Projeto: Memorial do Incor – 25 anos
Depoimento de José Manoel Camargo Teixeira
Entrevistado por Rosana Miziara e José Carlos Vilardaga
São Paulo, 26/08/1999
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento ISP_HV002
Transcrito por Stella Maris Scatena Franco
Revisado por Fernanda Regina
P/1 - Bom, doutor José Manoel, para começar o senhor poderia se identificar, o nome completo?
R - José Manoel de Camargo Teixeira.
P/1 - E falar um pouco assim, do seu nascimento, o local de nascimento, a data...
R - Eu nasci em São Carlos, estado de São Paulo, 14 de Dezembro de 1947.
P/1 - Os seus pais são de lá também?
R - Os meus pais são também de São Carlos, os dois, meu pai e minha mãe nascidos em São Carlos.
P/1 - Seus avós, sua família tem alguma descendência estrangeira?
R - Tem, diversas!
P/1 - Quais?
R - Português, italiano... Além do ramo brasileiro, depois tem um pouco de belga, austríaco e um pouco de espanhol.
P/1 - Uma boa mistura! (risos)
R - É, é bem misturado.
P/1 - E o que os seus pais faziam lá?
R - O meu pai era cirurgião dentista e minha mãe era professora de piano, mas ficava mais da casa, não é? Dava aula em casa, de piano e cuidava da... Segundo trabalho da mulher, jornada complementar.
P/1 - E o senhor tem mais irmãos, irmãs?
R – Tenho mais três irmãos... Tinha quatro, um faleceu, então hoje, atualmente eu tenho mais três irmãos. Uma irmã e dois irmãos.
P/1 - O senhor é mais velho, mais novo...
R - Mais velho.
P/1 - E como é que era a sua casa, lá? A casa da sua infância?
R - Casa da minha infância? Era uma casa, uma rua tranqüila, passava o bonde na frente...
P/2 - Tinha o bonde lá em São Carlos?
R - O bonde, é. Ficava em frente da... Tinha uma praça grande que tinha uma igreja, Igreja de São Benedito, uma praça cheia de árvores, e lá era uma casa bastante arejada, com um porão embaixo, cheia de escadas, uma sala enorme... Uma casa assim, mais ou menos típica do interior, apesar de...
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Depoimento de José Manoel Camargo Teixeira
Entrevistado por Rosana Miziara e José Carlos Vilardaga
São Paulo, 26/08/1999
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento ISP_HV002
Transcrito por Stella Maris Scatena Franco
Revisado por Fernanda Regina
P/1 - Bom, doutor José Manoel, para começar o senhor poderia se identificar, o nome completo?
R - José Manoel de Camargo Teixeira.
P/1 - E falar um pouco assim, do seu nascimento, o local de nascimento, a data...
R - Eu nasci em São Carlos, estado de São Paulo, 14 de Dezembro de 1947.
P/1 - Os seus pais são de lá também?
R - Os meus pais são também de São Carlos, os dois, meu pai e minha mãe nascidos em São Carlos.
P/1 - Seus avós, sua família tem alguma descendência estrangeira?
R - Tem, diversas!
P/1 - Quais?
R - Português, italiano... Além do ramo brasileiro, depois tem um pouco de belga, austríaco e um pouco de espanhol.
P/1 - Uma boa mistura! (risos)
R - É, é bem misturado.
P/1 - E o que os seus pais faziam lá?
R - O meu pai era cirurgião dentista e minha mãe era professora de piano, mas ficava mais da casa, não é? Dava aula em casa, de piano e cuidava da... Segundo trabalho da mulher, jornada complementar.
P/1 - E o senhor tem mais irmãos, irmãs?
R – Tenho mais três irmãos... Tinha quatro, um faleceu, então hoje, atualmente eu tenho mais três irmãos. Uma irmã e dois irmãos.
P/1 - O senhor é mais velho, mais novo...
R - Mais velho.
P/1 - E como é que era a sua casa, lá? A casa da sua infância?
R - Casa da minha infância? Era uma casa, uma rua tranqüila, passava o bonde na frente...
P/2 - Tinha o bonde lá em São Carlos?
R - O bonde, é. Ficava em frente da... Tinha uma praça grande que tinha uma igreja, Igreja de São Benedito, uma praça cheia de árvores, e lá era uma casa bastante arejada, com um porão embaixo, cheia de escadas, uma sala enorme... Uma casa assim, mais ou menos típica do interior, apesar de estar numa rua que era tranquila, mas uma rua que já era mais central da cidade, não era tão assim, num bairro, não é? Ficava numa região mais central da cidade. E era uma casa assim, que a gente gostava bastante de brincar no quintal, tinha galinha no quintal, um galinheirinho, um tanque de areia para as crianças, um lugar lá para passar os carrinhos, pedalar os carrinhos, garagem para guardar os carrinhos...
P/2 - Tinha o porão? Tinha alguma brincadeira no porão?
R - Porão... A gente se escondia no porão lá. O pessoal tinha medo de entrar no porão (risos). O porão era baixinho, tinha que entrar meio engatinhando.
P/2 - É um local de brincadeira ideal, assim, não é?
R - Era uma casa bem agradável.
P/1 - E como é que era a relação com seus pais? Quem exercia a autoridade na família?
R - Meu pai, não é? Meu pai tinha o consultório dele na casa. Em frente da casa ele tinha o consultório dentário dele, então ele ficava o dia inteiro dentro de casa, não é? O consultório dele era na casa, então meu pai vivia dentro de casa. Ele tinha também um laboratório de próteses, não é? De protético, ele fazia a parte de próteses também, no quintal da casa, então a vida era lá na casa. Do lado da casa tinha a casa do meu avô, a casa dos meus avós, pais do meu pai, era ao lado. Tinha a casa e o negócio do meu avô, que ele tinha um bar com restaurante, que era pegado [próximo]. Então era tudo da família, tudo junto, não é? O meu pai sempre foi muito, assim, dono da família. Casou cedo, minha mãe era muito nova, minha mãe começou a namorar com 13 anos, ficou noiva com 14 e casou com 18, então ele mandava mesmo. Não podia sair na rua sem que ele fosse junto... Essas coisas de interior, assim, bem típica. Não podia sair na janela (risos). Saía na janela levava bronca.
P/1 - O senhor teve formação religiosa?
R - Sim. A gente morava em frente à igreja. Quer dizer, a partir daí você já imagina.
P/2 - Missa todo dia.
R - Missa todo dia, todo dia tinha que ir à missa, então... A família era muito religiosa e minha avó, mãe da minha mãe também... A gente tinha padre na família, freira na família, bispo na família... Então essa parte religiosa representava um segmento muito importante. Minha mãe tocava órgão na igreja...
P/1 - Tinha toda uma vivência.
R - Fazia parte do coral. E a gente acabou indo lá, nesse mesmo rumo. Então ia ajudar nisso, ser coroinha, rezava em latim...
P/1 - Rezava em latim?
R - Rezava em latim, tinha que rezar em latim. Minha irmã fazia parte da procissão, lá dos anjinhos, tinha roupa do anjinho e tal... Teve uma formação religiosa muito, muito intensa, desde o começo. E depois também, com o tempo isso continuou, quando a gente acabou mudando de São Carlos. Então desde o começo a religião na família era muito importante, sempre foi.
P/1 - Com quantos anos o senhor entrou na escola?
R - Seis anos.
P/1 - Com seis anos? Lá em São Carlos mesmo?
R - Em São Carlos.
P/1 - E que lembrança o senhor tem, assim, desse período escolar?
R - Ah, lembrança muito boa. Primeiro porque não era bem escola. Era o Jardim. Então lá não entrava no primeiro ano, entrava no Jardim e a escola era um grupo escolar que tinha perto de casa também, era muito pertinho, há duas quadras de casa, então era fácil de ir, fácil de voltar, as minhas tias eram professoras no grupo, davam aula no grupo... E era praticamente brincadeira só. Brincava muito, tal...
P/2 - A sua família era muito presente assim, na cidade de São Carlos?
R - Sim.
P/2 - Tinha o padre, na escola e tudo...
R - Tinha padre, escola... Muito atuante. Meu avô... Toda a família era uma família muito tradicional da cidade. Começou com os fundadores da cidade, então o meu bisavô, o meu avô tinha farmácia... Isso do lado da minha mãe. Tinham farmácia na cidade, eram os farmacêuticos antigos da cidade, e a minha bisavó teve 15... 13 ou 14 filhos, era uma família enorme, grande... Então era muito presente na cidade, tanto nesse aspecto aí do ponto de vista do trabalho, como também do ponto de vista social, quer dizer, uma família muito grande, logo muito presente. Essa fase da escola, do pré-primário foi muito interessante, era só ir para a escola para brincar. E tinha todos os amiguinhos lá do bairro que iam para a escola também. Os meus primos, não é? Todos os meus primos também iam, era uma extensão da casa (risos). É o primo, a tia, tal... A minha tia foi minha professora no primeiro ano, ela que acabou me ajudando, me alfabetizando, assim como dos meus primos, que tinha os sobrinhos dela e o filho dela também, não é? Então era uma... Não tinha muita diferença do ambiente doméstico com o ambiente social e com o ambiente escolar. Até porque a cidade era pequena naquela época, não é? Uma cidade... São Carlos hoje deve ter 150, 170 mil habitantes.
P/2 - O senhor volta para lá ainda? De vez em quando o senhor vai lá?
R - Vou, vou. Vou sempre lá, ainda tenho um pouco de parente lá ainda. Não tanto, mas tenho ainda um pouco. O pessoal acabou saindo muito, muita gente saiu de lá, não é? Veio para São Paulo, para outras cidades do interior.
P/1 - Quanto tempo o senhor viveu lá?
R - Eu vivi até sete anos, quando eu tinha sete anos.
P/1 - Ah, quando o senhor completou sete anos vocês mudaram de São Carlos?
R - Mudamos de São Carlos, viemos para Campinas.
P/1 - Para Campinas?
R - É.
P/1 - Como é que foi essa mudança? Por que vocês mudaram?
