Votorantim Fercal
Depoimento de Severino Ferreira
Entrevistado por Alexandre Gomes e Marcia Trezza
Fercal, 07/05/2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV005_Severino Ferreira
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Fala o seu nome pra gente, o local e a data de nascimento.
R – Severino Ferreira. Onde eu nasci? Nasci próximo a Serra Talhada, em 12 de março de 1969.
P/1 – E os seus pais, Severino, como eles se chamavam?
R – O nome do meu pai é Benedito e da minha mãe, Maria Ester Ferreira.
P/1 – Uma lembrança que o senhor tem dos seus pais, marcante?
R – Eles juntos?
P/1 – É, sua infância com eles, como é que era?
R – Não tenho.
P/1 – Não tem?
R – Não tenho.
P/2 – Por que você não tem?
R – Porque quando eu dei a me entender que era uma pessoa, meu pai já não vivia com a minha mãe, eu não lembro de nenhum momento dele com ela.
P/2 – E da sua mãe, que lembranças você tem?
R – Até meus 12 anos praticamente nenhuma também.
P/2 – Por quê?
R – Porque quando meu pai se separou da minha mãe, aí cada um dos filhos, a maioria tomou um certo destino. Então eu fui viver com um tio meu e os outros dois foram viver com a minha mãe, o restante, ficamos espalhados.
P/1 – Então você não teve esse convívio?
R – Não tive nenhuma convivência com os meus irmãos.
P/1 – Você tem alguma lembrança deles, alguma brincadeira, ou vocês não ficaram juntos mesmo? Mas na infância, como eram as brincadeiras.
R – Eu não tive infância. Eu não tive infância, então eu não fui criança, já fui de criança já se tornando adulto, não tive tempo pra brincar.
P/2 – Severino, você contou sobre o seu nome, sobre uma situação que você viveu de mudança de lugar com a sua mãe, da certidão de nascimento. Conta pra gente de novo o que aconteceu.
R – Referente ao primeiro nome? O primeiro nome eu não sei completo, sei que era mais ou menos Severino Evanildo, o resto certo eu não sei.
P/2 – Mas por quê, como que foi essa história?
R – Porque eu ganhei esse primeiro nome porque a minha madrasta mais o meu pai me registrou como se fossem os pais verdadeiros, como se ela fosse minha mãe. E quando eu cheguei em Brasília, a minha mãe não gostou muito da ideia de ter esse outro nome e aí me registrou como filho dela.
P/1 – Então Severino, o senhor já teve outro nome!
P/1 – E conta essa história pra gente, da sua mãe, que aí você teve outra mãe, como é que foi?
R – Como foi? Foi na medida que meu pai se separou da minha mãe, foi viver com a prima dele e aí eu fui…
P/2 – E você disse que não teve infância, né?
R – Isso, não tive infância. Essa pergunta é uma pergunta muito fundamental, né? Então eu nunca brinquei com criança, no tempo que era para eu brincar minha madrasta me botava pra estar trabalhando. Naquela época, há uns 30 e poucos anos atrás, se debulhava milho, feijão, no horário que, digamos, da janta, terminava de jantar, ou do almoço e aí você ia debulhar aquele saco de milho, caçuá de feijão, coisas assim. Então, enquanto os outros estavam brincando eu estava trabalhando, então não tive infância. Eu via os meninos brincando de ciranda de roda, ficava muito doido pra brincar mas, como ela não deixava por não ser filho dela, descarregava tudo em cima de mim, me batia muito. Inclusive meu irmão, como ela gostava muito de bater nos que não era filho dela, ela foi bater no meu irmão, meu irmão deveria ter uns 16 anos, pegou uma foice e ia cortar o pescoço dela. Não cortou, aliás, ainda cortou, mas não deu pra arrancar a cabeça fora. E aí ela tem uma cicatriz no pescoço até hoje. Foi a defesa dele, né? De tanto apanhar.
P/1 – Mas você sabe a origem da sua família?
R – No sentido?
P/1 – Antes de você nascer, a história dos seus pais, você conhece a história?
R – Não sei, não conheço a história deles.
P/1 – E o senhor morava então na cidade de Serra Talhada, né?
R – No bairro de Serra Talhada.
P/1 – No bairro, isso. Como era essa cidade?
R – Não lembro, minha mente apagou. Seriam umas seis, oito famílias em torno, digamos, de uma casa pra outra seria na média de um quilômetro, um quilômetro e meio, eram muito distante as casas.
P/1 – E o senhor lembra como era a convivência lá? O senhor conhecia os vizinhos, vocês tinham um bom relacionamento, como era?
R – Sim, pelo menos de mim todo mundo gostava, a comunidade gostava. Só não se dava bem mesmo era com a minha madrasta quando ela estava embriagada.
P/1 – E a escola? O senhor falou pra gente que estudou até o quinto ano. Como foi esse relacionamento com a escola?
R – Na época, quando eu convivia com o meu pai eu não devo ter estudado muito tempo, eu devo ter estudado no máximo dois anos. Porque o meu pai, ele tinha uma mania de sair e morar de cidade em cidade, passava pouco tempo, então era dois anos numa cidade, dois em outros e aí foi indo e nunca tive tempo de estudar, né? E como não tinha tempo de estudar, tinha que trabalhar pra ajudar meu pai.
P/2 – Você morou nesse lugar em que você nasceu até que idade? Você lembra, Severino?
R – Não lembro, mas em torno de cinco anos, seis anos, eu não tenho muita lembrança do local.
P/2 – E você foi mudando de cidade lá em Pernambuco mesmo?
R – Isso, Pernambuco. Morei em várias cidades do Nordeste. Morei na cidade de Petrolina, morei na cidade de Carmo. Tem o Povoado do Carmo e tem uma cidade chamada Carmo. Não tenho o nome de todas as cidades que morei, morei em Belmonte, uma cidade que me marcou muito, gosto demais, gostaria de voltar lá.
P/2 – Por que te marcou?
R – Não sei. Eu estudei num ginásio onde tinha Ensino Fundamental e fiz muita amizade, todo mundo gostava de mim, sei que era um barato.
P/1 – E os professores, conhecendo o Severino?
R – Rapaz, eu sempre dei sorte porque todo mundo gostava de mim, os professores, os colegas. Era como se fosse um líder na classe.
P/1 – E como falou pra gente, o senhor não frequentou muito a escola, né?
R – Não.
P/1 – Na época, o senhor lembra, na sua cabeça, como era tudo aquilo, aquela vida, pro senhor?
R – No colégio?
P/1 – No colégio, a sua infância?
R – Eu me sentia responsável, como se fosse um pai de família, né? Era obrigado a ajudar os meus irmãos, então tinha que trabalhar pra ajudar a manter a casa.
P/2 – Os irmãos, filhos da sua madrasta?
R – Isso. Filhos da minha madrasta.
P/2 – Por que você acha que você acabava sendo uma liderança na classe, Severino? Você consegue pensar nisso?
R – Não sei (riso), porque na maioria das vezes as pessoas quando queria alguma coisa, uma ideia nova, então me procurava.
P/1 – Você estava sempre ali.
R – Sempre na frente (riso).
P/1 – E quando o senhor foi ficando mais jovem, crescendo, entrando na faixa da adolescência, como foi? O senhor continuava mudando de cidade em cidade?
R – Isso. Eu acredito que até os 12 anos eu devo ter morado em umas 12 cidades. Meu pai não ficava muito tempo na cidade. Era tipo andarilho.
P/2 – Ele trabalhava em quê quando ele ia mudando assim de cidade?
R – Ele era um profissional, ele era carpinteiro, ele fazia móveis, quando uma pessoa morria ele fazia o caixão, entendeu? Então ajudei muito fazer caixão pras pessoas que morriam.
P/2 – Você aprendeu a marcenaria com ele?
R – Não, não aprendi, porque quando ele estava fazendo caixão era uma coisa que me fazia ter medo, então acho que aquilo ali me afastou um pouco da profissão dele.
P/2 – Quando você fala que você tinha que fazer caixão, te afastou um pouco da profissão, né?
R – É, afastou. Porque a gente fica com medo, eu ficava vendo aquele caixão o tempo todo na minha frente, pensando na pessoa que ia estar ocupando o caixão, o defunto, então tudo isso me intimidava. Talvez tenha sido esse o motivo de não ter seguido a profissão do meu pai.
P/2 – Severino, quando ele ficava mudando de cidade, você conseguia trabalhar nessas cidades?
R – Trabalhava porque eu acompanhava o meu pai, né? Se ele pegava uma construção pra fazer eu ia ser o servente dele, então, queira ou não era obrigado a trabalhar.
P/1 – E pessoas que o senhor lembra na sua infância? Algumas pessoas que te marcaram, que não eram da sua família, teve algumas?
R – Teve o meu tio Manuel que morreu de um acidente de caminhão, caiu do caminhão em movimento. Então esse era a pessoa que se eu estivesse com ele talvez eu seria uma outra pessoa, melhor, não sei, mas ele me ensinou muito, foi uma pessoa muito boa pra mim.
P/1 – Irmão do seu pai?
R – Irmão do meu pai. Fez muita falta quando ele partiu desse mundo pra outro.
P/2 – Você era novinho ainda?
R – Era novo.
P/1 – Seu tio, irmão do seu pai, ele era caminhoneiro?
R – Não, ele era dono de sítio, trabalhou, quem trabalha na roça é o nome de?
P/1 – Caseiro?
R – Não a roça era dele, o sítio, lá não fala chácara, fala sítio. Então o sítio era dele, ele sobreviva do que conseguia plantar e colher do sítio dele.
P/1 – Nessa cidade?
R – Isso, no município de Serra Talhada.
P/1 – Um momento o senhor teve vontade de morar com o seu tio?
R – O tempo todo. Gostaria, me dava muito bem com ele, então pra mim, se eu estivesse com ele, era melhor do que estar com o meu pai, por causa da minha madrasta que judiava muito de mim.
P/1 – E o senhor já teve essa conversa com o seu pai, de que queria ter morado com o seu tio, de querer morar com ele?
R – Não, nunca tive. Porque eu tinha medo de falar pra ele, ele falar pra madrasta e ela me bater quando ele saísse de casa, então não tinha.
P/1 – E lá com o seu tio, você tinha primos, ele tinha filhos, vocês tinham convívio, como é que era?
R – Não tinha filhos, talvez era por isso que ele gostava bastante de mim, né? Então não tinha filhos.
P/1 – Ah, era como se você fosse um filho pra ele.
R – Isso.
P/2 – Você falou que ele morreu com caminhão em movimento?
R – Que antigamente o pessoal chamava, como é o nome daqueles caminhões que carregavam as pessoas pra ir pra feira? Pau de arara. Então, o caminhão foi fazer uma manobra, na medida que ele foi fazer uma manobra ele caiu e o pneu passou por cima dele. Então quebrou a bacia e ele faleceu.
P/1 – Como foi receber essa notícia na época? O senhor era criança?
R – Era criança, deveria ter meus nove anos, dez anos no máximo. Então foi muito triste, doeu bastante, você perder uma pessoa que você imaginava ter ele pro resto da vida, então, doeu muito.
P/2 – E com que idade você se afastou do seu pai e da madrasta?
R – Do meu pai e da madrasta foi em torno de 11 a 12 anos.
P/2 – Como foi, Severino, que você fez isso?
R – Essa é outra história um pouco meio complicada.
P/2 – Você pode contar?
