P/1 – Senhor Oliveira, obrigada por ter aceitado o nosso convite. Pra começar, eu gostaria que o senhor dissesse o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R – Sou Sebastião de Oliveira Paes e a minha data de nascimento é 30 de dezembro de 1956.
P/1 – Nasceu em que cidade?
R – Nasci na cidade de Viçosa, no estado de Alagoas, uma cidade próxima à Maceió.
P/1 – O nome dos seus pais.
R – João Paes Neto e Josefa de Oliveira Paes.
P/1 – Os seus pais também são de Alagoas?
R – São de Alagoas.
P/1 – Os dois da mesma cidade?
R – Mesma cidade. O meu pai é descendente de paraguaio e a minha mãe de alemão.
P/1 – Nossa! Você sabe a história deles? Como as famílias foram parar em Alagoas?
R – Não, porque quando os meus avós vieram os meus pais eram pequenos. Os meus avós maternos e paternos eram irmãos. O pai do meu pai e o pai da minha mãe eram irmãos. Agora, a mãe do meu pai era descendente de paraguaio e o pai da minha mãe era descendente de alemão. Os pais de alemão e mãe do Paraguai.
P/1 – Você nasceu em Alagoas e viveu lá até quanto tempo?
R – Até a idade de oito anos.
P/1 – E o que o seus pais faziam lá?
R – Na verdade os meus pais eram fazendeiros.
P/1 – Era grande a fazenda?
R – Era grande, fazenda de gado e plantio de café e feijão.
P/1 – Mas era pra consumo ou pra vender?
R – Pra vender.
P/1 – Você lembra disso em casa?
R – Não, eu não lembro porque eu fiquei sabendo depois. O meu avô faleceu e eu fui criado com a minha avó, meus pais deram pra minha avó. Só que eles se separaram. Eles eram em três irmãos: o meu pai e duas irmãs, minhas tias. Eles casaram e foram morar em cidades diferentes. As minhas tias com meus tios. Meu pai, com a minha mãe, moravam em outra cidade. E eu morava em outra cidade com a minha avó. Quando a minha avó faleceu...
Continuar leituraP/1 – Senhor Oliveira, obrigada por ter aceitado o nosso convite. Pra começar, eu gostaria que o senhor dissesse o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R – Sou Sebastião de Oliveira Paes e a minha data de nascimento é 30 de dezembro de 1956.
P/1 – Nasceu em que cidade?
R – Nasci na cidade de Viçosa, no estado de Alagoas, uma cidade próxima à Maceió.
P/1 – O nome dos seus pais.
R – João Paes Neto e Josefa de Oliveira Paes.
P/1 – Os seus pais também são de Alagoas?
R – São de Alagoas.
P/1 – Os dois da mesma cidade?
R – Mesma cidade. O meu pai é descendente de paraguaio e a minha mãe de alemão.
P/1 – Nossa! Você sabe a história deles? Como as famílias foram parar em Alagoas?
R – Não, porque quando os meus avós vieram os meus pais eram pequenos. Os meus avós maternos e paternos eram irmãos. O pai do meu pai e o pai da minha mãe eram irmãos. Agora, a mãe do meu pai era descendente de paraguaio e o pai da minha mãe era descendente de alemão. Os pais de alemão e mãe do Paraguai.
P/1 – Você nasceu em Alagoas e viveu lá até quanto tempo?
R – Até a idade de oito anos.
P/1 – E o que o seus pais faziam lá?
R – Na verdade os meus pais eram fazendeiros.
P/1 – Era grande a fazenda?
R – Era grande, fazenda de gado e plantio de café e feijão.
P/1 – Mas era pra consumo ou pra vender?
R – Pra vender.
P/1 – Você lembra disso em casa?
R – Não, eu não lembro porque eu fiquei sabendo depois. O meu avô faleceu e eu fui criado com a minha avó, meus pais deram pra minha avó. Só que eles se separaram. Eles eram em três irmãos: o meu pai e duas irmãs, minhas tias. Eles casaram e foram morar em cidades diferentes. As minhas tias com meus tios. Meu pai, com a minha mãe, moravam em outra cidade. E eu morava em outra cidade com a minha avó. Quando a minha avó faleceu eu tinha oito anos de idade. Ela faleceu aqui em São Paulo.
P/1 – Quando faleceu o seu avô, você foi morar com a sua avó?
R – Isso.
P/1 - E seus pais moravam aqui em São Paulo?
R – Não, eles moravam em Alagoas.
P/1 – E você morou com a sua avó até os oito anos?
R – Morei com minha avó até os oitos anos. Com oito anos ela teve uma doença, eu não sei o motivo da doença, nunca fiquei sabendo. A família dela trouxe ela pra São Paulo para ela se tratar aqui e ela acabou falecendo no hospital Presidente.
P/1 – Você acompanhou todo esse processo?
R – É, depois que ela faleceu, eu fiquei sozinho na casa, lá em Alagoas.
P/1 – Você ficava sozinho?
R – É, eu ficava sozinho. E uma vizinha que cuidava de mim lá, eu tinha oito anos, não ia pra escola, nunca fui pra escola. Mas ela cuidava de mim. Quando foi um determinado dia eu tirei a chave, abri a porta, saí de manhã cedo, fechei a porta, joguei a chave por debaixo da porta e fui embora e nunca mais voltei lá.
P/1 – Pra onde você foi?
R – Eu fiquei na rua, fui criado na rua.
P/1 – Na rua?? Mas você não tinha contato com os seus pais?
R – Não, não tinha contato com os meus pais.
P/1 – Eles não iam nem te visitar?
R – Não, eles não iam me visitar, nem eu sabia onde eles estavam.
P/1 – Devia ser distante...
R – Sim, era cidade distante. Porque eu morava na cidade de Viçosa e os meus pais moravam numa cidade chamada Paulo Jacinto, que é onde eles tinham a fazenda. Fica um pouco distante, de 170 a 200 quilômetros, por aí.
P/1 – Antes de você falar disso, de você estar na rua. Você tinha irmãos?
R – 22.
P/1 – Ah??
R – Vinte e dois irmãos (risos).
P/1 – Vinte e dois irmãos! E tudo da mesma mãe, mesmo pai?
R – Da mesma mãe, do mesmo pai.
P/1 – Você consegue fazer uma escadinha? Uma escadona?
R – Eu consigo, mais ou menos, porque a gente vai chegar até lá. Eu consigo mais ou menos, dos vinte e dois, tem quinze vivos, sete já faleceram, uma faleceu nesse ano, inclusive.
P/1 – Nessa escadinha você está onde, mais ou menos? Em que degrau?
R – Eu sou, mais ou menos, o sétimo.
P/1 – Você lembra dos irmãos mais velhos?
R – Dos irmãos mais velhos tem...
P/1 – Quem é o primeiro?
R – Primeiro é Manuel, já falecido. Depois vem Maria, viva. José, depois vem um casal de gêmeos, Cícero e Cícera. São cinco. Eu sou o sexto. [Na hora eles se confundem na conta e dizem quatro, por isso ele não se lembra de um.]
P/1 – Você lembra dos outros?
R – Os outros eu vi eles uma vez, não lembro da fisionomia deles. Eu não sei o nome por idade, mas eu sei o nome de todos eles. Eu sei que depois de mim vieram Anelito, Joaquim, Luís, Severino, Edilson, Salete, Juraci, Edmilson, Miguel... Os outros eu não lembro, não. Porque eu não conheço eles.
P/1 – Mas você chegou a conhecer os que nasceram antes de você? Porque você viveu com os seus pais até os oito anos, né?
R – Com os meus pais eu vivi até os três anos. Depois dos três anos, eu fui morar com a minha avó e fiquei cinco anos com ela. Quando eu estava com oito anos a minha avó faleceu.
P/1 – E como é que foi isso pra você? Jogar as chaves...