R - Nós mudamos porque meu pai faleceu. Quando eu tinha sete anos, ia completar sete anos o meu pai faleceu e aí minha mãe resolveu sair de São Carlos, não estava se dando mais bem lá no ambiente, porque lembrava muito o meu pai e problema de família também, estava havendo desentendimento de família, aquela coisa, famílias muito fechadas, não é? Aí ela resolveu sair, resolveu vir para Campinas, um pedaço da família já estava em Campinas há muito tempo, então resolvemos vir para Campinas. E foi uma mudança meio traumática. Todo mundo pequeno, a minha mãe ficou viúva com todos os filhos pequenos e jovem e nessa dependência. Então acabou criando um trauma grande na estrutura familiar. A mudança teve todos esses comemorativos aí de realmente ir para o desconhecido. Aí mudamos para Campinas quando eu tinha sete anos, fiquei em Campinas por mais três anos... três, quatro anos. Aí mudamos outra vez.
P/1 - Aí lá você entrou na escola, a sua mãe foi trabalhar...
R - É, minha mãe montou uma loja, resolveu deixar o piano... Porque ela tinha uns alunos de piano, mas achou melhor montar uma loja... Ela dava aula de piano, tal, mas falou: "Não, não vou fazer só piano não". Ela arrumou um grupo lá de sócios, ela montou uma loja e começou a trabalhar nessa loja. E aí fui para a escola, claro. Estava na escola, fui... Quando eu fui para Campinas eu estava começando o primeiro ano, fiz o primário em Campinas até o quarto ano e depois nós mudamos para Mato Grosso. Minha mãe casou outra vez, a segunda vez e o meu padrasto tinha uma fazenda em Mato Grosso, Campo Grande e Dourados, então nós mudamos para o Mato Grosso, mudamos para Dourados. Dourados era uma cidade que estava começando, pequenininha... Era um verdadeiro faroeste. Tudo rua de terra, o pessoal andava tudo armado na cidade, o fim de semana, aí tinha uns três ou quatro...
P/2 - Outra mudança...
R - Outra mudança (risos). Aí fomos para lá e aí vivia parte na cidade, parte na fazenda... A fazenda era perto lá da cidade, tinha uns 30 quilômetros da cidade. Mas eu fiquei interno. Como não tinha colégio em Dourados, fiquei no internato em Campo Grande. Internato, colégio de padres salesianos, aí fiz lá o primeiro e o segundo ano de ginásio internado.
P/2 - E como é que foi essa experiência no internato?
R - Foi boa, até. Não foi ruim não. Me adaptei bem. E a parte religiosa continua. Que aí tinha toda a cultura, a religião, as aulas de religião, tal...
P/1 - E nessa época assim, da sua vida, você já tinha alguma pretensão quanto a sua carreira futura?
R - Já, já. Mais ou menos já estava direcionado que eu ia fazer alguma coisa na área da saúde e provavelmente medicina.
P/1 - Mas tinha, assim, algum elemento que te influenciou nessa escolha, algum parente...
R - Não. Talvez o que tenha influenciado muito na minha escolha foi a doença do meu pai. O meu pai ficou doente durante quatro anos, então aquela vivência da doença em casa, daquela situação de não ter o que fazer para resolver o problema da doença dele talvez tenha estimulado a fazer medicina para ver se a gente faz alguma coisa diferença e descobre a cura das coisas (risos). E também porque a minha família sempre esteve muito voltada. O meu pai dentista, os meus primos eram... Tinha primo que era dentista, tio que era dentista, meu avô era farmacêutico... Então essa área da saúde era uma coisa que... Outros tios-avós também eram da área da farmácia... Então era uma área que se trabalhava muito na família, essa parte da área da saúde. Então talvez isso tenha influenciado um pouco, mas eu vejo que o fator mais decisivo foi essa doença do meu pai, tal, todo esse período que ele ficou doente.
P/1 - Aí, depois, quando você saiu do internato...
R - Aí quando eu saí do internato... Eu saí do internato no segundo para o terceiro ano do ginásio para voltar para Campinas.
P/2 - Voltaram para Campinas?
R - Voltamos para Campinas. Mato Grosso naquela época era meio barra, lá, em termos de ambiente físico. Quer dizer, a fazenda era uma fazenda grande, mas estava sendo montada, então tinha muita malária, muita maleita. O meu padrasto começou a ter problema com a malária e eles acharam que seria melhor ele se afastar um pouquinho, não ficar muito na fazenda, os médicos orientaram ele a sair, então a gente voltou para Campinas. De volta pra Campinas (risos). Eu fiquei num tal de voltar de Campinas, volta para Campinas.... E aí lá eu fui fazer o restante do curso, do ginásio, e o curso científico, na época, o colegial, no Colégio Culto à Ciência, que é um colégio tradicional de Campinas... Era, pelo menos, agora está meio avacalhado.
P/2 - Como é o nome? Culto à Ciência?
R - Culto à Ciência. É um colégio antigo, foi fundado em final do século passado e muitos dos médicos daqui estudaram lá, pessoas que talvez vocês tenham até entrevistado. O professor Virgineli também estudou lá. Então é um colégio... Naquela época os colégios bons eram públicos. Em Campinas se você falava: "Eu estudei em colégio provado". "Esse cara não é muito bom de estudo não. Vai para o colégio privado" (risos). Colégio bom é o colégio público. Então eu voltei para lá para consegui entrar nesse colégio, porque era um colégio muito fechado e eles não admitiam transferência assim, era um negócio muito complexo. Para poder fazer transferência tive que fazer um baita de um exame lá e consegui passar e eles me admitiram. Aí consegui terminar lá o ginásio e o científico.
P/2 - O senhor trabalhou enquanto estudava?
R - Não, não. Felizmente não precisei. De vez em quando... Desde os quinze, dezesseis anos eu era chamado para dar aula. Então eu tinha uns conhecidos lá que tinham uma escolinha, tinha alunos lá que precisavam de aula particular e aí o pessoal me chamava: "Vem dar aula aqui para o pessoal". Que eles precisavam de professor. "Então vamos dar algumas aulas lá para o pessoal. Mas, assim, trabalhar mesmo para ficar regularmente não precisei”.
P/1 - Dava aula do que?
R - Dava aula mais de matemática. Depois andei dando aula para os meus colegas lá de científico, também, de classe, dava aula de física, de química... O pessoal pedia: "Vamos dar uma ajudada aí na gente". "Tá bom, vamos".
P/1 - Fora a escola, como é que foi, assim, a sua adolescência? Quer dizer, fora estudo, amigos, namorada...
R - Olha, a gente, em Campinas, principalmente em Campinas, a gente tinha um grupinho muito bom lá, tanto na escola, quanto da escola. E da igreja também, tinha lá a Igreja Nossa Senhora do Carmo, então tinha um grupo que a gente se reunia sempre, e essa comunidade da Igreja era uma comunidade que a gente curtia muito. Estava sempre junto, saindo... E depois teve uma... A partir desse grupo da igreja tinham aqueles movimentos lá de Juventude Estudantil Católica etc.
P/1 - JEC, JAC, JOC, JUC. (risos)
R - Isso! Então a gente caminhava um pouco nessa linha aí da JEC, da JUC, junto com a JOC... Eu tinha um grupo, o grupo era um grupo muito entrosado e muito, assim, politicamente agressivo. Esse grupo era, enfim, um grupo muito atuante do ponto de vista político, tanto em nível da união estudantil de Campinas, a UEN, a União Estadual... Era um grupo interessante, um grupinho muito bom em termo dos amigos que a gente tinha lá. E o pessoal da escola também. A gente tinha um grupo bom na escola, a escola ficava perto de casa também, eu morava muito perto da escola, então eu estava o dia inteiro na escola. De manhã cedo eu ia jogar bola, ficava lá fazendo as coisas na escola e tinha o grupinho também lá do bairro, o campo de futebol do bairro, que a gente ia lá fazer as peladas lá no bairro... Era isso, o dia inteirinho... Ou estava na escola ou estava fazendo esporte, no fim de semana ia lá para a igreja e iam os agrupamentos lá da comunidade lá da igreja que era um ramo da juventude estudantil. Foi interessante.
P/2 - O senhor chegou a ter uma participação política, atividade política, participou do grêmio estudantil, essas coisas?
R - Política assim não tão diretamente. A gente sempre esteve um pouco vinculado. Mas nunca fui lá... Nunca tive "cargos", assim, como se dizia. Mas como grupo a gente participava bastante nesses movimentos lá, principalmente naquela época lá de... Início da década de 60, que a coisa estava meio brava, pegando fogo. Então a gente sempre tem um pouco de participação nesse aspecto também. Tinha o pessoal lá do...
P/1 - Que eram as entidades de oposição na época, de certa maneira.
R - É, de certa maneira sim, eram as entidades que acabavam de alguma forma não estando tão de acordo com um rumo que estavam querendo tomar, estavam querendo dar para a política. Mas dentro do meu grupo tinha um pessoal assim, mais atuante. Esse pessoal acabou até participando aí de movimentos maiores etc.
P/1 - Aí o senhor fez o científico, fez cursinho... como é que foi esse seu ingresso na...
R - É, eu fiz o científico, estava já definido que ia fazer medicina, e terminado o científico eu prestei o vestibular... Campinas estava começando a faculdade naquela oportunidade, a Faculdade de Medicina de Campinas estava começando, eu coloquei como opção primeiro aqui em São Paulo, apesar de Campinas estar começando... Eu falei: "Não, eu quero ver se eu consigo fazer em São Paulo". Até porque lá do colégio tinha muitos ex-alunos que estavam aqui na USP. Aqui na Faculdade de Medicina da USP. Então... Não fiz cursinho, prestei direto e entrei aqui na USP, na primeira vez.
P/2 - Foi direto, sem cursinho?
R - Sem nada. Direto, entrei, e aí fiz o meu curso aqui. Depois que eu entrei aqui não prestei mais para nenhuma faculdade. Já tinha ido para o Rio, me inscrevi no Rio, lá na Praia Vermelha, tal... Mas deu sorte, aí eu entrei direto.
P/1 - Deu sorte! Muita sorte! (risos). E como é que foi esse período da faculdade? Quais as matérias que o senhor mais gostava?
R - Olha, eu sempre fui um pouco de gostar de tudo, viu? Eu não tinha muito desse negócio de grandes preferências. Mas... Uma matéria que sempre me chamou atenção foi Anatomia. Anatomia Geral, Anatomia Topográfica... Então foi uma matéria que eu me dediquei bastante, eu sabia muito Anatomia. E em geral, Clínica e depois a Cirurgia. Porque desde o começo eu comecei a me direcionar para a Cirurgia, já a partir do terceiro ano eu já estava metido em Cirurgia, com grupos aqui externos, aí, ou pegando fora...
