu fiz foi… a Minom conseguiu um feito que foi juntar todos os meus irmãos e o meu pai numa casa de praia, que era uma coisa que a gente sempre fez na infância. E aí, a gente foi pra Itacimirim que essa praia que ela sempre foi. E lá, eu e ela, a gente fez uma constelação no papel com esse meu cunhado, o Mario. Isso foi bem antes dessa história toda, foi acho que 2013 que a gente fez a constelação, 2013 ou 2014. Aí, era no papel, você tinha que botar os seus parentes, tal e indicar se houve alguma morte traumática, alguma coisa assim. Aí, apareceu a morte do meu primo e quando ele morreu, eu não externei, assim, não chorei, tal, não sei o que. Eu sei que aí, me deu um negócio, a hora que chegou de falar dele, eu chorava, chorava e vinha na minha cabeça assim: “Por que você me abandonou? Por que você me deixou sozinho? Por que você me abandonou?”, eu achava que ali não tinha lembrado da história do abuso e do meu tio, tal, não sei o que. Aí, eu falei: “Mas por que eu tô achando que ele me abandonou quando ele morreu? Por que eu senti que ele me abandonou quando ele morreu e só agora que eu tô achando que ele me abandonou?”, que eu achava que era porque eu tinha ele como irmão, tal, não sei o que, mas não, eu acho que ele foi cúmplice, mesmo. Eu acho que ele tinha um testemunho ali, compartilhado de dor da gente.
P/1 – Aí que pena, achei que eles já…
R – Não, mas não gravou? Gravou, tem o áudio. Não precisa do vídeo, mesmo porque essa história não dá pra…
P/2 – Mas a gente tira da…
R – Até porque a minha prima tá viva, ainda. E eu não sei se ela sabe…
P/2 – Você não falou disso com ela?
R – Nunca abriu, porque quando abre, eu falo. Abre assim, tem uma hora que você sabe que é hora de falar.
P/1 – E a pessoa quer ouvir.
R – E a pessoa quer ouvir, que tá na hora disso… nunca abriu. E eu acho que ela tá bem, assim, ela tem… ela teve uma vida muito difícil em relação a mãe, essa coisa afetiva que não… e ela é uma pessoa afetuosa, ela faz doce, ela… não profissionalmente, mas é uma das coisas que ela gosta de fazer, depois que a mãe morreu, ela teve um negócio super raro que o corpo vai adormecendo.
P/1 – Vamos terminar… a gente termina essa história e vamos almoçar. Quando voltar a gente faz o fechamento.
PAUSA / TROCA DE ÁUDIO
P/1 – Vamos fechar a história da constelação que foi com o seu cunhado.
R – Que foi em Patos, lá onde ele tem a clinica, lá, em Minas. E aí, levantou essa menina e deitou. Logo depois dela deitar, o meu primo também deitou, como se tivesse morrido. Aí, deitou o meu tio, deitou a minha tia.