R – Eu morava em Petrolina, eu lembro mais ou menos. Morava em Petrolina e acho que nesse dia ela tinha me batido, então eu tinha comprado uma arma por nome, de dois tiros, ver se eu lembro o nome dela, garrucha. Garrucha não, acho que é garrucha, né? Então eu peguei, saquei da arma, tinha acabado de atirar com ela, tinha bala nela, tinha munição, mirei nela e puxei o gatilho mas não funcionou, graças a Deus senão eu seria um assassino hoje, né? Foi o que me levou a fugir dos meus pais, de ver o que ela me forçava a fazer.
P/2 – Você tinha 12 anos, Severino?
R – Tinha em torno de 11 a 12 anos. Pra fugir eu tive que ir pra rodoviária de Petrolina. Chegando lá não tinha dinheiro, estava de short, chinelo havaiana, camisa simples. Pedi ajuda aos passageiros no sentido de se passar como filho, foi a ideia que Deus me deu. E não consegui porque eu não tinha documento, ninguém queria me levar. Teve pessoas que estavam viajando, os passageiros, que me fizeram as propostas: “Olha, se você conseguir entrar no ônibus, tudo o que você precisar no decorrer da viagem a gente banca pra você”. Então eu consegui entrar no ônibus, nesses ônibus de viagem costuma entrar um guarda, um vigia, sei lá, e vai vistoriar o ônibus. E o cidadão estava vindo na minha direção. Eu fui pra última cadeira. Quando eu vi que ele estava vindo, o que eu fiz? Eu me abaixei debaixo daquela última cadeira, ele chegou até mais ou menos a penúltima, olhou, não viu ninguém, voltou e foi embora, aí o motorista deu continuidade, e eu fiz a viagem.
P/2 – Mas como é que você conseguiu entrar no ônibus?
R – Não sei (riso), Deus que botou a mão sobre mim e fez com que aquele cidadão não me achasse dentro do ônibus.
P/2 – E o motorista sabia que você estava lá?
R – O motorista sabia, mas ele fingiu não saber, porque senão daria problema pra ele.
P/2 – Você conhecia o motorista, aquelas pessoas?
R – Não conhecia ninguém.
P/2 – E que história você contou?
R – Eu contei a verdade, porque todo mundo que olhasse pra mim estava vendo, pelas marcas que tinha no meu corpo, então todo mundo queria me ajudar. Inclusive antes de sair de Petrolina e fazer essa viagem, eu vendia papel, esses papéis de saco de cimento. Lá no Nordeste muitas pessoas, não sei se usa hoje, mas em Petrolina fazia, as pessoas iam nas obras e recolhiam o saco de cimento, pegava ele, limpava o saco de cimento, aquela última que tinha contato com cimento, eles tiravam fora e descartava e as outras faziam saquinho pra colocar farinha, pra colocar feijão, arroz, essas coisas. E eu tive a ideia, andando dentro da feira, e via que tinha aquele pessoa que vendia carne nas bancas, um monte de banca que vendia carne. E vendo aquilo ali eu falei: “Puxa, eu acho que esse pessoal precisa de um papel pra poder enrolar a carne”, aí eu tive a ideia de ir nas obras pedir, que eu não tinha dinheiro pra comprar, que as obras juntavam os sacos pra vender. Então chegava numa obra que tinha saído 200 sacos, pedia 10, 15, 20 sacos. “Pra que você quer esse saco?” “Não, pra cobrir a casa do meu pai, que nós não tem casa” “Mas como você faz isso?” “A gente faz por camada, assim e assim”, então eu mentia pra poder ganhar os sacos. Aí comecei a vender, a pegar aqueles papéis, cortava o saco de cimento, abria ele e fazia os pacotinhos e saía vendendo. No decorrer de uns dois, três meses eu tinha mais ou menos uns 20 clientes. Aí comecei não só a trabalhar com isso, comecei também trabalhar com fruta.
P/1 – Em Petrolina.
R – Em Petrolina, no bairro Areia Branca. E aí comecei a trabalhar com frutas, isso antes de fugir. A feira começava no sábado três horas da tarde, no domingo 11 horas acabava. No decorrer de seis meses, um ano, eu já tinha várias bancas porque eu não tinha dinheiro pra fazer aquele movimento pra comprar, mas os donos das bancas me vendiam o que sobrava pra me pagar com apuro, o que seria com o dinheiro da própria mercadoria. Então, eu não sabia controlar o que eu ganhava, gastava tudo, dava para as meninas nas ruas, para os colegas. E um senhor que tinha uma banca lá que era um fazendeiro queria me levar também pra morar com ele, deu tudo o que ele tinha, se eu aceitasse morar com ele, com o casal, com medo de minha madrasta me achar eu não aceitei. Cheguei até a subir no caminhão, viajar com ele um pouco, pedi pra que o caminhão parasse, chorando, com medo e com saudades dos irmãos e aí voltei e fui sofrer de novo, foi quando eu resolvi fugir.
P/2 – Essas frutas que você comprava, eles te davam as frutas que sobravam?
R – Não, era fruta de primeira. Seria, digamos, a gente levava duas, três mil bananas, vendia mil, duas mil, sobrava mil, essas mil bananas eu comprava pra pagar com oito dias, no próximo sábado.
P/1 – E você vendia essas frutas pra quem?
R – Pra comunidade, vendia para as pessoas, saía de casa em casa.
P/1 – E o negócio era bom?
R – Era muito bom, ganhei muito dinheiro só que eu não soube administrar, porque eu não sabia, o dinheiro vinha fácil, mas também ia fácil.
P/2 – E o seu pai e a sua madrasta, quando você saía pra fazer esses negócios, aí não tinha problema ou tinha?
R – Não tinha problema porque ele achava que eu ia trabalhar para os outros, só que eu estava trabalhando pra mim. Eu nunca falava pra ela, nem pro meu pai, que aquele produto era meu, porque como ela bebia e tomava tudo o que eu tinha, aí eu tinha medo dela tomar. Então digamos, eu estava numa banca e eu já tinha uma pessoa do meu lado pra assumir, quando eu via ela chegando essa pessoa assumia como dono, só que o dono era eu, essa pessoa trabalhava pra mim, né?
P/1 – E ela nunca soube?
R – Ela nunca soube. Então quando eu via ela vindo de longe, a pessoa já estava preparada porque tinha duas ou três mil bananas, ou mil abacates, aí a minha madrasta veio chegando, eu já falava: “Ó, minha madrasta está vindo, quando ela chegar aqui você pode dar três dúzias de banana, três dúzias de abacate”, então era limitado, entendeu? Enquanto dava muito mais pras pessoas de fora, eu dava menos pra ela porque o que ela fazia comigo, mas eu dava. Aí eu pedia ao cidadão, como se eu estivesse pedindo a ele pra liberar, só que aquela mercadoria era minha, eu tinha autorizado ele dar a mercadoria, as frutas.
P/2 – Você falou mil bananas ou entendi mal?
R – Mil bananas. Eu comprava não só de mil, às vezes era grande quantidade, era o que sobrava. Você imagina você chegar num monte de banana, eu peguei uma experiência tão grande, um dom que Deus me deu, que eu olhava praquele volume e dizia quantas bananas tinha, então é uma coisa que poucas pessoas acreditam, mas eu tinha esse dom e sabia, não sei se era experiência, o tempo de trabalho com aquele produto, sabia quantas bananas tinha mais ou menos. Era muito difícil eu perder.
P/2 – E tinha um lugar que você deixava essas frutas todas?
R – No decorrer da semana eu levava pra minha casa, pra casa do meu pai, porque onde ele morava pagava aluguel. Só que a mercadoria não era minha, pro meu pai e nem pra minha madrasta, eu trabalhava para os outros. O caminhão chegava pra deixar melancia, melões: “De quem é isso aqui?” “Não, é de tal pessoa”. Ou a pessoa que ia levar também já estava instruído que a mercadoria não era minha, estava vendendo pra ele.
P/2 – E chegava de caminhão?
R – Chegava de caminhão, isso há mais de 30 anos atrás.
P/1 – Então o bairro era próximo?
R – O bairro era próximo à feira. Seria em torno de um quilômetro, dois quilômetros.
P/1 – E nessa cidade, Petrolina? Como era a cidade, essa feirinha era muito movimentada?
R – Muito movimentada. Era um barato, né? Então eu tinha aquilo ali não como uma área de serviço e sim como uma área de lazer, pra mim seria o lugar para me divertir, curtir. Eu trabalhava mas ao mesmo tempo eu curtia, porque naquele momento minha madrasta não estava lá, eu não tinha medo de nada.
P/1 – Isso você com 11 anos?
R – Isso em torno de 11 a 12 anos. A não ser quando eu via ela vindo, aí sim, aí tudo mudava, entendeu? Era como seu eu estivesse vendo tudo de ruim, aí eu mudava, ficava com medo.
P/2 – Severino, você falou que se divertia também. Como era essa diversão?
R – Divertia porque eu brincava, os outros chegavam, conversavam, tinha amizade. Tinha uma menina que eu gostava, que eu não sabia o que era namoro porque naquela época, acho que há 30 anos atrás, o namoro de hoje é muito esquisito, né? Mas aquela pessoa gostava de mim. Eu não sei se era namorada porque eu não tinha coragem de encarar como um namoro mas eu gostava da menina, né? E o nome dela, eu nunca me esqueci, o nome dela é Lindonete. O pai dela, a mãe dela tinha banca na feira, eu comecei trabalhando pros outros e aí passei a trabalhar pra mim, então ela sabia que a mercadoria era minha, a família dela sabia, mas nunca me entregaram, não (riso).
P/2 – Ela era novinha ou era mais velha?
R – Ela era mais velha do que eu, bem mais velha.
P/2 – E você alguma vez se declarou pra ela?
R – Eu não lembro, mas eu acredito que sim, eu tenho quase certeza que sim, porque naquela época existia um roupa por nome US Top e o óculos mais caro que existia na época era o Ray-Ban. Como eu não tinha com quem gastar o dinheiro que eu ganhava, eu gastava com ela, tudo o que ela quisesse ela tinha, entendeu?
P/1 – Você comprava as coisas pra ela, presente.
R – Eu não media esforço, não. Mas não era só pra ela, eu sempre ajudei as pessoas de fora que eu via que precisava, então, também não fazia esforço pra ajudar, não.
P/1 – E os pais dela?
R – Não, todos eles gostavam de mim porque eles viam o meu sofrimento, a minha batalha, sabiam que eu trabalhava de segunda à sexta, quando eu não estava vendendo picolé eu estava trabalhando pro meu pai. Ou seja, tinha aquele “horariozinho” de ir pro colégio, todo dia ia pro colégio porque eu tinha que trabalhar, não tinha aquele controle igual tem hoje, se a criança falta alguém vai na sua casa saber por qual motivo, na época não tinha.
P/2 – Você estudou em várias escolas ou só em uma?
R – Eu acredito, quando eu estava com meu pai foi em torno de duas escolas só. Em torno de duas.
P/2 – Voltando um pouquinho, fala o nome da roupa que você deu pra ela?
R – US Top. Acho que era US Top. Acho que nem existe mais, né, ou existe. Sei que a marca é muito famosa. O óculos Ray-Ban (riso).
P/2 – Ray-Ban está aí até hoje, né?
R – Ray-Ban eu não sei qual é o valor, mas ele é bem caro. Já era caro na época e ainda é mais caro, continua sendo.
P/2 – Severino, e você precisou aí fugir e como foi essa saída repentina da cidade? Como você se sentiu?