P/2 - Já no terceiro ano?
R - Terceiro ano. E aí foi um contínuo isso, de estar com o curso de medicina de um lado, o esporte do outro, que eu sempre fiz muito esporte, aqui na Faculdade também eu fazia muito esporte, eu estive vinculado à Atlética e um pouco ao Centro Acadêmico... Se bem que Atlética e Centro Acadêmico quase nunca se bicavam bem. Então eu ficava no meio de campo. Era de um lado e do outro. (risos) Porque a escola tinha Centro Acadêmico, Atlética e o Show Medicina, eram três instituições...
P/2 - Show...
R - Show Medicina. É, é uma instituição que todo ano tinha um show. Esse grupo que faz o show é um grupo meio diferente do pessoal da Atlética, aí tem um pouco de simbiose, mas totalmente contra o pessoal do Centro Acadêmico. O pessoal do Centro Acadêmico é um pessoal mais intelectualizado, tal, politicamente engajado... O pessoal da Atlética mais de cabeça aberta e o Show Medicina então eram os anarquistas. E eu consegui participar dos três (risos). Então eu consegui participar do Centro Acadêmico, ser da Atlética, fui diretor de futebol de salão da Atlética, acabamos introduzindo o Rugbi aqui na escola, que não existia. Montamos...
P/1 - Então foi vocês, a sua turma que introduziu o Rugbi aqui na faculdade?
R - É, minha turma que montou o Rugbi aí. O León William Rimes, que era o inglês, que trouxe, ele fazia parte da colônia inglesa, trouxe o Rugbi e o nosso grupinho que deu apoio, né? E aí montou um belo de um time de Rugbi na escola. Tínhamos um time de Rugbi que era... O time da FUP, que era toda a USP, era um time que ninguém batia.
P/2 - Porque aí organizou... Tinham campeonatos de Rugbi?
R - Campeonato de Rugbi... A gente participava dos campeonatos dos ingleses aí, tal... São Paulo Atletic Club, lá de Santo Amaro.
P/1 - Na Rua da Consolação em Santo Amaro. Tem até hoje.
R - Isso, isso. E a gente montou o time de Rugbi aqui. Então eu participava do esporte, participava um pouco do Centro Acadêmico, então essas situações de reivindicações políticas, que naquela época, 66, 67, 68 era o quente. Eu morava aí na Maria Antônia, perto da Faculdade de Filosofia.
P/2 - Morava ali na Maria Antônia?
P/1 - Na boca!
R - Na boca ali da coisa (risos). Então a gente estava bem dentro do caldeirão aí.
P/2 - Você foi morar ali como? Era uma república de estudantes?
R - Não, tinha um grupinho, dois ou três que dividiam apartamento. Então a gente morava ali pertinho, ali perto da Maria Antônia.
P/1 - Desse período mesmo, como é que foi... As matérias...
R - Em termos de matérias era um pouco nessa linha da cirurgia. Depois foi bem a parte cirúrgica e me envolvi na parte cirúrgica desde o começo e acabei entrando já desde o internato, do quinto ano. Mais para a linha da cirurgia.
P/1 - E dentro da cirurgia...
R - Dentro da cirurgia eu, depois que terminei o curso de Medicina, acabei fazendo residência em Cirurgia Geral, depois fiz Cirurgia Torácica e depois Cirurgia Cardiovascular.
P/2 - E como é que foram essas escolhas? Como é que elas se deram?
R - Essas escolhas foram um pouco... Até porque, primeiro, eu tinha... Como eu comecei a fazer cirurgia muito cedo, quando eu cheguei perto do sexto ano eu já feito quase tudo o que era de Cirurgia Geral. Então eu falei: "Bom, eu vou tentar pegar outra área. Tinha um grupo que eu acabava ajudando a operação, que era um grupo aqui do Hospital, que fazia a parte de Cirurgia Torácica. Eu tive um contato grande com eles e aí comecei a me direcionar para a parte de Cirurgia Torácica, que era já uma subespecialização, e a Cirurgia Torácica com a Cardíaca estavam muito juntas. Esse pessoal também trabalhava na parte de Cirurgia Cardíaca, então foi... Por contiguidade acabou entrando lá no caminho natural para chegar à Cirurgia Cardíaca que é a parte mais complexa.
P/1 - E a sua formação é toda aqui da USP?
R - Toda da USP. Desde o começo.
P/2 - Como é a repercussão... Quer dizer, o senhor participou de alguma forma ou foi só uma questão de repercussão do transplante, do primeiro transplante no Brasil? Como é que foi isso?
R - Muito pouco, muito pouco. Nessa época do transplante eu estava no terceiro ano, então para mim ainda as coisas eram um tanto quanto longínquas, não chegava muito lá ainda. A gente estava ainda na faculdade, não tinha entrado muito no hospital, e isso acontecia no hospital. Naquela época entre faculdade e hospital tinha uma distância muito grande. O aluno acabava indo para o hospital mesmo, começava a frequentar mais a partir do quarto ano, então não tive muito envolvimento, nem conhecimento, nem participação maior. A gente só escutava, que fez o transplante, coisa nova... Mas não estava envolvido diretamente com esse aspecto.
P/1 - E depois da residência médica você foi fazer especialização...
R - A residência já é a especialização.
P/1 - O que eu ia perguntar é que momento que você entra para fazer a parte da Administração Hospitalar.
R - No momento em que eu fui convocado.
P/1 - Você foi convocado? (risos)
R - Eu fui convocado.
P/1 - Como é que você entrou por essa...
R - Chegou uma época que... 75, 76 eu estava terminando já a minha especialização em cirurgia cardiovascular e o nosso famoso Incor aqui estava pronto. Era chamado de Instituto do Pericárdio, porque só tinha a parte de fora, não é? As paredes. E nada funcionava. Então era o instituto do Pericárdio (risos). O pessoal já estava pensando em vir para cá, começar a vir ocupar o Incor, mas ainda não tinha terminado a obra totalmente, faltavam instalações, equipamentos, faltava organizar... E o doutor Suzuki, que estava aqui de alguma forma coordenando a implantação do hospital... Que eu tinha trabalhado já bastante com ele nessa parte de cirurgia, inclusive na oficina lá de bioengenharia, que estava no HC, em termos de válvula etc, ele falou: "Olha, você não quer dar uma mão lá, que eu estou precisando de gente para ajudar a organizar". Como eu fui sempre muito metido nesse negócio de organizar as coisas. Eu fui o residente chefe, depois fui preceptor chefe de todos os residentes, eu que montava as escalas do pessoal, escala dos internos, tomava conta dos internos, enfim... Então tinha me envolvido nessa área de organizar as coisas, ele falou: "Vai dar uma mão lá para organizar as coisas lá. Eu falei: "Está bom". Eu fui falar com o professor Virgineli e o professor Zerbini e eles falaram: "Está bom, pode ir lá. Mas você vai lá e vai ter que fazer as coisas direito lá. Não vem depois dizer que não está dando para fazer as coisas aí, que tem que ficar aqui, tem que ficar lá... Você vai lá, você vai tomar conta lá e se dedicar bastante para aquilo". Eu falei: "Tá bom. Já que é para ir, eu vou. Vou como missão. Olha, eu estou sendo obrigado. Você anota aí que eu fui obrigado". (risos) Aí vim. Vim para cá e...
P/1 - Mas antes de você ter feito o curso na Getúlio Vargas...
R - Antes.
P/1 - Você veio primeiro para cá depois que você foi para a Getúlio Vargas?
R - É, vim para cá, porque tinha que ajudar a pôr para funcionar. Aí eu vim, comecei a ajudar, fazer as coisas, correr atrás do prejuízo... E quando comecei a ver as coisas e ver o tamanho do problema eu falei: "Tocar de ouvido, só piano" (risos). Piano a gente toca de ouvido, agora, tocar um negócio desses de ouvido não vai dar muito certo. Tem que estudar, tem que se formar. Nessa época estava começando justamente o curso de Administração Hospitalar de Sistema de Saúde, através do PROASA, que é um programa de um convênio do HC com a Fundação Getúlio Vargas, e estavam começando a montar os cursos de especialização, eu fui fazer o curso lá. Consegui uma bolsa para fazer o curso, do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. E fiz o curso de especialização.
P/1 - Foi fazer o curso trabalhando aqui já?
R - Trabalhando aqui já, estava aqui vendo os problemas, tal e fazendo o curso de noite. Então ficava de dia correndo atrás dos pepinos, abacaxi, melancia... À noite a gente ia fazer o curso para ver se tinha algum conhecimento complementar para ajudar a montar o hospital. E fiz o curso, o curso durou um ano e meio, foi um curso puxado, toda noite, um curso difícil para quem vem da área da saúde, pegar a parte administrativa, é outro mundo! O pessoal falava uns negócios lá que a gente não entendia. Mas terminei o curso direitinho, fiz essa especialização na parte de administração e aí fiquei vinculado à escola, à Fundação Getúlio Vargas. Como eu estava montando lá, não tinha muita gente que conhecia do assunto acabei ficando vinculado ao programa, ao PROASA, até porque o PROASA é parte... O HC faz parte do programa e a partir do... Eu fiz o segundo curso, teve o terceiro, a partir do quarto curso eu passei a ser o coordenador do curso.
P/2 - Já foi organizar também?
R - Já fui organizar o curso lá (risos). Já fui organizar o curso lá. Pessoa organizada já é comigo mesmo, já ia organizar lá.
P/2 - E o que... Organizar o pericárdio, como é que foi isso? Quer dizer, é o uma tarefa pelo visto bem grande.
R - Tarefa grande. Era começar a viabilizar o funcionamento do hospital desde resolver o que tinha aí para terminar de obra, até completar os equipamentos, trabalhar a transferência do ambulatório lá do CHC para cá, transferência da enfermaria de lá para cá, transferência da cirurgia de lá para cá, quer dizer, montar toda a parte organizacional do hospital e correr atrás do prejuízo aí, das coisas. Então era uma parte geral, de fazer funcionar o hospital. E felizmente eu vim para cá foi em meados de 76, julho de 76... Junho, julho de 76 eu vim para cá.
P/2 - Antes da Fundação Zerbini, inclusive?
R - Antes da Zerbini. Antes. E quando eu vim para cá, em 76, começamos a trabalhar e em 10 de Janeiro de 77 a gente conseguiu abrir o funcionamento do ambulatório.
P/1 - E nesse meio tempo você foi fazendo mestrado, doutorado... Mestrado?
