Conte sua História – Correios 350 anos – aproximando pessoas
Depoimento de Luiz Fernando Ruffato Souza
Entrevistado por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 27 de junho de 2013.
Realização Museu da Pessoa
HVC_024_Luiz Fernando Ruffato Souza
Transcrito por Pedro Carlessi
História de vida
P/1 – Vou começar do princípio perguntando para você tudo de novo, nome, local e data de nascimento.
R – O meu nome é Luiz Ruffato, de nascimento sou Luiz Fernando Ruffato Souza, eu nasci no dia 04 de fevereiro de 1961, em Cataguases, Minas Gerais.
P/1 – Qual que é o nome do seu pai? E o nome da sua mãe?
R – O meu pai era Sebastião Cândido de Souza, embora ele se chamasse também Sebastião Nalon. A minha mãe é Geni Ruffato de Souza.
P/1 – E porque ele chamava Sebastião Nalon?
R – Meu pai era uma pessoa muito curiosa, porque ele foi abandonado, não foi na verdade abandonado, a mãe dele morreu no parto, logo depois do parto dele, e o pai dele tinha morrido durante a gravidez dele. Então, ele foi criado por uma família italiana, Nalon. O irmão dele, que é um pouco mais velho, dois anos mais velho, foi criado por uma outra parte da família Nalon. De tal maneira que se conheceram quando ele tinha 16, 17 anos, ele nem sabia que tinha um irmão. Então, assim, na cabeça dele, ele era Nalon, e para mim durante muitos anos eu achava que ele chamava Sebastião Nalon, por exemplo, naquelas contas de farmácia, que tinha na cidade do interior, conta de armazém e tudo era Sebastião Nalon, mas depois com o tempo eu descobri que ele não era Sebastião Nalon, ele era Sebastião Cândido de Souza.
P/1 – Mas ele sempre soube que isso tinha acontecido?
R – Sim. Ele foi criado como agregado, ele não foi criado como filho.
P/1 – Isso foi em Cataguases?
R – Não. Em Dona Euzébia, que é uma cidade perto, uns 20 e poucos quilômetros de Cataguases.
P/1 – E o que é que você sabe um pouquinho, um pouco mais da história do seu pai?
R – Na verdade, assim, eu brinco que eu não sou imigrante, sou migrando ainda, porque não acabou ainda. A nossa família ela começa muito recente, os meus avós maternos eles vêm da Itália no final do século XIX e vão para um lugarejo lá chamado Rodeiro, que era uma colônia italiana. Os meus avós paternos vem de Portugal, não se sabe muito bem de onde, eu imagino pelas características físicas dele, eu já pesquisei um pouco, mas só, digamos assim, pelo fenótipo eles vêm ou dos Trás-os-Montes ou da Madeira, porque o fenótipo mais ou menos combina, loiro de olhos azuis, mas não tenho a menor ideia de onde eles realmente vieram. Então, na verdade a minha família paterna começa com o meu pai, ela inaugura com o meu pai. E a minha família materna inaugura com meus avós maternos.
P/1 – Aí, ele teve uma infância pobre? Rica?
R – O meu pai?
P/1 – É.
R – O meu pai na cabeça dele, ele era um homem muito feliz, só que não é verdade, porque ele foi criado então com essa família Nalon, essa família era uma família de classe média, média para baixa, assim era uma família que não tinha grandes dificuldades financeiras. Só que ele foi criado para ser uma espécie de empregado da casa. A minha avó paterna, que não é minha avó, mas enfim que o criou, ela o tinha não como filho, não teve nunca como filho, mas ela tinha duas ou três pessoas agregadas a família, que eram uns empregados mais interessantes, porque eles eram criados como agregados, portanto eles não eram estranhos, ao mesmo tempo eles não recebiam salário nem nada, porque eles eram da família. Então, meu pai foi criado nessa situação, ele não morava dentro da casa, ele morava fora da casa ele e mais dois agregados, portanto a relação dele era sempre uma relação, ele talvez por ingenuidade ou até desejo de ser amado ele se considerava da família, mas a família não o considerava da família, isso é certo.
P/1 – E ele tinha serviços para fazer desde criança?
R – Ele era desde sempre ele era empregado para tudo. Para tudo, para arrumava a casa, para ir comprar as coisas, para tomar conta das outras crianças. Ele sempre foi o empregado para tudo.
P/1 – E ele estudou?
R – Não. Ele fez até o terceiro ano primário, não sei até como ele fez até o terceiro ano primário e talvez não sei se ele percebeu ou se as coisas levaram ele a perceber que ele tinha que sair daquela situação. Ele demorou acho até que um pouco, ele deve ter se casado, deixa eu pensar aqui, ele deve ter se casado com uns 24 anos mais ou menos.
P/1 – Ele ficou nessa família até 24 anos?
R – Ficou sempre como agregado daí para frente, então, que ele foi constituir uma família mesmo.
P/1 – Então, só para eu entender melhor, ele ficou fazendo esses trabalhos estudou até o terceiro ano primário? O que ele fazia de resto?
R – Então, ele ficou, porque nesse meio tempo ele descobriu que ele tinha um irmão, que era o meu tio Arlindo, que ele tinha um problema de retardo mental. Então, os dois acabaram meio percebendo que eles não eram daquela família, meu pai com o tempo foi percebendo que não era daquela família e ele continuou trabalhando lá com eles, ele não tinha nada, absolutamente nada, ele não tinha, ou seja, não tinha pedaço de terra, não tinha nada. Então, inclusive ele teve muita dificuldade a se adequar a uma nova vida, quando ele se casou com a minha mãe, eles se casaram e foram morar inicialmente nas terras do meu avô materno, que era uma fazenda pequena, mas enfim, morou lá. E, aí, ele se desentendeu com a família inteira da minha mãe e eles se mudaram para Cataguases. Aí, em Cataguases ele não conseguiu ficar lá e ele mudou para Dona Euzébia. Aí, em Dona Euzébia não conseguiu ficar lá e voltou para Rodeiro. Aí, em Rodeiro não conseguiu ficar lá voltou para Cataguases. Ele ficou nessa função até um dia a minha mãe falou: “Tudo bem você pode fazer o que você quiser da sua vida, eu vou ficar aqui em Cataguases agora, não tem problema”, nessa época eles já tinham um filho, meu irmão mais velho, tinha nascido em Rodeiro. Então, ela deu um ‘chega para lá’ nele, aí, então, a partir daí é que meu pai foi tentar ter uma vida, digamos assim, conforme, embora ele nunca tenha conseguido. Ele nunca conseguiu ter, por exemplo, um emprego fixo. Na verdade o que ocorreu foi o seguinte: a minha mãe, eu acho que embora ela fosse analfabeta, ela teve uma família, ela se constituiu como uma família e ela tinha uma percepção muito clara que a única maneira de ela ter uma família decente que tivesse filhos, que pudesse de alguma maneira crescerem e sair daquela situação de pobreza e tudo seria eles estudando. E acho que ela percebeu muito rapidamente que Cataguases oferecia essa possibilidade, não que ela tivesse intuído isso antes, mas quando ela foi para lá a primeira vez ela percebeu isso, então, quando ela bateu o pé de ficar em Cataguases, ela bateu na verdade não por ela e nem pelo meu pai, ela bateu, eu acho, que ela bateu o pé pelos filhos. Eu acho que a partir do momento em que ela bateu o pé, ela assumiu o controle da família. A gente não percebia isso, eu vim perceber isso muito mais tarde, mas, por exemplo, assim, enquanto o meu pai ficava batendo cabeça de um lugar para outro, vendia pipoca, vendendo não sei o que, não sei o que, a minha mãe fazia uma única coisa, ela lavava roupa e passava roupa o dia inteiro. Ou seja, ela tinha um salário, ela tinha uma renda fixa, ao contrário do meu pai que não tinha. Meu pai, por exemplo, se chovia ele não podia sair com o carrinho de pipoca, porque estava chovendo, época que não tinham aulas, nas férias das crianças ele também não podia, porque não vendia pipoca, ele vendia muita pipoca era na época de aula, então, assim, ele não tinha uma renda fixa, e ela tinha. Embora nós achássemos, eu pelo menos achasse que o meu pai era o provedor da minha família durante muitos anos, hoje eu tenho absoluta certeza que não, quem era provedor era ela. Então foi isso, quer dizer, esse início da vida deles foi uma coisa complicada, porque você tinha de um lado tinha o meu pai que passou a vida inteira achando que ele tinha uma família e ele não tinha, tanto que as poucas vezes que ele tentou me envolver com a família, essa família Nalon foi um horror para mim, foi péssimo, foi traumático. Porque ele achava que eles iam me adorar, porque afinal de contas era da família, e eles estavam pouco se lixando para mim. Então, assim, eu como era caçula eu acabava tendo que segui-lo, porque enfim era o jeito que ele tinha de achar que estava me agradando, mas hoje eu tenho absoluta certeza, que a família dele não tinha nenhuma relação com ele e quem realmente sempre nos protegeu, e que sempre foi o fundamento da nossa questão moral, educação, valores, tudo, foi a família da minha mãe.
P/1 – Então, agora vamos voltar para a sua mãe. Me conta um pouco da história da sua mãe, fala de novo o nome dela.
R – Então, minha mãe era Geni Ruffato, ela era filha de imigrantes italianos. O meu avô era o Giovanni Ruffato e a minha avó Maria Nicheletto. Eles chagaram no Brasil, o meu avô chegou com 16 anos e a minha avó chegou com dois ou três anos. Eles vieram, como todos imigrantes daquela época, passando fome. Hoje as pessoas tem muita vergonha de falar, então, inventa uma história maravilhosa, que eles vieram fazer a América, mentira eles estavam morrendo de fome lá, se não tivessem vindo para cá provavelmente eles teriam morrido lá. Então eles vieram, o meu avô veio trabalhar em café no interior de Minas numa região de colônia italiana, na região de Ubá. E minha avó veio criança, na verdade o meu avô foi para um lugar que chamava-se Bananeira na época, Piau, que é uma cidadezinha pequena onde ele foi trabalhar com lavoura de café como empregado. E a minha avó já foi para um lugar perto de Ubá mesmo. Eles acabaram se encontrando eles vieram no mesmo navio, incrível isso, depois acabaram se encontrando, aí, eles se casaram, aí, eles moraram um tempo lá nesse lugar que se chama Campo de Aviação, em Ubá, depois no Córrego do Sapo também, que um lugar perto de Ubá até o meu avô ter dinheiro e comprar uma pequena fazenda em Rodeiro.
P/1 – Ele trabalhava nessa fazenda de café então?
R – Ele começou trabalhando na fazenda de café, ele conseguiu juntar dinheiro para comprar uma pequena propriedade em Ubá, nessa região do Córrego do Sapo, e depois, ele tinha vocação para agricultura, então, era pequena a terra que ele tinha comprado, ele juntou dinheiro de novo, aí, comprou um lugar maior, que era esse lá em Rodeiro, na região de Rodeiro, aí, minha mãe já nasceu em Rodeiro, os irmãos mais velhos nasceram em Ubá. Aí, como ela ter nascido em Rodeiro, ela foi criada na roça e tudo, a família era grande, eles todos trabalhavam na roça. Mas como aconteceu na Itália demorou séculos para acontecer na Itália lá em Rodeiro aconteceu em duas gerações, a segunda geração não tinha terra para todo mundo já, claro, o filhos tinham pequenos pedaços de terras que não sobreviviam aliado a isso e ao machismo das famílias, que os homens tinham heranças e as mulheres não, porque acreditava-se que as mulheres iam casar com homens que tinham herança, portanto não tinham que dar herança para as mulheres, e para azar da minha mãe, o meu pai não tinha nem aonde cair morto.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Eles se conheceram de uma maneira romântica até, lírica. Porque depois que o meu pai conheceu o irmão dele, o irmão dele morava em Guidoval, que era outra cidade e meu pai saia de Dona Euzébia, às vezes, e ia até outra fazenda da família Nalon, que era em Guidoval, enfim, para ficar lá uns tempos com um lá parente que era o tio, que seria o meu tio, não é o meu tio. E para isso ele passava numas terras que ladeavam a fazenda desse meu avô italiano lá, e os Nalons se conheciam, porque eles eram italianos, italianos eram todos da mesma cultura italiana ali, dos Ruffatos, Nichelettos e Nalon. Aí, um dia esse tio Carlos Nalon falou com o meu pai: “Você tem que casar com umas italianinhas que tem ali em Rodeiro.” Aí, meu pai passando na fazenda do meu avô, uma vez conheceu lá a minha mãe, enfim, eles começaram aquele namorico de roça. Portanto acabou, acho que o meu avô deve ter achado que ele era trabalhador e ele era trabalhador sim, embora inábil, mas era trabalhador, então, eles acabaram se casando, foi assim. Minha mãe tinha 17 anos, era muito jovem. Ele deveria ter, ele não tinha nem 24, eu falei 24, mas devia ter 23 mais ou menos.
P/1 – E fala um pouco do temperamento dela e do temperamento dele. Como eles eram como pessoas? Que você lembra?
R – Olha, a minha mãe ela para mim assim, parece freudiano isso, mas quando eu penso numa mulher eu penso na minha mãe, porque é uma das mulheres mais fabulosas que eu conheci, embora como eu disse analfabeta, das mais sábias, mais inteligentes, mais psicologicamente forte que eu conheci na vida, poucas pessoas, na verdade, eu conheci com uma integridade como ela. Ela é tanto íntegra que quando a minha avó morreu, quem assumiu o papel de nonna foi ela, ela passou a ser o esteio da família inteira, a ponto de, por exemplo, assim, nós éramos a única família que não morava no eixo Rodeiro-Ubá. No entanto, todas as coisas importantes que eram decididas na família tinha que ser a minha mãe, então, ela saia ia até Rodeiro ou Ubá resolver. Desde, por exemplo, um batizado quem vão ser os padrinhos da criança até alguém que estava internado doente no hospital, ela que tinha que resolver tudo. E ela tinha uma maneira muito curiosa, por exemplo, de responder as demandas da família. Vou dar um exemplo muito besta, mas que eu acho que era como ela fazia, habilidade dela para resolver os problemas era, por exemplo, os meus primos iam levar uma namorada para ela conhecer, para saber se aquela namorada servia ou não servia para entrar para família. E ela sempre, com todas as pessoas ela faz um almoço maravilhoso e tratava a pessoa da melhor maneira possível, melhor maneira possível, aí, depois que foram embora o sobrinho vinha perguntar para ela: “O que você achou?” Ela começava falando assim: “Nossa senhora, meu filho, graças a Deus eu rezei tanto para você arrumar uma moça como essa. Essa moça é fantástica, essa moça não tem defeito nenhum, realmente você está de parabéns, pena que parece que ela não gosta muito de cozinhar, mas também esse negócio de coisa de cozinhar hoje é bobagem, não tem isso não. Também parece que o pai dela ele tem problema de alcoolismo, mas isso também não tem nada a ver, imagina”. (risos) Ou seja, ela realmente ia fazendo um discurso que ia se desmontando, mas era uma maneira muito inteligente da parte dela de lidar, outra possibilidade seria: essa pessoa não serve para você, então, ela nunca fez isso. Então, ela tinha uma habilidade muito grande para lidar com isso, e ela da maneira dela ela deu uma constituição psicológica para mim e para os meus irmãos, assim, muito forte. Tanto que eu acho que nós superamos todas as barreiras, inclusive sociais, barreiras econômicas, barreiras pessoais e tudo, muito em função desse escopo que ela nos deu de integridade, de fortalecimento da sua autoestima e tudo e sem falar nada, sem falar nada, na dela.
P/1 – Mas aonde você identifica assim? O que é que disso que ela fez que você percebe?
R – Olha, por exemplo, assim, eu acho, que tudo o que aconteceu na minha vida em termos de humilhação, pela maneira que eu conduzi, eu morava numa cidade que era estratificado social com muita clareza, ao contrário de cidades a questão, por exemplo, o mundo rural está muito presente como Rodeiro e Ubá em que as relações sociais são muito difusas, então, por exemplo, é possível que o fazendeiro seja padrinho do menino lá que anda de pé no chão, que haja uma certa interpenetração de interesse, no mundo industrial não existe isso, quer dizer, em Cataguases, por exemplo, a gente sabia, por exemplo, que os Peixotos eram donos da fábrica, mas ninguém sabia quem os Peixotos, para gente era uma coisa meio simbólica ninguém via Peixoto na rua. Depois disso tinham lá os médicos, os engenheiros, os diretores da fábrica, também que a gente sabia quem eram, mas eram inacessíveis. Era muito claro que eram eles e nós, depois existiam as pessoas que trabalhavam nas fábricas, que éramos nós, depois disso da gente existiam as prostitutas, os bandidos, os drogados e os mendigos. Então, era muito estratificado. Numa sociedade assim, as relações se dão de uma maneira, quer dizer, não existem hipocrisias. Eu sou rico e você é pobre e fique no seu lugar. A minha vida inteira eu passei ouvindo isso, quer dizer, eu era o filho da lavadeira e do pipoqueiro. Até hoje, quando em algum encontro lá em Cataguases se fala em literatura, eu não sou bem aceito, porque eu continuo sendo o filho da lavadeira e do pipoqueiro. Eu podia muito bem ter feito um horror disso na minha vida e eu acho que eu superei bem isso, não sou uma pessoa rancorosa, não sou uma pessoa que ficou achando: me trataram mal, agora eu posso fazer o que quiser da minha vida, eu acho que não e acho que devo isso a ela. De saber que esses são valores não eram nossos valores, valores deles, eles acham assim eu não acho. Eu não acho que eu sou pior, porque sou filho da lavadeira, eu acho isso muito claro isso é dela. Por exemplo, quando por acaso a gente ia ao médico lá, sei lá por uma gripe qualquer e tal, o médico falou: “Nossa, mas esses meninos estão limpinhos”, porque nós éramos muitos pobres e a minha mãe falava que pobreza não tem nada a ver com falta de higiene, na minha casa era uma limpeza absurda! E por quê? Porque ela sabia que esse era um valor, o valor era de nós sermos limpos, nós sermos organizados, nós sermos pessoas decentes, os outros valores eram valores dos outros. Então, a honestidade, por exemplo, para mim roubar um real ou roubar um milhão de reais é a mesma coisa, está roubando isso é dela, não importa, nós somos pobres, mas somos honestos, nós somos pobres, mas somos decentes, nós somos pobres, mas temos orgulho de sermos corretos, de nós termos valores que para as outras pessoas não importam, mas para a gente importa. Tanto que, por exemplo, a minha mãe lavou roupas durante muitos anos para prostitutas de uma zona que tinha perto da minha casa, e eu criança era encarregado de levar e trazer as roupas lavadas e passadas e, assim, nunca nenhuma mulher, nenhuma, fez qualquer coisa em relação a mim, pelo respeito que elas tinham pela minha mãe. Era um respeito tão grande que os presentes de natal que se ganhava, únicos, porque a minha família não tinha dinheiro para comprar presente de natal, eram elas que davam. Então, você vê a integridade e o escopo moral de uma pessoa assim, embora morando num cortiço com problemas seríssimos de violência infantil nas casas próximas, de a minha mãe e meu pai ter que interferir por causa dos pais não baterem, espancarem as crianças e eles ter que intervirem, na minha casa nunca existiu isso, inclusive para mim é um horror pensar, meu coração até acelera quando ouço criança chorando, que eu acho que alguém está apanhando, porque na minha casa isso não existia.