P/1 – Morreu todo mundo…
R – E a minha prima que tava viva também deitou. E essa pessoa que tinha vindo do lado da minha tia e que não conseguiu fazer nada tava lá no canto, do lado oposto de onde eu estava. E lá do fundo, veio uma outra mulher, e ela entrou na sala. A hora que ela entrou na sala com a cara fechada, ela foi cutucando com o pé, assim, cada um dos que estavam deitados, meio pra ter certeza de que estava morto. E aí, ela parou num outro canto oposto que tava outra mulher e ficou olhando para a parede. Aí, o Mario que tava constelando falou pra mim… eu falei assim: “Eu não posso fazer nada?” “Se a sua mãe não conseguiu, você não vai conseguir, vai lá ver a sua mãe”. Aí eu cruzei a sala, a hora que eu comecei a pisar na sala, parecia que eu estava pisando num campo de guerra, assim, sangue, sangue em tudo. Aí, eu cruzei ali, a hora que eu cheguei na mulher que era a minha mãe, ela tava agachada, encolhida, aí eu levantei ela, aí ela me abraçou e eu chorei, chorei, chorei, porque era… eu precisava que alguém tivesse visto, eu precisava só de uma testemunha, que o meu pai ou a minha mãe soubessem que isso tinha acontecido. E a minha irmã e a Minom estavam sentadas na frente ali de mim nessa hora. A hora que eu soltei… a energia é muito forte ali, né, você sente que era… eu senti que era a minha mãe, mesmo, que eu tava abraçando. Me deu um alivio disso, de ser reconhecido, de ter uma dor reconhecida, de não estar sozinho com isso, sabe? Não estar preso com essa dor. E antes de fazer essa constelação, eu tinha mandado um… sempre dramático o negócio, né? Mais um dia dos pais ou aniversário do meu pai, e aí, eu escrevi uma carta pra ele, também. Falei: “Olha, eu tô muito preocupado, porque nem tanto assim pelo o que aconteceu comigo, mas porque eu tô com medo que isso se repita, eu tô com medo de que você saiba alguma coisa e não esteja falando e aconteça o que aconteceu com a Tia Tila. Você lembra alguma coisa? Você tem alguma coisa que você saiba?”, e aí, ele levou uns três dias pra me ligar, que foram três dias de tortura profunda, assim, que até então, eu também não sabia da coisa do meu tio. E eu tinha medo dele saber de alguma coisa e não ter falado. Aí depois de três dias, ele me ligou e falou: “Olha, eu tentei lembrar de tudo, tudo, tudo que aconteceu nessa época, mas eu não lembro de nada, eu não lembro de nada ter acontecido. Ele nunca mais falou desse assunto, porque também é assim, eu entendo que tem… essa coisa que eu falei, tem um limite que é demais pra dar conta.
P/1 – Esse tio era o quê? Irmão dele?
R – Isso que é mais louco ainda, porque ele era primo do meu pai, casado com a irmã da minha mãe. Então, ele era duplamente família, não tem por onde fugir, falar que era um estranho. Nessa época ainda em Brasília, comecei a ler Fernando Sabino. Eu gostei muito daquele livro “Encontro Marcado”. E eu acho que é isso, tem esses encontros marcados, sabe, que talvez sejam inevitáveis, que você tem que passar por uns traumas, você tem que passar por algumas coisas, faz parte da sua formação, faz parte do que você é, do que é seu e o negócio é o quê que você faz disso, né, o quê que… como que você acolhe isso, como que você abraça isso e entende que isso é você também? E como que isso vem sendo você? Te engrandece. O convívio com a dor. A dor que é o que basicamente acontece no Vale, assim, é você lidar com a dor dos outros, escutar a dor dos outros e as pessoas sofrem, tudo quanto é tipo de intensidade, por diversas… no final, é sempre a mesma coisa, é pai, é mãe, é irmão, é marido, é irmão, são as pessoas próximas, né? Mas eu acho que é assim, cada dor, ela é como uma pá que você dá uma cavada no buraco, né, um recipiente que você vai formando ali, um poço e a sua decisão é o que você faz com esse poço, com o que você vai encher ele, porque te dá muita capacidade lidar com a dor e aceitar a dor, entender a dor, acolher a dor te dá muita força, muita resiliência, muito… ne é uma compreensão de amor que é maior, não é essa coisa de anjinho barroco, de meme motivacional, é o todo, é a vida. A vida tem morcego, tem morcego na natureza, você quer coisa mais assustadora? Um rato que voa e que ainda tem aquela cara? Tem isso, tem borboleta, tem tudo. Tem tudo e se tá na natureza, tá na gente de uma forma ou de outra. E essa acolhida assim, dos nossos fantasmas, dos nossos erros, da nossa história maior. A acolhida dessa dimensão bíblica da vida que eu tava falando, é disso, dessa força da vida que vem, essa força espiritual de abertura, o que ela fez comigo foi me arrancar e fala assim: “Você não é esse menino, mesmo! Você tava certo, você é muito mais, você foi muita coisa, você carrega muita coisa dentro de você. Coisas desagradáveis e coisas agradáveis. Coisas horrendas, coisas maravilhosas. E agora que você tá aqui de novo? O quê que você faz com tudo isso? Quem é você com tudo isso?”, é bonito. É tudo, né? (risos).