R – Quando minha vó veio pra São Paulo fazer o tratamento, a vizinha ficou cuidando de mim. Só que ela não falava o estado de saúde da minha vó. Eu não sei se ela não falava pra não me constranger ou porque ela não tinha informação. Ela não me dava notícia nenhuma. A única notícia que ela falava pra mim: “Sua vó está bem, em breve ela estará aqui de volta”. E eu ficava com aquilo na cabeça, com aquela esperança que um dia ela iria voltar. O tempo foi passando, passando, passando. Chegou um dia, ela ficou sabendo que minha avó tinha falecido. Ela chegou e falou pra mim: “Você não quer ficar morando comigo?” A primeira coisa que tinha vindo na minha cabeça foi que a minha vó tinha falecido. Eu falei: “Não, vou esperar a minha mãe”, porque eu chamava a minha avó de mãe, era a única mãe que eu conhecia, quem me criou até os oito anos de idade. Ela falou assim: “A sua mãe não está bem, está com um problema de saúde, está fazendo tratamento. Ela vai voltar, mas ela teve uma recaída e quando ela melhorar ela volta”. Ela já tinha falecido, já. Eu fiquei com aquilo na cabeça, falei: “A minha mãe não está viva, ela já faleceu. Eles não querem me falar”. Sempre eu conversava com ela, tentava arrancar alguma coisa dela, mas ela não dava pista pra mim. Quando foi um dia, eu levantei de manhã cedinho, por volta de umas cinco, cinco e meia da manhã. Eu lembro até hoje, nunca esqueci. Eu levantei, vesti uma camiseta, um shorts, um chinelo de dedo, era um chinelo azul, me lembro até hoje. Saí, fechei a porta, joguei a chave por debaixo da porta e saí. Falei: “Eu só volto aqui quando a minha mãe voltar”. Ela não voltou, também não voltei mais. Até hoje. Isso já faz 44 anos.
P/1 – Mas, quando você fez isso, só para eu entender. Você vivia sozinho, a vizinha que levava comida pra você? Você não tinha coleguinhas com quem brincava?
R – Só os filhos dela, ela tinha um casal de filho que moravam com ela, não comigo. Eu morava sozinho, do lado e ficava sozinho na casa. Ela ia lá, eu tomava banho, ela me dava janta, café da manhã, almoço. E eu ficava praticamente o dia inteiro na casa dela brincando com os meninos no quintal. O quintal era grande, tinha até uma mangueira. Eu ficava com o casal dela brincando, eles eram da minha idade, mais ou menos, sete ou oito anos, por aí.
P/1 – Depois você ia pra casa dormir e ficava sozinho?
R – É, eu ia pra casa dormir e ficava sozinho.
P/1 – Tinha medo?
R – Não, nunca tive medo. Eu peguei, fechei a porta, joguei a chave por debaixo da porta e saí. Falei: “Não volto mais aqui enquanto a minha mãe não voltar”.
P/1 – Pra onde que você foi?
R – Saí e fui trabalhar em uma feira, carregar verduras, legumes, frutas.
P/1 – Era perto dali mesmo?
R – Era perto dali mesmo. Alguém de lá me viu na feira e falou pra ela. Ela foi me procurar na feira, só que ela não me encontrou. Teve gente que falou assim, na época o pessoal me chamava de Tião: “Ó, Tião, a moça tá te procurando”. Eu peguei e saí fora pra ela não me achar. Saí e fui pra rodoviária, lá em Viçosa. Eu peguei carona em um caminhão e fui para uma cidade chamada Atalaia, fica próximo também. Hoje deve estar tudo uma cidade só. De lá eu fui a pé pra Maceió, mais ou menos uns vinte e cinco quilômetros.
P/1 – Quanto tempo você levou?
R – Eu saí, andei o dia inteiro. Anoiteceu, eu dormi do lado da pista, assim, perto de um posto de gasolina. No outro dia levantei, andei e cheguei em Maceió. Fiquei em Maceió, não conhecia ninguém, pra mim a cidade era muito grande, sempre acostumado a uma cidade pequena, porque Viçosa era pequena. Eu fiquei em Maceió, logo na entrada tem uma praça grande, tem o hospital dos usineiros, chamado de “Hospital do Açúcar”. Eu passei o hospital e fiquei sentado lá no banco da praça. Tinha um pé de planta, acho que aqui vocês nem conhecem, que se chama gravatá. Ele tem uma folha verde grande e cheia de espinhos dos dois lados. Só que ele cresce e faz uma copa assim. Eu pegava papelão, entrava lá embaixo e dormia lá embaixo. Passou um senhor de carro, o carro dele furou o pneu bem no lugar onde eu tava sentado. Cheguei lá e falei: “Senhor, o senhor não quer que eu troque o pneu do carro pro senhor?”. Ele olhou pra mim e falou assim: “Mas você não consegue nem levantar uma chave de roda, vai conseguir trocar um pneu?”. Eu falei: “Não, eu consigo”. Porque eu tinha força de vontade, de querer vencer na vida. Desde pequeno eu fui assim. Ele falou: “Tá bom, então troca o pneu”. Eu peguei a chave, ele abriu o porta-mala do carro, era uma Caravan, peguei a chave, soltei os parafusos. Era duro, não conseguia puxar, ele ajudou a soltar o parafuso da roda, coloquei o macaco e ele só olhando. Coloquei o macaco, levantei o carro, peguei o pneu, tirei ele e derrubei no chão. Ele ajudou a colocar o outro. Realmente eu não conseguia levantar o pneu, porque eu era bem pequenininho, magrinho. Ele ajudou a colocar o pneu, coloquei o parafuso de novo, apertei. Ele acabou de apertar. E falou assim: “Você mora onde?” “Eu moro aqui próximo”, mas não falei pra ele que eu morava na praça. “Mas próximo de onde?” “Próximo daqui da praça”. E era uma bairro de classe alta, lá é o Bairro do Farol, considerado classe média alta. Ele desconfiou, deve ter pensado: “Esse moleque não mora aqui”. Ele falou: “Tá bom, obrigado. Você quer alguma coisa?” “Se o senhor quiser pagar um refrigerante ali pra mim eu quero porque eu tô com fome”. Nessa época não chamava nem de refrigerante, tinha Sukita, nem sei se ainda tem, faz tempo que não vejo. Ele falou: “Tá. Espera um pouquinho aí, não saia daí”. Ele entrou no carro e saiu. Depois ele voltou com uma marmita e a Sukita, ele trouxe a Sukita. Eu comi a comida, sobrou. Eu guardei pra comer no outro dia, porque eu sabia que não ia ter pra comer no outro dia. Eu tomei metade da Sukita, tampei e guardei a metade no cantinho. No outro dia ele passou e eu tava comendo o resto da comida de ontem, tava azeda, já. Eu vi a hora que ele passou, ele passou bem devagarinho e foi embora. Eu pensei: “Cara, eu preciso descobrir onde esse homem mora”. Saí, andando, procurando, e marquei a cor e a placa do carro. Eu não sabia ler e escrever. Eu risquei no chão o formato da letra que tinha o carro e o número. A placa amarela, eram só duas letras quatro números. Eu saí: “Vou procurar e vou encontrar”. Andei, andei, andei e nada. Uns quinze dias depois, passei, olhei e vi o carro parado. Porque ele chegava e colocava o carro na garagem, né? Quando ele ia sair ele não colocava o carro na garagem, deixava do lado de fora. Eu olhei e falei: “O carro é esse, vou ficar por aqui”. E fiquei. Dali a pouco ele saiu. Quando ele me viu ele falou: “O que você está fazendo aqui?”. Eu falei: “Eu ia passando, vi o carro do senhor aqui e eu dei um tempo aqui”. Ele perguntou: “Você tá trabalhando?”, queria fazer uma gozação comigo. Eu falei: “Eu gostaria de trabalhar, mas eu não consigo arrumar serviço porque eu não tenho idade pra trabalhar” “Mas você gostaria de trabalhar em quê? TV, rádio, alguma coisa assim?” “Não, não faço isso, não. Queria trabalhar em um serviço que desse para eu ganhar um dinheirinho para eu comprar as coisas para eu comer”. Ele falou assim: “O quê, por exemplo?”. Eu falei: “Eu posso lavar o seu carro, limpar o seu jardim”, tinha um jardim bonito na frente da casa dele. Ele falou: “Como você sabe que eu moro aqui?” “Porque eu vi o carro parado e o senhor saiu daí, eu sei que o senhor mora aqui”. Ele falou assim: “Tá bom. Amanhã de manhã você vem aqui que eu vou arrumar um serviço pra você”. Eu falei: “Tudo bem”. Quando foi no outro dia de manhã eu tava lá. Ele falou assim: “Olha, você vai limpar esse jardim e deixar ele limpinho. Se você for aprovado, você está empregado”. Eu falei: “Tá bom”. Eu limpei, catei tudo quanto era folha que tava no chão, coloquei no saco de plástico, peguei a mangueira, reguei as plantas. O jardim da casa dele era muito bonito, tinha umas plantas muito bonitas. Limpei, lavei o carro dele. Quando ele chegou tava tudo limpinho. Ele falou assim: “Você vai embora agora?” “Vou” “Então eu vou te levar em casa”. Eu falei: “Não, não precisa! Eu vou a pé mesmo, eu gosto de andar”. Eu não tinha casa, né? Ele falou: “Então, tá bom”. Aí, ele me deu comida, só não me dava dinheiro. E quando ele vinha dar dinheiro eu não queria. Nunca peguei dinheiro dele. Comida eu pegava, todo tipo de fruta, comida. Quando foi um dia eu estava lá sentado na praça e ele chegou. Ele falou assim: “Você quer ir na fazenda comigo?”. Eu falei: “Vou”. A fazenda ficava na cidade chamada Arapiraca, não sei se vocês já ouviram falar dessa cidade, uma cidade grande também. Ele falou: “Amanhã, seis horas eu passo aqui. Vamo?”. Eu falei: “Vamos”. Eu tava com a roupa suja, o chinelo já tava quebrado, amarrado com barbante. Eu entrei no carro com ele e fui pra fazenda. Ele falou: “Você vai catar umas frutas pra gente levar de volta”. Eu falei: “Tá bom”. Tinha um pessoal que morava lá na fazenda que me ajudou. Catamos fruta, milho verde, bastante fruta, legumes, abóbora, abacaxi, que lá dá bastante. A gente colocou no carro e trouxe. Cheguei na casa dele, descarreguei, coloquei lá na dispensa. A empregada dele ajudou a descarregar. A gente tirou tudo, descascou o milho, guardou as frutas, os legumes, guardou tudo. Ele falou assim: “Olha, eu vou te levar lá na fábrica”. Eu nem sabia o que era a fábrica, nem aonde que era. Eu fui. Isso já fazia mais de ano que eu estava fazendo esse percurso lá com ele, e ele sempre dava comida pra mim.