P/1 – Então, vamos voltar agora nessa sua casa, como era a sua casa? Vamos voltar no seu nascimento, me conta você era o primeiro, segundo ou terceiro? Como é que essa família? A casa que você nasceu?
R – Eu sou o caçula, eu tinha o meu irmão mais velho que nasceu em Rodeiro, José Célio, depois teve a minha irmã do meio, que é a Célia Lúcia. Antes de mim a minha mãe ficou grávida e ela perdeu o bebê em estágio bastante avançado e depois tem eu. Então, a diferença entre eu e minha irmã é de cinco anos.
P/1 – E você e seu irmão?
R – São nove anos de diferença. Meu irmão morreu quando tinha 26 anos. Quando eu nasci a gente morava num cortiço na Vila Teresa, que o chamado Beco do Zé Linco, que eu transformo em Beco do Zé Pinto no “Inferno Provisório”, que era um cortiço onde moravam algumas pessoas de operários, famílias operárias, mas misturado com pessoas que traficavam, eu acho que traficavam drogas, eu era criança, então, para mim é tudo meio difuso, mas tinha um cara lá que provavelmente traficava maconha, na época não tinha mais do que isso, eu acho, não sei. Não tinham prostitutas ali, porque o dono lá do beco, do cortiço lá não permitia, mas eram famílias muito pobres e tinha problemas muito sérios, porque, como eu disse, tinham famílias elas eram estruturadas, mas eram desestruturadas, porque tinha muita violência, muita violência.
P/1 – Que tipo de violência?
R – Violência contra crianças, aquela violência de descontar suas infelicidades nas crianças, de violência contra mulheres, tinha muito alcoolismo, muita briga entre as famílias. Por isso que eu acho sobreviver nesse meio foi muito graças a minha mãe, porque as pessoas tinham um respeito imenso por ela, imenso a tal ponto, por exemplo, da minha mãe intervir nas brigas de vizinhos, entrar na casa que algum pai que estivesse espancando o filho e ela mandar parar. Então, ela exercia um poder nessa pequena comunidade ali impressionante. Era uma mulher franzina de voz baixa, nunca ouvi minha mãe gritar, ou falar alto com ninguém, era a presença física dela que impunha um respeito enorme. A ponto, por exemplo, que quando esses donos do cortiço, que era um casal de portugueses, eles não tiveram filhos e eles adotaram uma menina inclusive que era filha de uma mulher lá da zona. Quando eles adotaram a menina eles não tiveram dúvida quem ia ser a madrinha e padrinho dela, foi a minha mãe e meu pai, por causa realmente da importância que ela adquiriu nesse meio. Então, era uma casa pequena, a minha irmã dormia na sala num sofá cama, eu e o meu irmão dividíamos um quarto, minha mãe no outro e tinha uma cozinha, só isso.
P/1 – A casa era como um apartamento dentro do cortiço?
R – Não, eram casinhas mesmo, eram como casas geminadas, não sei, devia ter um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez casas que formavam aqui um beco e aqui um pequeno beco também, na verdade esse beco era mais comprido.
P/1 – E vocês saiam, ficavam andando como se fosse uma vila, brincando com outras crianças, isso é parte da sua infância?
R – Olha, lá tinham crianças também, não eram muitas que tinham no cortiço, mas na rua em cima tinha, sabe por quê? Esse beco, assim, descia em direção ao rio, então, aqui em cima ficava a rua, então, a rua era num bairro de classe média, engraçado isso, era um bairro de classe média, não classe média média, uma classe média baixa, mas melhor do que o pessoal que moravam no cortiço, então, havia uma certa contaminação nossa em relação a eles. Então, eu brincava com as crianças, na verdade, de nível social melhor que eu. Assim, eu era muito tímido e muito retraído, e trabalhava. Desde os seis anos de idade eu trabalho, então, quando eu ia brincar com eles, eu ia jogar futebol, que era o que eu gostava de fazer mais nada, quando eu me lembro da minha infância eu me lembro só de jogar futebol, futebol o tempo todo, mas era só futebol, e como eu jogava bem eles me adotavam, me aceitavam dentro daquele universo deles ali. Então, eu convivia com os meninos, por exemplo, que eram filhos da modista do bairro, que era bem melhor que a gente, com outras pessoas que tinham algum cargo médio dentro da fábrica, eram chefes, não eram diretores, eram chefes de sessão e tal, então ganhavam melhor. Então, era gente que tinha televisão em casa, coisa que no cortiço ninguém tinha televisão, nós fomos ter televisão muitos anos depois. Então, eu convivi um pouco eram duas realidades um pouquinho diferente, não muito diferente, mas um pouquinho diferente. E ao mesmo tempo por causa da minha mãe lavar roupa, a minha mãe lavava roupa para pessoas de melhores condições sociais, então, quando eu ia levar roupa na casa dessas pessoas melhores, eu nunca entrava na casa, eu entrava sempre pelo corredor lateral, porque imagina, mas eu via que eles moravam melhor, casas maiores, tinham coisas melhores, tinham carro, os meninos tinham brinquedos e eu via, eu tinha muita consciência disso quando criança, engraçado.
P/1 – Você prestava atenção?
R – Muito!
P/1 – E você o que é que você lembra do seu sentimento?
R – Olha, eu acho que comecei a tomar consciência das diferenças sociais muito cedo, porque com seis anos, esse dono do cortiço, o português, ele tinha um botequim, aí ele sugeriu a minha mãe que eu ficasse no botequim durante um certo período para que eu aprendesse alguma profissão. Como se caixeiro de botequim fosse uma profissão. (risos) Mas ok, ele simplesmente me deixava sozinho lá, então, eu com seis anos, uma loucura isso. Eu com seis anos colocava um estrado atrás do balcão e ficava lá, então, eu vendia cachaça, vendia cigarro, essas coisas todas, imagina! Quem frequentava esse botequim eram as prostitutas da zona ali perto e as pessoas muito pobres do cortiço ou dali das imediações. Então, era o meu pessoal, eu conhecia e para mim não fazia diferença nenhuma era isso mesmo. Só que quando eu ia jogar futebol com outros meninos, às vezes eu entrava na casa deles para tomar água, não sei o quê, e eu via que era muito diferente da minha casa e era muito diferente do cortiço. E via que os meninos comiam coisas diferentes que eu comia, estudava em lugares diferentes que eu estudava, eu via muito isso. Com o passar do tempo eu comecei a sofrer o preconceito social, que a gente fala muito em preconceito racial e é muito sério e pior de todos, mas o preconceito social também é traumático para quem sofre. Então, por exemplo, diversas vezes o meu pai sempre coitado, com a melhor das boas intenções só fazia coisa errada comigo, então, como eu era caçula, por exemplo, ele tinha muito orgulho, que ele achava que eu era um menino inteligente e tudo, então, por exemplo, ele ia vender casquinha de canudo, esses canudos que colocam doce de leite, ele vendia nas casas e às vezes me levava junto. E ele falava: “Olha, meu filho e tal” e as pessoas falavam: “ok” olham para mim, então, quando meu pai pedia: “Você podia arrumar um copo de água?” aí, eles colocavam a gente lá para trás, sentava lá, nunca deixava entrar em lugar nenhum, evidentemente, tratava assim era o filho do pipoqueiro e o filho da lavadeira aqui. Tem vários episódios desses, assim, de preconceito social muito claro para mim, que foram me mostrando que eu não pertencia aquele universo, quando, por exemplo, o meu pai uma vez me levou nos Nalon lá em Dona Euzébia. Eu não queria ir de jeito nenhum, porque eu sabia minha mãe falou: “Eles não gostam da gente” meu pai: “Não, imagina” aquela coisa toda, e aí fui com meu pai, aí, meu pai me pega e me deixa lá para passar as férias, imagina, e eu fico no meio de pessoas que não tinham nada a ver comigo, que não me tratavam como primo, nem como sobrinho nem nada, me tratavam como o filho do Sebastião agregado, aí, eu me lembro que uma dessas vezes, por exemplo, teve um circo na cidade, e os meus primos, os dois primos na época o pai deles era prefeito da cidade, então eles tiveram um lugar lá na frente e tudo e, aí, eles falaram: “Vamos lá com a gente” e eu fui com eles, mas assim morrendo de raiva do meu pai, que eu queria voltar para a casa não queria ficar lá, chamava circo de cavalinhos. Era um circo de cavalinho, era um circo paupérrimo, então tinha algumas coisas lá e tinha um momento que tinha uma espécie de uma novela, uma telenovela ao vivo. E terminado a telenovela ao vivo entravam os palhaços, que eram os mesmos, todos eles eram os mesmos eles só trocavam de roupa e, aí, quando voltaram eles falaram: “Sobe alguém aqui agora” para fazer alguma coisa, e evidentemente os meus primos me empurraram para cima do picadeiro, por isso eu odeio tudo que é interativo, teatro, eu odeio, quando eu vou a teatro agora, eu pergunto: “Tem interatividade?” “Tem” então eu não vou. E aí, eles me colocaram lá, eu menino de uns seis, sete anos, muito tímido, e todo mundo morrendo de ir de mim os palhaços fazendo palhaçadas comigo e eu lá duro assim e evidentemente que era um bullying, claro, e eu quando desci do picadeiro eu falei com eles que eu ia embora, e isso era de noite, aí, eles morreram de rir, imagina, embora, aí, fomos até a casa da minha tia, eu falei com ela: “Eu vou embora” “Como embora?” peguei as minhas coisas: “Vou embora,” ela falou: “Mas você não pode ir embora” eu falei: “Vou embora, não quero ficar aqui de jeito nenhum”, mas eles não queriam me levar também, e eles ficaram com medo de eu ir embora de noite, porque era longe, são 22 quilômetros, e eu não tinha a mínima noção de para onde eu ia.
P/2 – Quantos anos você tinha?
R – Uns seis anos, sete anos. Aí, no dia seguinte a minha tia me colocou no ônibus, ninguém me levou, me colocaram no ônibus para Cataguases e, aí, cheguei na rodoviária eu sabia ir sozinho para casa a pé, mas eu falei: Eu não fico aqui de jeito nenhum”. E eu tenho mais dois outros episódios, assim, claros de preconceito social e traumáticos. Deixa eu ver se é na sequência, que são absurdos, vou contar da escola, o meu pai era pipoqueiro da praça da igreja, que era o segundo mais importante pipoqueiro da cidade, porque o primeiro pipoqueiro mais importante era o da praça do cinema, todo mundo ia fazer footing e meu pai era da praça da igreja, e eu mesmo trabalhando desde sempre, mas os fins de semana eu ia ajudar o meu pai lá, porque aumentava o serviço lá no carrinho de pipoca e eu estava lá uma vez apareceu um senhor, comprou uma pipoca e puxou conversa comigo. Ele perguntou para mim se eu estava estudando, eu falei claro, não era comum, hoje essa pergunta não faz o menor sentido, mas na época fazia e ele perguntou onde eu estava estudando, e eu falei que estudava no Colégio Antônio Amaro, que era um colégio péssimo, era um colégio da CNEC, que era Campanha Nacional de Escola da Comunidade, porque eles não tinham prédio, porque eles alugaram escolas que não tinham aula a noite, eles alugavam para ter aula a noite, então, eu estudei cada ano numa escola diferente, um prédio diferente, embora chamasse Antônio Amaro, e ele falou: “Porque eu não estudava no Colégio Cataguases?” que era um bom colégio da cidade, colégio público, mas só estudava a elite da cidade. O meu pai falou para ele todo ano eu vou lá e não consigo nunca uma vaga e aí ele falou: “No ano que vem você me procura que eu vou arrumar uma vaga.” E ele arrumou mesmo, então, eu fui estudar lá, parei de trabalhar e fui estudar de manhã, só que cheguei lá era um universo completamente diferente do meu. E era evidente que eu era um menino pobre no meio aos ricos, porque no começo do ano eles entregavam amostras do tecido que você tinha que comprar para calça, camisa, o tipo de sapato. Como a minha mãe não tinha dinheiro para comprar aquele tecido, ela comprou tudo parecido. Então, o tecido da calça era parecido, camisa era parecido, eu não tinha sapato aí fui com kichute, então era tudo parecido, mas era evidente que não era igual e todo mundo na escola sabia, que aquele menino lá era um menino pobre. E, aí, certa feita, eu queria morrer, outra coisa que meu pai arrumou para mim, coitado, com a melhor das boas intenções, mas ele me colocou no caldeirão, eu odiava aquele colégio, mas eu não falei para ele. E, aí, certa feita uns meninos pegaram, era um colégio de dois andares assim e quando tinha o intervalo a molecada ficava toda lá em baixo. Aí, certa feita alguém mijou num saquinho plástico e jogou lá em baixo, e viram de onde que tinha vindo. E quando o bedel entrou em sala ele não tinha nenhuma dúvida quem jogou, nenhuma dúvida, claro, me pegou e me levou lá no diretor do colégio. O diretor perguntou se eu tinha jogado aquilo lá em baixo, eu falei com ele que não, e ele falou: “Além disso, você é mentiroso” eu não vou discutir com ele, fazer o quê? Eu não falei com o meu pai, só que no final do ano, eu falei com ele: “Eu não fico lá mais” falei com a minha mãe: “Não quero ficar” ela perguntou o porquê, eu não quero, eu não quero eu saí. O terceiro episódio, tem vários, mas o terceiro episódio de preconceito social, foi quando eu trabalhava na fábrica, eu trabalhava na fábrica de algodão hidrófilo, que vocês conhecem como algodão Apolo.
P/1 – Deixa só eu entender. Esse da escola você tinha mais ou menos quantos anos?
R – Doze, 13 anos, e esse agora eu tinha 15, trabalhava na fábrica de algodão Apolo, eu tinha um chefe que chamava Jaci e arrumei uma namorada, a minha primeira namorada que eu arrumei, chamava-se Vânia. Uma namora que eu tinha até medo de encostar a mão nela, encostar a mão na mão, e aí a gente ficava rodando na praça e tal e um dia ela virou para mim e falou: “É o seguinte, você tem que conhecer meu pai, tem que ir na minha casa conhecer meu pai e minha mãe.” Falei então está bom eu vou lá, e ela morava do outro lado da cidade. Num sábado à tarde eu peguei a minha bicicleta, peguei na bicicleta, lavei a bicicleta todinha, bem arrumadinha, bem bonita, coloquei uma roupa legal e fui para casa dela. Cheguei lá bati na porta da casa dela, ela abriu a porta: “Ah, que bom” me colocou sentado na poltrona na sala esperando, para conhecer o pai dela, e aí, entra o pai dela e quem era o pai dela? O meu chefe na fábrica! Aí, ele vira olha para ela e falou: “Minha filha, você não tinha coisa melhor para arrumar? Esse cara trabalha na fábrica, ele é meu empregado lá”. E virou as costas e foi embora. Aí, eu olhei para ela e falei: “Está bom” peguei a minha bicicleta e fui embora para casa, fazer o quê? Por isso que eu te falo, eu acho que a minha mãe tinha uma fortaleza psicológica e moral...
P/2 – Você contou isso na sua casa para alguém? Você dividiu isso com alguém?
R – Não dividi. Até hoje eu tenho dificuldades de dividir as coisas assim. Eu achava que não era importante, era um problema meu, foi um episódio na minha vida que eu tinha que entender e assimilar e resolver, nem o outro lá do colégio também eu falei, porque, enfim, não achava que era importante, quer dizer, achava que era importante, mas achava que não era um problema, era um episódio, então, não dividia, enfim, mas é curioso.
P/1 – Mas vamos voltar a essa história, você estava falando que você trabalhava desde os seis anos no bar. O bar foi o seu primeiro trabalho? E depois?
R – Não era nem um bar, era um botequim. Depois do botequim eu fui trabalhar no Bazar Leitão, que era um armarinho. Esse armarinho vendia tudo, assim, botão, vendia agulha, vendia um monte de coisa, fecho éclair. Aí, eu trabalhei nesse Bazar Leitão, depois depois dali, acho que, assim eu trabalhei na fábrica, nessa fábrica de tecidos, que eu trabalhava na área de algodão hidrófilo. Depois eu fui fazer tornearia mecânica no Senai, que a minha mãe, mais uma vez a minha mãe, minha mãe percebendo que eu estava lá na fábrica e tal, ela claramente percebeu que se eu não tivesse uma profissão eu ia virar operário da fábrica. Ela achava, tudo bem ela respeitava, mas ela achava que aquilo era pouco, que a gente tinha que tentar crescer, e o meu irmão já tinha feito Senai, ele já era torneiro mecânico. Então, minha mãe falou: “Você tem que fazer tornearia mecânica” e aí, eu fui fazer tornearia mecânica também. Aí, me formei, e aí, formado é que eu fui para Juiz de Fora. E, aí, em Juiz de Fora eu fui trabalhar como torneiro, eu não fui estudar eu fui trabalhar, porque em Cataguases não tinha... O meu azar foi esse, acho que, até um ano antes de eu entrar no Senai, todos os fins de ano as empresas daqui do grande ABC, de automóveis e tal elas iam, mandavam alguém do RH para o Senai de Cataguases, a pessoa ficava lá com uma mesinha pegando o nome de todos os formandos, endereço e tal, porque era emprego garantido, era pegar vocês vão fazem a carteira profissional já está empregado, só que o que aconteceu? Eu me formei depois das grandes greves, quando o movimento sindical estava forte e tudo, então, já não havia mais trabalho aqui, aí, veio a grande crise toda, então, não tinha trabalho aqui. A opção que eu tinha era a Fiat em Belo Horizonte, que também era muito recente, eu não sei, eu não me senti, assim, forte, eu não sentia vontade para ir. E, por acaso, no dia 31 de dezembro de 1977 lá em Cataguases, eu estava conversando com uns amigos que tinham formado em tornearia mecânica junto comigo, eles falaram assim: “Puxa vida para onde que nós vamos? Vamos para Juiz de Fora arrumar emprego em Juiz de Fora” “Mas tem emprego em Juiz de Fora?” “Não sei, vamos lá ver”. Aí, nós fomos os três em janeiro. E deu, calhou que nós chegamos lá os três torneiros mecânicos procurando emprego de torneiro mecânico, imagine, isso é uma estupidez enorme, só que daqueles acaso assim incríveis, nós arrumamos empregos, os meus colegas arrumaram emprego numa pequena metalúrgica e eu não arrumei um emprego numa metalúrgica, eu arrumei um emprego numa oficina mecânica, que tinha um torno mecânico. Ai, eu falei “Está bom então”, vamos, aí, os meninos não aguentaram 15 dias e foram embora.