R - De lá para cá...
P/1 - Depois?
R - Depois da especialização aí eu comecei a... Voltei um pouco para a área médica. Aí eu fiz a parte administrativa: "Já estou bom nisso". Agora voltei para a parte médica. Continuava operando, continuava trabalhando, dava plantão, como todo médico, um monte de plantão. E aí comecei depois a fazer o mestrado na área de cirurgia torácica, cardiovascular e mais recentemente acabei... Quer dizer, concluí meu doutorado. Então isso foi um projeto, assim, meio misto: faz um pouco na administração, um pouco na área de medicina, um pouco na administração, um pouco na medicina...
P/1 - Voltando agora para a implantação do Incor, quais os departamentos que existiam no momento da implantação, tipo, os serviços... Quer dizer, serviço de psicologia, serviço de...
R - É, o Incor quando ele foi... Para a implantação do Incor foi criado um grupo de trabalho que era um grupo grande, multiprofissional, com quase todas as profissões que passariam a ter uma importância grande no funcionamento do hospital. Tinha lá o pessoal da farmácia, da nutrição, da psicologia, o pessoal clínico, os médicos, os clínicos, os cirurgiões... O pessoal de fisioterapia, o serviço social, enfermagem, diversos segmentos da enfermagem, parte administrativa... Então era um grupo bastante grande, uma equipe multiprofissional que ficou incumbida de fazer essa organização básica em termos de manuais, em termos de criar todas as rotinas operacionais... Esse grupo começou a trabalhar antes do próprio começo do Incor. Isso começou em 74... Acho que foi 73 ou 74 que esse grupo começou a se reunir, tinha o doutor Humberto Moraes Novaes, que coordenava esse grupo, que depois foi o primeiro diretor executivo do Incor, depois foi diretor executivo do Instituto Central. Ele coordenava esse grupo que era um grupo que chamava de implantação, que via toda essa parte de início da organização do hospital e criar bases de manuais de organização, até com uma assessoria de uma empresa americana, que foi contratada para ser a base... Ela que montou a base organizacional do Incor, todo o projeto de organização foi eles que fizeram em cima disso. Esse grupo então adaptou essa base que eles trouxeram para a nossa realidade e justamente nesse momento que surge todos esses profissionais e esses serviços, já eram serviços potenciais que estariam funcionando dentro do Incor. Quando começou a iniciar o funcionamento então esses serviços começaram a ser agregados de novos profissionais, então tinha lá um de cada um, ou no máximo dois ou três, no caso enfermagem, aí quando começou a... Vai começar o ambulatório, então o pessoal do ambulatório de lá foi transferido para cá, então vieram os profissionais de lá para cá e começaram a se agregar aos diferentes serviços, então as enfermeiras passaram a agregar o grupo de enfermagem, o pessoal de psicologia, ao pessoal de psicologia, e assim por diante. A mesma coisa quando foi começar a internação. Aí começamos a... Em 77 sai publicado o regulamento do HC, porque até aquela oportunidade não tinha um regulamento do Incor. Existia o Incor, criado por lei, mas o regulamento ainda não estava devidamente estabelecido, não tinha estrutura organizacional do hospital com os diferentes serviços, com as diferentes seções, com as suas atribuições, responsabilidades, quadro de pessoal, não tinha nada. Então em 77 um trabalho que foi feito pelo GERA, que era o Grupo Executivo de Reforma Administrativa do Estado, que ouviu todos os institutos e todo o pessoal, esse grupo então montou o regulamento do HC que foi publicado em 77. Então a partir de 77 todos os institutos e inclusive o Incor que estava começando naquela oportunidade passou a ter o seu regulamento com toda a sua estrutura bem instituída, montada e definida.
P/2 - E essa perspectiva de juntar um grupo multiprofissional para montar o hospital? Isso era uma coisa comum na perspectiva médica?
R - Não, não era não. Não era não. O Incor foi um dos primeiros hospitais que passou a ter este grupo multiprofissional instituído e trabalhando conjuntamente num modelo de atenção que tinha como objetivos, e tem ainda hoje como objetivo um atendimento mais global a saúde do paciente, atendimento global este que se entende como um atendimento aos aspectos biopsicossocial da doença e não simplesmente ao aspecto biológico, aí que surge muito então a função do psicólogo dentro desse grupo, com essa abordagem psicológica, da vertente psicológica ou das variáveis psicológicas que interferem no binômio saúde-doença, também visando um atendimento integral à saúde do paciente, ou seja, contemplar tanto os aspectos de prevenção quanto os aspectos de promoção da saúde, quanto o tratamento e o diagnóstico quanto à reabilitação, readaptação e reintegração do paciente à sua comunidade. Então essa proposta que tinha como instrumento essa equipe multiprofissional é uma proposta bastante nova, hoje está muito já frequente, difundida, mas naquela oportunidade era uma coisa muito nova, e até não bem entendida.
P/1 - É, isso que eu ia perguntar, quer dizer, você tem isso enquanto proposta... Essa reunião desse encontro multiprofissional mesmo para dar essa cara para o Incor... Mas e na prática? Aqui dentro, os próprios profissionais do Incor naquele momento como se dava essa relação? Por exemplo, como era visto o serviço de psicologia, um psicólogo trabalhar junto com um médico?
R - Eu acho que desde o início, e até pelo trabalho desse grupo, aqui, internamente passou a ter uma aceitação muito grande o trabalho multiprofissional. Ainda você tinha um entendimento, em profundidade, não tão tranquilo, principalmente por parte do médico, que até hoje ainda tem uma formação muito de trabalho individual e não trabalho em equipe. Então no começo não era só o psicólogo que não era entendido bem, era o psicólogo, a nutricionista, o farmacêutico, o serviço social... Quer dizer: "Por que esse pessoal tem que estar aqui no atendimento do doente? O que eles vão contribuir?" Já que a visão era uma visão muito biológica, muito somática, do paciente estar doente, tem um órgão doente e eu tenho a visão da cura do órgão e não do todo do paciente, o paciente como pessoa primeiro, depois como doente e depois como uma doença. Não é ver só a doença, é ver todo esse conjunto, que era justamente a proposta desse tratamento global do paciente e dessa visão de medicina integral que se estava buscando na época. Então teve sim uma série de dificuldades iniciais de aceitação do modelo, de inserção no modelo, já que a maioria do pessoal vinha dessa prática, de uma prática voltada mais para um atendimento mais individualizado do ponto de vista do profissional versus ou a favor do doente.
P/2 - Médico tem dificuldade de trabalhar em equipe?
R - Ainda tem. Eu acho que ainda tem um pouco, mas eu acho que isso mudou muito. Aqui, internamente, no Incor, principalmente, daquela inicial para hoje teve uma diferença muito grande. Hoje realmente o pessoal consegue trabalhar em equipe multiprofissional de uma forma bem integrada, mas ainda... É que essa dificuldade vem da própria formação nos bancos escolares. Quer dizer, hoje nós... E não é só do médico. Às vezes é do médico, do enfermeiro, do nutricionista. Porque durante a faculdade não existe essa experiência de trabalhar em equipe multiprofissional, quer dizer, o indivíduo se forma e vai falar com a enfermeira depois que ele se formou. Durante o curso de medicina o estudante de medicina não fala com o estudante de enfermagem, nem o estudante de enfermagem fala com o estudante de medicina, não tem esse trabalho conjunto. Diferentemente de outros países onde você tem em alguns momentos esse trabalho conjunto em equipe multiprofissional para justamente exercitar essa prática do trabalho em equipe já nos bancos escolares, antes de chegar na prática. Então ainda tem um pouco dessa dificuldade que é um problema que vem da formação. Não só da formação em termos de metodologia, mas do próprio conteúdo. Quer dizer, o próprio conteúdo do conhecimento médico ainda está muito voltado para a parte técnica, quer dizer, do tratamento da doença, do diagnóstico da doença... Não do trabalho conjunto, em equipe, cada um vendo uma faceta dessa pluralidade que é o indivíduo.
P/2 - E na experiência do senhor enquanto médico como foi o senhor lidando com essa parte com psicólogo?
R - Olha, eu acho que pela própria facilidade que eu tive de fazer um curso de administração logo no início, de um lado, que me possibilitou, nesse curso, que era um curso multidisciplinar, quer dizer, frequentava o curso médico, frequentava enfermeira, frequentava engenheiro, frequentava advogado, frequentava arquiteto, psicólogo, farmacêutico... Então é um curso muito profissional. Então já consegui ter uma visão um pouco diferente, até porque o conteúdo dado lá no curso de Administração mostra essa abrangência, que é o que estava se tentando trazer aqui para o Incor, então eu consegui ter essa visão precocemente, o que de alguma forma facilitou... Não só facilitou o entendimento, como possibilitou catalisar esse trabalho da equipe multiprofissional atuando num hospital complexo como este, já que uma das funções que eu acabei assumindo logo a seguir foi a de diretor executivo do hospital em 79, justamente de coordenar toda a equipe multiprofissional no sentido de viabilizar as ações de saúde de uma forma mais eficaz. Então para mim foi não só uma necessidade entender bem todo esse processo como foi uma obrigação ter que entender e a partir daí fazer com que as coisas caminhassem nesse sentido. Então desde o início passamos justamente a trabalhar com a equipe multiprofissional incentivando esse trabalho, essa agregação da equipe e o trabalho vinculado da equipe, o serviço de psicologia, o serviço de nutrição, o serviço de farmácia, o serviço social, a fisioterapia... Nessa visão de trabalho de equipe multiprofissional incentivando que o serviço justamente crescesse e passasse a dominar essa metodologia e esse conhecimento, que é um conhecimento que não existia.
P/1 - Vocês estavam criando também uma prática.
R - Também... Uma prática... Isso. E um conhecimento específico que não existia aqui no nosso meio especificamente, não é? Tanto o meio HC quanto o meio de saúde do próprio país. Então foi alguma coisa também de certa forma inovadora em termos de trabalho multiprofissional em equipe multidisciplinar.
P/2 - Havia referências internacionais?
R - Sim, sim, sim. E também alguns poucos trabalhos, mas muito localizados. Quer dizer, já que não se fazia trabalhos multidisciplinares, mas você falar, por exemplo, em consulta de nutrição: "Que negócio de consulta de nutrição? Quem dá consulta é médico! O nutricionista vai dar..." (risos)
P/1 - "Que coisa é essa?" (risos)
R - "Consulta de serviço social? Que negócio é esse? Isso não existe!" Então foi um processo de aprendizado continuado de implantação de alguma coisa, que aí passou-se a buscar conhecimento fora, experiência externa, literatura... E trazendo isso para dentro da nossa prática aqui, e isso evoluiu bastante.