R – Ah, me senti perdido. Porque sair de um lugar pra ir pra não sei pra onde, então saí sem destino. E aí eu fui parar em Serra Talhada, chegando lá achando que a irmã do meu pai morava em Jatiúca, eu peguei um carro à noite, o pessoal me deu dinheiro, eu peguei esse carro chovendo. Como o transporte não cabia as pessoas dentro do carro eu fui do lado de fora do carro, “dependurado”, então as pessoas me segurando pelo braço, chovendo e pegando aquela chuva o tempo todo. Não tinha nada pra carregar, não tinha sacola, não tinha nada, só o que tinha no corpo. E chegando na cidade eu tive uma notícia de que meus tios não moravam mais lá, então, meu Deus, ter chegado por volta de 11 horas da noite, bati na casa que eu reconhecia e aí informaram que ele não morava mais lá. Como o pessoal procurou saber quem eu era e todo mundo gostava do meu pai e dos meus tios onde eu procurei, aí me deram abrigo durante essa noite. Passei a noite, no outro dia me levaram pra casa do meu tio, da minha tia lá em Serra Talhada. Quando passei um bocado de dia lá vendendo verdura e fruta na rua, a minha tia era muito boa pra mim, aí eles resolveram informar pros meus pais onde eu me encontrava. Isso meu pai chegou lá pra me buscar. Quando eu fiquei sabendo... Na realidade antes de alguém me informar, acontecia algo comigo que eu pressentia, aí eu senti que meu pai estava na cidade, mas eu achei que fosse somente uma constatação que estava na minha cabeça, de repente meu irmão vem correndo e fala: “Ó, o pai está atrás de você aí, veio pra te buscar”. Então eu já tinha decidido a não ir mais com ele. Cheguei lá, conversei com ele, com medo dele me bater, da minha madrasta, mas não me bateram. Ele chorou muito.
P/2 – Ah, ela estava junto?
R – Estava. Chorou muito, os dois choraram, choraram bastante, pediu perdão pelo que ela tinha feito comigo. Mas devido a eu ter sofrido muito tempo com ela ,eu falei um não e foi assim que foi, então não aceitei voltar mais com ela. Pra sair, com medo de voltar a sofrer de novo, né?
P/1 – Aí nisso eles voltaram pra cidade?
R – Ele perguntou se era isso que eu queria, eu falei que era. Aí ele falou: “Pra onde você quer ir?” “Eu quero ir pra onde está meu irmão”, aí me levaram pra morar com meu irmão. Só que quando eu cheguei pra morar com meu irmão, meu irmão muito bom comigo, mas já tinha a mulher dele. E aí eu muito novo ainda não dava conta de trabalhar em serviço pesado, ela arrumou uma oficina para eu trabalhar, pra lixar carro, fazer serviço forçado. E aí eu não dei conta, o que acontece? Voltei de novo a fazer coisa errada. Que aí ela queria que eu aparecesse com dinheiro de uma forma ou de outra. Então vai lá de novo pegar as coisas dos outros, roubar. E aí, mais uma vez, eu fugi.
P/2 – Severino, antes de você continuar, primeiro, onde morava seu irmão?
R – Em Recife.
P/2 – Recife. Você disse: “Eu voltei a fazer coisa errada”, mas antes...
R – Eu não tinha falado porque teve. A minha madrasta, mesmo eu tendo aquele, digamos, fazia o que era certo, ela me forçava a fazer o que era errado. O que era errado pra mim? Na época eu fazia, mas não sentia do que era errado, hoje eu sei que qualquer coisa que você pega de uma pessoa sem consentimento é roubo, naquela época, digamos, não tinha gás de cozinha, então você passava no fundo de uma padaria e tinha aquele monte de lenha, então ela: “Vai lá e pega lenha pra gente”, então a gente ia lá e pegava lenha que não era da gente. Se entrasse uma galinha dos outros no quintal nosso ela: “Pega essa galinha”, então ia lá e pegava. Era coisa errada, né?
P/2 – Mas você não tinha noção, né?
R – Não tinha noção do que estava fazendo. Então na realidade eu passei a ter noção depois que eu cheguei em Brasília, mas já muitos anos depois.
P/2 – Em Recife, voltando pra Recife agora.
R – Em Recife também eu não tinha conhecimento do que era certo. Sabia que era errado, que não era nosso, mas não sabia que aquilo era um roubo.
P/1 – E quando você descobriu?
R – Que era roubo?
P/1 – É, que você. contou que foi morar com seu irmão. E lá, como é que foi? Você começou a trabalhar na oficina.
R – Não dei conta.
P/1 – E voltou.
R – Saí da oficina e aí a minha madrasta queria que eu arrumasse dinheiro de qualquer jeito. Foi então que a gente ia fazer as coisas erradas, era pegar as coisas dos outros sem consentimento. Na maioria das vezes uma criança ou um menor vai pedir uma ajuda, as pessoas falam não. Eu vejo as entrevistas falar que não é certo, mas eu sou contra isso aí, eu acho que o certo, se você tem condições de ajudar, ajude, porque se aquela pessoa está pedindo é porque ela não quer roubar, entendeu? Quando eu tenho condições e a pessoa está pedindo dois reais: “Pra onde você vai?” “Pra tal lugar” “É pra pagar a passagem?” “Não, é pra fazer um lanche” “Quanto é o lanche?” “Dois reais” “Então toma dez”, se eu tenho condição de dar, eu dou. Porque eu sei o que eu passei, se alguém tivesse feito o que eu faço hoje talvez eu não tivesse pegado a coisa errada dos outros, entendeu? Então eu acho que a mídia trabalha muito errado, fala que é errado ajudar. Não é! Errado é você não ajudar, porque se a pessoa está pedindo é porque não está com a intenção de fazer coisa errada, entendeu?
P/2 – Severino, e você conviveu com essa pessoa que era a sua cunhada, que também forçou você, de certa forma. E quanto tempo você ficou com eles?
R – Eu não lembro, em torno de um ano.
P/2 – Um ano. E durante essa convivência tinha sobrinhos?
R – Tinha irmão.
P/2 – Outro irmão, só o seu irmão.
R – Não, perdão, era sobrinho. Irmão era o marido dela, eu tinha sobrinho sim.
P/2 – E na casa, tinha alguma coisa que você fazia que era bom pra você e que você gostava?
R – Sim, eu vendia amendoim para o meu irmão, eu trabalhava na Ponte Boa Vista vendendo limão, laranja, então isso era muito bom pra mim, né? Mas aí tem aquele negócio por nome do rapa, que era o que recolhia mercadoria, e aí pegaram a mercadoria do meu irmão, o meu irmão não teve condições de trabalhar. E aí eu tive que ir pra oficina, não dei conta e fui fazer coisa errada. Foi quando eu resolvi, mais uma vez, fugir.
P/1 – E daí você foi pra onde? De Recife?
R – Daí eu fui pra cadeia.
P/2 – Ah, porque não deu pra fugir.
R – Não, porque aí eu fui roubar de novo, né?
P/2 – Severino, como foi toda essa situação? Como que você viveu isso de ser preso?
R – Como eu tenho?
P/1 – Como ocorreu?
P/2 – Como aconteceu tudo isso, conta pra gente o que você quiser contar. Se você não quiser também não precisa contar.
R – Até que eu gostaria, mas eu estou um pouco perdido quanto à pergunta.
P/1 – Como foi a situação de você ter sido preso? Você foi roubar alguma coisa, a polícia chegou e te prendeu?
R – Isso. Eu acho que eu não lembro muito bem, mas eu acho que eu já tinha roubado. E aí a polícia me pegou, eu fui preso. Preso, não é bem preso, eu estava tipo corredor.
P/1 – Detido?
R – Isso, detido. Até alguém de maior ir me buscar. Só que aí eu fui preso junto com outro menino que tinha matado um cidadão. Só que eu não tive medo, estava preso com um assassino. E nessa cidade que eu tinha fugido de Recife, voltando pra Serra Talhada, é onde eu tive as pessoas que me apoiava, que eu fui preso, esse menino que matou um cidadão, senhor de idade, e eu fiquei, acredito que eu devo ter ficado, não tenho bem noção do tempo, mas no mínimo uns cinco dias, de cinco a 15 dias, não faço o menor sentido quantos dias eu passei. Então você imagine que esses dias todos que eu passei a única alimentação que eu tinha era água. Por quê? A mãe do menino que foi preso, os familiares dele levavam comida pra ele, só que como eu não tinha ninguém, eles também levavam comida pra mim, só que a comida que o menino comia eu não comia, eu não como várias coisas. Então chegava uma sopa, um macarrão com carne picada, ou um feijão com carne cozida dentro, então eles me davam comida, eu fingia que comia e jogava dentro do banheiro, então nunca comi. Esses dias que eu fiquei, eu passei muita fome, sofri muito. Não lembro se eu apanhei, se eles me bateram, isso eu não lembro, não faço ideia.
P/1 – E esse rapaz, você já conhecia ele?
R – Não, não conhecia, porque eu estava passando de uma cidade pra outra, então foi uma coincidência, eu fui preso e ele foi junto.
P/1 – Mas na mesma hora?
R – Ele matou na mesma cidade, só em local diferente. Ele fez uma coisa e eu fiz outra, só que eu não faço a menor ideia de quem era essa pessoa.
P/2 – E nesse meio tempo todo que você ficou nessa situação, fazendo tudo isso que você falou, você conheceu outra pessoa que você gostou?
R – Não (riso). Nesse meio tempo não. Ah, pra sair de lá de onde eu fui preso, pra sair da delegacia, igual eu falei dependia de uma pessoa de maior pra ir me buscar e tirar de lá. Meu avô foi, conseguiu ficar sabendo através de um agente que trabalhava lá e eu falando de quem eu era filho e aí ele procurou a família, conseguiu achar o meu avô, meu avô foi e me buscou. Passei algum tempo morando com meu avô, não sei quanto tempo, inclusive ele não queria que eu saísse dele, porque todo mundo, na cidade, pra onde me levou pro sítio o carro gostava de mim e queria ficar comigo, só que eu queria vir pra onde está minha mãe, aí ele falou: “Então vou te levar”, aí pegou e me trouxe pra Brasília. Foi aí que houve a grande mudança, transformação.
P/2 – Ah, é?
R – Isso.
P/1 – Você tinha quantos anos quando você chegou aqui?
R – Devia ter meus 12 anos, no máximo.
P/1 – Então foi bem rápido, né?
R – Foi. O sofrimento?
P/1 – Não.
R – Não foi bem rápido, não, você imagina você 12 anos sofrendo.
P/1 – Não, não, estou falando assim, essa mudança pra Recife.
R – É, isso foi rápido.
P/2 – A última fase de sofimento, ele quis dizer.
R – Isso, a última fase do sofrimento, graças a Deus, foi rápido. Foi através do meu avô que me tirou de lá, passei a viver com ele, dele vim morar com a minha mãe. Foi daí que minha vida mudou pra melhor.
P/1 – E como foi essa transição, você chegando aqui em Brasília com o seu avô, mas você tinha parentes aqui, como é?
R – Tinha minha mãe que morava aqui. Minha mãe, alguns tios. Aí também, quando eu vim pra Brasília, que foi na época, aí você vê que eu não tinha muito conhecimento de nada, que eu vim armado com uma faca e uma peixeira na cintura, um capacete na cabeça, se não me engano era branco, capacete de obra, achando que estava abafando (riso), que era bonito. Era bonito pra mim, mas muita gente deve ter gozado da minha cara. Mas mesmo assim eu vim, chegando aqui eu tive outra decepção porque, acostumado com cidade, eu fui pro Queima Lençol. Quando eu cheguei lá de noite, falei: “Ah, cadê a rua? Não tem rua. Amanhã eu devo ver a rua”. No outro dia quando eu acordo, que eu vou andar na rua, lá não tem rua, só tem mato, mato pra um lado e mato pro outro (riso). Aí até acostumar com a Fercal demorei muito, mas hoje tudo o que eu tenho foi através da Fercal, através das pessoas que me ajudam, então hoje eu me sinto o avesso ao que eu era, né?