P/1 – Voltaram para Cataguases?
R – Voltaram para Cataguases. Eu fiquei com muita vergonha de voltar para Cataguases, porque, enfim, eu tinha saído e voltar. Fiquei morrendo de vergonha, então, eu fiquei. Eu dormia lá na oficina mesmo, arrumei um canto lá eu dormia lá na oficina e tudo e, aí, eu fui procurar um lugar para estudar, para fazer o terceiro ano, porque a minha meta era terminar o terceiro ano, porque eu achava importante ter o secundário completo. Aí, eu fui procurei um colégio lá onde fazia o terceiro ano, então, estudava de noite, trabalhava o dia inteiro e estudava de noite. E nem pensava em fazer vestibular nem nada, isso para mim não era um propósito, não tinha o menor interesse nisso. Só que um cara lá um dia foi arrumar alguma coisa lá e conversando comigo a gente estava conversando e tal ele perguntou para mim, eu era muito jovem, ele perguntou para mim que é que eu fazia, eu falei: “Vou terminar o terceiro ano e basta” aí ele falou: “Puxa, porque você não continua a estudar” eu falei: “nunca pensei sobre isso” aí, então, ele falou comigo: “Olha, tem uma universidade federal aqui e tal, você não vai pagar nada porque você não tenta?” eu falei: “Não sei, eu nem pensei nisso” “Vai dar uma olhada nos cursos, vê alguma coisa que tem a ver com tornearia mecânica e faz” eu falei: “Está bom”, mas eu nem pensei muito nisso não, mas um dia eu andando ali no centro da cidade, não sei, fui resolver alguma coisa no centro da cidade, eu passei em frente a um cursinho e, aí, passando em frente ao cursinho eu falei: “Deixa eu ver o que era esse negócio de vestibular”. Eu cheguei lá e peguei um prospecto que tinha lá os cursos que tinham na universidade federal. Aí, eu vi lá um monte de curso e tal, eu falei: “Nossa, médico não, médico era só gente rica, médico não, engenheiro não, essas coisa são de gente rica” e fui procurando um curso que tivesse alguma coisa a ver com tornearia mecânica aí, eu vi escrito lá comunicação e pensei: “Puxa vida, tem tudo a ver comunicação, telecomunicação, é isso que eu vou fazer”. Telecomunicação (risos). Aí, eu virei para o cara lá: “O que a gente tem que fazer para esse negócio de vestibular?”. Ele falou assim: “Ah, tem que estudar muito” eu falei: “Mas muito?” “É difícil para caramba” e eu falei: “Quando que é esse negócio de vestibular” ele falou: “É no final do ano”, isso era no meio do ano mais ou menos “e como é que a gente faz?” ele falou: “você está fazendo o que?” eu falei: “Eu estou fazendo o terceiro ano” ele falou assim: “Lá no seu colégio não tem o integrado?” eu falei: “Não sei nem o que é isso” e ele falou: “Como é que é o nome do seu colégio?” eu falei: “Mariano Procópio” ele falou: “o Mariano Procópio tem integrado e você podia fazer o integrado, na verdade você nem vai fazer o integrado, você vai fazer cursinho, mas eles te dão o diploma no final do ano do mesmo jeito.” “Então está bom.” E eu fui fazer o cursinho.
P/1 – Você trocou a matéria pelo cursinho?
R – Porque na verdade é como se você tivesse fazendo o terceiro ano, só que você estava fazendo o cursinho direto. Eu nem sabia disso na verdade, porque eu nunca tinha estudado física, química, nada disso, matemática, nada, nada. Matemática sim, básica, mas física e química nada, aí, eu cheguei lá e levei um susto, porque tinha física, matemática, não sei o que e tal, eu quase desisti. Mas, aí, eu conversando com uma professora, que ela pedia para fazer, era professora de redação, fazer as redações e ela gostava muito das minhas redações. E eu falei para ela isso: “Estou querendo parar esse negócio está muito difícil, eu trabalho muito e eu não tenho muito tempo de estudar e tal, eu estou estudando sábado e domingo, aí, eu fico o dia inteiro estudando, isso é uma loucura” e ela falou assim: “Não, cara estuda mesmo e tal, não para não” eu falei: “Está bom” Eu estudava feito um louco, não fazia outra coisa na vida, trabalhar e estudar. Aí, quando foi na época de fazer o vestibular eu coloquei lá comunicação, aí, que eu descobri que comunicação não tinha nada a ver com telecomunicação. Mas ai já não dava mais para parar. Falei: “Agora não dá,” eu falei: “O que é que faz esse negócio de comunicação?” “Jornalismo” eu falei: “Cara, que chatice isso, vou fazer vestibular para jornalismo, que saco!” aí, como eu não ia passar mesmo, falei tudo bem, já fiz a inscrição agora não tem mais jeito, como eu não ia passar mesmo eu falei está bom. Veio a época do vestibular, eu fiz a prova e tudo e não é que eu dei um azar eu passei em primeiro lugar, (risos) por acaso também. Porque ninguém me falou que tinha que estudar, o quanto que tinha que estudar se tivesse falado que tinha que estudar muito, mas não muito eu estudava só o suficiente, mas como eles falaram tanto que tinha que estudar igual a um louco porque se não passa no vestibular, eu estudei igual um loco aí eu passei no primeiro lugar.
P/1 – Você trabalhava de dia?
R – Eu trabalhava das sete até às cinco da tarde.
P/1 – E aí ia para o cursinho?
R – Eu tomava um banho e ia com a mão toda suja de graxa, porque impregna na sua mão, aí, ia para o cursinho, e aí, ficava no cursinho, acho que, das seis e meia às dez e meia, mais ou menos, sábado de manhã também que complementava e eu estudava sábado à tarde e domingo o dia inteiro, eu morava num pedacinho mesmo da oficina, porque tinha um colchão no chão e um radinho à pilha só, não tinha mais nada, nada, nada. Com o fato de eu ter passado no vestibular eu tive um problema, porque passado o vestibular ok, bacana e agora o que é que eu faço? Eu não sabia o que ia fazer, porque eu tinha que parar de trabalhar, porque a aula era de manhã, eu não podia conciliar aquilo com o meu trabalho de torneiro mecânico, e aí, eu fui e meu pai de novo interviu e dessa vez foi mais feliz, porque por uma coincidência no final do ano ele se aposentou e então ele chegou perto de mim e falou assim: “Olha, vamos fazer o seguinte...” ele também não tinha a menor ideia do que era vestibular e o que é que eu ia fazer na universidade, ele falou assim: “Deve ser uma coisa importante” então, ele falou assim: “Eu vou tentar te ajudar de alguma maneira” eu falei: “Legal” só que na verdade ele me ajudou muito nos primeiros meses, porque logo depois eu descobri que tinha uma bolsa chamada crédito educativo. E aí, eu fui na Caixa Econômica Federal fiz o crédito educativo, então, logo depois eu comecei a receber o crédito educativo, era uma mixaria, mas pagava a minha república e ainda sobrava um dinheirinho para pagar a comida, que eu comia no RU, restaurante universitário. Mas logo, muito rapidamente também eu fui procurar saber o que fazia o jornalista, trabalha em jornal, aí, eu fui procurar um jornal lá em Juiz de Fora, aí, para a minha sorte, a minha vida toda é assim, sorte, sorte, sorte, abriu um jornal chamado Tribuna de Minas um ano antes e todo mundo do Diário Mercantil foi trabalhar no Tribuna de Minas. Então, eu cheguei no jornal e não tinha ninguém para trabalhar.
P/1 – No Diário Mercantil?
R – No Diário Mercantil, então, cheguei lá batia na porta e os caras: “Claro! Vem trabalhar com a gente”. Fui trabalha com eles sem saber absolutamente nada. Aí, logo que eu comecei a trabalhar.
P/1 – Você fazia exatamente o que?
R – Lá no jornal? Eu comecei na verdade, eu sempre fui um péssimo jornalista, péssimo, péssimo, péssimo. E eu nunca consegui melhorar nisso, eu nunca tive coragem de fazer entrevista, eu tinha muita vergonha. Então, assim, eles pediram logo de cara para eu fazer uma entrevista, e eu fui para fazer a entrevista, mas eu fiquei com vergonha, eu não fiz a entrevista, eu não conseguia fazer a entrevista de jeito nenhum. Aí, eu voltei para o jornal, e falei com o meu chefe, que tinha pedido para fazer a entrevista, ele perguntou se eu tinha feito a entrevista eu falei que não, e falou porque, eu falei não sei, eu não tenho coragem de chegar lá e conversar com a pessoa e tal, e aí, o cara ficou puto, claro, e com toda razão, me chamou de tudo quanto é nome, mas acho que eu fui tão sincero, tão honesto com ele, que ele falou comigo assim: “Só me aparece esse tipo de coisa na frente” aí, ele virou para mim e falou: “Escrever você sabe?” eu falei: “Não sei, o que é que você quer que eu faça?” “então vamos fazer o seguinte” chamou um copydesk, um senhor, na minha cabeça ele devia ter uns 200 anos já, porque ele era todo encurvado assim, e ele falou: “Ensina esse rapaz aqui a fazer cópia, vamos ver se pelo menos ele faz isso” aí, ele me pegou me ajudou lá a fazer cópia de uma matéria, depois me deu outra matéria e eu fiz, isso eu sabia fazer, quer dizer, eu não sabia que eu sabia, mas eu descobri que sabia e aí então esse meu chefe... Chamava Grande, eu desejo toda noite muita felicidade para ele, porque ele foi muito bom para mim, porque ele falou: “Está bom, fica aí, faz esse troço aí e não vai para a rua” e aí eu fiquei e como eu era bom cópia, logo em seguida eu virei redator, em seguida eu virei editor, eu aprendi tudo na força ali, porque não tinha ninguém para fazer. Então, logo, logo eu fui crescendo no jornal, aí, nunca mais sai de dentro da redação. Quando vim para São Paulo também eu já avisei: “Não me mandem fazer reportagem, que eu não faço. Se vocês quiserem eu fico 12, 14, 20 horas por dia dentro da redação fazendo qualquer coisa, mas na rua eu não vou”. Então, foi assim, quer dizer, eu fiz de tudo lá.
P/1 – Vamos voltar então nessa época, só para eu entender melhor a logística. Você então passou, foi para a república e quando começou a trabalhar, como era? Você ia na universidade à noite?
R – Não a universidade era de manhã.
P/1 – Aí você saia de lá e ia para o jornal?
R – Eu sai de lá e ia para o jornal e ficava até a noite lá.
P/1 – E esse momento, a sua vida em Juiz de Foram as pessoas que você conhecia, o que é que foi a universidade para você?
R – Na verdade, a minha vida tem blocos de fases, então, termina um bloco de fase quando eu vou para Juiz de Fora. Então, aquela vida de filho da lavadeira, do pipoqueiro, morando em cortiço, depois a gente mudou para uma casa melhor, no Paraíso e tal, mas durante pouco tempo eu morei lá. Aí, ela praticamente interrompe, aí, eu tenho um pequeno interregno de torneiro mecânico, ainda vivi um pouco essa vida de operário e tal e em seguida eu vou para a universidade. E aí, então começa uma nova fase da minha vida, que é uma fase completamente diferente, porque quando primeiro eu tomo contato com pessoas muito diferentes de mim, a universidade eram meninos todos de classe média para alta, não tinha média baixa lá, ninguém, ninguém. Só para ter uma ideia, na Faculdade de Comunicação durante todo o período que eu estudei lá tinha um negro e ele era panamenho, não era brasileiro. Assim, pobre mesmo lá era eu, era eu o pobre da faculdade, todo mundo sabia que eu era o pobre! (risos) quando queriam um pobre, aquela cota, assim, precisa de um pobre, eles chamavam (risos). Neste momento, aí, sim, começa uma nova fase. Porque uma coisa que eu aprendi também com a minha mãe, eu tenho muita disciplina, então, o que é que eu tenho que fazer, para fazer determinadas coisas, tem que fazer isso, então, quando entrei na faculdade eu descobri, primeiro que eu estava com pessoas que eram muito mais bem preparadas do que eu em todos os sentidos. Quanto mais eu me espelhava neles mais eu via a minha ignorância, mais eu via as minhas dificuldades, inclusive sociais mesmo, por exemplo, assim até de comer direito ou de me portar direito numa situação. Tudo isso era evidente que eu não sabia, então, era um espelho mesmo. Por exemplo, a comer que aprendi a comer com garfo e faca olhando, porque eu não comia com garfo e faca até então, aí, o que é que eu fazia? Eu ia nos lugares eu ficava olhando as pessoas, parecia que eu era educadíssimo, porque eu nunca começava nada antes de ninguém (risos). Então, ficava lá esperando, e todo mundo nossa esse cara é educado, não era é eu que ficava olhando, pegou na esquerda, eu pegava, pegou na mão direita agora ok. Então, eu estou só observando, e observei também que primeiro que eu não sabia absolutamente nada, tinha passado no vestibular por um esforço hercúleo, imenso, enorme, mas eu não sabia nada, e os meus colegas todos sabiam muito, todos, todos, todos, então eu passei a estudar, eu só fazia isso. Acho que eu era um dos únicos estudantes da universidade que estudava, eu não estudava comunicação, isso eu não gostava, mas foi a época da minha vida que mais estudei, eu estudei matemática, estudei química, estudei física, estudei biologia, estudei geografia.
P/2 – Na faculdade?
R – Na faculdade por conta própria, porque eu não sabia nada, nada, nada. Cada vez que alguém vinha conversar comigo eu ficava gelado, porque eu não sabia nada, e aí, eu fui estudando, eu estudei, mas estudei. Tinha um menino, o Antônio Márcio, que hoje, aliás, é um grande amigo, ele é diretor da Faculdade de Odontologia, ele era menino filho de uma família de classe média alta lá de Cataguases e tudo, e ele foi morar, para minha sorte ele foi morar na minha república, ele morava no meu quarto. Ele era mais novo do que eu um ou dois anos, mas ele achava que eu era mais esperto que ele, o pai dele achava que eu era mais esperto que ele, que afinal de contas eu estava lá e tudo e na época Antônio Márcio estava estudando para o vestibular e ele estudou dois anos, não passou na primeira, era difícil Odontologia, então, durante dois anos estudei com ele, ele estudava e eu estudava com ele, todas aquelas coisas eu estudava de novo. E aí eu fui aprendendo um monte de coisas que eu não sabia, principalmente, eu aprendi que eu não sabia que os meus colegas todos se davam bem com as meninas, porque faziam poesia e eu não fazia poesia, eu não me dava bem com as meninas. Então, eu falei eu tenho que aprender esse troço aí se não. Aí, eu comecei também a fazer poesia, porque eles faziam, na época o José Santos tinha um negócio que se chamava “Abre Alas”, que era um movimento era um pouco política, pouco e muito literatura. Mas aos sábados, acho que era quinzenal, no Calçadão da Rua Halfeld, que é o centro nervoso, o coração da cidade, as pessoas iam lá, varal de poesia, então, sábado de manhã iam colocar poesia no varal e declamar poesia. E eu ia muito nesses lugares para ouvir e entender o que estava acontecendo e tudo e fui me interessando muito por aquele negócio, me interessava muito aquele movimento, aquela agitação, aquelas coisas de literatura e tudo e eu não sabia absolutamente nada. Aí, eu falei: “Bom eu tenho também que aprender essas coisas.” Aí, eu comecei, eu frequentava muito a biblioteca lá da universidade, eu comprava muita coisa em sebo também. Só que assim, como eu trabalhava e eles não, então, eu não tinha uma vida, digamos assim, intensa do ponto de vista social como eles, andava sempre paralelamente. Então, assim eu já era entre aspas responsáveis, porque eu trabalhava e tudo enquanto eles tinham uma vida mais tranquila, era uma vida mais de política estudantil, embora também tivesse feito um pouquinho de política estudantil, mas eles faziam mais política estudantil, estavam sempre nas festas e tal, e eu não, eu tinha que ficar um pouco mais regrado, porque tinha que ter... Enfim, eu tinha que fazer as minhas coisas, foi nesse momento inclusive que eu descobri a literatura como leitor.
P/1 – Então, nesse momento a gente ia falar um pouco desse primeiro contato com a literatura.