P/2 – vamos dar um break e a gente retoma para fazer aquela finalização.
R – Vamos.
PAUSA / TROCA DE FITA
P/1 – Marco, assim, em que momento, agora da sua jornada, você está? Na sua vida, hoje.
R – Não sei (risos). Eu acho que eu atravessei um mar muito turbulento, já e eu cheguei em terra firme. Eu queria ser navegador, né? Sempre tive loucura por barco, mas os barcos fugiam de mim. Eu tive um barco de… eu fazia barco de qualquer coisa, de isopor com canudinho e tal e eu tive dois botes infláveis, aí um cachorro que eu tinha comeu o bote todo e aí, depois, eu pedi um outro bote pro meu pai, o meu pai me deu um igualzinho, no ano seguinte, no aniversário. E aí, um menino vizinho lá, bem gordinho, pulou no bote na piscina e o bote… (risos) descosturou todo. Depois, eu tive um caiaque, aí eu remava, mas eu nunca… é engraçado, a viagem física com barco não aconteceu, assim, mas a jornada, sim, a jornada… e barco é engraçado, que é um confinamento também, né? É uma experiência de confinamento e movimento. Então, acho que é assim, eu tenho uma… tenho uma serenidade, assim, de ter cruzado esse mar e não que não venham mais tempestades, porque sempre vêm, né, isso é da vida, mas tem uma tranquilidade também. É engraçado, quando me perguntam assim: “Você tem fé?”, pra mim não é uma questão de fé, é uma questão de prática, então é convívio, é confiança, sim, porque não é imaterial, intangível, invisível, é prática, é convívio pratico com essa forca da vida, assim. E eu acho que quando eu olho as coisas que eu queria quando eu era criança ou… eu achei a minha turma, assim, a minha família, meu núcleo próximo que é a Minom, a Amanda, eu me reencontrei com os meus irmãos, com o meu pai, com os meus primos. Eu queria fazer longa metragem e tô terminando o segundo e são filmes que eu gosto muito, que eu amo ter feito, que tem muito de mim ali. E na vida espiritual, eu tô começando, assim, tem dez anos, mas eu sinto que… porque é muito intenso e eu aprendo muito. Cada dia que eu trabalho é muita coisa, assim, de… é esse encontro com a vida que é muito… com essa força que é exuberante, que é abrangente, que é intensa, que é incrível, que tem horas que é assustadora e tem horas que… que te cala. Te cala, assim, no sentido… engraçado falar que cala fundo, né? Cala porque te silencia, não precisa de mais nada. Então, acho que é um pouco isso, assim.
P/1 – Você tem, olhando essa sua jornada, você tem algum arrependimento?
R – Tenho. Eu queria muito ter um filho, né? E a Minom… a gente engravidou e perdeu com mal completou três meses. Isso é uma coisa… engraçado como é, eu não lembro… é recente, foi há quantos anos? Eu acho que eu tava com 41, tem seis anos. A gente já sabia que ia perder, né, e que ia sofrer… a Minom ia sofrer um aborto natural e a criança ia… o projeto ia sair naturalmente. Aí, teve um dia que ela teve uma cólica muito forte e saiu, era um ovo vermelho, assim, grande. E na hora, ela tava tão desesperada de dor e aquela coisa, era dor física, era dor também de perder um filho que a gente queria muito e a hora que eu vi no vaso, eu dei descarga. Depois eu me arrependi tanto, tanto assim, de falar: “Puta, por que eu dei descarga?”, que na hora eu queria só me livrar, sabe? Eu devia ter enterrado no fundo do quintal, devia ter feito alguma coisa, sabe? Ter acolhido e não ter me livrado. Ter pego, ali. Eu ainda vou fazer alguma coisa pra…
P/1 – Trazer de volta?
R – É. Porque é a única coisa que eu penso assim… às vezes, eu volto naquela hora e fico: “Por quê? Por quê que eu fiz isso?”