P/2 – Sua mãe morava em Fercal?
R – Morava na Fercal, no Queima Lençol
P/2 – Queima Lençol.
R – Queima Lençol, que é o que fez, Queima Lençol é o que fez essa mudança toda na Fercal. Hoje a cidade de Fercal existe através da comunidade do Queima Lençol, que era a antiga Vila Planalto.
P/2 – Quando você chegou a sua mãe sabia que você ia chegar?
R – Sabia, foi ela que mandou me buscar, que conseguiu o dinheiro pro meu avô me trazer.
P/2 – Fazia tempo que você não encontrava mesmo ela?
R – Fazia, eu não conhecia, não tinha noção de que jeito era minha mãe, se era baixa, se era alta, se era gorda, entendeu?
P/2 – Como foi esse encontro, Severino?
R – Tudo é surpresa, porque com tudo o que eu passei com a minha madrasta eu ainda gostava dela, né? Porque eu tinha ela como mãe, então até eu conseguir ter o amor de mãe, de filho pra mãe, de mãe pra filho, levou um tempinho. Eu sentia falta da minha mãe, porque eu queria conhecer ela.
P/1 – Queima Lençol. Você chegou, cadê a rua? Como é que foi essa adaptação? O senhor se adaptou rápido à comunidade, ao jeito que era, diferente da cidade? Como é que foi isso?
R – É, eu consegui me adaptar rápido, mas é igual eu te falei, eu tive aquele sentimento ruim, porque eu esperava ir pra cidade e fui pro vilarejo, era uma vilinha. Você chega num lugar que você imagina que é uma cidade, aí você chega e vê uma ruazinha pequena, então aquilo na tua cabeça, para uma criança, é ruim pra caramba, sabe? Foi difícil até eu conseguir me adaptar, mas consegui. Fiz muita amizade e comecei de novo no ramo do comércio vendendo lanche na porta da Ciplan, então através disso aí… A minha mãe mais o meu padrasto tinha um barzinho, eu pegava refrigerante dele, comprava bolo, fazia pão com ovo e ia vender na Ciplan.
P/2 – Quem teve essa ideia do lanche?
R – Essa ideia fui eu vendo os outros vendendo lá, né? Então eu comecei vendendo, comprava pouca quantidade e aí eu trabalhando eu comecei a ir buscar refrigerante lá em Sobradinho. Tinha um depósito lá, o nome do dono lá era seu Argentino, na Quadra Central. Tinha um refrigerante por nome Xereta que é o que a gente mais trabalhava, Xereta. Era Xereta e Crush. E aí eu comecei a comprar na mão dele, eu comprava uma caixinha, duas caixinhas e no decorrer do tempo eu comecei a aumentar a quantidade. Aí falei pra ele que a minha mãe mais o meu padrasto tinham um barzinho, aí ele: “O que você quer?”, eu falei: “Nada não”, meu padrasto precisando de mercadoria, eu falei pra ele, abri o jogo, ele falou: “Então o que você precisar aqui a gente leva”. E aí eu com 13, 14 anos que eu já deveria ter nessa época, ganhei a confiança do dono do depósito, eu comprava grande quantidade, ele ia lá e levava pra mim.
P/2 – Ele ia levar pra você?
R – Ele ia levar pra mim. Quando eu não levava no ônibus, que eu acredito que alguém aqui deve ter conhecido um rapaz por nome Mixaria, o motorista do ônibus. Então, o ônibus parava na parada, eu botava dez, 12 caixas de refrigerante e cerveja dentro do ônibus. O ônibus passava a maioria do tempo esperando eu colocar a mercadoria e depois esperando eu descer. Então esse Mixaria é vivo até hoje, que Deus ilumine ele, mas ele me ajudou muito a crescer na Fercal.
P/2 – E teve alguma situação inusitada dentro desse ônibus? Ninguém reclamava pelo tempo que demorava, alguma situação assim?
R – Não. Nessa época nunca tive porque todo mundo já começou a conhecer quem era o Severino, vendo lanche na Ciplan, então, todo mundo me ajudava. Eu chegava na parada do ônibus pra colocar dez, 12 caixas, às vezes não dava conta, aí o pessoal descia do ônibus pra poder me ajudar a colocar as coisas dentro do ônibus.
P/2 – E você levava pra vender ou pro bar do seu padrasto?
R – Levava pro pai do meu padrasto e da minha mãe e também mercadoria pra vender, ou seja, abastecia o comércio dele e abastecia o meu comércio.
P/2 – E os lanches? Você fazia?
R – A minha mãe fazia pra mim e me levava pra vender lá. Comprava o bolo, fatiava o bolo, então vendia as fatias, os pedaços. Eu sei que eu ganhei muito dinheiro.
P/2 – E depois você foi fazendo isso e o que foi acontecendo depois? Conta pra gente.
R – Depois eu comecei a trabalhar na firma Planalto, que era Vila Planalto, ganhou o nome da empresa, no Queima Lençol. Foi daí que eu comecei a fazer o Arraial do Severino, né, no Queima Lençol.
P/2 – Por que tem esse nome, Queima Lençol?
R – Eu não sei bem contar a história, mas diz a lenda, o pessoal conta que foi uma doença que deu no pessoal e morreu várias pessoas e aí devido a essa doença, pra não passar pra outras pessoas, eles queimaram lençol. Mas tem pessoas que têm conhecimento e podem passar.
P/2 – Severino, e nesse meio tempo você se divertia como, além de trabalhar assim, que também era bom. Como é que você se divertia nessa época? Aqui?
P/1 – Adolescente, né, jovem, como é que era?
R – Eu não era muito de ir pra festa, então, quando tinha uma festa de aniversário na família, lá no seu Luizão, então, o lugar que eu mais andava lá era nas festas do seu Luizão, que ele fazia muitas na casa dele, de 15 em 15 dias ele fazia o forrozinho. Eu gostava de dançar lambada, então ia pra casa dele.
P/2 – Você era bom dançarino.
R – Não, eu ia lá só pra ver os outros dançando (riso).
P/1 – E a ideia do Arraial do Severino?
R – Eu não sei como essa ideia surgiu, eu sei que eu vi. Ah! Surgiu assim, perdão: meu irmão teve uma doença e aí o meu padrasto fez uma promessa, e nessa promessa ele tinha que colocar uma árvore com fruta no meio da fogueira, em cima da árvore, e aí colocava fogo na fogueira, quando essa árvore caía, aí tudo o que tinha na árvore era para as crianças que estivessem ali pegar, criança, adulto. Foi aí que eu tive a ideia de começar uma festa junina. E aí comecei (riso), que eu nem sabia o que era uma festa junina, via os outros dançando e falei: “Vou fazer também”, daí comecei. Comecei, fiz o primeiro ano, fiz o segundo, aí foi crescendo, crescendo, chegou um ponto que a Fercal é pequena para fazer o Arraial do Severino, hoje, né? Então fiz em torno de uns dez eventos no Queima Lençol, na minha rua eu fiz uns três, no seu Luiz eu devo ter feito uns quatro, cinco. Fiz mais uns três na Cohab em frente à Ciplan, então, foi lá que começou o Arraial do Severino, inclusive a Tocantins também me ajudou na época, eu estava fazendo a apresentação de uma quadrilha e aí me procuraram pra treinar o pessoal. Eu fiquei com medo de fazer coisa errada então não aceitei o convite, mas indiquei outra pessoa. E aí eles começaram a me ajudar também, me fornecendo amplificador e outros materiais que eu não lembro, mas me deram uma grande força também pra dar continuidade ao Arraial do Severino.
P/1 – E o primeiro arraiá? Como foi a organização? Foi lá no Queima Lençol, né?
R – Foi no Queima Lençol. O primeiro Arraial do Severino foi feito com radiola à pilha, com amplificador fornecido pela Tocantins, não sei como eu consegui ajuda lá. Se não me engano, eu trabalhava na Brasília que prestava serviço pra Tocantins, uma firma. Então eles ficaram sabendo dos eventos que eu fazia e aí pedi ao Grepe, acho que é o Grepe, que tem de lazer lá no Tocantins, e aí o responsável pelo Grepe me forneceu o amplificador e outras coisas que eu precisava. Os cartazes eram desenhados a mão, né? Não tinha gráfica naquela época, tinha pessoas na comunidade que desenhavam para mim, o correio elegante tinha as meninas que faziam os cartãozinhos, eu comprava as cartolinas. Os desenhos a gente fazia na mão e passava numa máquina por nome mimiógrafo. Então, era para eu ter cartaz até hoje, eu guardei um bocado de tempo, depois não aguentei guardar e joguei no mato. A polícia, fui a primeira pessoa no DF a levar policiamento para evento particular. A primeira pessoa no DF, sendo de menor! Por que aconteceu isso? Porque tinha uma turma aqui no 18 que brigava muito, que hoje ele se regenerou bastante, um deles é Nica, outro era Dida, meu primo, e várias outras pessoas que bagunçavam muito. Então, eles mandaram falar pra mim que o evento meu não ia acontecer. Aí com medo e preocupado com a segurança minha e de meus familiares e de quem ia, resolvi ir pra delegacia. Só que quando eu cheguei lá eles não aceitaram a denúncia minha porque eu era de menor, e nem tampouco me ajudaram, ele falou: “Olha, você vai fazer o evento?” “Vou” “Qual dia?” “Tal dia” “Então tá bom, a gente vai fazer da seguinte forma, vai te orientar e você vai fazer isso e isso”. Aí pegou e me orientou a fazer um ofício, só que eu não podia fazer o ofício, porque o ofício tinha que ser no meu nome, mas registrou a ocorrência. Levei a minha irmã lá sendo de maior, minha irmã assumiu, registraram a ocorrência. Eles me prometeram a Civil ir pra lá. A Civil foi num fusquinha, porque na época não tinha a viatura, foi num fusquinha. Consegui a polícia PM, acho que era Delegado Machado, através dele, ele fez um ofício para o Terceiro Batalhão, Décimo Terceiro, não era terceiro, era Décimo Terceiro CIA, não, era o Décimo Terceiro Batalhão. Aí mandou o ofício pra lá, anexado ao pedido meu para o Décimo Terceiro CIA e eles mandaram policiamento. Só que houve um acordo entre eu e o comandante na época, que pra mandar aquela polícia, eles mandariam quatro policiais contanto que eu tivesse o carro pra transportar os policiais pra festa, pra ficar até num horário determinado. Foi aí que eu aluguei uma Caravan, acho que era caravan, e aí levou os policiais. Fizemos o evento, aconselharam se tivesse uma árvore grossa que colocasse uma corrente muito grande, lá, um cadeado, para o valentão que tivesse a gente colocar lá. Fiz isso, todo mundo foi, os valentões foram (riso), brincaram até amanhecer o dia e não teve confusão nenhuma. E foi daí pra frente que demos continuidade à festa. Anos depois foi que veio a passar a ganhar o nome de Arraial do Severino.
P/1 – E como você se sentiu depois da primeira edição, depois de vocês terem feito isso? Porque o senhor levou lazer pra população. O pessoal começou a te conhecer mais, como foi isso?