R – Então, como tudo na minha vida e tudo muito por acaso. O meu pai, quando eu tinha mais ou menos, seis, sete anos, aliás, voltando um pouco, o meu pai acabou se ausentando muito, porque ele ficou muito doente, ele ficou com tuberculose e na época a tuberculose era tratado com o apartamento da pessoa ele foi então ficar um ano em Palmira, que é uma cidade perto de Santos Dumont, há 200 e poucos quilômetros de Cataguases. E como a minha mãe não sabia ler e meu irmão e minha irmã não podiam ir com ela, eu aos domingos sai de casa 15 para cinco da manhã ia para Juiz de Fora, de Juiz de Fora a gente pegava um outro ônibus para Belo Horizonte parava no meio do caminho em Santos Dumont e mais ou menos, a gente está lá mais ou menos dez e meia, 11 horas da manhã, esperava um pouquinho, acho que uma hora da tarde abria para visitação eu não podia entrar eu tinha que ficar do lado de fora, aí, a minha mãe entrava conversava com o meu pai. Duas horas ela saia, eu descia com ela e a gente pegava o ônibus de novo, que vinha de Belo Horizonte e chegava em Cataguases nove, dez horas da noite, isso tudo sem almoçar nem nada. A gente não tinha dinheiro para comer nada também no caminho, então, eu me lembro que lá em Juiz de Fora tinha... Eu nunca mais vi isso, tinha uma máquina de fazer pipoca, que as pipocas ficavam voando, nunca tinha visto isso uma coisa louca, eu ficava louco para comer aquelas pipocas. Minha mãe de vez em quando comprava para mim, mas quando o meu pai voltou para casa, o meu pai voltou muito desenganado com a igreja católica. A minha mãe evidentemente uma italiana ‘catoliquérrima’ e tal. Meu pai voltou muito desenganado e meu pai então começou a frequentar, começou, iniciou na verdade igrejas pentecostais, porque na época era uma coisa que era muito pouco visível. Lá em Cataguases eu me lembro que até então a gente sabia da existência da igreja metodista, que conviviam relativamente bem com a igreja católica, mas eram os metodistas, e havia a Assembleia de Deus, que era uma coisa horrível, Nossa Senhora! Dizer que uma pessoa era da Assembleia de Deus era quase xingá-la. Quando o meu pai voltou, ele voltou muito, sei lá, talvez chateado mesmo, não sei, com alguma coisa que aconteceu com ele, aí, ele começou e a primeira igreja que ele frequentou foi uma igreja chamada Igreja do Evangelho Quadrangular. E eu como era o caçula, sempre tinha que acompanhar o meu pai, então, eu fui acompanhar o meu pai, e eu então, frequentava as igrejas com ele. E nessas igrejas pentecostais tem uma coisa que é importante, embora a gente sempre fale mal das igrejas e tal, mas tem uma coisa importante, porque eles têm que ler a bíblia, porque você tem que ler, o diálogo com Deus é direto, não tem intermediação. Então, o meu pai embora sendo semianalfabeto, ele teve que se esforçar para ler a bíblia. E nesse esforço que ele fez para ler a bíblia e todo mundo eu via lá igreja lia a bíblia, eu comecei a achar muito curioso que as pessoas lessem alguma coisa. Até então eu nunca tinha visto alguém lendo nada, lia na escola, mas ler livro eu nunca tinha visto. Com isso eu comecei a achar muito interessante, o meu pai ler a bíblia, ele lia com muita dificuldade, com o tempo ele foi melhorando, mas no começo muita dificuldade, então, o que acontecia? Eu lia para ele, não é que eu lia para ele, eu ajudava ele ler, ele lia muitas passagens que ele não entendia, porque inclusive a linguagem da bíblia é muito difícil, tem aqueles na segunda pessoa do plural, com vocabulário sofisticado e tal, e muita coisa não entendia, muita coisa ele não conseguia ler, então, eu acabava lendo para ele. E com esse negócio de ler para ele eu comecei a me interessar por leitura, não por literatura, mas por leitura. E interessando por leitura eu comecei, por exemplo, quando a gente ia na farmácia eu pegava os almanaques do Biotônico Fontoura, almanaque do Laboratório Catarinense, comecei a ler e achava aquilo muito engraçado. Aí, com o passar do tempo também comecei a me interessar por ler jornal, mas não comprava o jornal, mas desembrulhavam, por exemplo, as coisas no jornal eu lia o jornal, depois com o passar do tempo, eu também eu comecei aonde eu ia e via livros, aí, eu me interessava em olhar livro, então, comecei a me interessar por leitura. Como é que eu entrei no mundo da literatura? Eu entrei no mundo da literatura quando aquele senhor, lá atrás, ele me perguntou onde eu estudava ele falou vou arrumar uma vaga para você no colégio lá, teve esse lado ruim, que foi o lado de me sentir extremamente mal naquele colégio, pessimamente mal, mas teve o lado bom que foi a seguinte: como eu não me adaptei, como eu era o pobre lá, e todo mundo olhava para mim e falava esse cara é o pobre e tal eu comecei a querer sumir dentro do colégio, me tornar invisível, até que um dia eu descobri um lugar maravilhoso, porque nunca tinha ninguém e era um silêncio, nunca entrava ninguém eu comecei a me refugiar nesse lugar, ficava lá durante o intervalo, ficava quietinho lá ninguém me falava nada comigo e tal, que era a biblioteca do colégio. Até que um dia, acho que de tanto me ver entrar e sair lá, a bibliotecária achando talvez eu quisesse um livro e tivesse com vergonha de pedir, um dia eu entrei e ela me chamou, e falou: “Pega esse livro leva para a casa lê e me devolve amanhã” e eu muito tímido não tive coragem de dizer para ela que não queria o livro. Cheguei em casa com aquele negócio estranho e meu pai virou: “O que é isso, menino?”. Eu falei: “A mulher mandou trazer, ler e devolver para ela” ele falou: “Então lê e devolve” (risos). Eu falei: “Está bom” peguei o negócio e li. No dia seguinte, ou dois ou três dias depois, não me lembro, eu devolvi para ela “Graças a Deus, estou livre disso” ela perguntou para mim; “Você leu?” eu falei: “Li” e ela falou: “Que bom! Toma esse aqui leva para casa, lê e devolve”. (risos). Eu falei: “Caramba” aí eu fui para a casa, cheguei lá em casa o meu pai falou: “Que é isso menino?” “É o livro”, “Mas você não leu?” “Li e devolvi até, mas a mulher falou para ler esse” “Então lê e devolve, vai ficar esse troço aqui dentro de casa” (risos). Eu li, cheguei na mulher lá falei: “Graças a Deus”, entreguei para ela e ela falou: “Você leu esse livro também?” eu falei: “Li” e ela deu um sorriso até aqui “Então você tem que ler esse aqui também” “Eu não acredito!”. Bom, aquele ano foi o inferno, eu devolvia livro o meu pai chegava meu pai: “Trouxe mais livro” eu devolvia para ela enfim. Mas com o passar desse negócio eu fui achando engraçado, achando estranho, comecei a perceber, por exemplo, que o mundo era maior do que a minha cidade, coisa que eu não sabia, até essa idade eu tinha 12, 13 anos, eu conhecia quatro cidades, eu conhecia Cataguases, eu conhecia Rodeiro, conhecia Ubá e conhecia Santos Dumont, que era do meu pai, então, conhecia quatro cidades, conhecia Juiz de Fora, conhecia a rodoviária de Juiz de Fora, não vou contar. Então, são quatro cidades que eu conhecia. E quando eu comecei a ler eu comecei a descobrir que existiam um monte de outras cidades, que existiam gente que não falavam a nossa língua, que tinham pessoas com nomes diferentes do nosso, que comiam coisas diferentes, tinham paisagem diferentes e aquilo me encantou. Aí, sim eu comecei com o passar do tempo comecei a falar: “Puxa, eu quero ler esses livros”, só que no final do ano eu sai do colégio e perdi completamente o contato de novo com os livros. Porque não tinha biblioteca pública, se tivesse biblioteca pública eu não sei, não estava dentro do meu universo, eu só vim retomar de verdade o contato com a literatura quando fui para Juiz de Fora e entrei na faculdade. Porque aí, embora eles pedissem para a gente ler uns livros horrorosos que não me interessavam nem um pouco, mas como eu disse eu estava estudando um monte de coisa e aqueles livros para mim, por exemplo, eu lia biologia, geografia, história como romances, eu lia aquilo lá e adorava, passava noites inteiras lendo geografia, física, sei lá, da Rússia achava genial aquilo, história, sei lá, da África, ótimo, mas também com interesse pela poesia, eu acabei também ler literatura e cada vez com mais gosto, eu lia, nossa, lia loucamente. Nesse período foi que na verdade que me deu o clique. Porque quanto mais eu lia literatura, brasileira particularmente eu achava muito estranho porque assim, todo mundo falava que a literatura era a representação da realidade, eu falava que coisa curiosa. A literatura representa a sua realidade, mas a minha realidade, do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos, dos meus colegas não está aqui, não está aqui, não está representada e isso me causava um certo desconforto, mas eu não sabia muito bem o porquê e nem o que é que era. Com o passar do tempo eu fui percebendo, assim, que esse desconforto era exatamente por achar que exista uma grande gama de histórias de pessoas que eu conheci e que não estavam na literatura. E aí, passou pela minha cabeça assim: “Puxa vida, eu podia escrever essas histórias, eu podia me dar essa missão de escrever essas histórias”. Mas quanto mais eu achava que isso era verdade, mas também eu percebia que eu não tinha competência, nem escopo mesmo de fazer isso, eu não conseguia, eu não tinha capacidade, intelectual, não tinha uma formação, enfim, não tinha cultura suficiente para isso nem nada. Aí, deliberadamente, eu pensei: bom, está bom eu vou fazer o seguinte então, eu vou ler, eu vou estudar o máximo que eu puder até o momento que eu achar que eu tenho condições de fazer alguma coisa. E eu não escrevia nem nada nessa época, passei o tempo todo só lendo, lendo e tentando entender, tentando entender, tentando entender. Vim para São Paulo ainda não escrevia nada, sempre com essa ideia de que eu quero escrever um dia.
P/1 – Você tinha isso na cabeça?
R – Tinha, muito claro. Eu sempre tinha muito claro, assim, que um dia vou sentar e escrever, eu não sabia se o que eu escrever tinha alguma serventia, tinha alguma qualidade, tinha algum valor, e nem se eu ia continuar escrevendo, mas eu sabia sim que um dia eu queria sentar e escrever alguma coisa, porque eu achava que era importante dar um depoimento sobre aquele pessoal que eu conheci e que não estava na literatura brasileira. Ou seja, entre 79 e 96 são 17 anos? 17 anos em que eu não escrevi, 17 anos que eu só lia, lia, lia, mas sempre falando eu vou escrever, vou escrever. Até que em 96 eu decidi, agora eu acho que estou pronto para escrever. Aí, em 96 eu trabalhava no jornal eu era editor de política, então, eu trabalhava durante toda semana e tal alguns finais de semana, os fins de semana que eu não trabalhava eu ia para o jornal, nos horários contrários onde o pessoal trabalhava, no sábado eu ia depois de quatro da tarde, quando não tinha ninguém lá e no domingo eu ia às seis da manhã e ficava até uma hora da tarde mais ou menos escrevendo no computador, eu não tinha computador nem nada. Escrevi, escrevi e imprimi aquilo tudo.
P/1 – O que você escrevia já era as histórias daquelas pessoas?
R – Sim. O que eu escrevia era o que foi o meu primeiro livro que é o “História de Remorso e Rancores”, que não está mais na minha bibliografia, porque eu o incorporei ele ao “Inferno Provisório”. Mas as histórias eram as histórias já do “Inferno provisório”, ou seja, história de classe média baixa e tal, em 98 saiu esse primeiro livro. E eu também tinha para mim o seguinte: vou escrever, mas não vou escrever o segundo livro se esse primeiro não for publicado por uma editora comercial e se não tiver uma certa visibilidade, porque eu falei: isso é muito chato, escrever é muito chato, então, não quero, se não for publicado sem eu gastar nada e se não tiver algum tipo de visibilidade eu não vou escrever o segundo livro. Para a minha sorte, eu escrevi esse primeiro livro então, saiu em 98 ele teve uma certa repercussão.
P/1 – Então, como é que você fez para arrumar esta editora?
R – Então, na verdade é assim, eu estou escrevendo em 96.
P/1 – Esse que você está escrevendo não é o “Inferno Provisório”?
R – Esse “Histórias de Remorso e Rancores” que vem a ser depois. Só que eu escrevia lá no jornal, aí, imprimi, imprimi, imprimi, mostrei para o que era o meu subeditor na época, ele me perguntou: “Que tanto você vem no jornal? Você não sai do jornal?” “É porque eu estou escrevendo um livro” “É mesmo? Puxa, deixa eu dar uma olhada.” E eu mostrei para ele, falou: “Cara que legal! Que bacana! Eu nunca tinha lido histórias a respeito desse tipo de personagem na literatura brasileira, já vi na literatura russa, francesa, mas não literatura brasileira” e ele falou: “Olha, se você quiser eu tenho um computador em casa, você vai para a minha casa, você vai lá, escreve lá, você passa isso tudo a limpo”. Porque eu não tinha como gravar, isso não era computador isso era uma rede. Então, eu imprimia. Então, eu fui para casa dele passei tudo aquilo realmente para um computador e passei para um disquete e tudo. No segundo momento era: “Bom agora o que faço?”. Eu não conhecia ninguém, ninguém no meio literário, ninguém, ninguém. Eu falei: bom! Vou fazer por minha conta, aí o que eu fiz? Peguei, lá no jornal mesmo eu xeroquei dez cópias, coloquei nos Correios e mandei para dez editoras. E fiquei: bom! Agora posso deitar agora, vão descobrir o gênio da literatura brasileira, (risos) só que passou o tempo e ninguém nem me respondeu, nada, nem para falar não me interessa, não quero, não tenho interesse, nada, nada. Aí, eu estava muito frustrado eu falei: “Bom! Esse negócio não serve para mim e tal”. Mas aí ei fiz uma segunda e última tentativa, peguei mais dez cópias e mandei para outras dez editoras de novo. E nessa segunda vez aí aconteceu da Editora Boitempo daqui de São Paulo me ligou falando: “Olha! Temos interesse em publicar o livro e tal”. Eu falei: “Puxa, eu fiquei muito tocado”. Aí, o livro saiu em 98, o livro recebeu muito boas resenhas na imprensa e, aí, ela ficou muito entusiasmada: “Você tem outros livros, vamos publicar outro livro. “Eu tenho” não tinha (risos). Sai correndo, escrevi outras histórias que também chamam “Os Sobreviventes”, que também estão incorporados no “Inferno Provisório”. Eu vou explicar daqui a pouco porque que eles livros morreram, aí, esse livro acabou ganhando o prêmio Casa das Américas. Aí, ela falou: “Então, vamos publicar” Esse saiu em 2000, “Vamos publicar outro livro, mas agora quero um romance”. Eu falei: “caramba! Eu não sei escrever um romance”, “Mas é um romance, você não tem um romance pronto?” Eu falei: “Ah, talvez eu tenha”. Não tinha nada! Nem sabia como escrever. (risos) Aí, aconteceu: “Agora tenho que escrever um romance, mas como é que eu vou escrever um romance?”. Aí, está porque esse dois livros morreram, eu tinha muito claro que as histórias que eu estava contado nos dois livros eram as histórias que eu queria contar, mas a forma não me agradava, ainda não era aquilo, tinha alguma coisa que não estava resolvido não sei o que era, na época eu não sabia, tinha alguma coisa errada. Retrospectivamente eu entendo o que é, quer dizer, eu na minha cabeça tinha claro que para escrever sobre aquele ambiente, sobre aquele universo eu tinha que escrever de uma maneira diferente formalmente, porque já tinha estudado isso muito, o romance, esse romance que a gente conhece ele é, ele nasce como uma forma de expressão da burguesia, contra a forma de expressão da aristocracia no século XVIII. Eu achava que seria um paradoxo escrever sobre a opressão da burguesia usando a forma da burguesia, não faz sentido isso, mas eu não tinha a menor ideia de como resolver esse problema e nos últimos talvez cinco anos desses 17 que eu falei, talvez o meu grande impasse era esse: como escrever isso sem usar o romance, como romance. Eu não conseguia entender. Eu pensava, pensava, não conseguia entender. Aí, para não ficar pior ainda eu falei tudo bem eu vou escrever histórias e com o tempo eu vou tentando descobrir qual é a pegada, quando a minha editora me pediu um romance, eu me vi nesse impasse e, aí, eu me lembrei que certa feita eu estava numa bienal de artes aqui em São Paulo e eu passei na hora, eu estava indo embora, já estava saindo, quando na saída eu vi uma instalação. Essa instalação era simplesmente... o artista chama-se Roberto Evangelista, ele pegou calçados usados, tênis, sapato, sandálias, chinelos de dedo, usados e colocou naquele cantinho. Eu passei assim eu olhei por ali e pensei: “Que coisa! Qualquer coisa agora é arte, imagina! O cara pegou um monte de sapato jogou aqui e arte rararara”. Aí eu falei: “Não espera seu imbecil, quem é você para falar um negócio desse. Aqui tem um curador que conhece muito mais de arte que você e achou que isso aqui é arte. Então, agora você volta lá e fica olhando aquilo lá até entender essa porcaria aqui”. Aí, eu fui lá e fiquei olhando aquele negócio, não entendi. O que tem a ver isso? Não consegui entender, não consegui entender, mas eu fiquei lá, fiquei lá, aí, eu acho que meu cérebro de tanto ficar de saco cheio teve uma solução. Eu falei: “Ah! Já sei o que é. Isso aí é o seguinte o cara teve... o que importa ali é a história que está impregnando nesses calçados, quer dizer, esses calçados andaram, ficaram empoeirados, eles foram pressionados por suor de alguém, ou seja, eles contam uma história, eles juntos todos contam uma história muito maior, é isso ok”. E quando, então, me foi proposta essa coisa do romance, eu falei: “Puxa vida, eu podia usar o mesmo método”, quer dizer, não usar a personagem e tudo, mas tentar construir essa história fazendo com que o leitor ele mesmo que construísse as histórias, dá para eles alguns indícios, algumas coisas e ele que construísse a história. Eu falei é isso que eu vou fazer, e aí então eu fui escrever “Eles Eram Muitos Cavalos”. Quando, então, escrevendo “Eles Eram Muitos Cavalos” eu fui construindo aquilo com pedaços e restos de histórias, pedaços de coisas, restos de coisas, são ruínas mesmo, são pequenos indícios de São Paulo e quando eu estava montando aquilo ali é que eu fui compreendendo eu falei: “Claro! É isso que eu tenho que fazer no ‘Inferno Provisório’”. É isso, quer dizer, não era contar uma história linear nem nada, era simplesmente colocar esses personagens interagindo, é o leitor que tem que fazer esta história. Aí, então, foi nesse momento que eu tive o clique, eu falei: “Claro! Eu tenho que escrever alguma coisa longa,” porque ele tem que abarcar um período grande e eu ainda não sabia quanto tempo, eu não sabia qual tempo ele ia abranger, mas eu sabia que ia abranger um tempo grande, a primeira coisa que fiz depois que publiquei “Eles Eram Muitos Cavalos” foi pegar esses dois primeiros livros, não vai sair mais, nunca mais, então eu passei, praticamente, quatro anos entre 2001 e 2005 rearrumando.
P/1 – Esses dois para?
R – Eles viraram assim, o primeiro livro com muitas mudanças, ele é o segundo da série e o segundo livro “Os Sobreviventes” é o primeiro da série. No dia que eu propus isso a minha editora, quero fazer cinco romances sobre esse assunto, evidentemente ela quase caiu para trás, cadê os livros? Eu não tenho nada ainda, “Mas como é que eu posso comprar uma coisa”, eu falei: “É uma aposta que você vai fazer”. Na época era a Luciana Villas Boas na Record e ela nesse ponto ela foi muito correta comigo, ela falou assim: “Ok, está bom, cinco livros?” “Cinco livros” “De quantas páginas dá mais ou menos?”, “Umas mil páginas” e ela falou: “Quanto tempo você vai levar para escrever isso?” “Não tenho a menor ideia, não tenho ideia” falei para ela: “Eu gostaria que isso ficasse pronto em cinco anos, mas eu não posso garantir para você” acabou sendo em seis anos, quer dizer, entre sair o primeiro e o último foram seis anos, e mesmo assim ela bancou. Então, a partir de 2005 começaram a sair os volumes e até 2011 quando saiu o último, que ele abarca então... É uma cronologia um tanto quanto confusa, mas intencionalmente confusa, mas ou menos ela vai de 1950 a 2000.
P/1 – Que são quais livros?
R – “Mamma, Son Tanto Felice”, mas ou menos a década de 50 é o êxodo rural. Aí, na década de 60 tem “O Mundo Inimigo”, que é quando esses personagens, não é assim, mas mais ou menos, esses personagens migram para Cataguases, uma pequena cidade industrial. “Vista Parcial da Noite” que é essa pequena comunidade que já tem os filhos, então, na década de 70 já tem os filhos que estão indo para São Paulo, para o Rio de Janeiro e tem a questão da ditadura militar. “O Livro das Impossibilidades”, que abarca mais ou menos a década de 80, que é então já Rio e São Paulo, quando esses personagens já estão posicionados em Rio e São Paulo e, finalmente, “Domingos Sem Deus”, que é a década de 90, que é um pouco retomando esse período. E a série inteira termina, ela começa a primeira história do primeiro livro chama-se “uma fábula”, que é quase que uma espécie de inauguração de um mundo, porque o personagem ele cria um mundo para ele, que é um mundo rural, ele vai para o meio de uma floresta, não é uma floresta, é um bosque e ele constrói uma casa, constrói uma pequena fazenda, então é uma inauguração de um mundo e termina exatamente em dezembro de 2002, que é o ano em que o Lula é eleito presidente da República, numa história chamada “Outra fábula”, então elas se conversam, “Uma fábula”, “Outra fábula”, que é eles estão na corrida de São Silvestre, e é o ano de 2002, quando eu acho que é um momento em que todas as pessoas todas as pessoas estão ali correndo na mesma direção, uns estão disputando alguma coisa, a maioria não está disputando nada, estão simplesmente correndo na mesma direção, que era uma espécie de metáfora daquele momento que eu achava, por isso que eu não vou mais voltar nesse universo literariamente, porque ali para mim termina, exatamente ali eu não sei o que vai acontecer dali para a frente. Então, ele termina no momento que alguma coisa acontece, se é boa ou ruim eu não sei.