P/1 – Você continuava morando na praça?
R – Continuava morando na praça.
P/1 – E como é que você tomava banho? Como era?
R – Eu só tomava banho quando chovia ou quando ia na praia. Só. Porque não tinha lugar. Aqueles chafarizes de água, tinha numa praça, mas era a Praça do Palácio do Governo, a gente não chegava lá. Eu sempre ia na praia e tomava banho com a água salgada, mesmo. A minha pele era toda estourada, tudo queimada do sol, da água salgada...
P/1 – Que roupa você usava? Sempre a mesma roupa?
R – Sempre a mesma roupa. Tinha só dois shorts e duas camisetas. Eu ia pra praia, chegava na praia, eu lavava ela na água da praia, mesmo. Lavava, trazia, chegava lá fora e deixava ela secando. Voltava, vestia ela, e ia lavar a outra que estava suja. Era só desse jeito. Teve uma época que o chinelo quebrou e eu andava descalço. Quando foi um dia, ele chegou lá e falou: “Vou te levar pra fábrica, você quer ir?” “Quero”. Era uma fábrica de adubo, pra adubar cana, café, feijão, essas coisas. Eu fiquei dentro da fábrica. Ele mandou construir um barraquinho lá pra mim e eu fiquei dentro do barraquinho. Mas eu dormia no chão porque não tinha cama, não tinha rede, não tinha dinheiro pra comprar. Mas era no chão mesmo, assim, deitava no chão e dormia. De manhã cedo eu levantava, pegava o carrinho de mão, uma pá e uma vassoura. Os caminhões passavam, derrubavam aquele adubo no chão, eu ia atrás varrendo, juntava, colocava no carrinho e colocava dentro do armazém. Isso eu fiquei uns três anos fazendo isso. Eu já almoçava lá dentro porque lá tinha restaurante.
P/1 – E você tinha seu salário?
R – Não, não recebia nada.
P/1 – Só em troca de ficar dormindo lá?
R – Só em troca de ficar dormindo e ficar lá dentro. Mas toda vez que ele ia lá na fábrica ele me procurava. Eu sempre tava trabalhando, e ele só observando. Ele falou assim: “Você tem pai?” “Tenho, mas não conheço” “Você tem mãe?” “Tenho, mas também não conheço. A minha família eu não conheço”. E eu contei a história pra ele: Fui morar com a minha avó, ela faleceu, fiquei sozinho e que morava na rua. Ele falou assim: “Eu quero ir aonde você morava”. Eu levei ele lá: “Eu morava aqui, nesse pé de planta”. Ele falou assim: “À partir de hoje você não vai mais morar em planta, vai ficar trabalhando aqui dentro”. Ele comprou roupa pra mim, calçado, um armário, colocou lá dentro. Ele perguntou: “Você dorme onde?” “Durmo aqui no chão”. Ele mandou comprar colchão, uma caminha de solteiro, lembro que era aquela caminha de abrir e fechar. Fiquei dormindo lá. Ele avisou pro pessoal lá: “Esse menino vai tomar café, almoçar e jantar aqui. A conta você manda pra mim”. Eu tomava café, almoçava e jantava lá. Também eu fazia de tudo lá dentro, porque foi a oportunidade que eu tive e não iria desperdiçar. Porque oportunidade a gente só tem uma vez. Se a gente tem e não aproveita, vai ser difícil conseguir novamente. Eu fiquei lá dentro um bom tempo, já estava grandinho, já. Ele falou assim: “Você sabe ler?”. Eu falei: “Não” “Você quer ir pra escola?” “Eu quero” “Eu vou arrumar uma escola pra você”. E ele arrumou uma escola de datilografia. Se eu não sabia ler, nem escrever, como eu iria fazer o curso? Mas eu fui fazer. Cheguei lá, o pessoal explicava, eu ia fazendo, mas ninguém perguntava se eu sabia ler e escrever. Eu escrevia, mas não lia, eu não sabia o que estava escrevendo. Às vezes colocava três, quatro letras de um só na mesma palavra, sendo que, às vezes, não pegava nenhuma daquelas letras. Mas o pessoal foi explicando: “Você tem que fazer assim, assim”. E eu fui pegando a orientação que eles davam pra mim e eu fui pegando a prática e aprendi a escrever na máquina de escrever, que eram aquelas máquinas que tinham fita, tudo. Eu aprendi a escrever naquelas máquinas, mas eu não sabia escrever com caneta, lápis. Na máquina eu escrevia tudo o que você mandasse eu escrever.
P/1 – Você começou a ler também?
R – Comecei a ler também. Mas não sabia escrever à caneta. Eu falei: “Eu preciso aprender a escrever com a caneta”. Eu pegava jornal, caneta e ia copiando. O que eu fazia? Como lá tinha muita folha de papel carbono, eu pegava folha de papel sulfite, colocava embaixo, colocava o papel carbono em cima e o jornal em cima. Eu ia copiando ela todinha. Quando eu terminava de copiar, eu pegava aquela folha de sulfite, pegava outra folha e ia copiar aquela que tava copiada ali. Eu copiava três, quatro, cinco folhas daquela. Foi onde eu aprendi a escrever. Nisso eu já tinha de uns doze pra catorze anos, já. Aí, abriu uma filial em Recife e ele perguntou se eu queria ir pra lá. Eu falei: “Quero”. E fui pra lá, Boa Viagem. Depois vim pra uma cidadezinha chamada Candeias, próxima a Salvador, não era bem na capital, mas era próxima, uns dez quilômetros mais ou menos. De lá abriu uma filial no Peru e eu fui pra lá. Do Peru, fui pra outra filial na Bolívia. Ele me levou em todas as filiais: na Bolívia, no Peru, no Chile.
P/1 – Como era o nome da empresa, mesmo?
R – Era Adubos Alça. Aqui no Brasil ele fabricava óleo de algodão, umas latinhas de óleo verdes, pequenas, não sei se vocês se lembram. Hoje não existe mais, eu, pelo menos, faz tempo que eu não vejo. Era Adubos Alça Sociedade Anônima, tinha um outro nome que não me lembro. Tenho o registro na minha carteira, foi meu primeiro registro na carteira. A gente ficou lá uns três anos lá no Chile. Eu me envolvi com uma menina lá.
P/1 – Antes de falar da menina: O que você achava de todas essas viagens? Porque, pra quem tinha crescido em Viçoca, de repente começar a viajar. Como era isso?
R – Pra mim era outro mundo, era uma coisa que veio de repente e eu não tinha uma explicação pra tudo aquilo que tinha acontecido. Pra sair do chão e ir pro colchão. Pra mim eu estava em outro mundo, não era a realidade que eu estava vivendo, era um sonho. Pra mim aquilo lá era um sonho.
P/1 – E esse contato com essas pessoas diferentes, outra língua? Como é que foi isso pra você? Você conseguiu se dar bem?