R – Na realidade eu fazia mais essas festas, não era nem tanto com interesse em trazer as pessoas de fora pro evento, mas eu fazia mais pra minha família se divertir. Ou seja, nós não ia até a festa, a festa vinha até a gente, entendeu? Foi assim que eu resolvi dar continuidade, fiz até pouco tempo. E parei porque eu esperava, achava que teria de por obrigação esse Arraial do Severino, quem teria de mandar seria os empresários e o governo. Por ser uma festa tradicional, mais de 25 anos, então não dou conta de fazer mais. E hoje está muito difícil, você vai fazer uma festa dessa é drogado pra todo lado, é bandido, é isso e aquilo. Mas mesmo tendo o que tem, drogado, bandido, se o governo quisesse, fazia uma festa e não acontecia nada, manda um policiamento, dá assistência. Você vai fazer uma festa hoje é complicado. Você tem que tirar alvará disso, alvará daquilo, você paga isso, paga por metro quadrado, paga pra segurança, paga pro mercado, aí não dá conta. Aí parei de fazer.
P/2 – Severino, quando você fez a primeira, mais ou menos que idade você tinha?
R – No máximo, no máximo uns 14, 15 anos.
P/2 – Você disse que, não sei se eu estou certa, mas você disse que não tinha luz na época.
R – Não tinha.
P/2 – E como é que fazia?
R – Lampião. Eu comprei alguns lampiões, pedia outros emprestados, então toda comunidade participava: “Severino, o que você quer, Severino?” “Preciso de lampião” “E as palhas?” “Preciso de um caminhão”. Aí um me fornecia palha, outro me fornecia o caminhão. Uma vez eu fui acusado de ter tirado as palhas de coqueiro de um terreno da Ciplan, só que eu tirei as palhas do coqueiro, eu esqueço o nome do senhor, seu Vicente, onde que era a fábrica do Mundo das Tintas, onde fabricava tinta. Então eu tirei as palhas numa propriedade particular com autorização do dono; o cidadão que levou as palhas pro local da minha festa, o nome dele é Pereira, foi o caminhão que levou meu material. Só o que acontece? Esse Pereira veio com uma equipe de um pessoal e tirou as palhas dentro da propriedade da Ciplan. Nisso o pessoal do Ciplan passou e viu o caminhão lá. Só que quando, na segunda-feira depois do evento passado, a Ciplan me mandou chamar lá. Quando eu cheguei lá tinha umas quatro pessoas lá, me botaram numa salinha apertada lá e começaram a me pressionar, polícia de um lado, o chefão de outro, e dizia que eu tinha invadido lá dentro. Eu falei: “Não foi eu” “Foi você” “Não foi eu. Então tá bom, estou falando que não foi eu, vocês se manifestem da maneira que vocês achar, vocês têm a palavra de vocês, eu tenho a minha, não foi eu e pronto”. Aí virei as costas e saí. Como não tinha sido eu, eu sabia quem tinha feito. Mas como a acusação era pra mim, eu falei “eles que vão ter que provar o contrário”. Eu saí e não deu nada, mas eu segurei um pepino que não era meu devido ao camarada ter me ajudado. Eu falei “pô, foi tal pessoas, mas não vou entregar ele” e aí não entreguei, a acusação era pra mim. Se a pessoa está me acusando de uma coisa que eu não fiz e foi outra pessoa, então meu amigo, ele que se vire pra descobrir quem foi, né?
P/2 – E devia ficar bonito, Severino, os lampiões?
R – Era muito bonito, sabe?
P/2 – Você lembra, tem a imagem de como ficava?
R – Tenho, na minha mente eu tenho. O pessoal se divertindo, meus irmãos pequenos.
P/2 – Descreve um pouco o que você lembra, o que vem na sua cabeça?
R – Seria melhor, não sei, eu tenho um vídeo aqui, o difícil é achar a fita certa, mas vocês teriam que ver pessoalmente a fita, aquilo assim, como começou, a criança que tinha sete, oito anos, dançando na quadrilha junto com pessoas de 20 anos. Hoje essa criança de sete já tem filho de dez, 15 anos, entendeu? Então é um barato, foi um registro da comunidade crescendo junto, entendeu? As crianças se transformando em adultos. É essa a lembrança que eu tenho, meus irmãos pequenos, correndo lá, todo mundo dançando quadrilha e eles chutando bola no meio, à noite, no salão de danças. É um barato.
P/2 – E você tinha quadrilha, parece que tinha, você que organizava a quadrilha?
R – Antes eram outras pessoas que gritavam a quadrilha, como eu não sabia. Depois eu comecei a pegar os macetes e eu mesmo comecei a treinar o pessoal, de acordo com a minha maneira, né? O pessoal vinha de fora fazer aquela coisa bonita, eu chegava com a minha coisinha simples, abafava e os outros saíam. Eu levava os aplausos e os outros ganhavam menos (riso). Era mais aplaudido do que os de fora que faziam melhor do que eu.
P/2 – Ah, porque vinha quadrilha de fora.
R – Vinha, eu convocava de fora também. Trazia de fora.
P/2 – E a sua quadrilha que fazia mais sucesso?
R – É, o pessoal gostava mais. Não sei se era porque eu era da comunidade: “Não, vamos puxar saco pra ele”, e aí todo mundo batia palma (riso).
P/2 – Tinha alguma música, Severino, especial, que você lembra?
R – Forró Sem Briga, era o que a gente usava mais na época, Forró sem Briga.
P/2 – E você cantava ou não, punha lá a radiola?
R – Não, era radiola. Aí com o tempo foi que eu comecei a passar a usar a equipe de som, as maiores equipes de som que veio na Fercal fui eu que trouxe. O primeiro palco montado na Fercal também fui eu que montei. Inclusive eu montei aqui onde que funciona hoje a administração. O palco eu que fiz. Consegui material emprestado, levantei um palco de uma altura de um metro e meio, dois metros, tudo com segurança. Aí chegaram assim: “Quem fez isso?” “Não, foi Severino” “Mas Severino é o quê, engenheiro?”.
P/2 – Você que montava?
R – Eu que montava o palco, a parte de distribuição de energia, ponto, refletor, era tudo organizado por mim. Inclusive trabalhei na administração quatro anos e os eventos maiores que a administração fazia também era eu que fazia a ligação, parte elétrica. Então também cheguei a prestar serviço pra Tocantins, entendeu, parte elétrica de evento que ela fez aí na praça.
P/1 – E depois que você começou a fazer o Arraial, quais foram seus próximos passos? O que mais você fez pra comunidade?
R – O Arraial do Severino, você quer falar? Arraial foi na parte de interesse de mudar a visão da Fercal. Foi quando o pouco que eu sei hoje de política, eu aprendi com dois companheiros, só que pra você aprender você tem o seu preço, né? Então essa pessoa me ajudou, mas em compensação eu tive um preço bem alto, porque pagava de uma forma… Digamos, assim, aprendi com ele, mas prestava serviço de uma outra maneira pra pagar, foi o que eu entendi, né, o que eu aprendi. Mas agradeço pela experiência que eu tenho a essas duas pessoas, foi através delas que eu aprendi a fazer política. Criamos uma associação pra poder defender a Fercal, que foi a ACF, a qual eu era presidente. Iniciamos com o meu nome e está até hoje no meu nome. Passou mais ou menos uns 15 anos essa associação no meu nome. Quando eu fui entrar no GDF eu tive problema por não declarar todo ano imposto, imposto não, quando você declara você é isento, né, associação. Como eu não declarei, quando eu fui entrar no GDF eu estava com um débito muito alto com a Receita Federal, e aí eu tive que ir lá, negociar, renegociei o débito, entrei. Mas voltando à pergunta que vocês fizeram, o interesse de mudar Fercal, foi quando a gente resolveu fechar a rodovia pela primeira vez através de um pessoal que estava sendo desabrigado da rede de alta tensão e procurei a deputada Niceia Machado junto com umas 15 pessoas.
P/2 – Que pessoas ajudavam você, Severino?
R – Era a comunidade mesmo. Era o João do seu Adão, o Carlinhos, o Pastor Silvério que me ajudou muito. A Nelita e o Delcio, que foi com eles que eu aprendi tudo o que eu sei hoje.
P/2 – Tião também? É seu Antônio?
R – Seu Antônio também fez parte do mesmo movimento. Eu pedia ajuda a ele e ele vinha, o Valdeilson que é genro dele. Então muita gente na comunidade me ajudava. E você olha aí e a DF-150 hoje está aí, muito bem feito o trabalho, que o Governador Arruda fez. Mas poucas pessoas sabem que pra vir aquela melhoria pra cá quem foi a peça fundamental, de que maneira fizemos pra poder trazer o governador em exercício aqui pra fazer o que foi feito na DF-150, o asfalto da Vila Azul, o posto de polícia. Então tudo isso aí foi conquista nossa, daquelas pessoas que me ajudaram, não foi só minha. Às vezes eu falo eu, mas esse eu está errado, era uma equipe, nós tínhamos umas 15, 20 pessoas que trabalhavam junto comigo. Inclusive a Andreia na época me ajudou, Geraldo Naves, que foi deputado, também me ajudou, a filha dele. Esse foi o maior movimento, foi quando parou a Fercal. Eu falei: “Gente, nós vamos parar a Fercal”. O deputado falou: “Você tem certeza que você vai fazer isso?”. Eu falei: “Vou fazer, nós vamos fazer” “Severino, eu vou te dar todo o jornal de graça”, que é vendido o jornal, né? E nós saímos acho que foi numas três folhas, teve a capa: “Fercal vai parar”. Falei, será que vai parar? O que eu fiz? Tudo tem que ser articulado, né? Eu reuni umas mulheres bonitas, porque você fechar uma rodovia dessas onde mais ou menos 500, 600 caminhoneiros descendo, rapaz, ali vem gente preparado pra passar por cima de mil pessoas, é sério. Eu fui tirado uma vez de um dos movimentos lá por uns dois ou três colegas, falou: “Ou tu sai daqui ou o pessoal vai te linchar”, porque um cidadão morador aqui da Fercal, não vou citar o nome dele, nem tenho medo, mas ele pisou na bola porque eu estava batalhando pra trazer melhorias, reunindo um grupo pra me linchar. E aí o pessoal ouviu, chegaram e me tiraram. Eu não queria sair: “Ou tu sai ou tu morre”. Aí me tiraram do movimento, eu vim embora pra casa, no outro dia consegui pegar ele, olhei pra cara dele, ele não teve coragem de reagir então deixei quieto. Fui queimado na rodovia com fogo, no próprio movimento que eu liderei, a polícia queria desarticular o movimento e eu não queria que desarticulasse. Deram voz de prisão pra mim, pro Delcio, me empurra pra lá, me empurra pra cá, o que me queimou não foi nem o fogo, foi a labareda do pneu. Você imagina uma queimadura de segundo grau no braço, foi queimado às nove horas da manhã, fiquei até 11 horas do dia tentando resistir. Só que chegou um ponto que eu não chorava, as lágrimas saíam dos meus olhos, o corpo não ficava mais em pé, já ia caindo porque era de dor, de tanta dor, começo a escorar no lugar e as pessoas me botaram sentado no chão. Então, botaram ovos, botaram outras coisas e aquela dor continuando. Aí eu vi que não aguentava e falei: “Gente, não aguento, tenho que ir embora, preciso que me levem em casa”. Aí: “Severino, o que nós vamos fazer? Nós precisa de uma estratégia pra que a polícia fique aqui o dia todo”. Eu falei: “Tá fácil”. Deus é tão bom que Deus sempre guiava as minhas palavras. “O que nós vamos fazer?” “Gente, eu vou saindo aqui e vocês me perguntam que hora” “Tá bom, Severino”. Aí eu fui saindo, aí um cara grita lá: “Severino, que hora?”, eu falei: “Três horas”, o outro: “Severino, que hora?” “Três horas”. Aí todo mundo: “Que hora?” “Três horas”. Aí nisso vim embora. Quando eu cheguei em casa, isso por volta de doze e meia, uma hora da tarde, aí chegou o pessoal, a polícia, um monte de policial, o Delcio veio junto. “Severino, a polícia quer falar contigo aí, o comandante está aqui querendo falar contigo?” “Podemos”. E o braço pingando, aquela água assim, aquele negócio bem doído pra caramba. Aí: “Tudo bem, vamos conversar” “Severino, eu vim pedir um favor a você”, comandante falando comigo, “estou sabendo que vocês vão fechar de novo às seis horas da tarde, o nosso pessoal está com fome, está com sede, não tomou café, estamos sofrendo no meio do sol. Não fecha, não. Me dá essa palavra sua” “Mas quem disse que eu vou fechar?” “Mas você vai fechar, você falou pra todo mundo que era três horas”. Eu falei: “Meu amigo, eu falei que era três horas pra vocês ficarem lá sofrendo” (riso) “Quer dizer que você não vai fechar?” “Não” “Severino, tenho a sua palavra que você não vai fechar?”, eu falei: “Tem a minha palavra de hoje, que eu não vou fechar hoje, mas eu te garanto que daqui uns dias a gente vai fechar, é só eu ficar bom do braço”. E aí, fiquei bom e fechei de novo. Chegou a última vez que foi na época do nosso governador Arruda, que foi o melhor governo que tivemos pra Brasília, foi quando fechamos. Foi aí que a Fercal parou, falei que a Fercal ia parar e parou. Eu não falava sozinho, porque quando eu falava tinha muita gente que estava comigo, eu falei: “Eu estou falando porque as pessoas vão comigo”. Aí fomos no governador, a Andreia foi junto, junto a dona Linda que também me ajudou, todo mundo tem defeito, eu tenho o defeito meu, eles têm os deles, mas eles também ajudaram muito na mudança da Fercal. Quando sentamos com o governador em exercício, que era o Paulo Otávio, o governador Arruda tinha viajado, aí ele quis saber se realmente ia fechar, eu falei que ia. “Mas você vai fechar?” “Não, eu não. Eu estou apenas fazendo frente, porque a comunidade me procurou, quem vai fechar é a comunidade”, mas era eu que gastava, eu que corria atrás de pneu de caminhão, de tudo. “Então tá bom, a gente quer saber o dia”. Eu falei: “Não, seu governador, eu não posso falar o dia. O senhor vai ficar sabendo no dia, na hora que começar você vai ficar sabendo, antes o senhor não vai ficar sabendo, mas que vai ser fechado, vai. Eu quero saber se o senhor vai” “Tem a minha palavra” “Nós vamos ter uma galinhada pra todos os manifestantes, pra mais de 500 pessoas”. Fizemos a galinhada pra mais de 500 pessoas, gastei do meu bolso, pedi ajuda, os comerciantes me ajudaram. Praticamente todos comerciantes, porque todo mundo queria mudança na Fercal. Então foi aí que paramos a Fercal, paramos três rodovias. Paramos a rodovia, aqui a 150, aquela do Pinheiral, a 425. E paramos a Ciplan. Ou seja, em um dia, no último movimento, geramos mais o prejuízo em torno de cinco milhões de reais para duas empresas, só duas empresas, sem contar as empresas pequenas.