P/1 – E ali, se encerrou essa história? Vocês não…
R – Agora não dá, né? Só se adotasse, tal, mas é engraçado, essas coisas da vida, né, que eu não tive filhos, mas eu tive tantas crianças a minha volta e eu me dou tão bem, a Amanda mesmo, tem oito anos que a gente tá junto, esse núcleo familiar. Eu falo pra ela: “Avisa seu pai que é uso capião, oito anos, você já é minha filha” (risos). E a gente tem uma relação muito próxima, a Minom fala assim: “Às vezes, parece que ela é mais sua filha do que minha”, e é uma proximidade de alma, mesmo. É engraçado que a gente… nos primeiros anos, assim, né, quando eu comecei a ir com ela em alguns lugares, sei lá, no dentista, falavam: “Segura na mão do seu pai”, e ela não desmentia, ela não falava: “não, ele não é meu pai” e eu também não falava: “Não, ela não é minha filha” (risos). E eu lembro que chegou uma hora em que ela começou… que a Amanda é muito parecida comigo, mesmo, muito desconfiada, é pisciana também, tem um mundo rico muito intenso, de vez em quando, ela fala… sei lá, passa um mês sem falar nada, aí chega um dia que ela fala quatro horas sem parar e coisas profundas da vida, do que ela acha, do que ela tá sentindo, do que… e a gente troca muito nessa intensidade e nesse espaço assim, de ter o tempo do silêncio. E teve uma época que a gente andando na rua, ela começou a apertar a minha mão, andar de mão dada, ela queria andar de mão dada, que era pra mim, era uma coisa de reconhecimento, sabe? Então, eu tenho isso, assim, esse arrependimento com relação a esse momento, mas a coisa da paternidade foi preenchida de outra forma. Eu tenho muitos sobrinhos e amo loucamente todos. Então… e mesmo a Natalia que tá com 21 anos, não, ela tá com 24 ocupou muito esse lugar, assim, porque eu era muito próximo na infância dela, assim, até pra adolescência, eu fui muito próximo dela. E de uns anos, ela voltou agora a aparecer no quadro. Ela tá morando no Rio e ela passou também por um período muito difícil com a família, com a mãe, com o pai, com a vó. E de certa forma, ela procurou acolhimento comigo, assim, de dividir as coisas dela e tal. Então, eu não sou de ficar olhando o que falta, sabe? Eu sou mais de olhar o que tem.
P/1 – E pra frente, assim, qual que é o seu… você tem algum projeto? não precisa ser profissional, um projeto.
R – Tenho vários.
P/1 – De vida ou…?
R – Tenho. De tudo. Eu quero escrever um livro, que eu tô escrevendo, que fala um pouco dessa intensidade de se reconhecer vivo, que é sobre essa idade, ali dos oito anos, sete anos, desse período que eu morei no Rio de Janeiro, que não é biográfico, também, mas é, é uma mistura. A gente, eu e Minom, a gente quer construir uma casa no campo porque com o tempo, eu quero… a gente quer passar mais tempo fora da cidade. passar, sei lá, ficar cinco dias lá, vem pra cá, se organiza, fica uma semana lá… e isso a gente quer fazer meio que logo, assim, logo acho que nos próximos três anos. Eu tenho planos também de começar uma carreira como fotografo de arte, que já começou, esse ano eu arrumei uma galeria que tá vendendo as minhas fotos. Semana passada, vendi as primeiras duas fotos, porque senão, demora muito, muito pra fazer e às vezes, dá uma angustia, assim, de você não realizar alguma coisa com mais facilidade, assim. E foto é tão prazeroso e tão mais rápido, você ter um corpo de trabalho demora, mas você fazer uma foto boa não demora tanto, assim como demora fazer um filme. E é menos descompromissado, assim, com relação ao peso que tem um filme, né, que você deixa aquilo ali, entrega e pronto. E a foto, não, pra mim, é mais leve. É quase um… fazer filme é prazeroso também, mas fazer foto é quase que só prazeroso (risos), não tem…
P/1 – Não tem dor?
R – Não tem, é só prazer, assim…
P/1 – Só alegria.