R – Eu me dava com o pessoal porque era assim: O que eu falava, eles não entendiam. O que eles falavam, eu também não entendia. Então, a gente se dava muito bem (risos). Mas tinha gente que entendia tanto o idioma deles como o meu, então, a gente tinha esse diálogo assim, entre eu e essa pessoa que acompanha a gente. Porque não era só eu, eram mais pessoas que iam junto pra lá também. Tiveram outras pessoas, que eram estudadas, engenheiros civis, pessoas ligadas à empresa já acostumada ao idioma. E sabiam o idioma de lá, que era o castelhano, tanto no Peru como no Chile. Argentina também, tem uma história muito interessante quando eu fui pra lá.
P/1 – Isso foi depois do Chile?
R – Foi depois do Chile. Depois que eu vim pro Brasil e fui pra lá, daí eu voltei sozinho.
P/1 – Você viajava de avião?
R – De ônibus, de carro. Não era só uma pessoa, eram várias. Quando passava de dez pessoas a gente ia de ônibus, quando era menos, a gente ia de carro, com o carro da empresa mesmo. A gente fazia esses percursos todos. Pra lá, pro Peru a gente ia e voltava. A gente rodava muito, na verdade a gente rodava mais que trabalhava.
P/1 – Nesses percursos tinha alguma coisa que você lembra, que foi muito marcante pra você? Paisagem, alguma coisa.
R – Três coisas foram muito marcantes pra mim: Uma foi no Chile, que eu achei uma coisa muito interessante, muito bonita. Se alguém um dia for lá, vai ver isso que eu for falar agora: É a divisa do Chile com a Argentina. É muito bonito, mas é muito perigoso. Eu não sei como não tem acidente de avião naquele local. Porque é assim: A Argentina fica aqui, o Chile fica aqui. O Chile fica entre a Argentina e o mar, ele é uma língua, comprido assim. Suponhamos assim: Aqui desse lado é a Argentina, o Chile é aqui, e tem uma serra aqui no meio. É muito alto, muito, muito alto mesmo. O avião, quando ele levanta vôo, a hora que ele sobe aqui, a gente pensa que ele vai bater no morro porque é muito alto. E ele passa por cima, a gente vê que ele passa bem baixinho, quase rente à serra. Só que ele vai muito alto. Mas na serra ele passa baixinho. É muito, muito bonito. Na época do frio a gente vê aquela serra, assim, parece um cume, e fica branco dos dois lados. Por causa do gelo, ficam aqueles filetes de gelo. É muito bonito. Eu não consegui tirar foto de lá pra trazer, mas é uma coisa muito interessante, me chamou muito atenção. Gostei muito de lá, não gostei do clima porque é muito frio, muito gelado. A temperatura é três, quatro graus. Na época do frio chega a dar três, quatro graus negativo. É muito frio. E na Argentina, o que me deixou muito apreensivo e eu passei medo lá, eu fui preso. Cheguei a ser detido e fiquei preso por três meses lá, próximo à Patagônia. Foi quando eu entrei e saí na Marinha argentina.
P/1 – Você estava sozinho?
R – Estava sozinho.
P/1 – Você estava andando?
R – Estava andando. Nessa época eu já tinha saído dessa empresa, dessa firma que eu tinha trabalho.
P/2 – Espera só um pouquinho: Antes de sair da firma, só queria deixar registrado: Qual é o nome do homem que te ajudou?
R – Alonso Alves de Andrade, era o nome desse senhor. Ele já faleceu, inclusive. E eu estava junto com ele quando ele faleceu. Por isso que eu pulei essa parte. Foi no Paraná, em Ponta Grossa. A gente estava dentro do carro, parado, e um caminhão bateu na traseira do carro. Antigamente os carros não tinham aquele encosto de cabeça. A hora que o caminhão bateu e ele deu o tranco assim, ele quebrou o pescoço. Dentro do carro, o carro parado. Estavámos eu, ele e a mulher dele. A mulher dele se chama Luizinha. Pegaram ele, levaram pro hospital e eu fiquei lá. Ele faleceu, levaram ele pra Maceió, e eu fui de Ponta Grossa pra Maceió com o carro dele, eu levei o carro. De Ponta Grossa pra Maceió.
P/1 – Você já sabia dirigir?
R – Já sabia dirigir, tinha tirado a habilitação, e eu levei o carro pra lá. Eu gastei muito tempo pra chegar lá porque é muito longe, mais ou menos cinco mil quilômetros. Quando ele faleceu eu saí, não quis mais continuar na empresa. Eu saí da empresa, eu estava trabalhando em Ponta Grossa, Paraná. Eu levava as coisas da firma de Ponta Grossa pra Curitiba e pra Londrina, com o caminhãozinho. Nesse tempo eu já tava trabalhando com caminhãozinho. Ele faleceu e eu saí da firma. Eu fui começar a fazer a minha vida.
P/1 – Deixa só eu entender uma coisa: Você entrou na fila, você limpava, fazia de tudo. Depois você foi promovido? Como foi a sua trajetória dentro da empresa?
R – A minha trajetória dentro da empresa foi assim: Eu comecei lá trabalhando dentro da empresa com carrinho de mão e vassoura como eu já tinha citado. Eu varria o adubo, juntava no carrinho e levava lá dentro e deixava dentro do armazém. Com o decorrer do tempo eu saí de lá e ficava no cais do porto, lotando as cargas que saíam dos navios pros caminhões. O caminhão carregava, eu fazia anotação das cargas que saíam, a placa do caminhão, o peso, quantas toneladas. Por exemplo: O caminhão saía com seis mil quilos, a placa do caminhão, o nome do motorista, tudo. Assinava, mandava pra balança e na balança ele ia fazer a nota fiscal. São duas balanças, eles pesavam o caminhão vazio, carregava e eles pesavam ele cheio. Eu anotava e mandava pra outra balança que tinha lá na frente, com os conferentes, que iriam conferir se tinha realmente o peso e se a placa do carro era a mesma porque tinha muita gente que pegava e fazia cambalacho com as cargas, desviavam muita carga. Por isso que eram duas balanças, passava em uma balança, marcava a placa do carro, o peso bruto e o peso líquido. E eu mandava pra outra balança da frente. De lá eu já ligava pro cara e falava, tantos quilos, tantas toneladas, a placa do carro, o nome do motorista, a cor do carro. E lá ele iria conferir tudo e retirar a nota fiscal. De lá ele saía com a nota fiscal. Eu fiquei bastante tempo fazendo isso no cais do porto em Maceió. Depois que começou a fazer as transferências pra outros...
P/1 – Foram essas viagens...
R – Isso. Foi aí que as outras viagens começaram: Primeiro fui pra Recife, depois pra Bahia, Candeias. Depois fui pra Ponta Grossa, no Paraná. De lá fui pro Peru, do Peru fui pro Chile, do Chile fui pra Bolívia.
P/1 – Nesses locais você fazia que tipo de trabalho?
R – O mesmo trabalho. Conferência... Mas eu acompanhava mais ele do que eu trabalhava, porque eu fazia esse serviço dentro da empresa.
P/1 – Você estava no momento que você falou da prisão. Você continuou fazendo esse trabalho até o falecimento dele?
R – Até o falecimento dele. Depois que ele faleceu eu me desliguei da empresa.
P/1 – Só volta na questão da prisão pra gente entender. Você ficou três meses?
R – É, fiquei três meses. Quando eu fiquei na Argentina, o meu sonho era ir pra Buenos Aires, eu queria conhecer a cidade. Eu estava no Rio Grande do Sul e fui para ver se entrava pra conhecer a cidade. Só que eu fui pro lugar errado. Não conhecia, nunca tinha ido lá. Eu fui, já tinha passado em Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, mas junto com o patrão. Sozinho, nunca tinha ido, não conhecia nada, nada, só de passagem. Parava nos postos para abastecer ou em algum restaurante pra gente almoçar ou jantar. Eu cheguei lá: “Mas eu vou lá, eu quero conhecer”, eu entrei, fui. Passei a divisa do Brasil com a Argentina, entrei. Em vez de eu entrar e seguir viagem, quis conhecer toda aquela parte, aquela região porque era muito bonita, só que eu não sabia que era Marinha Argentina. Foi onde os caras me pegaram lá. Perguntou: “O que você tá fazendo aqui?”
(TROCA DE FITA)
P/1 – Você entrou em uma área que não era permitida, isso?