P/2 – Porque os caminhões não passam, é isso?
R – Não passa, não subia, não entrava, não saía, para a produção, parava a venda, parava tudo. Então o que acontece? Quem pressionou o governo não foi o movimento nosso, quem pressionou o governo foi a Ciplan e a Tocantins. A Tocantins é até boa em ajudar a comunidade, né? Eu acho que ela ajuda, mas ela teria que ajudar mais. Não só ela, como as outras. Você chega aqui, a única que ajuda aqui é a Tocantins e Pedreira Contagem. Puxa vida, só tem eles aqui, tirando aqui. Como se diz, explorando a Fercal tem outras empresas, então, seria obrigação de todas. Eu falei, tem um galpão aqui que hoje vai ser um mercado muito grande que era da Ciplan. Eu queria tomar da Ciplan pra deixar pra comunidade porque, pôxa, está ali o galpão que é do Progresso, do Tigrão? Aquele ali eu ia tomar. Falei: “Vamos tomar”, mas a comunidade não me apoiou, porque se tivesse me apoiado nós teria tomado. Aí tá, voltando à vinda do governador, foi quando o governador se propôs a vir. Antes do movimento nós teve uma reunião na rádio com mais ou menos umas 20 pessoas, onde levantaram lá e falaram: “Se você der continuidade, você vai ser preso”. Eu falei: “Puxa, amiga minha, você me ensinou tanto. Quem é que vai me prender, é você? Prende e joga a chave fora”.
P/2 – Quem que falou isso pra você?
R – A nossa amiga. Digamos, assim, não vamos falar o nome do santo. Na época ela trabalhava no governo, a Andréia também trabalhava mas a Andréia também ajudou a gente, quem me falou isso na época foi a Nelita, que eu ia ser preso. Mas realmente ela tinha noção, alguém já tinha falado que era para me pegar, só que como eles, pra me pegar eles teriam que saber o dia. Como eu não informava o dia, então eu blefava, eu via assim e falava: “Poxa, o que eu vou fazer pra que eu consiga enganar a polícia?”, a polícia ficava 24 horas rodando aqui na comunidade, mais na minha porta, pra ver se eu saía fora. Aí eu comecei a blefar. Eu via um pessoal, ia passando uma senhora e eu falei: “Olha, eu vou blefar que essa pessoa vai falar pra tal pessoa, vão acionar a polícia”, aí eu comecei: “Faz um favor?” “O que você quer?” “Olha, a gente vai estar precisando de você segunda-feira depois das cinco, seis horas da manhã, precisa que você esteja aqui na praça”. Nem falei que ia fechar a rodovia, aí ela pegou e falou pra uma pessoa, essa pessoa já informou as autoridades, as autoridades começaram a ficar me fiscalizando. Só que eu falava que era tal dia, falava que era no outro, no dia que era pra ser ninguém acreditou, e foi aí que a gente parou a Fercal. Mas foi muito bom esse movimento, o governado em exercício veio aqui, em seguida veio o Arruda, o Arruda prometeu, fez a DF-150, o asfalto da Vila Azul, o posto de polícia e teve mais coisas que eu não lembro.
P/2 – Essa foi a última?
R – Esse foi o último movimento.
P/2 – Severino, você ia contar a estratégia de parar a estrada com as mulheres bonitas e depois tinha mais uma outra dos fogos. Você conta pra gente?
R – Digamos, primeiro é a dos fogos e depois vem o momento da ação. A dos fogos é da seguinte forma, a gente estava liderando, tinha aquela equipe de 15 pessoas, mais ou menos, em torno de 15 ou mais, e cada pessoa de uma comunidade, uma do Queima Lençol, uma da Boa Vista, uma do Catingueiro, Bananal, do Bananal era aquele carequinha, como é o nome dele, moça? Que pegou no pescoço do cavalo pra derrubar o cavalo e aí... a cavalaria? Nesse dia foi feio (riso).
P/2 – O que aconteceu? Conta.
R – Aconteceu, tinha um jornal até aí, mas sumiu. Como é o nome dele, moça? Que foi antes do Carlinhos? Darcino. A gente estava sabendo que a polícia vinha porque uma pessoa que eu gosto demais dessa pessoa, ela informou o governador e ele passou a ordem que tirasse o pessoal de qualquer jeito, nem que fosse cadeia. Aí falou: “A cavalaria está vindo”, só que essa pessoa sabia e a gente não sabia. Quando eu estava no carro de som, que era do sindicato, a gente conseguiu o carro de som e o trio elétrico, aí eu recebi a informação. Eu falei: “Gente, quem quiser ficar comigo fique, mas está vindo chumbo grosso. Está vindo a cavalaria aí e vai tirar o pessoal do movimento de qualquer jeito da pista. Quem quiser ficar, fica, quem não quiser pode ir embora”. Então descartei o pessoal, pra ninguém se machucar. Mas aí o pessoal resolveu ficar. A cavalaria chegou por volta de oito e meia, nove horas.
P/2 – Da manhã?
R – Da manhã. Pediu pra que apagasse o fogo, nós não apagou; veio o bombeiro pra apagar, não deixamos apagar. Aí foi conversando, conversando e aí a gente foi, tipo assim, negociando. Tem meia hora, tem 20 minutos, tem 20 minutos pra parar. Só que aí deu uma hora, deu duas, deu três, quatro horas pediram pra parar e nós não parou. E aí de repente teve um engraçadinho lá, a polícia veio pra cima só que ela ia pra cima com os cavalos e recuavam. Aí um cidadão pegou uma pedra lá, o Rafael, que foi atrapalhar e ajudou, mandou uma pedra lá, derrubou um policial, pegou no capacete, derrubou o camarada, rachou o capacete, caiu no chão, aí vem a polícia. Aí foi um quebra-pau, aí apanhava menina, apanhava, todo mundo caiu e eu estou lá, de cima do trio elétrico lá. Um camarada caído no chão e uns quatro policial chutando. Aí eu não gostei da ação, não. Estava sendo filmado também, sabe? Eu pagava, inclusive tenho essa fita, aí eu me virei pro policial: “Ei, cidadão, você que está batendo no camarada aí, são quatro pessoas pra bater em uma, ele já está deitado no chão, não já se entregou? Por que está batendo?” O cidadão puxou o revólver, virou pra mim, eu falei: “Agora eu morro” (riso). Eu falei: “Ó, você não esquece que está sendo filmado, guarde sua arma”. Ele pegou e guardou a arma dele. Eu falei “estou em cima do trio elétrico, eu não vou descer, aqui ele não sobe” (riso). Ficou naquilo, o rapaz Darcino, caminharam pra cima dele, deram uma espadada nele (riso). Aquelas espadas que a cavalaria usa, quando ele bate nela aqui ela dobra, ela pega o corpo todinho, ela acompanha o corpo (riso). Então, ficava aquele vinco nas costas. Aí uma menina aqui levou uma, devia ter uns 14 anos essa menina, levou uma “pea” da polícia e foi me culpar, que eu era o culpado. Eu falei: “Não, não sou culpado. Informei pra vocês, ficava quem quisesse, então a culpa foi de vocês, não foi minha, não. Não posso assumir por um aperto que você levou da polícia. Eu não apanhei” “Ah, o senhor não apanhou porque correu” “Corri não, fiquei lá em cima do trio elétrico até acabar o movimento”. Eu sei que passou.
P/2 – Mas o cara do cavalo que você falou?
R – Saiu ele no jornal. Tinha um jornal lá, não sei qual era o jornal, acho que era Correio Braziliense, e na hora puf, fotografou ele querendo derrubar o cavalo, pegou o pescoço do cavalo e entortando (riso). Foi na hora que ele levou a espadada, né? Aí eu dei o grito lá, falei que eles estavam sendo filmados, aí recuaram e deixaram ele. Mas policial saiu com a cabeça machucada, sangrando, comunidade com aquelas vias aqui nas costas, foi uma pea muito grande, sabe? Pá mecânica veio pra empurrar o material. Você vê, vinha a pá mecânica na frente, três cavalos de um lado e três do outro, seis cavalos pra poder levar a pá mecânica pra poder tirar o pessoal do meio da pista. Então foi um movimento que marcou muito na Fercal, ajudou a gente a fazer essa mudança todinha porque antes as empresas praticamente não ajudavam a gente, as empresas não ajudavam, passaram a ajudar depois que eu comecei a fazer pressão nas empresas. Tem uma empresa que eu não faço questão de falar o nome dela, que ela não ajudou em nada, então nem sei porque ela existe aqui. Tudo bem, ajuda, tem os funcionários, mas ela tinha por obrigação ajudar porque está poluindo, a Ciplan está poluindo o tempo todo, você chega lá, bota uma câmera filmando lá, não joga poluição de dia mas joga de noite. Aí a Tocantins faz a parte dela, eles que façam a deles também. Você viu que a Ciplan fechou a entrada que dava acesso pra comunidade do pessoal de Queima Lençol, botou umas pedronas lá. Eu que não moro lá, se eu morasse lá aquelas pedras não ficavam, eu tirava de um jeito ou de outro. Derrubou o colégio. Poxa, isso é governo? Será que não vai aparecer um dia que faça o colégio de volta? Eu tenho um filho de cinco anos.