P/1 - E aí acabou virando um centro de referência?
R - Sim.
P/1 - Para as várias áreas também? Dentro da psicologia para a psicologia, da nutrição para a nutrição?
R - É, essa parte, digamos, de psicologia hospitalar. Porque a psicologia naquela época, o que se tinha muito frequentemente era o psicólogo clínico que trabalhava num consultório dele, ou trabalhava junto com o psiquiatra, ou num hospital de psiquiatria, mas voltado quase que exclusivamente para aquele atendimento individualizado do doente e muito direto a essas especialidades da linha da psiquiatria. Falar em psicólogo em hospital geral, psicólogo voltado para cardiologia era coisa que era muito nova, ou psicólogo para apoio a programas de câncer era coisa que praticamente não existia, então teve que se criar todo um trabalho que foi justamente da psicologia hospitalar, quer dizer, o serviço de psicologia inserido numa instituição de prestação de serviço de saúde atuando de uma forma bastante abrangente como parte dos profissionais que se ocupam de melhorarem a condição de saúde do paciente, vendo esse aspecto psicossocial do paciente, quer dizer, a relação do doente com ele mesmo, a relação do doente com a doença, a relação do doente com as variáveis que interferem com a doença, ou são decorrentes da doença, o aspecto psicológico decorrente da agressão da doença sobre o indivíduo e sobre o seu meio social mais próximo, família ou meio social. Então esse foi todo um processo de discussão, aprendizagem continuada e de criar uma experiência que foi criando-se no decorrer de todos esses anos e que hoje representa um conhecimento muito profundo na área. Tanto é que a partir de certo momento, até para incentivar esse desenvolvimento do conhecimento se passou a trabalhar com a formação de pessoas nessa área. Então foram os programas ditos, entre aspas, de residência em psicologia, em enfermagem, em fisioterapia, em nutrição... Foram os programas que depois residência se transformou em aprimoramento, foram os cursos de especialização... Enfim, foi todo um programa de divulgação e disseminação da experiência que tem por base justamente esse conhecimento acumulado, e que por si só também permite você estar, na reprodução do conhecimento, você estar gerando novo conhecimento, consolidando conhecimento e evoluindo. Então esse aspecto foi algo que também sempre se incentivou e criou... Com isso se criou toda essa gama de programas que a gente tem dentro da casa na linha de especialização e formação pós-graduando.
P/1 - Aqui, o Incor, é famoso por atender pacientes tanto do SUS quanto de convênios particulares. Existe diferença entre esses dois pacientes que vêm aqui?
R - Tem muita diferença. E não tem nenhuma. Tem muita diferença porque eles são diferentes, e nenhuma no atendimento.
P/1 - Mas, assim, nesse trato, por exemplo, existe diferença da aceitação de um trabalho multiprofissional por parte do pacientes, por exemplo...
R - Não, não. O SUS aceita mais do que o convênio ou vice-versa?
P/1 - No atendimento psicológico, por exemplo, alguma amarra maior em relação ao serviço de psicologia?
R - Num ou em outro? Não, eu entendo que não. Depende muito às vezes da condição do paciente, do estado que o paciente está do que de uma condição de agente financeiro ou condição até social... Depende muito da condição do doente, quer dizer, a condição dele em relação à doença, em relação à sua bagagem psicológica prévia, à sua condição de equilíbrio psicológico e o momento que ele está vivendo, a gravidade da doença... Não tem diferença. Pelo que eu tenho acompanhado e visto não tem diferença não. Eu acho que a aceitação é mais ou menos geral até porque existe... A proposta de atendimento é a mesma. Quer dizer, não tem uma proposta de atendimento para o doente SUS diferente do atendimento do doente de convênio ou de pagantes. O que às vezes existe é algumas dificuldades em termos de... Por exemplo, o plano de saúde não prevê o atendimento psicológico, e aí ele cria às vezes algumas dificuldades em termos não só do reembolso, mas até de entender que aquele atendimento está de alguma forma...
P/1 - De que ele faz parte.
R - Não, que ele está complicando o atendimento, que ele está deixando o atendimento mais complexo, mais moroso, mais... Enfim, se introduzindo algumas variáveis que não estavam previstas dentro daquela relação mais direta, tipo assim, prato feito. Tem que fazer isso aqui assim, assim, assado e sair, tirar da frente do que ficar vendo outros problemas que estão muito afeitos lá ao caso (risos). Então às vezes eles têm um pouco de dificuldade, o auditor vem: "Mas o que tem aí a psicóloga fazendo junto com a fisioterapeuta, mais não sei das quantas, a fonoaudióloga... Mas que..."
P/2 - "Põe o médico aí..." (risos)
R - "É, põe o médico aí, tira todo mundo da frente e já resolve e pronto. Dá alta e pronto. Quer dizer, no final viemos fazer o que aqui? Só viemos conversar" (risos). É tipo assim. Então muitas vezes tem essa situação, acontece, mas como a própria equipe está acostumada a trabalhar em equipe então é muito frequente mesmo que tenha essas amarras ou esses impedimentos, que é o que nós somos solicitados a intervir e intervém independente se vai pagar, se não vai pagar, se o outro vai achar ruim... Quer dizer, vai atender a necessidade do paciente dentro de um programa de atendimento, de um protocolo de atendimento que se estabeleceu previamente, do qual os diferentes profissionais fazem parte numa linha de atuação bem definida, com atribuições e competências claras, sem grandes superposições e com resultados palpáveis em termos de ação do profissional. Não é porque vai fazer porque vai fazer porque é bonitinho e tem mais um ali fazendo. Não é isso. Cada um tem a sua atribuição clara, a sua participação específica e o resultado definido em termos da atuação. Então eu acho que é isso que acaba dando essa base do atendimento multiprofissional.
P/2 - Essa pergunta com relação ao SUS e convênio isso me faz... Porque uma instituição como o Incor é de certa forma uma vitrine. Ela está sempre aí...
R - Uma vitrine e uma vidraça. (risos)
P/2 - E tem um pouco disso. Quer dizer, essa questão do convênio e do SUS e mesmo a história da Fundação Zerbini que sempre foi... Quer dizer, como é que foi essa inserção da fundação e ao mesmo tempo conseguir criar uma relação, como é que foi se moldando isso no transcorrer do tempo?
R - É, veja, o grande problema de um hospital como esse... Não hoje, mas há 25 anos, vamos dizer, e ainda hoje também, é o problema, primeiro, de você definir bem. Qual vai ser o resultado da ação desse hospital, dessa agência de saúde em relação à saúde da população. Se realmente precisa ou não precisa ter esta instituição funcionando e que benefícios ela vai trazer para a população, enfim, o que a ação dessa agência de saúde vai mudar em termos de saúde da população. Esse é o primeiro ponto que precisa ser muito bem claro e clarificado junto à comunidade, junto aos órgãos de saúde. Feito isso, sobra um segundo ponto, que é o problema do financiamento. Quer dizer, como é que você vai financiar. Já que é importante ter, como é que você vai financiar. De onde virá o dinheiro para isso. Mesmo tendo dinheiro sobra outra pergunta: "Bom, tem o dinheiro, agora como é que você vai fazer com que as coisas funcionem para que com esse dinheiro você consiga atingir os seus resultados. Ou seja, qual é o modelo operacional que permite você tendo recurso fazer com que esse recurso acabe sendo usado de maneira adequada, sem desperdício para que o seu resultado seja aquele que você pretende alcançar. Então essas perguntas todas começaram a ser feitas quando se pensou em funcionar o hospital, 76, 77, 78. Aí você tem o hospital público, quer dizer, o Incor, departamento de autarquia HC, o Incor que não tem nem personalidade jurídica, não tem nem CGC, parte de um conjunto subordinado então às regras maiores da instituição, com essa responsabilidade de dar um bom atendimento numa área complexa como é a cirurgia cardiovascular com alto custo, que depende da incorporação de um pessoal muito qualificado e da manutenção desse pessoal dentro da instituição e usando um material caro, cujo percentual alto é importado. Quer dizer, como é que você sai dessa charada? E mais, ainda não tendo recursos financeiros suficientemente garantidos, entendeu? É um belo desafio. E uma das propostas, depois de muita conversa com o governo, tanto internamente aqui com o Hospital das Clínicas como um todo, quanto com a própria Secretaria de Planejamento do Governo, Secretaria de Governo, Secretaria de Saúde, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo... Como é que se consegue tudo isto? Como se consegue uma solução para isso? Aí surgiram diversas ideias: "Vamos fazer o hospital ser independente, vamos criar uma fundação de apoio...", que era uma ideia que o HC já tinha tido em 72, 73, já tinha um projeto para o HC como um todo de se criar uma fundação de apoio ao HC.
P/2 - Era uma ideia que vinha em relação ao próprio HC?