R – É, eu entrei em uma área que não era permitida. O erro não foi só meu, acho que foi deles também porque se é uma área restrita deveria ter um pouco mais de segurança, mas era tudo aberto. Não tinha sinalização, muro, cerca, alambrado, nada. Era tudo aberto, descampado. Eu fui entrando.
P/1 – Em que ano foi isso, mais ou menos?
R – Em 85, 86, mais ou menos, por aí. Eu fiquei detido lá dentro três meses. Vieram dois guardas: “O que você tá fazendo aqui?” “Estou indo pra Buenos Aires” “Buenos Aires não fica pra essa região, é outra região”. Eu estava indo pro lado oposto. Eles falaram: “Você está detido, vamos levar você pro quartel”. O cara falava em português, meio atrapalhado, mas dava pra gente entender. Levou lá, o capitão colocou lá numa salinha pequena, fez o interrogatório lá, umas duas horas de interrogatório, tudo o que ele perguntava eu respondia. Ele falou: “Tudo bem, você vai ficar aqui”, e saiu. Depois de uns quinze dias, mais ou menos, ele veio e fez as mesmas perguntas.
P/1 – Você ficou dormindo em uma cela, comia, tudo lá?
R – Comia, dormia, tinha cama, tudo.
P/1 – Tinha outros presos lá?
R – Tinha mais uns três de outros países que entraram como eu entrei. Eles faziam as perguntas, depois de quinze dias fez as mesmas perguntas para ver se eu dava as mesmas respostas ou se caía em contradição. Eu dei as mesmas respostas, ele foi embora. Um mês depois ele voltou, fez as mesmas perguntas, eu dei as mesmas respostas. Ele falou assim: “Eu vou liberar você, só que nunca mais você entre aqui. Se você entrar aqui, você vai ficar pelo resto da sua vida”. Me colocaram em um camburão, tudo fechado, você não via nada. Quando chegou na fronteira do Brasil com a Argentina, lá no Rio Grande do Sul, ele parou o carro, abriu o camburão, falou: “Vaza, não volta mais aqui. Se você voltar aqui, você morre”. Rapidinho saí fora, fui pra Porto Alegre, fiquei lá dois meses pra ver se encontrava serviço, não encontrei serviço. Falei: “Vou pra São Paulo”. Vim pra São Paulo e comecei a trabalhar em Santana, ali na Rua Conselheiro Moreira de Barros.
P/1 – Você não conhecia São Paulo ainda?
R – Não, não conhecia São Paulo ainda. Não, conhecia sim, porque já tinha vindo aqui, morado, foi depois que eu fui daqui pra lá, e voltei pra cá. Isso foi em 80 e alguma coisa, 84, 85, 86. Em 68 eu já estive em São Paulo.
P/1 – Quando você estava na empresa?
R – Quando eu estava na empresa, eu vim aqui em São Paulo e fiquei aqui, foi quando a gente tirou essas fotos aqui em cima, no bairro da Vila Albertina.
P/1 – Quando você veio pra São Paulo você foi morar na Vila Albertina?
R – Não, morei nas Perdizes, próximo da PUC, uma travessa da João Ramalho.
P/1 – Mas no quê? Uma casa?
R – Era um sobradinho verde que fica bem na esquina da João Ramalho, esqueci o nome da rua.
P/1 – Mas você estava morando sozinho?
R – Não, a gente estava morando em quatro pessoas.
P/1 – Que eram da empresa?
R – Que eram da empresa. Morávamos em quatro pessoas e ficávamos lá. Tudo por conta da empresa.
P/1 – E foi a primeira vez que você veio pra São Paulo?
R – Isso. Quando a gente tinha tempo e ficava de folga, a gente ficava aqui. Aqui era o ponto que a gente se encontrava, porque tinha muita gente que trabalhava na empresa e que era aqui de São Paulo. Os que tinham família aqui iam pra casa da família, os que não tinham família ficavam nesse sobradinho.
P/1 – O que você fazia quando você estava em São Paulo? Você disse que quem tinha parente ia pra casa de parente e quem não tinha ficava no sobradinho. Vocês não saíam pra conhecer a cidade, pra se divertir?
R – Não. A gente só ia em três lugares: No Parque da Água Branca, no Mercado da Lapa ou no Pacaembu assistir jogos. Eram os únicos lugares que a gente ia, também eram os únicos que a gente conhecia (risos). O Parque da Água Branca ficava ali próximo, o Mercadão também, a gente pegava a Sumaré e ia pro Mercadão da Lapa, ou ia pela Turiassu. Andavam sempre os quatro juntos. Ou ia assistir jogo, principalmente quando tinha jogo do Corinthians.
P/1 – Você já era corinthiano?
R – Já era corinthiano.
P/1 – Como era o nome dos seus colegas?
R – Antonio, Edson e Júlio.
P/1 – E aquela foto que você tirou? Como você foi parar lá na Vila Albertina pra tirar aquela foto?
R – A gente tava fazendo compra no Pastorinho da João Ramalho. Tinha um rapaz que trabalhava lá e morava lá. Ele não está nessa foto, é o Davi. Ele ainda é vivo e trabalha até hoje no Pastorinho. Aposentado, mas continua trabalhando lá. A gente conversando com ele, ele disse assim: “Vai um final de semana e passa com a gente lá”. A gente foi pra lá, foi quando a gente começou a conhecer o Horto, através dele também, a gente ia pra lá, tirava foto, ficava junto. A gente ia de final de semana na cachoeira que tinha lá do outro lado, tomar banho.
P/1 – Então o contato com aquele local era só ir passear e voltar?
R – Isso, ir lá, passear e voltar. E eu só fiquei conhecendo aqui através daquele rapaz que trabalhava lá, na seção de frutas, verduras e legumes. A gente ia comprar fruta lá, teve contato com ele. Começou conversando, contando a história pra ele, ele contava pra gente também. Ele também tem uma história bem interessante. A gente ia pra casa dele e muitas vezes dormia lá.
P/1 – Deixa eu voltar agora. Você estava procurando emprego em São Paulo. Você encontrou emprego? Como é que foi?
R – Eu encontrei emprego através dele. Ele falou que o Pastorinho tava pegando gente pra trabalhar, mas era o Pastorinho de Santana, ali na Conselheiro Moreira de Barros. Eu falei pra ele: “Meu amigo, não sei nem onde fica Santana, nunca fui para aqueles lados de lá”. Ele falou: “Quando a gente vai pra minha casa a gente passa em Santana, a gente pega o metrô”. Na época não tinha todas as estações de metrô que tem hoje, da linha azul, só tinha do Jabaquara, Praça da Árvore, Santa Cruz, Vila Mariana, Paraíso não tinha, estava fazendo ainda... Liberdade, Sé, Tiradentes e Santana, eram as estações que tinham.
P/1 – Você pegou novidade, quando estava começando a fazer o metrô?
R – Exatamente, quando começou o metrô. Tudo aquilo que eu via, que não conhecia, pra mim era tudo novidade. Eu pensava assim: “Como a pessoa pode construir um negócio desse debaixo do chão? Como o cara vai escavar isso aqui, tirar toda essa terra? Pra onde vai essa terra? Pra onde vai tudo isso? Pra passarem dois metrôs, abrir uma estação daquela, é muita terra que sai. Com que eles escavam isso aqui? Não tem medo de desbarrancar, cair em cima do pessoal que estava trabalhando?”. Eu ficava com aquilo na cabeça. É uma máquina que faz tudo aquilo, mas na época eu não sabia. Pra mim era novidade, coisa de outro mundo, nunca tinha visto na vida. Era muita coisa que passava pela cabeça da gente, que a gente ficava... Cada coisa era uma história.
P/1 – Aí, você foi pra Santana procurar o emprego?
R – Eu fui pra Santana. Quando cheguei lá o rapaz mandou eu preencher uma ficha, eu preenchi e fiquei aguardando. Ele entregou pra moça lá, leu a ficha. Mandou voltar no outro dia, quando eu voltei já foi pra trabalhar.
P/1 – E do que o senhor foi trabalhar?
R – De ajudante geral, pra limpar loja, carregar saco de lixo. Serviço braçal, mais pesado. Aí, faltou um rapaz na área da confeitaria, um fiscal de caixa perguntou: “Você não quer ir pra confeitaria?”. Eu falei: “Vou” “Então vai lá pra confeitaria”. Eu subi pra confeitaria. Cheguei lá, tinha as pilhas de assadeira lá, tudo suja... Tirava os pães e ficava tudo grudado no fundo da assadeira. Tinha um tanque, eu taquei dentro, lavei, deixei tudo limpinha, coloquei tudo pra secar dentro do forno. Passei óleo nelas e deixei lá. Quando o cara chegou estava tudo limpinha. O cara gostou, falou com o gerente para eu ficar na confeitaria, e eu fiquei. Na confeitaria trabalhei acho que oito anos com ele, foi onde eu aprendi a trabalhar de confeiteiro.