P/2 – Derrubou o colégio?
R – Derrubou o colégio. Quem derrubou foi o governador Arruda, mas com dedo da Ciplan. Existia um acordo, a Ciplan fazia um colégio novo, dentro da própria comunidade, mas ele alegavam poluição, mas nunca morreu ninguém por causa dessa poluição.
P/2 – Mas fizeram outro no lugar?
R – Nunca fizeram. Tem um bocado de ano, tem uns oito anos. Seis anos. E igual eu falei para um rapaz, eu acho que nós temos que nos unir, eu não quero me envolver mais em confusão mas nessa eu to dentro, sabe? Ajudar a coordenar pra gente conseguir o colégio de volta. Quem é esse ministério público? Está preocupado com o quê? Com as empresas? Vamos se preocupar com a comunidade, traz o colégio de volta. Tem menina de cinco anos aqui que anda 20 quilômetros, 30 quilômetros pra poder estudar, de cinco anos, sai cinco horas da manhã pra chegar 12, uma hora da tarde em casa. Meu filho estuda em Sobradinho II e não acho justo. E é perto. E os que vão estudar no Ribeirão Córrego do Ouro? Não é certo, não. Essa tecla eu bato, vou contra o governo. Vou, não quero nem saber se eu estou no governo, se eu não estou, essa é uma coisa que a comunidade tem que se manifestar, sabe? Mas é complicado.
P/2 – E Severino, depois dessa briga toda, dessa última que aconteceu tudo isso, a comunidade continuou ou ficou amedrontada, como foi depois?
R – Depois desse último movimento que o governador Arruda veio e prometeu fazer a DF-150 a pedido nosso, que eu tinha documento. Eu tinha documento que fui eu, a equipe nossa, digamos, eu citava o que aconteceu, o que a gente queria, eu olhava assim: “Não, nós precisamos da Samu. Não é Samu, a gente pedia era uma ambulância do bombeiro”. A ideia foi minha, a transformação de cidade aqui, a ideia foi minha, eu passei pra quem? Nem pro doutor Michel não foi, foi para o pastor, uma reunião que teve aqui na prainha, na casa de Fátima de Jacobina, a mãe do Rafael. Eu fale: “Gente, vamos pedir a transformação na cidade, não vamos pedir muito não, vamos pedir 1% do Imposto de Renda que sai das empresas da Fercal pra ficar na Fercal”. Ou seja, o Severino não tem estudo, mas tem uma visão que Deus deu pra ele lá a frente, sabe? Eu não tenho medo de dialogar com pessoa que tem estudo, não. Calma aí, se ela não entender de um jeito, que se vire pra entender, o que eu quero é isso e acabou, eu falo desse jeito, sabe? Eu sou, eu ia pra reunião pra conversar com deputado de chinelo havaiana. “Pô Severino, de chinelo havaiana” “Meu amigo, por quê? Tem alguma coisa contra, se quiser me receber. Quando nego vai pedir voto lá na minha comunidade, vai lá e eu estou de bermuda, estou descalço, entra na minha casa, toma no copo sujo uma água, um refrigerante, agora não vai me aceitar porque eu estou de chinelo?”, entrava lá dentro. Igual eu estava falando da Niceia Machado. Nós estávamos numa equipe de umas oito pessoas, no mínimo, e eu levei um problema pra ela, o pessoal morava debaixo da rede de alta tensão. E vieram pra tirar as casas, aliás, tiraram as casas e não deram nada pra ninguém. Eu falei: “Gente, vocês querem ganhar a casa de vocês? Eu preciso que vocês estejam do meu lado”. Convoco um, convoco outro, ou seja, mais de 100 pessoas tiraram na época. E eu tive uma média de oito pessoas ir lutar junto. Eu não tinha nada a ver, quem estava saindo não era eu, aí fui. Cheguei nela lá, marcamos a reunião, ela me recebeu. Aliás, ela não recebeu por querer, né? Ficaram enrolando. A gente marcou pra umas nove horas. Deu nove, deu dez, deu onze, aí eu fui: “Vem cá, vão atender ou não? Saindo o pessoal nós entra. Vamos fazer isso?” “Vamos”. Rapaz, quando saiu uma pessoa lá nós: “Mas você não foi chamado” “Não vão chamar mesmo”. Aí ela: “O que vocês querem?” “É isso e isso, está acontecendo isso, nós queremos que a senhora ajude a resolver o problema deles que perderam as casas”. Ela pegou, olhou pra mim diante de todo mundo, nós sentado tipo numa mesa redonda, quadrada, nem lembro mais, mas era muita gente, ela estava com o celular na época, que quem tinha celular na época era só rico, não era qualquer um que tinha. Aí ela pegou, olhou pra mim assim diante de todo mundo: “Olha, você já trouxe o problema até aqui”, ou seja, ela falou ‘agora sai fora’. Aí todos entenderam, o pessoal falou: “Se for pro Severino sair sai todo mundo”. Porque a mulher, que eu considero uma das mulheres mais inteligentes de Brasil são duas mulheres, inteligentes só pro lado delas, que é Sandra Madeira e a deputada Niceia Machado. Aproveitando que ela está num cargo aí, foi pra União, está no cargo vitalício pro resto da vida, aí a gente ia pra conversar, ela tirava a gente de dentro. Ia pra conversar, ela tirava a gente de dentro. Por último eu não aguentei, falei: “Deputada, a senhora só tem boca pra falar e não tem ouvido pra ouvir, não?”, pegou o celular dela e meteu na mesa, pá (riso)! E calou a boca. Foi quando eu comecei, peguei e falei, falei. E conseguimos, através dessa reunião, conseguimos ganhar o lote pro pessoal. Vieram, fizeram o levantamento, quantas pessoas foram e aí deu o lote pras pessoas, inclusive o Zé Wilson é um deles, que ganhou o lote dele. Vendeu o lote dele em Sobradinho II, comprou um aqui, está aí com a casinha dele. Agora pensa numa coisa ruim de se mexer é gente, chamar gente, tá?
P/2 – Por que Severino?
R – Porque você imagina que durante esses anos que eu tenho de Brasília eu não devo ter ajudado menos de 20 mil pessoas, digamos, menos de 20 mil. Nesse sentido. Em tudo o que eu fiz pra trazer melhorias. Não só eu, é outras pessoas, as pessoas que me ajudaram, que formou aquela equipe. E quando você precisa de uma pessoa você leva um não, a pessoa: “Ah, mas você está querendo isso porque você está interessado”. Não é isso, a gente está interessado em melhoria pra Fercal. Porque quando você apoia uma empresa grande, eu só vou apoiar uma empresa se ela realmente ajudar a minha comunidade, se ela não ajuda eu estou fora. Eu desço, eu e a Eliana tocando na Ciplan. Por que? A gente sempre procura ela, a gente sempre leva um não. Você concorda comigo, não é desse jeito? Você vai na Tocantins pede uma coisa: “Não posso”. Pera aí, pelo menos, se não pode pelo menos não tira a gente igual a Ciplan tira. Eu já tive ajuda da Tocantins há uns 15 anos atrás, fazendo uma boca do lobo, a qual você mora, lá teve asfalto, não é bem asfalto, mas eu botei uma borra de material que eu ganhei da Tocantins, ou seja, ficou praticamente um asfalto. Levando água pra lá, a dona Nildinha conseguiu levar água na época, e aí a escavadeira foi e tirou o material, mas parte dele ainda existe um pouquinho que ainda eu vi lá. Então foi eu que consegui da Tocantins, entendeu?
P/2 – Severino, só fala, porque já está terminando o tempo, infelizmente, a gente gostaria de continuar ouvindo. Mas você falou que usou a estratégia dos fogos e das meninas.
R – A estratégia, né? Invocado. Nós estamos aqui, nós somos oito pessoas. Aí nós vamos fechar a rodovia, digamos, essa semana. Mas quem é a pessoa cabeça? Digamos que seja ele. Só que ele sabe o dia, mas os outros não sabem. Qual vai ser o dia? Eu pergunto a ele. Ele: “Severino, não sei, vai ser essa semana” “Que dia vai ser?” “Não sei”. Qual vai ser o dia? O dia só ele que sabe. De que maneira ele faz? Ele vai avisar? Digamos, nós somos oito pessoas, ele é a peça fundamental, ele vai pegar e a gente distribuía fogos, fala: “Ó, vamos fechar a rodovia cinco horas da manhã, quatro horas você começa a soltar fotos” “Mas que dia?” “No dia eu te ligo”. Por quê? Para evitar da polícia chegar primeiro no local, então quando a polícia chegava lá a gente já estava, a gente já tinha tomado a rodovia.
P/2 – Aí você ligava, todo mundo tinha fogos.
R – Aí ele me ligava: “Ó, é hoje”, mas isso na madrugada. Ele ligava depois das dez, 11 horas da noite porque não tinha mais como acionar a polícia, entendeu? Aí, digamos, informava para aquela pessoa: “É hoje” “Que horas?” “Quatro horas da manhã você solta fogos no Queima Lençol. E você mora na Boa Vista, solta na Boa Vista. Você lá no Alto da Bela Vista, você no Bananal”. E era desse jeito. E aí informava todo mundo, que nessa época a gente já tinha telefone, informava pra todo mundo, quando era quatro horas da manhã, eu, pá pá pápá, parecia final de ano (riso), esta era a estratégia.
P/2 – Aí a comunidade sabia que tinha...
R – A comunidade já sabia que era o movimento que ia ter: “A rodovia vai fechar” (riso). Teve uma época aí que o pessoal começou a soltar fogos: “Estão fechando a rodovia” e não era (riso). A estratégia das mulheres, como eu tive experiência de ter motorista que vinha, como é que se diz? Em alta velocidade, perdia o equilíbrio, vinha pra brigar mesmo, pra bater, preparado pra tudo: “Meu Deus, o que eu vou fazer? Eu já sei”. Aí tinha umas mulheres bonitas que me ajudavam, aquela Neidinha que tinha uma padaria, sabe? Então. Uma morenona que os homens chegavam assim. E a Lu, a mulher do Gilmar e várias outras. Eu falava: “Eu quero você de saia ou de bermuda, assim, assim. Você vai abordar os motoristas, você vai fazer isso. Você vai levar os panfletos”. Então quando os motoristas vinham bravo, aí as mulheres chegavam. Aí pronto, os camaradas ficam (riso). Eu pegava e desarticulava os motoristas.
P/2 – E os maridos delas não achavam ruim?
R – Não, não achavam ruim porque precisavam também, estava precisando de uma casa, estava precisando de asfalto na rua, energia, aí todo mundo me apoiava, entendeu? E foi que chegamos onde chegamos, mudamos a visão da Fercal. Eu acho que se todo mundo pensasse assim igual a gente pensa, tem aquele lá também que eu sei que ele batalha muito, que também não é reconhecido pelo governo, não é reconhecido, as empresas não reconhecem. É um pouco complicado, a gente tem a boa vontade, tem o conhecimento, tem a prática, mas não tem apoio. Eu sinto, às vezes, mudando já de assunto estratégico, no mês de junho passa e vejo aquelas festas, pensa numa coisinha que dá vontade de eu fazer de novo? Aí eu me preocupo, eu falo: “Pô, mas eu vou fazer, aí tem traficante, tem pé inchado, faz uma festa, acontece uma coisa grave, aí a responsabilidade é de quem?”. Você tem que pagar por metro quadrado por uma área de espaço público, tudo tem que pagar, eu não dou conta, aí eu parei de fazer.