R - Isso, era para o próprio HC. Era uma ideia que de alguma forma existia em outras instituições, principalmente em relação à Universidade de São Paulo. Como nós tínhamos um contato muito intenso com a Escola Politécnica, na época a Politécnica tinha uma fundação de apoio que elas têm até hoje, a FDTE, a Fundação de Desenvolvimento Tecnológico, que era uma fundação privada que funcionava junto à Poli dando suporte à Politécnica, suporte tanto do ponto de vista de arrecadar recursos... Então por exemplo, um projeto de um prédio, a Poli, para fazer esse projeto ela tinha que pegar esse dinheiro e jogar dentro da Universidade; se ela fizesse pela Fundação esse dinheiro ficava na Fundação e a Fundação reaplicava esse dinheiro na Poli. Se vai para a USP entra no caixa comum, você vai ver um dia, se vier alguma coisa. Então com base em tudo isso, estudando diferentes modelos organizacionais, diferentes estruturas, aí se chegou a esse modelo da fundação de apoio: "Então vamos criar uma fundação de apoio ao Incor". Fundação essa que vai de alguma forma conseguir arrecadar... A receita própria do hospital entra na fundação e você pega essa receita própria e repassa integralmente para o hospital, além da verba orçamentária que vem do Estado, a receita própria junta... Você está aumentando o bolo e está criando um mecanismo ágil de aplicação desses recursos que vai ser na via privada de aplicação, não mais na via pública. Aí se juntou então a fundação ao hospital e montou-se esse modelo, que progressivamente se mostrou para nós, principalmente para o Incor, um modelo bastante interessante. Aí que surgiu a fundação. E a fundação surgiu muito na época e no momento em que ela foi criada, muito mais como um órgão de apoio à pesquisa, tanto é que ela não se chamou Fundação Zerbini no início, foi Fundação para o Desenvolvimento da bicentenária, porque estava muito voltada para a pesquisa na área de desenvolvimento tecnológico, e também foi uma estratégia para não espantar o pessoal do HC, já que eles estavam meio contra: "Não, o Instituto vai crescer meio independente e tal...Até porque está do outro lado da rua lá. Vai colocar as barreiras lá e vai ser... Trincheira e vai ser independente. Separatismo, tal" (risos). Até porque na história da criação do Instituto quando o professor Zerbini foi lá batalhar para criar o Hospital o governador perguntou: "Mas o senhor quer fazer um Instituto dentro do HC ou fora do HC? O Senhor escolhe". Ele falou: "Não eu prefiro ficar dentro do HC". Então desde aquela época já ficou esse negócio de tá junto, tá separado, tá junto, tá separado... Quando se pensou em fazer uma fundação de apoio o Conselho Deliberativo do hospital, do HC, falou: "Ih!!! Esses caras aí querem dar o golpe, vamos pular fora". Aí se resolveu fazer então a Fundação de Apoio à bicentenária que depois foi evoluindo, ficou Fundação de Apoio para todo o hospital e foi um mecanismo bastante interessante em termos de trazer recursos, gerar recursos próprios, e principalmente de alavancar o atendimento feito pelo Incor em termos de pagamento. Porque tinha coisas aberrantes, hoje já mudou muito, mas na época, em 79, 80, o INAMP'S... Na época era INAMP'S? Primeiro era INPS e depois foi o INAMP'S. O INAMP'S tinha um convênio com os Hospitais Universitários que ele chamava de Convênio Universitário/MEC (Ministério da Educação e Cultura)/MPAS (Ministério da Previdência e Assistência Social), já que o INAMP'S estava vinculado ao Ministério da Previdência Social, não estava vinculado ao Ministério da Saúde. Então, nesse convênio, o que o INAMP'S fazia? Ele dava um subsídio para o Hospital Universitário atender o previdenciário, porque tinha os previdenciários e os nãos previdenciários, e hospital público era para atender os indigentes, não previdenciários, então quando ele atendia o previdenciário o Ministério da Previdência dava um subsídio para o hospital e pagavam-se "X" reais - ou na época cruzeiro - por alta dada, alta clínica e alta cirúrgica. Então ele pagava um valorzinho lá que era realmente um valorzinho muito simbólico. Era um troquinho que ele dava. E os hospitais públicos continuavam atendendo os previdenciários, já que a cidade de São Paulo na época tinha 90%, 95% de previdenciário. E aí ficava aquela situação esquisita, porque, primeiro, hospital público estadual atendia o que? Os indigentes do Estado, só que não tinha quase mais indigente, atendia a quem? Atendia os previdenciários do Estado, só que esse previdenciário fazia o recolhimento para quem? Ministério da Previdência, verba federal, e era atendido com a verba do Estado. Era uma coisa meio esquisita que a gente não entendia direito a situação. Aí se conversou com o Ministro da Previdência da época, Jair Soares, e perguntou-se para ele: "Ministro, explica uma coisa para nós, como é essa situação? O Hospital Universitário ganha uns troquinhos para fazer cirurgia cardíaca de um paciente previdenciário. O hospital privado, por exemplo, Beneficência Portuguesa, tem um contrato com a previdência e ganha dez vezes mais. Então o mesmo cirurgião operando aqui e operando na Beneficência, aqui ele traz para o hospital dez reais, na Beneficência ele traz 100 reais. “Por que isso? Como é que é essa lógica aí?". "Ah, porque vocês são hospital público". "Ah, quer dizer que para a gente ser público a gente tem que sofrer?". "Não, vocês são público, vocês tem... ". E ele falou: "A regra é a seguinte, o hospital público tem convênio com a Previdência, o hospital privado tem contrato. O convênio é uma porcaria, o contrato eu pago bem". "Ah, que bom, Ministro. Quer dizer que qual a mágica, então?". "Ah, faça um contrato". "Mas eu sou público". "É, você não pode fazer contrato". "E se eu tiver uma entidade de apoio privada, ela pode fazer um contrato?". "Ah, com essa eu faço". "Então é para já, está aqui a entidade". Entendeu? Está criada a Fundação, foi feito um contrato da Fundação com o Ministério para atender os pacientes previdenciários e com isso de repente a receita do Hospital fez "tchum", com o mesmo atendimento. A mesma lógica se aplicou aos planos de saúde, entendeu? A mesma lógica. Quer dizer, via lá o previdenciário que tinha o seu plano de saúde, aí se atendia por quem? Pela Previdência. Você ganhava dez. E ele pagava 100 para o plano de saúde dele para não gastar aqui, para o plano de saúde economizar porque o gasto aqui era coberto pelo governo. Que lógica esquisita! Então a mesma lógica a gente começou a discutir: "Bom, espera aí, se ele tem o plano, por que a gente não cobre do plano?". "Bom, não cobre do plano porque o plano tem que ter um contrato com o plano". "Bom, o hospital público não pode fazer contrato com o plano privado". "Bom, mas se tem uma fundação de apoio pode?". "Pode". "Então vamos fazer o contrato pela fundação de apoio". Então com o mesmo atendimento você foi regularizando uma situação que era meio paradoxal. Quer dizer, veio o deputado aqui, é atendido com toda a mordomia que ele merece, ou até mais do que ele merece, mas em algum momento o deputado tem um plano de previdência da Câmara dos Deputados, que ele está pagando lá, está contribuindo lá para gastar com a saúde dele e que não gasta quando vem aqui. Por que não? "Ah, vamos fazer um convênio, um contrato com a Câmara para atender os deputados". Fez um contrato com a Câmara, com o Senado, com a Petrobras, com o Banco Central, Banco do Brasil, Banco do Estado com tudo o que vinha, começou a fazer com a Polícia Militar. E aí foi! E com isto, o que aconteceu? Com o mesmo atendimento você acabou alavancando o financiamento e regularizando o que na realidade era uma distorção e até propiciava, segundo os próprios juristas, um enriquecimento ilícito por parte dos planos de saúde. Então a Fundação surgiu muito nessa linha, quer dizer, de um lado regularizar com essa mistura do público com o privado situações que por lei ou por impedimentos regulamentares você não tinha como regularizar e com isto aumentar o financiamento do Hospital; e de outro lado criar através da linha privada a flexibilidade gerencial e operacional do Hospital. Quer dizer, precisa comprar um material importando então você tem uma flexibilidade maior de comprar pela via da Fundação do que pela vida do Estado. Você tirou uma parte da receita própria que era pequena e que foi por progressivamente aumentando e colocou-a na Fundação para ser reaplicada no Hospital, então você cresceu teu bolo e não substituiu. Porque o que acabava acontecendo no mecanismo do hospital público? Eu tinha o hospital público, funcionava bem, consegui uma receita própria maior, só que essa receita própria era dada para o tesouro do Estado e não voltava. Acabava, entrava no buraco negro. Você acabava sendo penalizado por funcionar bem porque você acabava se auto sustentando, enquanto outros que funcionavam mal tinham lá uma mesada do Estado à sua disposição, se tornava um negócio que não tinha sentido. Então quando se conseguiu manter o dinheiro arrecadado na própria instituição através do mecanismo da Fundação se aumentou o bolo, se agregou ao orçamento do Estado a receita extraorçamentária, fazendo que com isso você tivesse um disponível. Pra quê? Para fixar o pessoal, para melhorar a remuneração do pessoal, fazer um plano de cargo de salários adequado, um programa de benefícios adequado, um programa de treinamento de capacitação profissional bastante abrangente melhorando a qualidade do atendimento. Atendimento para quem?
P/2 - Para fomentar a pesquisa...
R - Pesquisa, ensino, tudo isso. Atendimento para quem? 75% do pessoal é SUS. E em termos absolutos, 75% de hoje corresponde ao dobro do que se atendia há dez anos para o SUS, a instituição progressivamente aumentou a sua capacidade de atendimento, porque antes trabalhava num turno de quatro horas, passou a trabalhar com dois turnos de quatro ou oito horas, passou a trabalhar com três turnos de quatro horas, doze horas, hoje está trabalhando quase com quatro turnos! Entende? Então, mesmo com a diminuição percentual, que era, digamos, 95% do SUS, passou para 85, 80 ou 75... Mesmo diminuindo percentualmente o valor absoluto representou um acréscimo de três vezes em termos de quantidade total.
P/2 - Mas como é a dinâmica no hospital? O paciente do SUS chega, mas ele tem um conveniozinho que, por exemplo, em algum momento se garantiu aí... Isso é... chegando no ambulatório com SUS, mas como é que se faz esse procedimento?
R - Se ele chegar pelo ambulatório, chegar com um encaminhamento médico pelo SUS ele vai ser atendido normalmente pelo SUS. Ninguém vai perguntar se ele tem alguma coisa, tal... Pode ser que em um determinado momento do atendimento dele... Por exemplo, quando ele passar no serviço social, alguém pergunte: "O senhor tem algum tipo de convênio?". Ele fala: "Eu tenho, tenho sim, sou filiado da Golden Cross". "Ah, o senhor gostaria de ser atendido pela Golden Cross? Nós também atendemos a Golden Cross aqui". "Ah, gostaria sim". "Então o senhor, por favor, pode ser atendido lá naquele guichê tal, tal". E é isso. Agora, tem aquele que já sabe que tem... E já vem direto procurar. Quer dizer, não existe tipo assim, uma triagem em termos de saber: "Não, todos os que têm vêm para cá, os que não têm vão para lá". Não existe isso. Se ele vier e quiser ser atendido normalmente... Se o Presidente da República quiser vir aqui ser atendido pelo SUS, ele vai ser atendido normalmente, desde que ele tenha o encaminhamento médico, se ele não o tiver, não será atendido. Ele precisa ter um encaminhamento médico para o atendimento cardiológico, já que hoje nós estamos fechando como hospital de referência em cardiologia. Não é hospital de porta aberta que atende demanda de rua, a não ser na emergência. Mas no ambulatório é um hospital que atende pacientes referidos, em termos de... Para a especialidade de cardiologia.