P/1 – E você foi morar naquela região ou continuou morando no mesmo lugar?
R – Fui morar lá. Falei com o Davi, que mora até hoje lá e ele falou: “Eu posso arrumar uma casinha aqui, você aluga e mora”. Aí, eu fui pra lá. Estava começando o pessoal entrar pra morar ali, ainda. E era cheio de terreno baldio. Eu olhei e falei: “Eu não vou alugar casa pra morar, não. Vou invadir um terreno desses, vou fazer um barraco e vou morar aqui dentro”. Peguei, fiz o barraco, que é onde eu moro até hoje. Fiz o barraco, comecei a morar lá, trabalhava em Santana e morava no barraquinho. Aí, eu peguei arame farpado, cerquei o terreno, cerquei logo um grande, falei: “Vou pegar um bem grande aqui porque não tem dono, mesmo” (risos). Peguei, cerquei e fiquei morando lá dentro. Não tinha luz, água, não tinha nada. Tinha uma senhora que fez poço artesiano para o pessoal tirar água de lá. A gente tirava água de lá, tinha que ferver pra esquentar a água e tomar banho. Não tinha fogão, panela, não tinha nada. Fui lá, comprei um balde de alumínio, enchia de água, trazia, pegava dois tijolos, colocava lenha debaixo, esquentava a água naquele fogo à lenha. Cozinhava no fogo à lenha, porque não tinha fogão, botijão de gás, nada. Pra comprar era longe ou o caminhão não passava lá porque era tudo rua de terra e, quando chovia era um barro vermelho que a gente nem conseguia se segurar em pé porque escorregava muito. Eu fazia fogo na lenha, esquentava a água pra tomar banho. Pra beber eu deixava um pouco de água separada dentro de uma panela, deixava em cima da mesinha. A mesinha era um madeirite que eu tinha pegado, tinha pregado na parede, onde tinha a madeira que eu tinha feito a parede tinha aqueles conta-litro. Eu peguei, preguei na parede, ficou aquele toco. Eu coloquei madeirite aqui, na outra ponta colocava outro pedaço de madeira daquele, pregava ele aqui em cima e fazia a mesa. Banco e cadeira não tinha. “Vai improvisar, vai ficar assim mesmo, depois a gente vê o que pode fazer, né?”.
P/1 – Já tinha seu colchão?
R – Tinha, tinha comprado um colchãozinho, uma caminha de solteiro onde dormia porque quando chovia à noite, a água passava por baixo do madeirite. Não tinha como você dormir no chão, ou você ia acordar nadando, como peixe. Colocava a cama, o colchão e dormia. Furei um buraco na madeira, coloquei corrente, passava o cadeado, fechava e ia trabalhar. Não tinha luz. Tinha uma mulher, a dona Jacinta, só a casa dela tinha luz, ninguém mais tinha luz. E ela puxou de baixo, aonde tinha o Ourinhos.
P/1 – O supermercado?
R – O supermercado. Porque aquele supermercado não era o que tinha ali, antes o cara vendia frango. Era só uma portinha. A Coronel Sezefredo Fagundes não era asfaltada, era terra, depois que asfaltaram. Ali tinha um ponto de luz, ela puxou dali pra casa dela. O que várias pessoas fizeram? Não fui só eu, vários fizeram: À noite a gente chegou onde era a casa dela, lá era um plantio de bananeira, a gente emendou o fio em casa e puxou até lá, de lá, ligou no fio dela. Olha a loucura: a gente pegava palha de bananeira pra cobrir o fio e ninguém ver que estava roubando energia dela (risos), só que ela já estava roubando energia de outro! Veja bem: A gente pegava e colocava palha de bananeira molhada em cima do fio de energia elétrica. Porque chovia, molhava tudo. Palha de bananeira já é fria, imagina ela molhada. Graças a Deus nunca aconteceu nada (risos), mas cada loucura que a gente já fez ali. Principalmente eu, já fiz cada loucura na vida que, às vezes eu fico pensando: “Será que eu conseguiria fazer isso de novo?”. Acho que eu não teria mais coragem pra fazer isso.
P/1 – Mas como é que essa situação foi mudando? Ficou muito tempo nessa situação?
R – Ficou bastante tempo, o pessoal começou a invadir. Aquele lado que é da Gol de Letra é do Estado e o outro lado é da Prefeitura. Mas o pessoal invadiu tudo, os dois lados, não queria saber de quem era, se era Estado, Prefeitura. Na realidade eles queriam um lugar pra morar, porque não tinha. O pessoal invadiu e hoje está tudo construído. Era tudo barraco de madeira, não tinha casa de alvenaria. As casas de alvenaria que tinham eram as da dona Jacinta. Eles foram derrubando e construindo de alvenaria. Você vê que na viela daquela favela tem várias que tem ali. Tem lugar que é tão estreito que não dá pra você passar. Se vier duas pessoas, um tem que esperar a outra passar. É complicado ali dentro da viela. Eu construí a minha ali e estou morando lá até hoje.
P/1 – Quando você começou a construir a sua casa mesmo?
R – Eu comecei a construir a minha casa mais ou menos em 89.
P/1- Então, a maioria das pessoas também deve ter sido nessa época?
R – É, nessa época. Teve gente que construiu bem antes de mim: o seu Miguel, o seu João, seu Geraldo, seu Minervino, eles construíram bem antes de mim. Eu morava no barraco ainda e eles já estavam construindo a casa deles. Porque aquelas casas ali é assim: Elas não tem estrutura pra você bater laje, quanto mais construir outra em cima. A maioria delas é tudo estuque e telhado, poucas tem laje. Porque na época que foram feitas, não tinha coluna, ninguém tinha dinheiro pra comprar ferro, cimento, areia, pedra, pagar um bom pedreiro. Pedreiro bom, tinha. Não tinha era recurso pra construir. Então, cada um construía a sua e do seu jeito. Cada um era seu engenheiro pra tirar a sua planta. Fazia a planta na cabeça ali, era pensando e já tava construindo a casa. Tem casa que nem tem alicerce, já levantou do chão mesmo. Você pode ver que a maioria das casas ali tem as paredes tudo rachadas. Por quê? Porque não foi feita a fundação, o alicerce. Ela foi construída direto do chão, tijolo cruzado, porque não tem coluna. E a maioria das casas é tudo telhado. As que tem laje são as mais novas, mas as primeiras mesmo, nenhuma tem laje. Pra construir em cima tem que demolir e construir novamente.
P/1 – Antes da gente avançar um pouco mais na comunidade, como apareceu a Jerusa na história?
R – A Jerusa morava na Vila Mazzei, ela nasceu lá. Pequenininha ela veio morar com o pai dela na rua Antonio Simplício. Só que ali já morava o Seu Miguel, o seu Geraldo, era no mesmo terreno que eu já tinha pegado, ele comprou o dele do lado, a gente emendou e fez um só. Ele tem quinze metros de frente e trinta metros de fundo. São dois lotes, mas é tudo pegado e mora uma família só. Eu comecei a namorar com ela em 87, em 88 eu casei. No dia 9 de janeiro de 88 eu casei com ela no civil e dia 16 casei no religioso. E a gente está junto até hoje, não sei amanhã (risos).
P/1 – E você continua trabalhando no Pastorinho e morando lá?
R – Isso, eu continuei trabalhando no Pastorinho e abriu outra loja, na Vila Mariana, na Domingos de Moraes. A gente foi pra lá pra inaugurar a loja, que era pra fazer salgados, doces, pães, encher as vitrines pra estar tudo prontinho no dia da inauguração. A gente foi pra lá, não lembro o ano que foi inaugurada a loja de lá. Nessa época eu era solteiro, não tinha casado ainda . Eu fiquei trabalhando lá, ficamos eu, o Silvano, o Gilberto, o Gilson, o João Pinguinha. A gente chamava ele de João Pinguinha porque ele bebia muito, né? A gente ficou trabalhando lá bastante tempo, depois um foi saindo, um foi para um lado, outro foi pra outro.
P/1 – Você lavava as formas e tal. No seu trabalho, você aprendeu a fazer outras coisas de confeitaria?