P/1 – Isso nesses seis anos você ficou fazendo, de 2005 a 2011?
R – Na verdade de 2001 a 2011, porque 2005 começam a sair, mas antes de sair esses quatros anos eu já tinha mais ou menos, aí, eu já sabia que iam ser cinco volumes, já sabia mais ou menos o período que seria abarcava, já tinha reescrito os dois primeiros livros, e já tinha quase encaminhado o terceiro volume, esses 2002 a 2011, então são nove anos de escrita.
P/1 – Na verdade essa sua conversa com a Luciana foi em?
R – 2003.
P/2 – Posso voltar um pouquinho? Quando você se mudou para São Paulo?
R – Eu vim para São Paulo em 1990.
P/2 – Como foi essa vinda?
R – Foi uma vinda engraçada, porque eu vim morar no Tietê, na Rodoviária do Tietê, porque eu não conhecia ninguém aqui e não sabia, enfim, não tinha nenhum contato aqui nem nada, embora tivesse amigos aqui e tudo, mas esse período foi um período muito conturbado, porque em 1983 eu me casei lá em Juiz de Fora, na época a Edite ela era estudante de medicina, a gente ficou junto durante um período e tudo, só que aí que nesse jornal Diário Mercantil eu acabei liderando uma greve, aí, eles me demitiram e outros jornais, evidentemente, não queriam que eu trabalhasse lá porque eu era um grevista, aí, sai de Juiz de Fora e fui morar em Alfenas, no Sul de Minas. Lá em Alfenas eu fiquei um ano, eu montei para um político de lá um jornal, uma rádio e comecei a montar uma TV, mas no final do ano houve uma greve e eu também participei da greve, então, fui demitido de novo. Então, quando então entra o ano de 1987 me vi na circunstância de não saber para onde ia. Aí, voltei para Juiz de Fora e fui trabalhar como gerente de uma lanchonete. Aí, eu trabalhei como gerente de uma lanchonete, aí, depois eu cansei não dava muito certo, mas eu fiquei um ano e meio nisso. Aí, fui trabalhar vendendo livros de casa em casa, não eram livros de literatura, eram livros científicos, livros de medicina, engenharia era para a faculdade na verdade, universidade. Até que quando chegou no final de 89, nessa época já tinha meu casamento já tinha ido embora. A Edite já tinha ido fazer residência em Belo Horizonte.
P/1 – Vocês tinham separados?
R – Tinha separado, ela foi para Belo Horizonte e o Felipe, que é o nosso filho, ele foi morar com os avós em Ubá. Depois ela voltou também para Ubá, ela mora em Ubá agora. Então, eu me vi na contingência de sair, de tentar a minha vida em algum lugar. Aí, eu vim para São Paulo, cheguei aqui e logo, foi até rápido, eu arrumei emprego rápido no Jornal da Tarde, do Estadão. Lá no jornal eu comecei a trabalhar com o Celso Ming fazendo “Confira o seu dinheiro”, e era curiosíssimo, porque eu trabalhava fazendo cobertura do mercado de ouro e dólar e morava no Tietê, na Rodoviária do Tietê.
P/1 – Mas você morava na rodoviária? Como você morava na rodoviária?
R – Eu não tinha dinheiro no primeiro mês para ir para uma pensão nem nada. Então, eu morava ali assim de segunda para terça, terça para quarta, quarta para quinta e quinta para sexta. Sexta à noite eu ia para Cataguases, lavar roupa e tal e voltava domingo para segunda. Então, eu morava quatro noites no Tietê, dormia quatro noites no Tietê.
P/1 – Mas você dormia aonde? No chão?
R – Dormia na cadeira, porque lá tinha lugar para tomar banho, tem ainda tem. Só que evidentemente que Rodoviária do Tietê naquela época não é a Rodoviária do Tietê de hoje, que é um shopping center, na época não era um shopping center. Nas primeiras noites que eu fiquei lá um policial, eu estava dormindo ele veio deu um pontapé assim no meu pé disse: “Não pode dormir aqui.” Olhei para ele e falei para ele: “Companheiro é o seguinte” eu tinha uma mala, uma bolsa que eu enfiava aqui na minha perna, aí, falei para ele: “Cara, é o seguinte eu estou vindo para cá para tentar a vida aqui e se eu não dormir aqui eu vou dormir na porta da rodoviária, e ali você sabe é perigoso para caramba, não sou bandido nem nada”. Na hora ele falou: “Cara, desculpa pode ficar aqui eu vou tomar conta de você”. Eu passei um mês lá e um mês ele tomou conta de mim. Tanto que depois do primeiro salário que eu recebi eu fui e dei um presente para ele, claro, que eu não falei para ele o que eu estava fazendo. Ele perguntou para mim: “E aí você arrumou um emprego?” “Arrumei” “De quê?” eu ia falar jornalista? (risos) eu falei com ele: “Não, eu arrumei o emprego de trabalhar com umas coisas aí, mas tudo honesto, graças a Deus e tal” aí eu dei um presente para ele lá.
P/1 – Mas deixa eu entender melhor, nesse mês você já tinha o emprego?
R – Tinha, mas não recebi salário, você só recebia o salário no final do primeiro mês.
P/1 – Então, você ia para o jornal, passava o dia no jornal e comia como?
R – No jornal, eles tinham os tiquetes lá.
P/1 – E voltava para casa como? Com que dinheiro?
R – Para ir e voltar ali era perto, inclusive ia de ônibus, esse dinheiro eu tinha, não tinha dinheiro para ir numa pensão e pagar um mês antes, antecipado.
P/1 – Você não tinha amigos da universidade que estavam aqui?
R – Eu até tinha, mas não queria procurá-los, inclusive porque o que é que aconteceu? Eu fui muito próximo de todos eles no período de faculdade, mas mesmo no período de faculdade eu já trabalhava e eles não. Com o passar do tempo, nós fomos nos distanciando, eu fui trabalhar com mais seriedade no jornal, e lá eu fui demitido, fui para Alfenas, voltei trabalhar na lanchonete e tal, então, eram mundos muito a parte. Então, eu perdi completamente o contato com todo mundo, todo mundo.
P/1 – Você se formou em?
R – 1982.
P/1 – Você se formou e aí que você começou a fazer essa coisa de...
R – Eu me formei, quer dizer, quando eu me formei eu já trabalhava no jornal, e eu fiquei no jornal até 1985, quando fui demitido. Aí, fui para Alfenas, voltei, demitido lá também, aí, fiquei trabalhando como gerente de lanchonete, vendo livro etc. e tal até 1989, quando finalmente eu vim para São Paulo, eu vim assim no final de 1989 e começo de 1990.
P/2 – Você já conhecia São Paulo?
R – Não, conhecia de ouvir falar, eu tinha vindo aqui, mas só de passagem.
P/2 – Qual foi chegar? Que impressão você teve da cidade?
R – Olha! A minha impressão foi assim, quando eu estava na faculdade eu morava na república teve um concurso de contos aqui em Araraquara e eu mandei. Na época eu estava começando essa experiência de poesia, vou escrever um conto, porque falavam lá que dava um dinheirinho e tal e, aí, eu mandei um conto para Araraquara, que era um concurso chamado “Ignácio Loyola Brandão”. Aí, um belo dia eu recebi uma carta na minha casa dizendo que eu tinha ganhado o concurso, eu falei: “Caramba, que legal” só que eu tinha até Araraquara para receber, eu não tinha a menor ideia onde que ficava Araraquara, e aí eu peguei um atlas e vi lá que tinha um trem que saia de Guaxupé no Sul de Minas e ia até Araraquara, eu faço isso vou até Guaxupé e de lá eu pego um trem e vou até lá e eu não tinha dinheiro para fazer isso. Aí, tinha um menino que eu conhecia o Rafael, o Rafael trabalhava numa livraria e o Rafael tinha dinheiro, quer dizer ele tinha mais de dinheiro que eu. Eu falei: “Rafael, eu tenho que ir até Araraquara” e ele: “Pô, Ignácio Loyola Brandão será que ele vai entregar o prêmio?” eu falei: “Eu acho que vai, porque é o nome dele” “Eu queria tanto conhecer o Loyola Brandão eu vou com você” maravilha, ele falou assim: “Eu tenho uma grana aqui, quando você chegar lá você pega o seu dinheiro e você me paga” “Ótimo, então vamos”. Vamos nós para Guaxupé, putz, só para ir para Guaxupé foi uma viagem, um frio absurdo, quando chegamos em Guaxupé descobrimos que existiu mesmo uma linha de trem até Araraquara, só que ela tinha sido desativada há uns 30 anos, (risos) estava no atlas, mas já tinha sido desativada no mínimo uns 30 anos e como é que chega? Aí, foi outra viagem até Araraquara, só que chegamos em Araraquara, aliás tem uma passagem de Araraquara, que até hoje quando eu conto isso fico vermelho, é vergonhoso, ele me colocaram num hotel chamado Uirapuru, a pouco tempo eu fui a Araraquara, fui nesse hotel, uma das passagens mais vergonhosas da minha vida, e me colocaram lá e eu falei estou indo com um amigo e tal, não tem problema, nós chegamos lá eu falei com o rapaz: “Ele pode ficar no quarto comigo?” “Mas é quarto de solteiro”, eu falei: “Ele dorme no chão” e tal e o cara ficou com tanta pena da gente que deixou o Rafael no chão, até aí tudo bem não era vergonhoso, acordamos no dia seguinte fomos tomar o café da manhã, eu nunca tinha ido num hotel, nunca, primeira vez que eu fui num hotel, aí, eu chego lá com aquela quantidade de coisa no café da manhã lá, bom! Vamos comer, sentamos lá, olha, eu nunca comi tanto na minha vida, eu comi tudo que tinha lá, tudo, tudo quanto é fruta, tudo, tudo, comemos, comemos, comemos, e ficamos famosos no hotel, porque o cara quando nós saímos, voltamos lá e todo mundo olhava para a gente “Aqueles ali que comem de tudo”. Aí, eu conheci o Loyola, e eu acho que o Loyola ficou tão condoído com a nossa história que ele falou: “Vocês não voltam por esse caminho não, porque não faz sentido, vocês voltem de São Paulo, eu vou voltar para São Paulo de carro e eu dou uma carona para vocês”. Loyola não dirige, mas estava com a namorada que dirigia, aí, nós viemos até São Paulo, foi a segunda vez que eu vim a São Paulo, aí, nós viemos até aqui eu me lembro que o Loyola com muita boa vontade ele nos deixou perto de uma estação de metrô e falou: “É só pegar esse metrô e vocês vão para a rodoviária”. E nós dois tão capiaus, mas tão capiaus, que até hoje me lembro, era a estação Paraíso, eu me lembro ficou na minha cabeça, estação Paraíso era só pegar e descer, e nós não conseguimos fazer isso, não conseguimos, metrô? Imagina? Nós não entrando num metrô? Não sabíamos nem o que era o metrô, ia entrar no metrô? De jeito nenhum, então, assim o que nós fizemos? Nós fomos andando procurando um ônibus que passasse na rodoviária, até que alguém indicou ônibus, porque ônibus a gente conhecia. Enfim, ao invés de entrar no metrô nós pegamos um ônibus, demoramos para caramba para chegar, mas chegamos na rodoviária e fomos embora, essa foi a primeira vez, então, não tenho nenhuma impressão sobre essa segunda vez. A primeira vez foi uns anos antes, isso quando eu tinha 18 anos mais ou menos, nos anos antes quando eu tinha uns 15, 16 anos o meu pai, sempre o meu pai, resolveu que tinha uma madrinha da minha irmã tinha sido vizinha do meu pai e minha mãe quando eles moravam em Cataguases em algum lugar lá e essa mulher ela ia sempre nas férias ela ia para Cataguases e levava as netas dela, e ela era muito amiga da minha mãe, tanto que ela era madrinha da minha irmã, e ela deve ter falado para o meu pai por falar assim: “Sebastião um dia o senhor podia ir na minha casa lá em São Paulo” e meu pai coitado, assim, ele resolveu ir só que quem ia com ele? Sempre eu claro! E aí meu pai vem comigo, não sei, acho que ele nem chegou a avisá-la de que ele estava vindo, só sei que ela morava na Saúde, não sei como que nós conseguimos chegar na Saúde, e chegamos na Saúde ela ficou muito surpresa com a nossa chegada e ela foi muito clara: “Sebastião, desculpe eu não tenho como alojar vocês dois aqui, você pode deixar o menino” “Não eu vou para a casa do Tito”, que é esse que eu falei que tinha três agregados nos Nalon e um deles veio para São Paulo, esse Tito, que morava no Jardim Peri. Ele falou: “Eu vou lá para o Jardim Peri” meu pai acabou chegando no Jardim Peri e eu fiquei sozinho nessa casa lá. De novo com pessoas que não tinham nada a ver comigo, e claramente eles me bulizavam, claro, porque imagina eu moleque bobo, cheio de espinha, bobo branco e eles lá tinham um menino que era irmão, que eram dois irmãos, eu fiquei apaixonado pela menina, mas ela nunca soube disso, e o rapaz ele era completamente da pá-virada, ele me levava para umas quebradas, que eu ficava assim. O tempo todo assim eles falavam com todo mundo assim, eu me lembro, ele falava assim: “Esse é meio primo. Ele é meio esquisito, mas ele é gente boa” porque eu não falava. Eles fumavam maconha, imagina eu? Nunca tinha ouvido falar em maconha, eu ficava parado duro lá. Enfim, essa impressão que eu tinha de São Paulo até então, duas vezes que eu tinha vindo aqui nessas duas circunstâncias.
P/2 – E quando você veio morar aqui, você se correspondia com a sua família? Vocês se falavam como?
R – Sim. Eu tinha sempre contato com a minha mãe, porque eu precisava, eu e ela nunca tivemos relação de ficar contando a minha vida para ela de jeito nenhum, nem com ela e nem com ninguém, mas eu sempre dava notícias, por telefone, lá em casa não tinha telefone, mas tinha um orelhão perto, então eu sempre falava com ela pelo orelhão, ligava alguém atendia e chamava, então, eu sempre mantinha contato com ela.
P/2 – Com seus irmãos?
R – Não, meu irmão nessa época já tinha morrido e tinha minha irmã que morava do lado da casa dela, então era sempre essa relação com a minha mãe e com a minha irmã também de alguma maneira. Aí, na época eu me casei, logo depois me casei com a mãe da Helena, minha filha. Bom, depois que eu sai da Rodoviária do Tietê as coisas amainaram um pouco, eu fui morar um temporada aqui na Pompéia com o Chico Pimenta, que é um meu amigo. Depois eu sai, me casei e fui morar nas Perdizes, aí eu sempre morei nas Perdizes.
P/1 – Eu queria retomar um pouco agora aquela história do livro, que é um livro todo de cartas.
P/2 – ‘De Mim Já nem Se Lembra’.
R – ‘De Mim Já Nem Se Lembra’.
P/1 – Esse livro, antes de você contar para a gente um pouco como você fez esse livro das cartas, ele tem uma base nos seus irmãos também. Então, eu queria voltar lá para a origem contar um pouco dentro desse contexto todo, quem eram seus irmãos? O que você lembra deles? Para a gente chegar no livro.
R – Bom, então vamos, o meu irmão era o mais velho da família José Célio ele acabou, com a fragilidade, digamos assim, do meu pai ele acabou assumindo o papel masculino dentro de casa. Isso inclusive provocou um certo desacerto dentro da minha casa, porque o fato dele, não só ele assumiu, ele foi guindado também, ele foi guindado e assumiu a condição de figura masculina dentro de casa, porque ele trabalhava, ele tinha dinheiro, tinha um emprego fixo, ele tinha um bom emprego e isso um pouco eclipsa meu pai, a figura do meu pai, porque era um homem mais fraco do ponto de vista da dinâmica, e ao mesmo tempo faz com que assumindo esse papel ele sintonize como uma espécie de chefe mesmo, então ele começa a mandar dentro de casa.
P/1 – Isso você está falando a partir de que idade dele?
R – Ele com 16, 17 anos, que ele já trabalhava na fábrica, ele faz tornearia mecânica e assume.
P/1 – Ele fez Senai?
R – Ele já trabalhava na fábrica como tecelão, aí faz o Senai, então ele é guindado para uma posição melhor como torneiro mecânico dentro da fábrica.
P/1 – Isso com 16 anos?
R – Dezesseis para 17. Ele tem uma carreira muito rápida dentro da fábrica. Com uns 19, 20 anos ele é levado para o Rio de Janeiro para fazer um curso de técnico têxtil lá no Senai também, mas aí no nível mais, porque o torneiro mecânico não necessariamente não trabalha em fábrica têxtil, então, como torneiro mecânico ele foi para o Rio aí ele fez esse curso lá e depois que ele terminou esse curso, aí, ele foi convidado para vir para São Paulo, só que ele já era o chefe da casa. Aí, ele é convidado para vir para São Paulo, então, ele vem trabalhar em Diadema. Aí, ele trabalha em Diadema na Conforja durante um ano, só que minha mãe era uma figura muito forte, e ele não aguentou ficar longe da minha mãe, e ele volta para Cataguases, se casa, só que logo em seguida com 26 anos ele morre, quando já tinha assumido um cargo importante na fábrica. Ele tinha assumido um cargo de encarregado geral, só que aí ele morre, quando estava no auge, começando uma carreira muito importante na fábrica. E a minha irmã.
P/1 – Ele morreu do que?
R – Morreu de uma maneira estúpida. Aliás, a morte dele na verdade também é um marco de várias coisas na minha família. Nessa época o meu pai, quando nós morávamos lá nesse cortiço o meu pai, então com muito sacrifício e tudo, sempre com muito sacrifico, meu pai conseguiu comprar um terreno num bairro mais distante chamado Paraíso. Era um lugar que não tinha calçamento, não tinha água, não tinha luz, não tinha nada, nada, nada. Com o sistema de mutirão nós construímos uma casa e aí é graças ao meu pai mesmo, minha mãe, claro, que bancava, mas meu pai que tomou a iniciativa. Enfim, construímos nossa casa.
P/1 – Isso você tinha?
R – Eu estava com 11 anos, tanto que foi também...
P/1 – E seu irmão com 20?