P/3 - Doutor, o prazo da apresentação da pessoa aqui, até ele ser atendido, conseguir fazer a consulta com o médico, qual é o tempo? Porque normalmente nos outros hospitais o prazo geralmente é muito longo.
R - Aqui é o seguinte, já faz uns três para quatro anos que nós mudamos todo o mecanismo de atendimento para esse doente que vem pela primeira vez. O doente para ser atendido aqui ele liga pelo telefone: 0800124567 e agenda sua consulta. Então ele vai ser atendido com hora marcada, com dia marcado e no prazo entre ele ligar e ser atendido, não passa uma semana. Então esse é o atendimento que é feito para esse doente de primeira vez. A única exigência que se faz é que ele tenha um encaminhamento médico. Então ele liga: "O senhor tem encaminhamento médico para o cardiologista?". "Tenho sim, senhor". "Então está aqui a sua senha". É dado para ele o número de uma senha e ‘o senhor se apresente tal dia e tal hora para ser atendido’. Ele vem e é atendido com hora marcada. Fez o primeiro atendimento, se verifica o que ele precisa fazer, se precisar fazer alguns exames já são feitos ali no primeiro atendimento mesmo, uns dias seguintes, e marca um retorno. Se estiver tudo resolvido ele é reencaminhado para onde ele veio, para o médico que o mandou vir para cá com um diagnóstico, com uma prescrição e uma orientação. É um caso complexo, precisa ficar aqui, não tem outro... Quer dizer, é um caso que não tem recursos externos para atender, precisa ficar aqui, então ele é matriculado no Hospital para seguimento no ambulatório de especialidades. Ele vai ser atendido desse primeiro atendimento e dessa definição da marcação, ele vai ser atendido em três dias, no prazo máximo de três dias, e ele já atendido com todos os exames feitos, então em três dias ele faz os exames, tipo, exame de sangue, exame eletro, raio X... A partir daí ele já atendido no ambulatório de especialidades e passa a fazer o atendimento pelo tempo que for necessário. E aí ele vai fazer os outros exames... Assim por diante. Nós ainda temos uma demanda maior do que a nossa capacidade, porque... Muita gente não atende por aí fora e acaba drenando para cá, entende? Mas no momento que o indivíduo tem o acesso o atendimento é muito rápido. Temos ainda alguns gargalos, tipo o gargalo no Centro Cirúrgico a gente está ainda com um pouco de dificuldades em termos de programar todas as operações que são necessárias, por isso esse prédio novo onde vai se duplicar, quer dizer, mais do que se duplicar a capacidade cirúrgica.
P/1 - E o transplante? Como é feito esse processo?
R - Transplante é um programa bem definido, bem orientado, tem a equipe clínica de transplantes que faz o seguimento dos doentes, tem as indicações, tem uma fila de pacientes que é relativamente pequena para fazer transplante, as indicações são muito precisas, é um programa muito monitorado, é um programa que vai bem, vai bem. Principalmente o transplante de crianças, infantil, é um programa muito bem feito, com resultados muito bons, diferentemente do adulto, o transplante do adulto ainda é... Paciente adulto muitos deles têm problemas sociais, problemas psicológicos que são complexos, mesmo com apoio dos profissionais a gente não consegue resolver muito esse problema e tem um grau de rejeição, de exclusão do paciente das filas muito grande, por esse problema às vezes social, psicológico, familiar. Porque o doente transplantado tem que ter um apoio muito grande em termos de família, em termos de estrutura, senão ele acaba... Não adianta, não adianta.
P/2 - Dentro do surgimento do Incor surge aí uma perspectiva, unindo uma coisa e outra, a respeito de certa junção, ou uma tentativa de unir cirurgia e clínica. Como é isso? Como surge isso? E é fácil fazer isso? Como é?
R - É, na realidade as especialidades médicas elas acabam sendo muito voltadas, ou elas saem de grandes linhas. Então você tem de um lado, digamos a linha das especialidades clínicas e outra linha de especialidades cirúrgicas, que está ligado até à própria formação da medicina, a história da medicina. Você tem a medicina como ciência existindo e de repente surge a cirurgia como uma coisa à parte que se junta à medicina e você passa aí a ter as faculdades de medicina e cirurgia, porque cirurgia era separada, a cirurgia vem dos barbeiros, tá certo? Então você cria então medicina e cirurgia. Então você sempre teve uma dicotomia aí em termos de especialidade, especialidades clínicas e cirúrgicas. E o ensino da medicina, e a própria departamentalização das faculdades sempre obedeceu muito a essa lógica. Então eu tenho o departamento de clínica com as especialidades clínicas, departamento de cirurgia com as especialidades de cirurgia. Aí você pega a cardiologia, você tem o que? Cardiologia clínica e a cirurgia torácica e cardiovascular, uma do ramo do Departamento de Clínica Médica e a outra do ramo do Departamento de Clínica Cirúrgica. Só que quando você trabalha agora horizontalmente, do ponto de vista da integração, das doenças clínicas que viram cirúrgicas, você dentro dessa visão mais verticalizada você tinha dificuldade desses entrosamentos. Então no HC, no estudo central você tinha lá, Clínica Cardiológica dentro do Departamento de Clínica e a Clínica de Cirurgia Torácica e Cardiovascular dentro do Departamento de Cirurgia no oitavo andar. Era uma coisa meio que fisicamente e estruturalmente dissociada. Aí se começou a discutir muito esse entrosamento horizontal das especialidades: "Então não vou trabalhar mais dentro da vertente clínica e cirúrgica, eu trabalho mais dentro da vertente da especialidade. Então se é problema do coração vou vê-lo de uma forma completa, seja nos seus aspectos clínicos quanto nos aspectos cirúrgicos. Daí que surge então essa ideia de criar o Departamento de Cardiologia Clínico e Cirúrgico, contemplando o ramo da cardiologia e da cirurgia cardiovascular e que dá a visão do Instituto do Coração. Geralmente quando eu integro os dois departamentos eu tenho que ter um espaço comum para que haja atuação desses especialistas clínicos e cirúrgicos, aí surge então a ideia do Instituto do Coração congregando a clínica cardiológica e a cirurgia cardiovascular e todos os órgãos de apoio necessários para essa atividade.
P/2 - Daí para o multiprofissionalismo é...
R - É.
P/1 - Esse é o grande desafio do Incor hoje, quer dizer, chegar nessa fórmula?
R - Não, nós já estamos nessa forma. Essa foi a base conceitual e ideológica que levou à formação do Incor. E evidentemente que isto não é assim tão simples. Ainda hoje você tem aí os resquícios da clínica separada da cirurgia, do clínico versus cirurgião. Ainda tem muito disso, mas eu acho que se evoluiu bastante nesse entrosamento, até do ponto de vista estrutural. Hoje na Faculdade de Medicina...
P/1 - É isso que eu ia perguntar, estruturalmente isso tá concretizado?
R - Tá, na Faculdade de Medicina você tem o Departamento de Cardiopneumologia que integra Clínica Cardiológica de um lado, Pneumologia Clínica do outro e Cirurgia Torácica e Cardiovascular, então houve realmente a efetivação a nível estrutural.
P/1 - É, isto que eu estava perguntando.
R - Sim.
P/2 - E foi para os bancos escolares.
R - E foi para os bancos escolares. Hoje se trabalha integrado a clínica e a cirurgia, e não mais desintegrado. Você vê clínica de um lado e depois vai ver cirurgia do outro, sendo que lá não tem nada que ver com esse aqui.
P/1 - Fica dicotomizado.
R - Fica dicotomizado.
P/1 - E qual é então o grande desafio do Incor hoje dentro da sua área de atuação?
R - Grande desafio do InCor? Olha, hoje eu acho que o grande desafio do Incor é dar uma resposta cada vez maior à nossa demanda da nossa comunidade em termos de prestação de serviços, tanto em quantidade quanto em qualidade, principalmente em termos de quantidade. Para ter uma pressão muito grande, até porque o sistema de saúde como um todo, o SUS, apesar de estar sendo implantado progressivamente, ele ainda não está consolidado, e esta estrutura hierarquizada do sistema em níveis primário, secundário e terciário ainda não está totalmente consolidada e implantada, então nós recebemos uma pressão muito grande pela rede não estar estruturada e temos que dar uma resposta a isto de alguma forma. Temos que dar uma resposta em termos de qualificação profissional, formação de profissionais, a nível competente para que ocupem esses postos da rede, aí sim atendam uma demanda desses postos e não direciona a demanda para cá, e também criar outros tipos, uma descentralização de atividades nesses postos da rede como um todo em outros hospitais de nível menos complexos. Acho que com isso a gente consegue organizar melhor a demanda e fazer com que venha para o instituto realmente os casos mais complexos, ou seja, o Instituto funciona realmente como hospital de referência e de excelência de uma rede como um todo, tanto do ponto de vista do atendimento, quanto do ponto de vista do ensino, ensinando para toda a rede, formando profissionais para toda a rede, quanto do ponto de vista normativo, quer dizer, normatizar o atendimento da rede e das linhas de atendimento, os protocolos de atendimento. E também na parte de pesquisa e geração do conhecimento. Eu acho que com isso a gente fica numa situação muito adequada como uma instituição de ponta, universitária, que tem um custo alto e que tem que dar um retorno em relação a esse investimento feito aqui para a comunidade como um todo.
P/1 - Como é o seu cotidiano de trabalho aqui dentro? Você chega de manhã...
R - Eu chego de manhã e saio à noite. (risos)
P/1 - Mas você fica aqui na sala despachando...
R - Um pouco de tudo. Tem muita reunião para cima e para baixo, aqui fora, no HC, em outros locais...
P/2 - O senhor opera ainda?
R - Não. Opero só papel. Cirurgia mesmo já há algum tempo eu parei de fazer porque era muito conflitivo. Estava numa reunião, a coisa não termina, tem doente esperando, te bipam... Aí é jogo duro.
P/2 - Mas tem saudade, não?
R - Eu tenho. Eu sou... Eu operei muito. Então eu ainda acho que ainda estou me preparando para o regresso, o retorno (risos).
P/1 - E quais são as suas atividades fora do HC? O que você faz?
R - Fora do HC eu trabalho na GV, dou aula na GV, quando saio daqui vou dar aula à noite. Coordeno o curso na GV, sou Diretor do PROASA, então sobra pouco tempo para outras coisas.