R – É, é uma alegria tão grande, você chega: “Fiz uma foto hoje!”, é mais leve, né, não tem tanta história, tanto… remoer, remoer, remoer. E eu quero seguir com o trabalho espiritual, assim, que eu sinto que tem muita coisa ainda pra fazer e pra acontecer e pra aprender e pra crescer, que é uma dimensão menor da minha vida, assim, é engraçado, que com o tempo, assim, eu parei de separar as coisas. O dia do trabalho, trabalho quarta, sado e domingo… chega uma hora eu você incorpora mesmo esse negócio de ficar… mas assim, é um fluxo que ele vai e tá acontecendo, tá acontecendo e vai indo… e você tá quieto e aquilo tá acontecendo, aí você encontra gente e aquilo tá acontecendo, aí você vai em lugares e aquilo tá acontecendo e aí, acho que isso só… com o tempo e com a prática, a sua capacidade de vazão aumenta. Acho que é isso.
P/1 – Contando toda essa sua história sua, revisitando hoje dessa maneira que a gente revisitou, qual a sensação que você tá de ter contado uma parte, uma narrativa de si?
R – É engraçado, porque a gente é físico, a gente é emoção, a gente é intelecto, a gente é espirito e a maior parte do tempo, elas estão brigando, né, essas quatro instâncias, é dificuldade de se conseguir alinhar tudo. Quando a gente parou pro almoço, pensei: nossa, não tô nem com fome, porque alimenta, né, assim, você… não é porque eu entrei na minha história e tal, claro que isso mexe muito, mas é um acesso, né? Essa coisa desse fluxo, é a vida te tomando, ela te alimenta, sustenta, te equilibra, te acalma e assim, mais do que contar, eu acho que é acolher. Voltar a coisa da luva, né? É lidar com a minha vida, com as minhas coisas, com a minha história, com esse carinho, assim, com esse cuidado, com… de abraçar mesmo o todo. Faz bem (risos).
P/1 – O quê que você tá imaginando que vai ser esse filme? “Pessoas”?
R – Eu não faço a menor ideia (risos). Eu acho desde o começo, assim, eu acho que o filme é sobre escuta. Sobre escuta, porque a gente se ouve pouco, também. E eu acho que o jeito que a… pelo menos, a parte das entrevistas é feita é muito pra gente se escutar, também, porque é difícil você ter uma oportunidade que você para quatro, seis horas da sua vida pra falar de você pra alguém e alguém que quer te escutar. Eu acho que tem esse aspecto da escuta… eu prefiro pensar assim, nos elementos que a gente tem e aí, depois ver como é que vai combinar. Então, tem a parte da escuta, tem a parte que é essa exuberância que é a vida de cada pessoa, a singularidade de cada jornada, como que você é capaz de se identificar com uma pessoa que mora no interior do Acre, que não tem nada a ver com você, mas que enfim, as dores, as alegrias, os gozos, eles são parecidos por caminhos totalmente diferentes, por escolhas totalmente diferentes, mas assim, existe a coisa única da trajetória humana e tem a coisa que é singular, que é inerente a cada um. E eu acho que a gente tem que dar conta desses dois aspectos ao mesmo tempo, dar conta… o oficio de documentarista e o de historiador é muito parecido, assim, a gente se debruça, principalmente o Museu da Pessoa sobre um mesmo objeto, não todo documentarista, mas assim, eu acho que no nosso caso, no meu caso tem um interesse pela subjetividade, né, essa coisa que o Joseph Campbell falava, que a vida é uma experiência única e intransferível. Não tem como você transferir o mais próximo que a gente consegue são esses relatos, a gente ouvir de alguém o quê que ele viveu, é uma garantia que ele viveu aquilo, mas ele tá contando, a pessoa conta e o aspecto de como a gente conta eu acho que é importante, também, assim, não só o que a gente fala, mas o como, né? Como você conta a sua vida, como você conta, o quê que você lembra, o quê que fica do que você vive? Que recortes você faz? Quais são os momentos que realmente valem? Na verdade, tem muitos desafios também, porque nós brasileiros que sempre se fala que lida tão mal com a memória, no acervo do Museu tem uma… acho