R – Meu irmão tinha nessa época então 20, exato. Nessa época sim, aí o que é que aconteceu? O meu irmão, mais ou menos quando ele voltou de Diadema ele se casou e para se casar ele quis construir uma casa para ele. Só que embora tivesse com uma situação razoável na fábrica, ele não tinha um dinheiro assim para chegar e comprar a casa. Ele então pediu para o meu pai, e o meu pai autorizou, a minha mãe fez que o meu pai autorizasse na verdade, que ele então pegasse a casa, passasse para o nome dele, porque aí ele hipotecou a casa e com o dinheiro da hipoteca então ele construiu uma casa para ele do lado. E ele era muito honesto, e ele falou: “Eu vou pagar a casa e depois eu compro um terreno para cada um dos irmãos, porque eles não vão perder nada”. Só que o que aconteceu? Tinha dois pinheiros na frente da casa, e os pinheiros começaram a crescer, crescer, crescer e começaram a esbarrar na fiação elétrica, e aí, num sábado no fim da tarde ele resolveu cortar um dos galhos do pinheiro, e ele subiu cortou o galho do pinheiro, só que o pinheiro caiu em cima de um fio de alta tensão e aí passou toda para ele e ele morreu com 22 mil volts, eletrocutado. Enfim, foi uma tragédia, nessa época eu estava em Juiz de Fora, foi o primeiro ano que eu estava em Juiz de Fora, em 78, eu digo que foi um marco por quê? Eu estava fora de casa, eu sentia muita falta da minha família, com a morte dele eu sentia mais ainda, porque ele na verdade ocupou um pouco o papel do meu pai, e minha mãe se acabou nessa história, ela nunca mais foi a mesma certamente ela virou uma outra pessoa, completamente diferente do que ela era, a minha cunhada, mal orientada pelos pais, fez o quê? O terreno estava no nome do meu irmão, então ela pôs meus pais para fora da casa, meus pais ficaram sem nada, minha irmã também sem nada, porque na verdade ela tinha direito, eu também tinha direito lá. Então, foi uma fase nova na nossa vida, assim, em sete anos nos saímos do cortiço, subimos um pouquinho e caiu tudo de novo, só que eu já não estava em Cataguases mais nessa época.
P/1 – Então, vamos retomar, ele morreu na hora?
R – Ele morreu na hora, aí, meus pais ficaram lá um tempo ainda, mas a minha cunhada fez o favor de pô-los para fora, eles foram morar então, a minha irmã nessa época ela já tinha se casado e morava numa casa que ela comprou tipo BNH, era CDH eu acho, num bairro chamado Taquara Preta e por uma sorte incrível na época em que estava acontecendo isso a casa do lado da casa dela, do lado impressionante estava desocupada e meu pai e minha mãe foram morar nessa casa, que era na verdade não era uma casa, eram dois cômodos. Enfim, eles foram lá compraram lá e acabaram ficando por lá, eles assumiram as dívidas, eram aquelas contratos de gaveta, aí, depois meu pai ampliou um pouco a casa, meu pai e minha mãe ampliaram um pouco a casa e tal. Era tão colado que eles tinham um quintal em comum, olha que loucura, parece piada, estava desocupada exatamente a casa do lado dela, tinha um quintal em comum, não precisava nem de fazer nada. E a minha irmã com 15 anos mais ou menos, ela meio que estava de saco cheio da minha família, aquela coisa, ela queria porque queria casar, e ela se revoltou muito com o fato do meu irmão ter assumido esse papel masculino dentro de casa, ela trabalhava na fábrica, ela era operária, ela era tecelã. Então eles começaram a ter muita briga dentro de casa os dois, porque ela não se conformava que o meu irmão assumisse esse papel, então ela acabou forçando muito para sair de casa, ela forçou, forçou até arrumar um namorado, e logo depois ela se casou com ele, quando tinha 17 anos e se casou, enfim, foi viver a vida dela. Na época, quando as mulheres se casavam as fábricas mandavam embora, demitiam as mulheres, por causa da gravidez e tal, então ela ficou sem trabalhar, aí, ela foi então fazer um monte de coisa. Virou manicure, depois fazia umas coisinhas para vender, e ficou tentando levar a vida assim. Até hoje ela é merendeira de uma escola municipal, quer dizer, ela acabou meio, enfim, ela acabou escolhendo um caminho, que foi um caminho mais problemático para ela.
P/1 – Ela brigava com seu irmão ou com seus pais?
R – A minha mãe não tinha como brigar com ela, o meu pai não tinha essa importância dentro de casa para alguém brigar com ele, então ela brigava com o meu irmão.
P/1 – E para você, o seu irmão qual o papel que ele exerceu?
R – Olha, na verdade, assim, eu nunca tive muito problema com isso, porque eu diferenciava muito claramente quem era o meu pai e quem era meu irmão. Inclusive porque, assim, meu irmão era uma pessoa extremamente honesta, extremamente correta, embora extremamente autoritário. Eu acho que o fato dele ter assumido esse papel dentro de casa tornou-o ainda mais autoritário e talvez isso que tenha tido problema maior com a minha irmã tenha sido isso, porque a minha irmã, era uma menina, ela gostava de algumas coisas que o meu irmão, por exemplo, achava que uma menina não podia gostar. Ela era namoradeira, imagina naquela época eram namoricos, mas ele achava que isso não era bom, então, ele perseguia muito ela por conta dos namoricos dela, ela odiava trabalhar na fábrica, ela se achava muito humilhada de trabalhar na fábrica, porque uma operária dentro da sociedade era a escória, só não era pior do que ser prostituta, mas era horrível ser operária, nós operários éramos tratados como gente de terceira, quarta classe, e ela odiava ser operária, ela queria ser outra pessoa, o meu irmão brigava com ela também por causa disso porque ele não achava que ser operária era um problema, mas ela achava. Então, eu não tinha problemas com ele, nunca tive, inclusive porque a minha relação com ele era uma relação de proteção, ele me protegia muito embora ele fosse extremamente, com eu disse, autoritário com todo mundo, inclusive comigo, mas ele era muito protetor ao mesmo tempo, e ele de alguma maneira admirava que eu fosse uma pessoa que me esforçava. As minhas coisas foram todas assim, nunca as coisas foram fáceis, mas ao mesmo tempo todas as coisas foram oportunidades que eu tive, por exemplo, quando eu fui fazer a prova do Senai, eu fiz inscrição, aí, eu fui lá fiz inscrição e tudo, aí, não tinha ainda a data da prova, “Você tem que voltar aqui no dia tal para saber a data da prova” nesse interim eu tinha uns colegas de escola que resolveram que iam fazer prova no colégio militar em Belo Horizonte, eu nem sabia o que era colégio militar, menos ainda o que era Belo Horizonte, mas um dos meninos era um menino bem mais velho que a gente e ele falou com a minha mãe: “Lá é legal, é bom” aí meu pai falou: “Se é bom vai e faz a prova no colégio militar” eu falei: “Então tá” fui lá no Senai no dia marcado, perguntei para ele se sabia quando seria a prova e ele falou: “Não sabemos ainda quando vai ser a prova, mas é logo, vai ser dentro de poucos dias” “Está bom” eu voltei para casa, aí, nós pegamos um ônibus e fomos para Belo Horizonte fazer a prova do colégio militar, só que era assim, era praticamente uma semana que a gente ficou lá, porque tinha prova, depois passava um dia tinha outra prova e se você passasse nas duas primeiras provas no outro dia eles davam o resultado, você podia fazer outra prova, era uma coisa meio confusa, sei que ficamos uma semana lá, eu volto para Cataguases e tinha até esquecido do Senai, “Tenho que lá no Senai ver quando vai ser a prova” aí cheguei lá no Senai aí perguntei para um rapaz quando ia ser a prova, ele falou: “A prova foi ontem” eu falei: “Você está brincando?” “Não” acho que eu olhei para ele com uma cara tão assim, falei: “Não pode, não pode” eu tinha 15 anos, 15 para 16, ele falou: “Não, já foi mesmo” eu falei: “Não pode ser, puxa eu vim aqui” “Não, já foi a prova” “eu tenho que fazer essa prova” “o que é que posso fazer?” e ele me olhava assim até com um pouco de deboche, um pouco de pena, aí ele virou para mim e aí sim de deboche e falou assim: “Está vendo aquele senhor que está passando ali agora ele é o diretor, fala com ele” eu nem tive dúvida eu fui atrás era Doutor Hélio Guimarães, aí, eu fui atrás dele, ele entrou na sala dele eu fiquei na porta e ele falou: “O que é que foi menino?” aí eu expliquei para ele isso, “Eu preciso fazer essa prova” “Meu filho, a prova foi ontem não posso dar essa prova para você” “Tem que dar, eu preciso dessa prova” “Não posso fazer nada” “O senhor não está entendendo, eu preciso fazer essa prova” acho que ele ficou com tanta pena de mim e ao mesmo tempo para despachar “Está bom, você vai fazer as duas provas agora, quer?” “Eu faço” “Então vem cá” foi lá numa sala lá falou com o Alcino, que era um professor lá, “Alcino, é o seguinte esse menino perdeu a prova e veio fazer as duas provas agora as duas juntas, você tem duas horas para fazer a prova toda” ele me colocou sentado lá no final eu fiz as duas provas, entreguei todo feliz, eu cheguei em casa e falei com o meu pai, “E aí a prova?” “Já fiz” não falei com eles que tinha perdido, já fiz e tal “Está bom”, eu falei: bom, fez o que tinha que fazer, aí, sei lá, acho que ele falou: “Volta daqui não sei quantos dias” eu voltei lá na maior ingenuidade, imagina! Não ia passar evidentemente, acho que ele fez aquilo só por desencargo de consciência, aí, eu cheguei lá e perguntei para o rapaz lá o que tinha me atendido, “Saiu o resultado da prova?” ele falou: “Saiu” eu falei: “E eu passei?” “Não sei, olha lá, claro que não passou evidente, olha lá no quadro e você vai” “Como é que é?” “É por ordem alfabética” aí eu fui lá, a,b,c,d,e e l nada, e no final tinha lá Wellington, me lembro até hoje, que era um menino que entrou lá e depois de Wellington o meu nome, aí, eu achei aquilo curioso depois do Wellington o meu nome, aí, eu falei para ele: “Depois do último nome tem o meu nome” ele falou assim: “Imagina” eu falei: “Está o meu nome lá” “Está o seu nome lá?” “Está” ele falou: “Não” e eu: “Está” e ele foi lá e ficou boquiaberto, porque eram oito vagas tinha sete na sequência e eu era o oitavo e estava o meu nome mesmo, e ele não entendeu ele falou: “Não sei explicar isso” deve ter ido conversar com o Hélio Guimarães, e ele voltou: “É você passou mesmo” a coisa mais normal do mundo, eu passei, estúpido. Eu não sei o que aconteceu, nunca procurei saber, só sei que eu fiz o curso direitinho, e eu nem sei porque eu falei isso.
P/1 – Você fez? Entrou?
R – Entrei. Eu fui um dos oito torneiros mecânicos formados naquele ano lá, tenho diploma e tudo, enfim.
P/2 – A gente estava falando para contextualizar o “De Mim Já Não Se Lembra”.
P/1 – Como era a sua irmã, como era o seu irmão, qual era o papel da cada um, esse papel você estava falando, na verdade como você se empenhava e como o seu irmão gostava disso.
R – Por isso que eu não tinha problema com ele. E por isso que a minha irmã tinha muito problema com ele.
P/1 – Mas ele para você foi ele foi uma figura que te influenciou? Assim como, por exemplo, a sua mãe?
R – Foi no sentido que eu acho que passou para mim muito essa coisa de persistência, de honestidade, de correção, embora retrospectivamente eu acho que ele tinha um perfil muito autoritário. Mas eu tendo sempre a desculpa-lo, porque não deveria ser muito fácil também assumir este papel, moleque e tendo que realmente ir a frente, porque cada vez mais, quanto mais o tempo passa mais eu percebo que o meu pai era um homem muito fraco, não fosse a minha mãe e depois o meu irmão, realmente as coisas eu não sei para onde teriam ido. Ele era muito fraco, ele era um homem que tinha uma admiração enorme pelos poderosos, então, por exemplo, na época de campanha política ele fazia campanha política para os Peixoto ou ligados ao Peixoto, porque admirava profundamente e eles nem sabiam da existência dele, mas ele achava isso o máximo, também a relação que ele tinha com os Nalon. Imagina! Era uma relação de subserviência total, mas ele nunca entendeu que eles não tinham nenhum interesse por ele, que eles não tinham nada a ver com ele, a minha mãe sabia disso tudo, a minha mãe tinha clareza absoluta, que essa família nunca se interessou, tanto que minha irmã e meu irmão nunca sequer tiveram contato com eles, eu tive porque eu era caçula e não tinha muito o que fazer. Também com relação as pessoas ricas da cidade, minha mãe sabia perfeitamente qual era o nosso papel e qual era o papel deles, ela sempre falou ninguém é melhor que nós e nós não somos melhor que ninguém, mas ninguém é melhor que a gente também. Então, eles têm as coisas deles e nós temos as nossas, então, você não tem que achar que só porque nós moramos aqui nós somos piores, não é isso, nós moramos por uma contingência. Então, assim ele acaba que teve esse papel de mostrar que era possível você sair de uma condição como a nossa e chegar a encarregado na fábrica, que era um cargo muito importante na fábrica, através de quê? Do esforço dele só, porque ele não teve ninguém que o ajudasse, como eu também na minha vida inteira, não tem uma pessoa que no final da minha vida quando eu fizer a minha autobiografia, eu vá falar assim: “Eu agradeço o fulano de tal por ter me ajudado” ninguém nunca me ajudou, muitas pessoas me ajudaram, sem saber inclusive, muitas, mas nenhuma realmente essa pessoa aqui foi fundamental, nenhuma, a não ser minha família é claro, minha mãe, meu pai, meus irmãos, só, ninguém nem ex-mulher, nem mulher, nem namorada, nem parente, ninguém, ninguém, ninguém, não tenho que agradecer ninguém, eu não falo isso com gosto, falo com desgosto, porque eu gostaria de ter alguém, eu precisei e essa pessoa me ajudou, nada, ninguém, também um pouco culpa minha. Quando eu vim para São Paulo poderia ter procurado alguém também, mas não procurei, enfim.
P/1 – Rufatto, vamos na história do livro, como foi que te surgiu a ideia de fazer um livro de carta? O que é que significa isso como proposta? E qual foi o material do livro? Como veio?
R – Então, na verdade o que aconteceu também tudo por acaso, um dia a Heloisa Pietro, que é mais ou menos minha vizinha, ela estava passando na rua, encontrei com ela falou: “Você mora aqui?” eu falei: “Moro aqui nesse prédio, vamos tomar um café lá em casa?” “Vamos” subimos fomos tomar um café. E aí a Heloisa vira para mim e fala assim: “Luiz, um dia eu queria muito trabalhar com você, queria muito trabalhar com você” “Claro, vamos trabalhar juntos” coisas que você fala, sim vamos fazer alguma coisa juntos, ela foi embora e acabou a história. Sei lá, talvez uns dois anos depois dessa conversa eu encontrava com a Heloisa eventualmente assim na rua ou algum evento e tal, mas nunca mais na minha casa, e também nunca mais conversamos sobre isso, de trabalhar juntos nem nada, aí, um dia o telefone toca eu atendo era Heloisa falando assim: “Luiz, então, está tudo certo a editora já está acertada só falta agora você pegar e fazer o livro” “Heloisa do que você está falando?” “Você se comprometeu comigo de trabalhar comigo você lembra?” eu falei: “Não” ela falou: “sim, uma vez eu tive na sua casa tomando um café com você eu falei que a gente fazer um trabalho junto e você falou que sim” “Heloisa era uma conversa” ela falou: “Não, você se comprometeu comigo” eu falei: “Heloisa, eu não posso neste momento eu não posso fazer isso, porque eu estou no meio de um projeto, ‘Inferno Provisório’” ela falou: “Não, não, você se comprometeu comigo agora você tem que fazer” “E o que é esse projeto?” “É um projeto com a Editora Moderna, um livro que você tem que escrever na primeira pessoa, o projeto chama ‘primeira pessoa’,” eu falei: “primeira pessoa?” “E é um romance” “Heloisa, para, para, eu não sei escrever romance, eu não escrevo na primeira pessoa, acho dificílimo escrever na primeira pessoa, de jeito nenhum” ela falou: “Não, não, você se comprometeu comigo, e aí eu já na Moderna e eles adoraram ter o seu nome lá” e ela falou seríssimo, eu falei: “Meu Deus do céu, o que eu vou fazer?” ela falou: “Não, não está tudo certo, a editora vai entrar em contato com você para ver o pagamento, antecipação e tal” “Está bom” desliguei o telefone o que é que eu vou fazer agora? Eu até que estava precisando de dinheiro também, está bom, ok, o que é que eu vou fazer? Aí eu comecei a pensar, porque dispara eu vou escrever um romance, não sei escrever romance na primeira pessoa, não dá, isso nós estamos no ano de 2006, o livro saiu em 2007, eu falei vou ter que pensar agora em alguma coisa, aí eu comecei a primeira coisa que veio a cabeça eu queria muito ter uma catarse com a morte da minha mãe, que foi muito barra pesada para mim e até hoje é muito difícil para mim, já se passaram 12 anos, mas até hoje é muito dolorido para mim, porque inclusive ela morreu e dois meses depois a mãe da minha filha morreu, então, assim foi um ano, e o ano de 2001 para mim é o ano mais louco da minha vida. Eu tenho dois anos loucos, 1978 que foi o ano que eu sai de casa, então eu estava profundamente dolorido por ter saído de casa, o ano que meu irmão morreu, o ano que eu passei no vestibular, então, são três fatos contraditórios e muito fortes, ou seja, quando eu passo no vestibular eu mundo completamente o patamar da minha vida, e o ano de 2001, que foi o ano que eu lancei “Eles Eram Muitos Cavalos”, que também foi o ano que a minha mãe morreu e que a mãe da Helena morreu, então, também são tudo misturado.
P/1 – E que você saiu do Jornal.
R – Não, sai depois 2003. Aí, eu comecei a pensar: “Puxa vida, eu queria muito rememorar aquele ano que a minha mãe morreu” aí eu comecei a partir daí, falei: “Puxa vida, minha mãe, rememorar minha mãe, a troco de que?” Quer dizer, e daí, aí a história foi se construindo na minha cabeça, porque eu comecei a falar que eu tive duas grandes perdas muito importantes, foi 78 meu irmão e 2001 minha mãe, eu falei: “Como eu poderia juntar essas duas mortes, que foram muito traumáticas para mim?”. Aí, eu comecei a pensar nisso, quer dizer, o que é que ligava a minha mãe ao meu irmão além do fato de ser mãe e filho? Era uma relação muito forte que eles tinham e tal e eu comecei a pensar com eu poderia tentar reproduzir esta relação. Eu não encontrava uma forma razoável de reproduzir essa relação, até que comecei, essa coisa começou a tomar forma na minha cabeça, eu falei: e se ela de repente tivesse guardado alguma coisa importante dele, para que ela pudesse sempre estar próximo dele, e aí eu falei: o que seria uma coisa muito importante? Eu pensei em objeto, eu pensei em um monte de coisa, mas evidentemente à medida que eu ia pensando nessa coisa de importante para os dois, eu fui indo para um depoimento e que depoimento poderia ser esse? Eu fui para as cartas, que era mais ou menos depois para mim era óbvio, claro! As cartas era uma maneira que ele tinha de estar na vida dela e ela guardar as cartas era uma maneira de ele estar na vida dela, dele se manter ao longo do tempo na vida dela.