P/1 - Continua praticando esporte?
R - Continuo, um pouquinho.
P/3 - Rugbi?
R - Não, Rugbi não. Rugbi eu parei já faz tempo também.
P/1 - O senhor é casado?
R - Sou casado, três filhas, estão ali as filhas, ali.
P/1 - Essas aqui? Que bonitas!
P/2 - Uma médica já, não?
R - Quase. Esse ano ela forma, está no sexto ano de medicina.
P/1 - Sua esposa é médica?
R - Minha esposa é médica.
P/1 - Trabalha aqui no Incor?
R - Não. Trabalha só na Prefeitura, meio período.
P/1 - Tem alguma pergunta que a gente não tenha feito?
R - Ah, eu não sei! Aí as perguntas são com você.
P/1 - Não, que o senhor gostaria de deixar registrado.
R - Não, eu acho que o que a gente podia deixar registrado é esse trabalho que o Incor acabou iniciando, de um lado de valorização da equipe multiprofissional e de implantação e consolidação desse trabalho multidisciplinar no atendimento à saúde da comunidade. Eu acho que é uma experiência bastante interessante, importante, de certa forma ela não é tão inédita, mas no nosso meio ela tem sido e foi inovadora e que tem possibilitado com toda certeza uma melhoria de resultados e de qualidade na ação e no resultado final do atendimento dos pacientes. Isto vale para a psicologia quanto para os outros componentes da equipe. E de certa forma o hospital entendeu essa importância e investiu nisso, investiu de uma forma importante nisso. Tanto é que ele criou e implantou todos esses serviços com um número de profissionais expressivos, o que de certa forma determinou os resultados. Quer dizer, foi possível justamente obter resultados e evoluir com esse modelo porque houve essa intenção e esta ação do hospital em direção a este modelo e incentivando este modelo de trabalho multiprofissional. Eu acho que este é um ponto que traz um diferencial no atendimento e no resultado de ação de saúde para os próprios pacientes. Quer dizer, o paciente, a partir deste trabalho da equipe multiprofissional ele passa a ter uma segurança maior e uma abordagem bastante mais integral e global que possibilita a ele passar por este momento de desequilíbrio em relação à sua saúde de uma maneira um pouco mais tranquila, com um pouco mais de apoio do que seria simplesmente com aquele atendimento mais sumarizado, feito de forma tradicional somente com a participação do médico e o médico enfermeiro. Eu vejo que o trabalho da equipe multiprofissional conseguiu dar uma nova forma e uma nova abrangência a essas ações em benefício da qualidade do atendimento para o doente que passa a ter um apoio de uma forma bastante mais ampla e dessa maneira ele passa a se sentir mais... Quer dizer, em menor desequilíbrio nesse momento da sua doença. E outras inovações do Hospital, o modelo fundacional eu acho uma coisa importante. A profissionalização da gestão eu acho outra coisa importante, o Hospital investiu muito e tem investido muito na formação dos seus dirigentes e da casa, a grande maioria que ocupa postos de chefia na casa tem formação na área de administração e saúde. Esse foi um programa que a gente implantou desde o início, tanto junto à Fundação Getúlio Vargas, quanto junto à Faculdade de Saúde Pública e outras escolas de administração, a valorização do profissional e do indivíduo dentro da instituição, a preocupação com o seu crescimento tanto pessoal quanto profissional em termos de educação continuada, de desenvolvimento profissional e pessoal e eu acho que são alguns pontos que vale a pena a gente deixar citado. A preocupação constante dessa interface ou integração com a comunidade, pensando sempre num hospital aberto, voltado para servir a comunidade e não um hospital fechado, olhando para dentro do seu próprio umbigo e atendendo aos seus interesses em detrimento dos pacientes. Então essas sempre foram algumas coisas aí que a gente sempre tentou perseguir durante esse tempo e passou a ser, na realidade, acredito que um pensamento institucional, somada aí à mística dos professores fundadores do Hospital, de um lado o professor Zerbini e do outro lado o professor Decour, na parte cirúrgica e na parte clínica, que realmente deixaram todo um legado filosófico em relação ao atendimento dos pacientes, em relação à forma de trabalhar a medicina, que eu acho que é uma coisa fundamental, importante e que está aí presente no dia a dia da instituição.
P/2 - Em relação ao serviço de psicologia o médico demanda em última instância o multiprofissionalismo, ou não? Quer dizer, o médico que aciona de certa forma os profissionais?
R - Isso não é assim tão determinístico. Na realidade, quando você trabalha num programa onde você define o trabalho da equipe multiprofissional numa forma já planejada você estabelece uma série e protocolos que são assumidos pela equipe como um todo. Vamos exemplificar para você: eu tenho um protocolo de atendimento ao cardiopata que tem de zero a cinco anos. O pessoal que está lá reunido neste protocolo de atendimento vai se reunir então vamos ver quais são os profissionais que vão ser necessários para atender a esse programa. Então vai ter um médico lá, um cardiologista infantil, pode ter o pediatra também acompanhando na parte médica, digamos, o cirurgião infantil que vai tratar da parte de cirurgia dessas crianças, o Hemodinamicista que faz os exames de cateterismo e vai para a criança, a enfermeira, o psicólogo que vai dar apoio, que tem informação específica para atender ao conjunto criança-mãe, este ente social, assistente social, porque a criança às vezes tem muito problema, a mãe tem que deixar o trabalho, tem que dar atestado, tem que fazer interface com o empregador, enfim... Tem a nutricionista porque tem o problema da alimentação infantil, enfim... Você cria o grupo que vai atuar mais diretamente neste programa. No momento que você criou o grupo, você vai definir o que cada um vai fazer e a frequência com que esses fatos vão acontecer. Por exemplo, você vai dizer: "Não, a criança vai passar em consulta médica a cada três médicas, quando ela vier para consulta médica ela tem que passar na enfermeira para ver o peso, para ver isso e para ver aquilo, é importante que nesse momento ela passe na nutricionista para ver a dieta, que passe na psicóloga” e assim por diante. Então você criou o quê? Já o protocolo como um todo de atendimento, com a participação de cada profissional definido. Então não tem mais que um manda para o outro, porque o programa é feito em conjunto.
P/1 - Não encaminha para o outro, já tem aquela dinâmica.
R - Isso, tem a dinâmica própria. Agora, você pode em algum momento... A criança veio e naquele momento que ela veio não tá previsto ela passar na psicóloga, por exemplo, mas o médico atendeu e a enfermeira atendeu e sentiu necessidade de um apoio. Então qualquer profissional da equipe que está feito aquele programa tem a possibilidade e a liberdade de encaminhar o paciente para qualquer um dos profissionais, porque o atendimento não é mais individualizado, de cada profissional. Na realidade o que você vai buscar é o atendimento da equipe como um todo e o resultado é o trabalho da equipe, não é mais o indivíduo que está no relacionamento dele, direto, só ele. Ele é parte de um time que trabalha e que tem como objetivo atingir aqueles resultados. Então a qualquer momento dentro deste protocolo qualquer profissional pode direcionar mesmo fugindo àquela regra ou àquele esquema do protocolo, tá? Agora, o esquema vai ser obedecido dentro daquilo que foi pré-determinado. Por outro lado tem tratamentos como tem o protocolo definido. Então aí sim, aí cada profissional e principalmente o médico que acaba sendo então o aglutinador e o peão do atendimento da equipe, aí ele faz então a distribuição muitas vezes quando o protocolo não está definido. Alguém tem que estar de alguma forma verificando a necessidade global e fazendo o encaminhamento. Mas no momento que você tem a equipe funcionando de uma forma harmônica e principalmente trabalhando em termos de planejamento de ações que acontecem não só na equipe que está ali no dia a dia, mas em nível dos diretores, então os diretores de serviços entre si acabam definindo um pouco qual é a linha e qual é a sistemática operacional, tipo, para essa atividade... Até hoje eu estava discutindo com um grupo aqui de fisioterapeutas e com as anestesistas, e com as intensivistas a respeito da assistência respiratória do pós-operatório do paciente cardíaco: "Tipo, para fazer isso é bom que o médico prescreva?". "Ah, melhor o médico prescrever sim, porque se ele não prescreve eu não tenho até a condição de respaldo legal para estar fazendo se acontecer alguma coisa, entende?". Então tem todo um envolvimento que não é só técnico, mas que também passa por este aspecto legal até e ético de cada profissão.
P/2 - Esta questão da ética tem sido bastante discutida recentemente?
R - Tem, sim. Tem todo um envolvimento da bioética... E a ética eu acho que é uma coisa que está sendo resgatada aí aos poucos. Em diferentes setores. E na área da saúde é fundamental porque a ética do setor saúde é totalmente distinta da ética...
P/1 - Está virando disciplina mesmo nas faculdades. Para fazer agora as duas últimas de verdade... (risos). Se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida o senhor mudaria?
R - Olha, eu hoje faria... Eu, como disse para vocês, talvez estaria mais inclinado à ter um certo retorno para as atividades cirúrgicas. Isso não é agora, há muito tempo. Quer dizer, eu nunca me desgarrei totalmente, eu continuo ainda frequentando as reuniões clínicas, tal, mas ainda me coça um pouco a mão. Entende?
P/1 - É um grande sonho seu voltar...
R - Não digo que é um sonho...
P/1 - Está mais perto de...
R - É mais perto do que um sonho, porque o sonho fica meio distante. É mais um projeto pessoal de estar dividindo um pouco melhor essas atividades já que em algum momento foi necessário que eu tivesse um grande envolvimento com essa parte mais gerencial e separando um pouco, afastando um pouco da parte mais cirúrgica propriamente dita e não da parte médica. Então um projeto meu é de retornar um pouco mais essa atividade cirúrgica especificamente, equilibrando um pouco melhor essa parte gerencial com a parte cirúrgica.
P/1 - E agora a última de verdade. O que o senhor achou da experiência de ter dado esse depoimento para a gente?
R - Ah, achei interessante, achei legal.
P/1 - Então tá bom, a gente também gostou bastante.
R - Me senti bem, sem problema. Não teria dificuldade da gente continuar.
P/1 - Ah, a gente pode continuar também (risos).
R - Hoje não dá. Infelizmente, o tempo ruge (risos).
P/1 - Pergunta não falta.
R - Mas se tiver necessidade de mais alguma informação, se vocês precisarem voltar para alguma coisa.
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