R – Aprendi. Eu pegava tudo que era forma suja: forma, assadeira, lavava, colocava no forno para ela secar mais rápido, ela secava, eu tirava do forno, já passava óleo e deixava amontoada tudo em cima da outra. Aí, eu chegava na mesa onde os confeiteiros estavam trabalhando e ficava observando ele fazer as coisas. E eu pedia pra eles: “Posso fazer?” “Ah, se você quer fazer, faz aí” “Eu quero aprender, tenho vontade de aprender” “Ah, quer aprender?”. Então, os caras se escoravam um pouco e deixavam pra gente fazer. Não era apenas eu, tinha mais gente. E os que se interessavam mais, queriam aprender, encostavam ali, ia aprendendo e, de repente saía da área da limpeza e já ia trabalhar na mesa como auxiliar de confeiteiro. Com três meses eu já estava trabalhando na mesa. Fiquei trabalhando com eles, aprendi, enfeitava bolo, batia massa de bolo, recheava, enfeitava, aprendi a fazer desenho em cima do bolo. O interessante deles lá não era você fazer o bolo, mas decorar o bolo. Porque é assim, como a demanda era muito grande, um vinha, fazia a massa. O outro recheava. O outro cobria, e o outro já fazia a decoração, que era pra adiantar o serviço. Eu já fazia todas as partes: batia a massa, recheava, cobria e fazia decoração. Eu passei a fazer a decoração dos bolos no dia que eu fiz o desenho do Mickey em cima do bolo. Não era bem o Mickey que eu queria fazer, na verdade eu queria fazer o Gato Félix, essa é que foi a verdade (risos). Eu fiz, olhei assim, e pensei: “Mas o Gato Félix não é desse jeito, é diferente”. E eu não sabia distinguir o desenho que estava ali em cima. Eu olhei e chamei o encarregado, que era o Silvano e falei: “Silvano, tá certo esse desenho?”. Ele falou assim: “Tá”. Daí eu falei: “Mas isso aqui é o Gato Félix?” “Não, esse é o Mickey” “Mas eu queria fazer o Gato Félix, não o Mickey” “Mas você acabou fazendo o Mickey”. Aí, ficou. Eu comecei a praticar, fazia mais vezes e comecei a fazer tudo quanto era tipo de desenho: Gato Félix, Mickey, Pateta, Pato Donald, palhaço, Pantera. Fazia todo tipo de desenho. Eu fiquei três anos só em decoração de bolo e aprendi fazendo isso.
P/1 – E quando você saiu do Pastorinho?
R – Do Pastorinho eu saí em 87. Saí do Pastorinho e entrei em uma padaria, trabalhei lá por dois anos e um pouquinho. O dono vendeu a padaria, naquela época tinha um negócio de patrão vender as padarias, quem quisesse ficar com o novo dono ficava, quem não quisesse ficar ia embora. Eu falei: “Eu vou trabalhar, eu preciso trabalhar, se eu sair daqui vou ter que ir pra outro lugar, então, prefiro ficar”. Eu trabalhei com o outro dono por mais um ano e pouco. Tive uma proposta para trabalhar no mercado, trabalhei no mercado de novo.
P/1 – Qual era o mercado?
R – Mercado Mak, que hoje não existe mais. Trabalhei no Mak, do Mak passei pro Túlia, e o Túlia faliu também. Uma parte das lojas foi vendida, a outra fechou. A rede era muito grande e a administração era muito fraca na área de limpeza, manutenção. Eles queriam dinheiro, mas não queriam gastar com manutenção. E muitas lojas foram fechadas pela fiscalização por falta de manutenção: parte elétrica, hidráulica, tudo estourado, vazamento de água para tudo quanto é lado. Muita sujeira. A fiscalização vinha e fechava e eles não reabriam. Só que pelas portas dos fundos eles retiravam as mercadorias e levavam para as outras lojas. Foi, foi, até que acabou a rede Túlia, que hoje é o Sonda no lugar. O Sonda comprou as lojas que eram do Túlia. Saí de lá e fui trabalhar em padaria de novo. A última padaria que eu trabalhei foi a padaria Ponto Quente, na Avenida Água Fria. Nessa época eu já trabalhava como voluntário na Fundação Gol de Letra. Foi a história que foi chegando na Fundação.
P/1 – Vamos voltar pra comunidade, pro lugar que você mora. Antes da chegada da Gol de Letra, o que era ali?
R – Antes da Gol de Letra ali era um lugar considerado muito violento. Considerado não, era realmente muito violento.
P/1 – Mas na época que você foi morar não era assim?
R – Não, na época que eu fui morar não era. Quando começou a crescer, chegou um certo ponto que não tinha mais como crescer, o espaço era pouco. De um lado a Serra da Cantareira, do outro lado, o Horto Florestal. Já tinha muita gente morando na parte que chega no Horto Florestal, e a outra parte pro lado de cima era só barranco e a Serra da Cantareira. Não tinha mais para onde expandir, o pessoal se juntou tudo naquele pedacinho. A criminalidade ali era muito alta porque eles fizeram ali um ponto de droga, tinha duas favelas: Uma do lado da vila, que é do lado da pedra, e a outra do lado, que é a Gol de Letra. Mas era favela mesmo, só barraco de madeira, só gente da pesada que morava ali, traficante. Porque era um bairro esquecido, não ia viatura, era somente o tráfico. Carro que subia ali era do tráfico porque os moradores não tinham condições de comprar. Quando você via um carro lá em cima era de gente que mexia com drogas. Tinha um rapaz que morava lá, já falecido, era carreteiro. Ele era um dos chefes do tráfico de drogas. Você vê aquelas duas casas bonitas ali na frente, casona bonita que construíram agora, que tem um sobrado branco? Aquele rapaz também era um traficante de drogas. Além de ser um traficante de drogas, roubava carga, caminhão, carreta. Roubavam aqui e levavam pro Paraguai. Matavam o motorista, levava a carreta e lá vendiam a carga com carreta e tudo. Faziam a mesma coisa lá e traziam pra cá. Foi por isso que o supermercado Ourinhos cresceu daquele jeito: Ele trazia as cargas, vendia pro cara do supermercado Ourinhos, que era o irmão da dona Jacinta. E ninguém falava nada porque todo mundo tinha medo, porque eles eram os bambambãs, tinham dinheiro, poder aquisitivo bem alto. Hoje eles são donos do Ourinhos, do Bergamini e do Andorinhas, são os três mercados fortes da Zona Norte. É tudo da mesma família: Irmão, sobrinho. Uma época teve uma polêmica do Andorinhas, não sei se vocês ficaram sabendo da reportagem que teve. Eles roubaram tanto que chegaram a falar que tinham ganhado na loteria, mas a realidade não foi essa, era tráfico de drogas, mesmo. Aí, a comunidade começou a crescer.
P/1 – Vocês não saíam à noite, né?
R – Não, ninguém saía à noite. Era muito perigoso. Começou a crescer a comunidade, mas não tinha para onde crescer o bairro. Era muita gente, um matava o outro. Era assim: eles eram infiltrados no tráfico, cada um queria mandar mais que o outro, um ia crescendo envolvido naquilo e queria ser o dono do pedaço. A violência cresceu de tal maneira que irmão chegou a matar irmão, pai matar filho, filho matar pai, mãe, tudo por causa de drogas. E ninguém podia fazer nada, polícia não ia lá. Matava um, chamava a polícia, quando a polícia chegava, o rabecão já tava lá pra tirar o corpo de lá. Não é como matar um e a viatura ficar lá, fazendo escolta, até chegar o rabecão. Muitas vezes o rabecão chegava antes da própria viatura. Duas ou três vezes aconteceu das viaturas serem roubadas quando chegavam, deixavam os policiais a pé, aconteceu de roubarem as armas dos policiais. Os bandidos precisavam de arma, ligavam e chamavam a polícia, diziam que tava tendo uma briga. A viatura chegava, os caras entravam nas viaturas e sumiam. Roubavam as armas, batia as viaturas no barrancos, amassavam tudo as viaturas. Por isso que a polícia não subia lá. Começou a melhorar quando começou a Rota. Aí, tinha o esquadrão da morte. O esquadrão da morte subiu pra lá, matou muita gente, e muita gente inocente, pai de família que vinha do serviço. Chegava depois das sete horas da noite, o que passava na rua eles matavam. Os caras entravam encapuzados, tudo à paisana, carro particular. Ninguém sabia quem eram, se eram polícia, matador de aluguel. A violência começou a crescer muito. Isso foi a década de 90 até 95, 96, por aí. Aí, deu uma aliviada porque a polícia começou a entrar com mais frequência lá. Começou a diminuir um pouco, mas não muito. Tanto que ali era a escola, a escola foi desapropriada dali porque os bandidos colocaram alunos e professores pra correrem dali.