P/1 – E isso existia? Essas cartas?
R – Então, esse era o grande problema, porque se existissem as cartas era fácil, era simplesmente eu pegava e reproduzia, só que essas cartas não existiam, então, eu comecei a fazer um exercício de pensar o seguinte: o que é que o meu irmão escreveria para a minha mãe se ele tivesse escrito cartas para ela? Mas aí eu tinha um problema, porque a única vez que ele ficou longe dela foi quando ele ficou em Diadema, mas ele ficou longe dela um ano, é um período de tempo muito curto, muito curto para você ter um digamos assim, um repertório de cartas suficiente para manter uma memória viva. Aí, então, eu comecei a perceber o seguinte: bom, que ano ele esteve aqui? Ele esteve aqui em 1976, deixa eu pensar aqui, ele esteve aqui em 1976, exatamente, quando eu tinha 15 anos, se isso é verdade 1976 nós estamos em plena ditadura, eu falei: e se eu também ao lado disso, eu tentasse contar um pouco a história da ditadura sem contar, eu falei: aí eu poderia pensar em ampliar um pouco esse repertório, aí, eu comecei a pensar quantos anos ele tinha? Qual momento que ele podia ter vindo para cá? 1971, que ele tinha idade suficiente e tal e quando ele morre eu falei: ele tem que morrer no ano que ele morreu, porque eu não consigo também fabular tanto assim, então, eu coloquei como marco final 1978. Então, eu ampliei esse leque de cartas de 76, que não existiam, ampliei de 1971 a 1978. Comecei, então, aí, sim esse primeiro momento foi de entender o que ia ser o livro, aí, no momento que eu entendi o que ia ser o livro, aí fiz dois movimentos: o primeiro movimento era relativamente fácil, que era contar como eu cheguei às cartas, então, eu contei o que aconteceu em 2001 com a minha mãe, desde o momento em que nós descobrimos que ela estava com algum problema, que não sabíamos o que era até o momento que ela morre. Aí, o que eu fiz? Isso equivale mais ou menos um terço do livro, eu usei um pouco das minhas memórias, ou seja, um pouco de catarse mesmo, com a Helena minha filha, o Felipe meu filho, tudo com nomes deles, o Fernando Cesário, que é um médico amigo meu, que acompanhou bastante de perto isso, a minha irmã, o marido da minha irmã, todas essas pessoas estão lá, mas junto com estas pessoas tem vários personagens do “Inferno Provisório”: o afilhado da minha mãe, personagens que transitam que estão ali entorno da família, então, tem um monte de personagens de “De Mim Já Não Se Lembra” que estão misturados com personagens reais que estão no “Inferno Provisório”. Essa primeira parte foi relativamente fácil, foi difícil de escrever, porque foi catártico mesmo. Eu tive momentos em que eu não conseguia escrever, porque eu estava chorando desesperadamente, porque era muito pesado para mim. Mas tinha a segunda parte, que era tornar essas cartas factíveis, verossímeis, e se eu tinha um pouco da sensação, mas faltavam algumas informações. Então, eu tinha um grande amigo que mora no ABC, para minha sorte a mulher dele trabalhava em São Bernardo, mas tinha amigas que trabalhavam em Diadema e essa amiga dela, que é assistente social, as duas são assistentes sociais, elas me colocaram em contato com algumas pessoas que mais ou menos viveram aquele momento ali em Diadema. Então, eu nunca fiz entrevista, como eu falei, não tenho capacidade de fazer entrevista, então, várias noites eu fui para Diadema não para fazer entrevista, mas conversar, porque o que me interessava mesmo não era a pessoa falar sobre alguma coisa, mas ela descrever a sensação que ela tinha. Então, não me importava sobre o que ela estava falando, eu perguntava, por exemplo, ela falava: Diadema na época entre 71 e 78, como se fazia para ir para São Paulo? Por exemplo, ela falava: “São Paulo, nossa! Eu lembro tinha um ônibus que chamava poerinha” o ônibus chamado poerinha para mim ótimo isso torna verossímil as cartas e “Fazia muito frio na época a água congelava no encanamento” isso me interessa. Então, 99% do que elas me diziam não me interessava nem um pouco, nada, absolutamente nada, mas esse 1%, que eram coisas absolutamente banais e que elas achavam que não tinha menor interesse era isso que me interessava. Que não tinha cinema em Diadema, mas sabe o que a gente fazia? A gente ia para beira da via Anchieta no gramado fazia piquenique, isso me interessava. Quem era o político que mandava não me interessava. Então, eu fui compondo um pouco com sensações minhas, sensações do meu corpo mesmo, sensações nossas, porque eu durante esse período quando morava em Cataguases nessa época era muito comum o pessoal que vinha trabalhar aqui no ABC voltava na época de férias ou nos feriados e tudo, para a gente aquilo era nossa! Um outro mundo. Então me lembro das pessoas comentando como é que era a vida aqui, então aquilo, eu nunca imaginei, mas eu sempre estava disponível para receber as histórias, desde muito pequenininho, mas eu não sabia evidentemente disso, mas eu estava sempre assim muito aberto a ouvir, então, aquilo tudo ia impregnando no meu corpo, na minha memória. Então, eu peguei um pouco das sensações dessas pessoas que moravam efetivamente em Diadema, então, eu juntei isso tudo e aí um dia eu falei: bom, agora estou preparado para receber o meu irmão, foi quase uma coisa espírita, quase uma psicografia, porque aí no dia em que eu sentava para escrever as cartas eu não era eu. Eu era o meu irmão morando em Diadema escrevendo cartas para a minha mãe, inclusive falando de mim, que era uma coisa maluca, porque era como se eu realmente estivesse falando de uma outra pessoa. Então, ao final eu tinha, eu não me lembro agora, 50 e poucas cartas que aí eu compus a primeira parte, então, dizendo que depois que a minha mãe morreu eu fui encarregado de recolher as coisas para doar, aí ei encontrei lá uma caixinha de sapato com as cartas, aí, os dois terços finais do livro é reprodução das cartas. Eu me lembro que isso foi muito curioso, porque quando eu terminei o livro eu passei para Heloisa, evidentemente eu não contei para ela nada disso que eu estou contando, ela leu o livro, ela falou que chorava, achou o livro legal, aí, levou lá para a editora, aí, na editora um dia teve uma coisa meio catártica lá. Bom, me chamaram lá um dia, a Maristela me chamou lá, estava ela, o diagramador, a menina que fez as fotos, porque tem umas fotos bacanas lá no livro, a Heloisa, tinha um monte de gente, um monte de gente reunida numa mesa. Aí, eles começaram a falar: “Pois é, a gente gostou muito do livro” a editora assistente da Maristela também, “Nós choramos e tal, mas Luiz tem só um pequeno problema, exatamente esse que nós temos que resolver com você, a gente não sabe muito bem como agir, porque assim, esse livro não pode sair sem uma coautoria, porque inclusive isso pode dar problema para você mesmo, então a gente está aqui tentando resolver como é que você acha que a gente devia fazer isso?” eu falei: “Mas eu não estou entendendo porque coautoria?” Ela falou: “Coautoria porque, olha bem, um terço é seu, mas dois terços são cartas do seu irmão para sua mãe, está lá com nome dele e tudo”, aí, eu falei: “Único problema que essas cartas não existiam, essas cartas foi eu que escrevi”, aí, foi um choque. Então, aí, eu tive um outro pequeno problema, que para mim é assim eu acho curioso, embora me tenha causado, para mim foi um pouco escandaloso, em Cataguases mais ou menos na época da publicação do livro, portanto deve ter sido em 2007, máximo começo de 2008, existia lá um livreiro, uma das rara as vezes que a cidade teve uma livraria, e esse livreiro era um antigo militante comunista daqueles bem stalinistas, que acredita na verdade, essas coisas todas. E um dia eu estou em Cataguases andando na rua, enfim, estava andando, aí ele veio na direção contrária, e quando ele passou por mim ele me reconheceu, e ele enfiou o braço no meu braço assim, e voltou. Ele fez o movimento, enfiou o braço e voltou, e no que ele voltou ele começou a falar assim: “Li aquele seu livro de ‘De Mim Já não Se Lembra’,” “Que bacana, você gostou?” “Muito bom, muito bom o seu livro, muito bom, tem um erro, um erro só mas eu acho importante que você saiba, nem é um erro na verdade, porque talvez você não soubesse, mas quando você diz lá que seu irmão morreu num acidente de carro e é verdade” ele me contando “E é verdade, só que você não sabe mais eu vou te contar, aquilo não foi um acidente, aquilo ali foi plantado pela ditadura militar para o seu irmão sofrer aquele acidente, o carro estava sem freios e por isso que ele entrou no caminhão”. E eu nesse momento não vi o rosto dele e eu achei que ele estiva brincando, claro, nunca imaginar que ele não tivesse brincando, porque ele sabia mais do que eu, aí, eu virei para ele e falei: “Ah é?!” rarara. Aí, ele olhou para mim e falou: “Do que você está rindo?” eu virei para ele: “Como assim?” ele falou: “Você está rindo de que? É sério isso” eu falei: “Não estou entendendo, como assim? Você está dizendo que não foi um acidente de carro?” “Não estou te dizendo eu tenho certeza disso” eu falei: “Cara, tem um problema de base,” ele falou: “Qual é?” “O meu irmão não morreu num acidente de carro,” ele falou: “Como não morreu?” eu falei: “Não” ele falou: “Imagina está lá nas cartas e tudo” eu falei: “Sim, mas aquelas cartas não existem, essas cartas foram escritas por mim” nesse momento ele soltou o meu braço e ele quase me agrediu, ele foi para cima de mim e falou assim: “Você não pode fazer um negócio desse!” eu falei: “Aquelas cartas não existiram” ele falou: “Você não pode fazer isso com a história” aí que eu entendi o ponto dele, “Você não pode fazer isso com a história, você é moleque” e começou a berrar no meio da rua, e todo mundo começou a parar, “moleque, você é moleque!” me xingou de tudo quanto é nome. E eu olhava para ele e eu não conseguia compreender o tamanho do problema que causei para ele, depois sim, eu acho que eu nem devia ter falado nada, eu acho que foi uma bobagem da minha parte, porque eu mexi com uma coisa muito importante para ele, e eu realmente fui irresponsável, não por ter escrito as cartas, mas por ter dito para ele que as cartas não eram verdadeiras, porque ele tinha uma verdade e a verdade dele, enfim, era dele eu não tinha que discutir a verdade dele e me arrependo profundamente de ter dito isso para ele, mas naquele momento eu realmente não compreendi o que estava acontecendo, ele quase me agrediu, ele realmente me chamou de tudo quanto era nome, ele só não me agrediu, porque enfim não era da índole dele me agredir mesmo, embora ele tivesse vontade. Aí, eu compreendi essa coisa da história, quer dizer, é muito complicado, é muito complicado, uma vez em 2008, ou seja, um ano depois, eu já tinha entendido isso eu fui lançar “O Livro das Impossibilidades” em Brasília. Aí, tinha uma pequena fila e de repente aparece na minha frente uma pessoa, me dá o livro, não tinha nome, é um horror, eu sempre peço não deixa, porque a gente não lembra o nome do todo mundo, aí me entregou o livro e perguntou: “Você lembra de mim?”. E é aí que você não vai lembrar nunca mesmo, (risos) eu olhava para ele e “Desculpa, mas não” “Então vou ficar aqui no cantinho você vai lembrar de mim eu tenho certeza, pode passar aqui” e eu olhava: “Meu Deus, o que eu vou fazer?” e olhava para ele e nada, aí ele virou para mim e falou assim: “Vou te dar uma dica Cataguases” bom melhorou, Cataguases, vou colocar ele em Cataguases, nada, nada, nada, aí ele virou e falou assim: “Você não está lembrando mesmo, outra dica Vila Teresa”. Aí eu olhei, Vila Teresa, Vila Teresa, já sei: “Você é o Carlinhos!” “ah! Isso mesmo” “Mas também cara tinha que tirar sua barriga e colocar cabelo, porque você ganhou barriga e perdeu cabelo”. Ele falou: “Pois é, rapaz você sabe que esse aqui é o quarto livro seu que eu leio, você está escrevendo o Inferno Provisório ainda? Rapaz! Eu estou lendo esses livros, aquela coisa lá de Cataguases me volta todinha rapaz, agora que coisa eu não sabia que fulana de tal tinha virado prostituta, nossa senhora, eu achava aquela menina meio esquisita mesmo, mas nunca passou pela minha cabeça que ela fosse virar prostituta”. E eu olhava para ele do que é que ele está falando? Aí ele virou e falou assim: “E aquela mancha? Eu me lembro perfeitamente depois que o carro atropelou o Marquinho ficou uma mancha em frente a mercearia lá, me lembro daquela mancha até hoje perfeitamente, anos a fio a gente passava lá tinha aquela mancha de sangue lá no chão, impressionante, aquilo” aí eu quase fiz a mesma bobagem, eu quase falei, eu olhei para ele e falei não, de jeito nenhum e aí ele olho muito sério para mim e falou: “Eu sei o que você está pensando,” eu falei “O que é que foi?” “Você deve está pensando que eu sou um bobo.” “Não, porque eu estou pensando isso?” “Não, porque eu percebi qual foi a sua jogada” eu pensei: “Graças a Deus ele percebeu” ele falou: “A sua jogada foi o seguinte, você escreveu as histórias e mudou o nome de todo mundo,” eu falei: “Puxa vida, exatamente Carlinhos, você matou a charada” “Você acha que eu sou bobo, os nomes estão todos trocados, eu me lembro não era Marquinho que ele chamava, mas eu lembro daquela mancha lá, aquela menina que você falou que virou prostituta, imagina, eu conhecia ela, também não chamava fulana de tal não é?” “É” eu desisti, deixa pode pensar, pode ler o que quiser vou fazer o que né?
P/2 – Você tinha o costume de escrever carta antes?
R – Eu sou da geração que para mim existem um momento muito curioso da escrita de cartas, porque eu sou da geração que deixa de escrever cartas e passa a usar o telefone. Até por um momento eu achei que talvez a escrita estivesse muito comprometida até voltar a internet, que para mim salva a coisa da escrita. Mas teve um período longo, que foi o período que não se usava mais escrever cartas, eu pego exatamente essa geração, quer dizer, quando eu ia comunicar com a minha mãe já não se escrevia mais cartas, a gente já estava usando o telefone para se comunicar. Ainda se costumava a passar telegrama, sempre morria alguém, telegrama nem nascido esperava, morreu, telegrama em casa sabia que era uma tragédia que tinha ocorrido, mas não, eu escrevi muitas poucas cartas na minha vida, o Marçal Aquino, que fabula muito, o Marçal eu conheço, eu e ele temos uma relação muito, somos amigos, muito amigos, é um dos meus maiores amigos que eu tenho, mas o Marçal diz que nós trocamos cartas eu e ele, desde que eu morava em Cataguases, durante aquele período de faculdade todo, e eu acho que é um pouco de fabulação dele, eu acho, certamente no período de Juiz de Fora, nós chegamos a trocar cartas, ele morava em Amparo, escrevia poesia, a gente morava em Juiz de Fora escrevia, então ele fala: “Eu tenho todas as suas cartas” ele deve ter mesmo, porque ele é muito organizado, ele deve ter essas cartas lá, mas eu não acho que tenha sido um período muito longo, embora ele acha que sim, não sei porque, ele acha que é um período longo, mas eu acho que de Cataguases eu não sei, tenho a impressão que não, eu também não posso dizer que sim, não sei, enfim, de qualquer maneira a questão é essa, já eu sou de uma geração que não se usava mais escrever cartas.
P/1 – Para fazer esse livro você pesquisou o que é que é? Que tipo de livro é esse que é feito com base em cartas? Algum livro te influenciou? Agora um pouco mais teórica, pesquisou antes? O que é que você fala sobre isso?
R – Então, na verdade existe uma literatura epistolar, claro que eu conheço e claro que eu gosto. Mas essa literatura epistolar é quase toda de pessoas que são intelectuais escrevendo para intelectuais. Ou então, no caso das “relações perigosas” não são intelectuais, mas são pessoas de cultura, que de alguma maneira detém uma linguagem e como as cartas que eu queria escrever era exatamente de um torneiro mecânico escrevendo para uma mãe analfabeta, que quem lia as cartas inclusive não era ela, eram pessoas que liam as cartas para ela, eu tive que abandonar tudo aquilo, eu tive que tentar encontrar uma linguagem adequada para esse tipo de carta. Aí, eu comecei a lembrar das cartas que eu lia, quando eu era criança para minha mãe, a coisa que eu mais tenho incrível é a minha memória, eu não sabia, não é a minha memória como um todo, memória focada, eu não sabia porque, mas de alguma maneira a minha vida inteira acho que desde de sempre, eu trenei a minha memória para acumular informações que para nenhuma pessoa era importante, mas para mim eram importantes. Eu , por exemplo, sou incapaz de trocar uma lâmpada corretamente, porque eu não me lembro bem como é que se faz, também minha memória para isso péssima, por exemplo, quando alguém vai arrumar um computador na minha casa o Marcos, você conhece ele, ele começa a explicar, eu falo não me explica eu não quero saber como funciona, não me interessa nem um pouco saber como funciona, não me interessa, agora eu passei a minha vida inteira sem saber treinando a memória para lembrar de coisa que não tem a menor importância. Por exemplo, assim, quando eu fui escrever as cartas me lembrava perfeitamente das cartas que eu tinha lido para a minha mãe, perfeitamente, elas vinham inteira na minha cabeça, eu sabia inclusive o que eram os erros gramaticais que se cometia, mais comuns, que tipo de linguagem se usava, me lembrava perfeitamente de tudo, é incrível, isso eu estou falando da minha infância mais remota!
P/2 – Mas que cartas eram essas?