P/2 – Quem sabe os jovens, né, Severino? Que estão aqui.
R – Mesmo assim não querendo desanimar, mas não é fácil. Quando eu ia pra Secretaria, você toma um chá de cadeira. Poxa, seria muito mais fácil ele já chegar e dizer: “Não, você precisa disso, disso e disso”. Mas não: “Precisa disso”. Aí você vai lá e leva isso. Quando você chega lá: “Não, mas você tem que ter isso”. Aí você volta de novo, você tem que ir pra outro lugar, então eles nunca te passam tudo. Como eu já tinha experiência, quando eu chegava lá já chegava com tudo. “Mas você já resolveu?” “Não, está tudo aqui, não precisa disso?”. Entendeu? Não tenho estudo, mas eu já sabia o que tinha que fazer, a prática obrigou eu a aprender, né?
P/2 – Severino, a última coisa, que você disse que muita coisa começou no Queima Lençol, né? Dos movimentos. Você quer falar um pouquinho disso?
R – O movimento, pelo menos da energia, eu acho que a primeira pessoa a brigar também na Fercal fui eu. Não tirando o mérito dos outros porque muitos outros brigaram, a dona Nildinha, a Tereza e outros, mas quando eles brigaram pela energia nós já tinha brigado lá no Queima Lençol, foi na época que a gente teve energia e ficamos sem. Aí eu peguei e fiz um documento achando que eu estava fazendo a coisa certa, fui no cartório reconheci, levei pra proprietária lá da empresa, Marilene, aí ela olhou pro meu documento e falou: “Seu documento é igual papel higiênico”. Eu falei: “Quer dizer que é isso mesmo? Tudo bem, senhora, eu vim te pedir a energia pra você liberar pra gente enquanto puder até a gente conseguir o nosso. Você não vai liberar?” “Não vou”. Eu falei: “Eu vou puxar a energia da sua empresa para a minha casa” “Se você puxar eu boto a polícia pra cortar” “Então tá bom, pode colocar, mas eu vou puxar”. Aí eu peguei e puxei pra minha casa. Fui pra uma feira lá na Ceilândia, comprei uns 800 metros de fio, um monte de rolo (riso). Rapaz, cheguei o dia de domingo lá e puxei energia. Isso no final de ano, né? Foi final de ano. Puxei energia pra minha casa e os outros vizinhos começaram: “Severino, posso puxar?” “Pode” “Posso puxar?” “Pode”. E aí quase todo mundo puxou energia. Quando ela chegou de viagem, mais ou menos dia dez de janeiro, fiquei de dezembro até o dia dez de janeiro. Eu lembro que foi no dia dez de janeiro, não lembro de que ano. Aí ela pegou e mandou me chamar: “Desliga a energia que você ligou lá pra sua casa e pros outros”.
P/3 – Foi 88, 89.
R – Foi? Aí ela mandou eu desligar a energia e eu falei que não desligava. “Então vou mandar a polícia” “Faça o que você achar melhor. Meu documento é igual papel higiênico, então faça da sua maneira, o que você achar melhor”. Aí, estou um dia lá em casa, eu vou saindo lá de casa, do barzinho do meu padrasto. Quando eu vou descendo eu vejo aquele, naquela época já tinha camburão de polícia. Aí PM, Civil, chegando, chegando. Eu vou passando em frente da dona Odilia, mãe do Castelo, aí eu vi a polícia e falei: “O que foi, dona Odília?” “Não, o pessoal está aqui atrás assim e assim”. Eu pensei em não falar que era eu, aí o cidadão, policial pegou e falou, eu falei: “Não rapaz, quem puxou a energia para as casas aqui foi eu” “Foi você que puxou?” “Foi” “Mas você tem coragem de falar?” “Se eu não falar você vai descobrir de qualquer jeito” “Onde você mora?” “Moro bem ali, vamos lá”. Aí fui lá: “Vamos, mostra de onde você tirou a energia”. Aí mostrei. Ele falou: “Mas a mulher falou que está roubando, aqui não. Você tirou a energia daqui?”, eu falei: “Foi” “Não foi do poste?”, eu falei: “Não”. Ele falou: “Ó, tu vai ter um probleminha, tu vai ter que aparecer na delegacia” “Não, beleza”. Aí apareci, não lembro o que é que deu também na época. Ah não, me parece que a gente entrou num acordo. A empresa entrou num acordo comigo.
P/2 – Qual a empresa?
R – A Igesp. “Olha, Severino, nós vamos fazer da seguinte forma. A gente vai desligar a energia e você não liga mais. Aceita assim?” “Não, tá ótimo”. Peguei, desligaram. Foi quando eu comecei a brigar pela energia na Fercal. E aí entrou a Tereza, a Tereza começou a fazer o movimento dela aqui mais a dona Nildinha, eu fazia lá. Eu acho que nós lá foi o primeiro lugar que foi a energia, não foi aqui, não. Depois que veio de lá pra cá, mas foi tudo mais ou menos nessa época. Eu saí e o Zé Martins entrou, foi aí. Só pra registrar uma coisa que muita gente não sabe, igual eu falei na reunião lá, o primeiro uniforme que entrou na Fercal, de um colégio da Fercal e no colégio Queima Lençol, também foi iniciativa minha. Eu levei ao conhecimento da melhor diretora que nós tivemos aqui, está de parabéns, dona Elalina, foi uma diretora que deixou um exemplo pra muitas pessoas. Se tivesse uma diretora igual a Elalina, ela não dizia o nome pra pessoa, ia lá e resolvia o problema. E aí ela pegou, falei com ela, tinha uma malharia que eu trabalhava, falei pra ela se ela não gostaria de ter o uniforme pro pessoal, ela falou que sim. Eu estudava na época lá, comecei a fazer supletivo à noite. Aí ela aceitou a proposta. Levou ao conhecimento dos pais, os pais também aceitaram. Só que eu tive um pequeno problema que ela me pediu 500 camisas e 500 shorts. E quando foi na época, a gente fechou em mil unidades e quando foi na hora de acertar perdemos 500 peças. Porque aí é a única falha que foi daquela Raimunda, foi que falou pra mim que não tinha pedido mil, tinha pedido 250 de cada. Eu falei: “Pôxa, mas eu confiei na sua palavra” “Você tem alguma coisa registrada?” “Não tenho”. Aí a dona da malharia falou: “E aí, Severino?” “Não posso fazer nada. O que eu ia ganhar perdi, mas a ideia foi minha, fui eu que levei. O do Queima Lençol foi pontual, o que elas me pediram acho que foi 250 de casa, pegaram as 250, pagaram”. Eu tive esse problema no Centro de Ensino Fundamental Fercal. No Queima Lençol deu certo, mas é uma ideia que foi minha, o primeiro uniforme fui eu que trouxe na Fercal, que lancei na Fercal. Ajudei a escolher o logotipo do colégio, entendeu? “Essa aqui? E essa aqui?” Então parte das ideias foi minha, então agradeço a Deus por todas as conquistas que tive, por toda comunidade me apoiar, então eu acho que eu dei uma volta por cima, não tenho estudo, mas tenho conhecimento, muita gente me ajuda. Se eu disser que vou fazer um evento, se quiser fazer hoje todo mundo me apoia, apesar que eu não tenho o menor interesse devido... aqui é muito difícil fazer, né, segurança, gasto, o risco é muito grande, então não aconselho ninguém a fazer evento nenhum. Se for um evento que você consiga que o Estado venha e banque, aí sim, você faz, precisa de um apoio.
P/2 – O arraial.
R – Isso. Qualquer tipo de evento, que o governo banque. Mas pra você tomar a frente, pra você ser, digamos assim, contrata uma banda, contrata um palco, aí não tem ninguém pra bancar, não faça, não.
P/3 – Severino, o Arraial do Severino conseguiu entrar no calendário da Secretaria de Cultura? Pra que você conseguisse apoio?
R – Olha, todos os documentos, a maioria dos documentos que eu tinha eu passei para o Caju na época e era da Cultura, como é que fala?
P/3 – Gerente de Cultura.
R – Gerente de Cultura, o qual ele passou pra Nelita, mas a Nelita, não sei porque, não conseguiu. Eu sei que não colocou, mas era pra colocar.
P/3 – Ah tá, porque eu lembro que teve essa vontade do Arraial entrar no calendário, mas tem o apoio do governo pra acontecer, né?
R – Era para o governo fazer parte.
P/3 – E participar do concurso de quadrilha.
R – Inclusive pra mim era uma homenagem muito grande, é uma homenagem... aliás, na realidade o Arraial do Severino é uma lenda, é uma lenda viva, né, porque eu ainda não morri, mas o pessoal sempre fala.
P/2 – Acho que tem buscar outras formas, Severino, de conseguir, né?
R – Isso.
P/1 – Então tá, Severino, a gente vai terminar por agora. A gente vai lá no seu Delcio. Você poderia falar pra gente como é que foi essa experiência de você contar a sua história pra gente, como foi isso pra você, ter essa oportunidade de estar participando desse projeto?
R – Pra mim é uma boa. Eu falei: “É agora!”. Agora sim é que se torna uma lenda, né? Porque, digamos, quem quiser ver vai ter o Museu da Pessoa. Então muita gente vai estar sabendo como que surgiu esse Arraial do Severino, quem era Severino, o que aconteceu, como ele chegou até aqui. Isso aí pra mim foi, é muito bom, é muito bom saber que alguém está registrando esse momento, né? Meus filhos futuramente podem saber um pouco da minha vida, porque nem eles sabem. Às vezes as pessoas de fora sabem mais da minha vida do que eles. Não adianta eu contar a minha vida pra eles agora, eu conto pro mais velho, pro mais novo não adianta porque ele não vai entender nada. Pra mim é um registro que eles vão saber quem eu fui no passado, entendeu? O passado é doído? É. Mas se eu quero saber, você olha pra mil pessoas assim, quem dessas mil pessoas são todo mundo santo? Será que nunca teve uma falha na vida? E quem não teve pode ter, viu gente? Você está bom aqui hoje, de repente pra você fazer uma coisa errada é dois tempos. O ser humano, eu sempre falo para as pessoas que o ser humano é questão de segundo, ele fica doido, em questão de segundo ele faz uma coisa errada, uma coisa boa. Tem cara que nunca fez uma coisa boa, o cara é ruim pra caramba, o cara faz isso, faz aquilo de ruim, de repente ele faz uma coisa boa, mas como que aconteceu? Aconteceu. Entendeu? O ser humano não está preparado, não sabe o que vai acontecer de agora pra frente, sabe o que aconteceu de agora pra trás, né? O futuro ninguém sabe. Então, eu agradeço muito a vinda de vocês em registrar isso aí, essa história, não só minha como da Fercal. As pessoas que me ajudaram, eu sempre falei nos movimentos, não trabalhei sozinho, tudo o que eu fiz eu tive ajuda de várias pessoas. Então às vezes eu falo ‘eu’, mas essa palavra ‘eu’ está errada não só pra mim como pra muitos. Está errada pra todo mundo, ninguém faz nada sozinho, sempre precisa de um companheiro, entendeu? Não tem como. É isso aí, né?
P/2 – Está ótimo!
P/1 – Está ótimo!
P/2 – Muito obrigada, viu?
R – Obrigado vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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