que daí é uma possibilidade, mas tem uma vontade de abraçar esse país também, assim, das nossas histórias, quem nós somos, de onde nós viemos, quem são nossos pais, nossos avós, como que a gente se constitui, como que a gente se vê, quem que a gente é, o quê que agente quer. Isso eu acho que é meio que um pano de fundo, sabe, que vem um pouco quando a gente fez o filme da Marina, eu queria muito falar de espiritualidade brasileira, que eu acho que é um patrimônio imaterial, é um tesouro que a gente tem e que muitas vezes, é subestimado, quando não, ignorado, porque tem assim, a cultura… a Academia tem um pouco de repulsa a esse universo da espiritualidade, eu já ouvi de um acadêmico muito conceituado que esse filme, o “Espaço Além” era um desserviço e que eu ia ser o culpado de difundir esse bando de patacoada e de charlatão para o mundo. Eu falei: “Mas por quê?”, ele falou assim: “Não, a Antropologia já… já foi provado que esse negócio de espirito não existe”, eu não aguentei, eu dei uma gargalhada: “Como assim? Quem provou?” “A Antropologia provou”, eu achei a piada do século, eu achei aquilo muito louco, o cara com uma convicção de que… porque eu acho que tudo bem você não acreditar, assim como tem essa coisa de falar assim: cara, se eu for um delírio, se eu for um louco, tudo bem, pra mim, minha loucura valeu a pena, eu vivi intensamente, esse negócio me faz bem, não acho que eu fiquei uma pessoa pior com isso. não acho que isso me diminuiu, não acho que me fez um ignorante, um sei lá… também não perdi um braço por causa disso, assim, não tive nenhum prejuízo material, ou espiritual, emocional. E aí, essa certeza da Academia., E quando a gente fez o filme da marina, a gente… eu tinha muito um desejo de mostrar essa coisa do Brasil, mas a Marina como protagonista e isso vinha junto, ali. Era uma outra camada. E acho que o que me interessa nesse tipo de trabalho é a gente trabalhar com várias camadas, com várias. Um filme não precisa ser só sobre uma coisa. Então, eu acho que a gente tem escuta, a gente tem a fala, o reconto, como que você reconta coisas que você viveu, né? E como que a gente reconta o que a gente escutou dessas pessoas. Então, também tem a nossa forma de recontar, porque um documentarista é um recontador, a gente grava, tal, depois pega aquilo tudo, edita, mistura com outras coisas e cria outra história, que não é necessariamente a história da pessoa, é um jeito que a gente viu… um jeito que a gente recortou e recontou aquilo. Tem essa camada do Brasil que no Brasil dá para falar de um monte de coisas, dá para falar de História, dá para falar de índio, de escravidão, dá para falar de imigração, ocupação urbana, pô, um trabalho escravo, enfim, mineração, essa cultura extrativista, essa lógica extrativista que tem até hoje de eu vou pegar tudo e vou cair fora, vou pegar tudo que der pra pegar e vou cair fora, que infelizmente, ainda tem muito aqui, o tal do jeitinho brasileiro. Os nossos pactos, acho que a gente tá num momento de rever os nossos pactos, quem somos nós enquanto nação, quem somos nós… quem sou eu enquanto individuo, e eu acho que talvez, a gente consiga tratar de tudo isso. Eu sempre penso em tratar dos elementos todos, porque aí, quando a gente vai para o material e vai pra… são temperos, né, são ingredientes que você vai pegando: falta uma história que tenha isso, falta uma história que tenha aquilo, e nisso, você vai combinando, combinando e no final, é possível falar de várias coisas, de vários assuntos sem se ater só a primeira camada, que é obvia, a da encomenda: fazer um documentário sobre o Museu da pessoa, ou com o Museu, que eu nem acho que é sobre, eu acho que é com. Por isso que a gente vai trocar de lugar agora (risos).
P/1 – Excelente (risos). E que Deus te ouça sobre esse filme, que se for uma parte disso está bom, já.
P/2 – Obrigada.
R – Obrigado vocês.
P/1 – E tomara que a gente chegue perto disso, Marco.
FINAL DA ENTREVISTA
Recolher