R – Eram cartas, por exemplo, alguma tia ou um tio ou alguém mandava para a minha casa, para comunicar os mais diversos fatos, na verdade as cartas funcionavam na época, elas funcionavam como uma espécie de repositório de fatos acontecidos num determinado tempo, não eram como e-mails hoje que você pergunta e responde, não era isso, eram narrativas completas. Então, por exemplo, assim: “Escrevo-lhe esta carta, ou escrevo essas mal traçadas linhas para contar que a Darque, que tinha muito tempo que estava procurando arrumar um namorado bacana legal e finalmente encontrou ela está muito feliz, o namorado dela chama José, e tem tantos anos, e ele trabalha com isso, ele é filho de fulano e do fulano e eles estão muito felizes, estão pensando seriamente em marcar o casamento para dezembro. Se for mesmo o casamento em dezembro, nos fazemos questão que você venha, traga a sua família, por falar nisso, como vai o seu Sebastião? Como vão os meninos?”. Ou seja, construía toda uma narrativa, então localizava no tempo, tinham os personagens, os personagens tinham interação entre eles, enfim, existia algo muito mais amplo do que simplesmente comunicar alguma coisa, como a gente faz hoje no e-mail, a gente fala: “Está tudo bem com você? Seguinte amanhã não vou poder sair, está bom?” aí você fala: “Ok” não era isso, era uma narrativa que se construía então, assim, de alguma maneira isso ficou impregnado em mim, de alguma maneira isso ficou impregnado na minha memória. De tal forma, que quando eu fui escrever as cartas eu simplesmente como eu disse a verdade eu quase psicografei essas cartas, meu trabalho foi muito pequeno, eu só deixei que elas viessem, o que eu fiz, que aí, sim era um truque foi para dar mais verossimilhança eu às vezes falava assim: essa carta aqui, por exemplo, o meu irmão esqueceu de datar, ou essa carta aqui ela responde a coisas que não estão na outra carta, portanto uma carta no meio foi desviada, ou fazia nota de rodapé só para localizar um fato, isso era tudo truque, porque era para dar mais verossimilhança, porque na verdade escrever as cartas foi simples, foi tranquilo.
P/1 – Mas foi bom esse processo?
R – Para mim foi ótimo, me diverti a beça.
P/1 – Vamos falar, então, agora assim em geral qual é o seu processo de trabalho de criação? Eu perguntei um pouco se você pesquisou, não precisa ser só esse de cartas, mas dos livros? Como você trabalha?
R – Eu trabalho da seguinte maneira: eu penso, não sei uma teoria estranha, mas eu penso assim que o trabalho de escritor é muito simples, porque na verdade assim você tem que estar disponível para uma memória coletiva, a memória coletiva existe, o inconsciente coletivo, o que você quiser chamar, e assim o que eu faço na verdade é simplesmente estar aberto a essa memória coletiva transformar parte dessa memória coletiva em livros, que se forem lidos, porque tem que ser lidos, que se forem lidos eles voltam a realimentar a memória coletiva, porque para mim ficção e realidade é quase a mesma coisa, embora não sejam, evidentemente. Então, assim, o meu processo, digamos assim, de estar aberto ele tem esse lado que para algumas pessoas pode ser um pouco mítica, mas não tem nada de mítico para mim, simplesmente você ser uma espécie de cavalo da macumba mesmo, eu penso na macumba no sentido mais amplo. A Dona Joaquina ela é 21 horas por dia ela é Dona Joaquina: tem uma vida social, ela tem uma profissão, ela tem filhos, ela tem marido tem um monte de coisa, ela faz um monte de coisa, durante três horas ou duas sei lá, ela vai para um lugar determinado, ou seja, um espaço específico e lá naquele espaço específico ela se transforma em outra coisa, o que é que ela se transforma? Ela se transforma numa receptora da memória coletiva. Tanto que quando as pessoas vão conversar com ela, ela não fala: “Ah cara, eu vou resolver o seu problema” nunca, as pessoas sérias não fazem isso. O que é que ela fala para vocês? Ela te dá conselhos que são conselhos em geral, mas que servem para o seu caso. Ou seja, ela detém uma sabedoria que é uma sabedoria que está nela, mas também está para além dela, e que ela transforma esta sabedoria no que quiser. Você que está sendo receptor, que vai fazer dessa sabedoria o que quiser, ela não vai te falar assim: “Não saia de casa amanhã” nunca vai falar isso, mas vai falar assim: “Olha, você está muito triste, você tem que reagir, porque se não você realmente as coisas não vão ficar bem para você,” ou seja, ela dá conselhos em geral que são específicos e depois ela volta a ser Dona Joaquina de novo. E o escritor é mais ou menos isso, quer dizer, eu não sou escritor 24 horas por dia, eu sou quando sento para escrever sim, mas durante o resto do tempo eu estou assimilando coisas, que são minhas, são das outras pessoas, são de outras, enfim, naquele momento específico sim eu sento e recebo lá o espírito, viro o cavalo da macumba e escrevo, então, o meu processo é muito assim, inclusive de disciplina também, quer dizer, eu sento num determinado horário e paro num determinado horário e eu não fico com aquela coisa se eu não escrever eu morro, nem nada, sabe? Se eu não escrever hoje não vou morrer também, então, para mim funciona assim, claro que eu estou falando de mim, outros vão falar isso é uma bobagem, uma estupidez.
P/1 – Quando você se propõe fazer um livro, você pega o tema vai construindo uma história tem aquele horário?
R – Na verdade é um pouquinho diferente, porque eu não escolho escrever um livro, o livro escolhe ser escrito. Isso é uma diferença. Você falar para mim: “Como você não escolhe? Você não escolheu escrever esse livro das cartas?” Mais ou menos, não foi uma escolha, sim foi uma provocação, a partir dessa provocação, então é como se eu tivesse ido na memória coletiva e ver o que é que se encaixa dentro desse livro? Aí, sim então ele me escolhe, a partir do momento que ele me escolhe, aí sim, aí ele vira um livro para mim. Eu não tenho nenhum problema, por exemplo, eu escrevo com a porta aberta conversando com a Marilei, que trabalha lá em casa, o que é que vamos fazer para o almoço? Pensar o que vamos fazer no almoço, ou a Helena: “Pai, não sei o quê”, o telefone toca, o gato sobe também, eu volto exatamente no lugar que estava, no mesmo ambiente e tudo, eu não preciso me isolar nem nada. Por isso que eu acho que é alguma coisa muito maior do que eu, eu acho que meu papel inclusive é muito pequeno nessa história toda, inclusive também porque isso é vero, se o livro ficar na estante sem ninguém ler esse livro não existe, ele só existe se alguém lê, então, o leitor é mais importante que o escritor, porque ele que dá vida para o livro, por isso que cada lê o que quer, eu acho, morro de rir quando alguém fala comigo: “Uma menina fez uma tese de mestrado e não entendeu nada do meu livro”, você que não entendeu nada do seu livro, como é que você vai falar uma bobagem dessa, entendem o que quiserem entender.
P/1 – E hoje voltando para a sua vida, depois dessa narrativa que você diz inverossímil, mas a narrativa que você fez da sua vida, que avaliação você faz? Você teria mudado alguma coisa? O que é que você sentiu que mais te impactou?
R – Não, não teria mudado uma vírgula eu queria só ter mais dinheiro, mas tirando isso não. Aí, é sério eu me sinto até envergonhado, porque assim eu acho que num país como o nosso eu fiz uma trajetória incomum e me envergonha até de ter sido uma exceção e não a regra e isso me deixa até um sentimento de um pouco de culpa, porque é como se você tivesse ocupasse um lugar que não é o seu. E de alguma maneira talvez aí seja complexo meu, de alguma maneira algumas às vezes eu sinto isso, que eu estou ocupando um lugar que não é meu. Mas tirando isso, eu acho que eu não mudaria nada. Foi difícil, foi complicado e tudo, mas eu acho a vida é difícil e complicada de qualquer maneira, não fosse por isso seria por outros motivos, então não. Eu queria ter grana para poder descansar um pouco, desde os seis anos trabalhando, não é fácil, mas tirando isso está bom.
P/1 – Mas com todo esse problema de grana em algum momento da sua vida você trocou de profissão, e se jogou numa coisa muito mais imprevista do que a profissão de jornalista, porque você tinha um emprego?
R – Sim, tinha um bom emprego.
P/1 – Como foi essa decisão? Como você a tomou?
R – Eu acho que até nisso também é um pouco de ignorância, eu sou uma pessoa que age por ignorância, por exemplo, quando eu que fui para fazer a prova do Senai e por ignorância, porque se alguém tivesse me dito que eu não poderia conversar com o diretor da escola, eu não teria conversado, mas como eu não sabia que não podia eu fui conversei e acabei fazendo o curso. Por ignorância, quando eu fui fazer o vestibular ninguém me falou que eu não podia fazer, o que é que tinha que fazer, por ignorância fazer comunicação, achando que era uma coisa, era outra, e por ignorância não me falaram o quanto tinha que estudar, eu estudei demais e passei em primeiro lugar, foi por ignorância, não foi porque eu queria, não por ignorância. E também quando vim para São Paulo, ninguém falou comigo que eu morando na Rodoviária do Tietê, não podia trabalhar no jornal escrevendo sobre ouro e dólar, se alguém tivesse me falado talvez eu recuasse, e por ignorância eu fiz tudo, eu escrevi o meu primeiro livro, por ignorância, ninguém falou que eu não podia escrever. Aí, eu escrevi, ninguém falou que eu não podia escrever aquele livro “Eles Eram Muitos Cavalos” daquela maneira que foi escrito, se alguém tivesse falado não pode escrever assim, talvez eu não tivesse escrito, e também 2002 quando larguei o jornal para me dedicar a literatura por ignorância, ninguém não falou para mim que não podia, ninguém chegou para mim e falou: “Cara você é louco, não existe isso”. Ninguém falou então eu fui fazer, aí, se alguém tivesse me falado talvez, mas quando me falaram já era tarde, eu já tinha feito, então, tudo por ignorância.
P/1 – Ignorância em que sentido?
R – De ignorar mesmo, eu ignorava que não podia.
P/1 – Você já era pai?
R – Mas nunca passou pela minha cabeça que não dava para não ser assim, é evidente que eu me organizei para isso, em 2002, porque foi assim a minha vida são blocos, minha primeira encarnação termina em 1977, ou 78, tanto faz 77, 78, a minha segunda encarnação começa em 78, 79 e vai até 1990, quando eu venho a São Paulo, aí, então, eu tenho uma terceira encarnação é de 90 a 2001, que é quando a minha mãe morre, a mãe da Helena morre, eu lanço “Eles Eram Muitos Cavalos” e aí então eu percebo que uma coisa que eu não queria mais é ser infeliz, falei: “Não quero mais ser infeliz na minha vida” ponto e acabou, virei para a minha filha Helena e falei com ela: “Helena a partir de hoje não vamos ser mais infelizes, acabou essa história de infelicidade”. Então, nós iniciamos o ano de 2002 com esse propósito, daí para frente então inicia a minha quarta encarnação, minha quarta encadernação, ou encarnação, que é assim eu sou feliz, eu vou ser feliz e ponto final. Então, em 2002 eu peguei, eu tinha um fundo de garantia muito bom no jornal, eu tinha também umas cotas de previdência privada. Peguei tudo isso, comprei um apartamento com o que restou ainda tinha um dinheiro eu reformei o apartamento inteiro, quando nos mudamos para esse apartamento não tinha nada dentro de casa, absolutamente nada, porque a gente morava no outro apartamento anterior e eu deixei tudo lá não levei nem uma agulha, levei a minha roupa do corpo e as roupas da Helena só mais nada, nada, nada. Falei: “Eu vou começar do zero, daqui para frente vou ser feliz”. Então, eu larguei tudo para lá, eu morei naquele apartamento quase um ano em meio sem colchão, eu arrumei o quarto da Helena, depois que arrumei o quarto da Helena, aí, sim eu fui arrumar as outras coisas, fui arrumando, arrumando, a última coisa que eu arrumei foi o meu quarto. Então, eu fiquei no quarto com colchão no chão um ano e meio. Isso mais ou menos coincide com 2003. Quando chega 2003 eu já tinha então o apartamento eu já tinha arrumado o apartamento, já tinha refeito todo ele, já tinha inclusive refeito os móveis e tal, estava tudo zerado ainda me restava uma mixarinhazinha, e aí, em 2003 o que é que aconteceu em 2003? Aconteceram dois fatos importantes: o primeiro foi que eu fiz um contrato com a Record, eles me compraram esses cinco livros do “Inferno Provisório” eles me pagaram adiantamento dos cinco livros, e isso me dava uma boa grana para passar um período. Por outro lado 2003 também é o ano da Flip, primeira Flip, então eles me convidaram para a primeira Flip, então eu fui também na primeira Flip. Então, aconteceu aquela coisa que a gente faz por ignorância, eu faço por ignorância: a partir de 2004, começam a pipocar, por causa de inveja da Flip, festivais literários no Brasil inteiro. Bom, quem estava disponível naquele momento? Eu, que não estava trabalhando. Então, as pessoas falavam quem poderia vir aqui numa quarta feira em Rio Branco no Acre? Ia eu, como eu fui no Rio Branco no Acre numa quarta feira, aí, o cara lá em Maceió, quem iria numa sexta feira em Maceió? Aquele cara que foi em Rio Branco no Acre, ia eu! (risos). Se você pegar os primeiros festivais literários do Brasil inteiro, todos os primeiros estou lá eu. Claro, para o bem e para o mau, para o bem porque eu fui primeiro, para o mau porque depois do primeiro, sempre os segundos foram melhores, a partir do segundo foi tudo melhor, inclusive a Flip. A primeira Flip foi mais ou menos, a segunda já foi um escândalo. Então, assim eu peguei todos os primeiros de todo lugar, ou seja, era tudo assim: vamos ver o que dá. Eu me lembro assim, as pessoas diziam: vamos ver o que dá, como é que chamava? Primeiro Festival Literário Internacional da Floresta, lá em Manaus, quem vai? Eu, vamos ver se dá certo, no segundo deu certo eles pagavam muito melhor, comia melhor, hotel melhor, eu já não ia, uma desgraça isso. Mas enfim houve esses dois fatores que ajudaram, o primeiro foi que realmente eu tinha um pouquinho de dinheiro e tinha um apartamento as coisas arrumadas. Tanto que a Helena se lembra disso até hoje. Ela fala com orgulho: “Pai, você lembra que em 2004 você pagou o Dante uma vez só?” No começo do ano eu já paguei o colégio dela o ano inteiro, porque eu queria ficar livre, eu não quero ter essa dívida! Eu paguei o não inteiro, ela acha vantajoso para mim, na verdade era uma maneira de eu não me preocupar com isso, e de lá para cá algumas coisas melhoraram e outras pioraram. Eu acho que, por exemplo, melhorou porque na época tinha cinco eventos literários no Brasil em 2003, hoje tem 100, um grande avanço. Houve, sem dúvida nenhuma, uma profissionalização maior, vieram mais editoras para cá, o mercado ficou um pouco mais interessante, houve também um maior interesse do mercado exterior para literatura brasileira. Por outro lado o que eu sinto assim, que ainda é muito amador, tanto o lado das editoras, quanto do lado dos escritores. Há uma disputa, que eu acho um pouco ruim, que é uma disputa pouco saudável que é assim de querer aparecer a qualquer custo. Então, por exemplo, hoje se alguém me chamam para ir num determinado lugar, eu tenho duas perguntas básicas: a primeira é quanto que vão me pagar e a segunda é quem está na minha mesa, porque dependendo de quem for eu não vou, porque tem gente que não me interessa estar na mesa com ele. E o problema do cachê é esse os cachês estão abaixando ao invés de aumentar, porque se me oferece dois mil reais eu iria por dois e 500, eles pagam para um outro mil reais e o cara vai feliz da vida, e isso eu acho um problema. Porque na verdade há uma intenção muito maior hoje em dia em aparecer, de estar nos lugares, do que está no lugar com um propósito, mas enfim faz parte.
P/1 – Daqui para frente você tem expectativas? Qual é o seu sonho? Fora ter dinheiro. (risos)
R – O meu primeiro era ter dinheiro. Eu digo desejo, o meu desejo é diminuir um pouco o meu ritmo de trabalho, porque realmente eu viajo demais da conta e isso acaba prejudicando o meu processo de trabalho, porque por mais que me esforce escrever fora de casa eu até consigo, mas é trabalhar 20% da minha capacidade. Então, é muito oneroso nesse ponto de vista, então eu queria de alguma maneira ter um pouco menos de trabalho, mas com a mesma grana, porque enfim, mas esse é um desejo que eu acho pouco factível. Não sei, eu sei que não vou ter, não vou me aposentar mesmo, então vou ter que trabalhar até o final. Eu não sei, por exemplo, é uma coisa que me incomodava muito, se conhecido como alguém que escreveu “Eles Eram Muitos Cavalos” não que eu não me, claro, eu tenho maior orgulho disso, que é o livro que mais vende, mais traduzido etc. e tal, e também de ser conhecido como maior escritor da classe operária, que eu nem sou. Mas enfim, então, está muito confortável nessa situação, então, o meu próximo livro está sendo um total desconforto. Não vai falar de classe operária, não vai falar nem do Brasil vai falar, vai ser uma outra coisa, que era o lugar que me coloquei mesmo, eu quis me colocar nesse lugar, eu quis me colocar no lugar de desconforto. Porque não há coisa pior que lugar do conforto, principalmente, para quem cria, o lugar do conforto é o lugar da medianidade? Eu não queria o lugar de medianidade jeito nenhum. Então, assim esse ano eu voltei a escrever poesia, que é um lugar de desconforto para mim, que é uma coisa, uma linguagem muito difícil, que eu não domino, então, eu tenho que me esforçar para dominar, e estou fazendo este trabalho, que não tem nada a ver com eu fazia, que também exige um esforço muitíssimo maior, agora o que é que vai resultar disso? Não sei.
P/1 – Mas você sofre quando escreve?
R – Fisicamente sim, ou seja, eu preferia não sei se tivesse um sistema que eu pudesse escrever sem precisar de me atuar fisicamente, mas não existe ainda.
P/1 – Mas emocionalmente não? Você fica agoniado?
R – Não. Assim houve um momento, mas acho que muito pouco, muito pequeno, houve um momento que talvez eu me sentisse um pouco cobrado a ter um certo vínculo com o mercado, só que depois eu comecei a pensar e falei: “Cara, não vou me submeter a isso, sabe? Não vou me submeter a isso” Não acho, tem gente que acha necessário você está sempre na mídia, sempre, sempre, sempre, eu não acho mais, já teve um momento que eu me angustiei um pouco com isso: será que é importante ou não é importante? Será que é bom eu estar com livro novo logo? Não sei, acho que hoje o meu interesse passa por outras questões. Aí, eu prefiro milhões vezes andar no ritmo do meu livro, do que impor um ritmo a ele. Então, esse livro, por exemplo, está sendo escrito desde o começo do ano passado, aliás, desde o final do outro ano, que foi 2011, logo que saiu o “Domingo sem Deus” sim logo depois eu comecei a escrever, então eu acredito que em dezembro de 2011, mas vá lá, que seja janeiro de 2012, então, assim, desde janeiro de 2012, nós já temos um ano e meio, e ele deve estar pela metade, não tem nenhum problema, vou no ritmo dele não vou correr para terminar, de jeito nenhum, deixar ele no ritmo dele.
P/1 – Obrigada.
R – Imagina.
FIM DA ENTREVISTA
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