P/1 – Mas você lembra quando foi construída a escola?
R – A escola foi construída em 84.
P/1 – Então ela pegou essa época.
R – Ela pegou essa época. Ela começou a ser construída em 83, em 84 começou a funcionar.
P/1 – Mas era pro pessoal dali mesmo?
R – Pro pessoal dali mesmo. Ela funcionou de 84 até 90, mais ou menos. Aí, ninguém aguentou mais e abandonaram.
P/1 – Você chegou a ver a escola funcionando?
R – Sim. Meu cunhado estudou naquela escola. Mas ela funcionava durante o dia, à noite, que tinha aula, virava bagunça. Os caras invadiam, entravam, iam usar drogas lá dentro, maconha, cocaína, outros tipos de droga. Era bem pesado o clima ali, os professores não aguentaram, abandonaram. Pessoal que estudava lá foi mandado pra três escolas, pro João Ramos, pro Arnaldo Barreto e pro Esmeralda. Ficou abandonado, virou ponto de drogas. Depois levaram o pessoal da FEBEM [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor], eles queriam fazer uma FEBEM ali. Colocaram de manhã, de tarde foram embora: Os muros tudo baixinho, sem alambrado, os muros quebrados, que era onde ele guardavam droga, arma dentro. Colocaram o pessoal da Febem, trinta adolescentes. No outro dia não tinha nenhum, todo mundo fugiu. Ali não tem como segurar, os muros eram muito baixos, agora está um pouco mais alto. Além de ser baixo não tinha alambrado. Aí, ficou abandonado. Gente morreu ali dentro daquela escola, assassinado. Na porta da escola, ali onde é aquele orelhão. Já vi muita gente morta ali por causa de drogas.
P/1 – E a criançada nem andava na rua, não brincava na rua?
R – Não. Você não via criança na rua, via de vez em quando, durante o dia. Por volta de seis, sete horas, você não via ninguém na rua, era um silêncio total. Não ficava ninguém na rua: Uns não ficavam porque tinham medo da violência, outros porque tinham medo que viessem outros caras de fora e pegassem eles, que eram jurados de morte. Se você chegasse por volta de sete, oito horas da noite e visse gente na rua, você podia ter certeza que alguma coisa iria acontecer, estavam atrás de alguém. E eles iam, pegavam e matavam mesmo. Arrancava de dentro de casa, matava e ia embora. Porque ali era ligado: Vila Albertina, Jardim Tremembé, Vila Nova Galvão e Jardim Brasil. Os caras aprontavam no Jardim Brasil e vinham pra cá, aprontavam aqui e iam pro Jardim Brasil, ou pra Vila Galvão. Os três pontos deles eram Vila Albertina, Jardim Brasil e Vila Nova Galvão, que eram as três favelas maiores que tinham aqui. Tinha aquela favela que fica lá do lado da Fernão Dias que é enorme, ela começa no Jardim Brasil, sobe, passa o Jaçanã, vem até na Vila Nova Galvão.
P/1 – E como é que você viu mudar isso?
R – Eu vi mudar ali a partir de 98 porque veio a Fundação. Quando a Fundação veio pra se instalar, ninguém sabia o que ia ser ali. O medo era tanto que ninguém nem procurava saber o que seria. A Fundação veio, começaram a fazer a reforma em 98, no finalzinho de 98 pra começo de 99, terminaram a reforma e pouca gente sabia que seria uma fundação.
P/1 – Mas via o pessoal chegando lá?
R – Via o pessoal chegando, os caminhões chegando com material de construção, pessoal trabalhando.
P/1 – Até então ninguém da comunidade tinha chegado ali pra...?
R – Não, ninguém da comunidade tinha se aproximado pra ter conhecimento do que estava sendo feito naquele local. A Maísa, que era a caseira da escola e que continua morando lá até hoje, eu conversando com ela, ela falou: “Estão construindo outra escola aqui, mas não sei que tipo vai ser. O Raí veio aqui, o Leonardo”. Ela foi a primeira pessoa que teve contato com o pessoal que foi lá. Eu estava parado, eu falei: “Eu vou lá pra ver se eu consigo algum serviço”. O pessoal estava tudo trabalhando, eu pensei: “Os caras são corajosos, a gente que é daqui tem medo, imagine as pessoas que vem de fora? Ou não sabem, ou são muito corajosos. Já que eu estou aqui, eu vou também”. E fui.
(TROCA DE FITA)
P/1 – O pessoal que estava lá nem imaginava o que estava chegando?
R – Isso, nem imaginava o que estava chegando pra se instalar naquele local.
P/1 – E o pessoal que estava trabalhando também não imagina onde... (risos).
R – Também não imaginava onde eles tinham chegado. Eu entrei lá, ainda não tinha o portão, estava aberto. Eu entrei, um monte de ferro jogado no chão. Eu conversei com um rapaz lá que era pedreiro, eu perguntei pra ele, ele falou: “Aqui é uma empresa que tá reformando, vai ser uma ONG”. Eu falei: “Vocês não estão precisando de gente pra trabalhar?”. Ele falou: “Vai lá e fala com o encarregado”. Eu fui lá, falei com ele e ele falou: “Não, no momento a gente não precisa. A gente está com a equipe completa. Você deixa o seu endereço que se a gente precisar, a gente vai atrás de você”. Eu falei: “Meu endereço é aqui mesmo, eu moro aqui do lado”. Eu to saindo e vem a Célia, que era a japonesinha. Ela disse assim: “Você está procurando alguém?” “Não, eu estava conversando com o rapaz, eu estou procurando serviço” “Você quer trabalhar?” “Eu quero” “Então, vem comigo”. Eu entrei com ela lá dentro e ela disse: “Olha, a gente tá começando aqui, a gente não tem estrutura pra pagar funcionário, mas a gente está precisando de gente pra trabalhar, se você tiver tempo disponível pra você ajudar, e se você quiser, a gente aceita”. Eu falei: “Quero”. Nem sabia que tipo de serviço que era. Ela disse: “Olha, a gente precisa desentupir todos os encanamentos entupidos, fazer uma limpeza geral e limpar as calhas que estão todas entupidas”. Eu falei: “Então, já vou começar agora”. Comecei e estou lá até hoje. Trabalhei lá fazendo isso na área de limpeza, tirando folha, desentupindo cano, arrumando torneira quebrada, troquei as torneiras velhas, elas compraram torneiras novas, cano quebrado, que era o que mais tinha que eles quebravam, limpei a calha. Aquele telhado do lado de lá a gente tirou todinho, destelhou todinho, limpou, tirou toda a sujeira que tinha lá, colocou o telhado no lugar novamente. Colocou os parafusos, deixou tudo bonitinho. E eu fiquei trabalhando como voluntário. Trabalhei quase três anos como voluntário.
P/1 – Você tinha outro emprego pra poder...
R – Não, eu fazia bico, eu estava desempregado. Eu fazia uns biquinhos pra ajudar em casa, comprar as coisas em casa. Aí, eu comecei a trabalhar na Doceira Anabela, na Vila Mariana, Domingos de Moraes, do lado do Metrô Santa Cruz, perto do shopping. De lá eu vim pra padaria Ponto Quente, e eles me chamaram pra trabalhar na Fundação, comecei a trabalhar lá já registrado.
P/1 – Na portaria mesmo?
R – Na portaria mesmo. Eu trabalhava como porteiro e manobrista porque os carros eram guardados tudo ali dentro daquele estacionamento. Mas muitas crianças passavam entre um carro e outro, quebravam retrovisor, riscavam carro. Resolveram tirar e deixar nas freiras, na Lareira São José, que é onde eles guardam hoje. Aí, eu fiquei só na portaria. Eu fico na portaria durante o dia e à noite dou a oficina de panificação.
P/1 – Você dá agora?
R – Desde 2003 até hoje eu dou essas aulas. Tem até hoje. No mês que vem, em agosto, vai ter uma aula, dias 17, 18, 20 e 21.
P/1 – Deixa eu voltar com você lá na reforma. Você acompanhou toda a reforma, foi lá como voluntário. Como a comunidade começou a se aproximar disso? Começou a ver isso, tinha comentário na rua?
R – Então, aí tinha comentário.
P/1 – E o negócio do Raí indo lá. É uma coisa anormal, não é? O pessoal não comentava?
R – Porque era assim: Pouca gente conhecia o Raí, só mesmo quem gostava de esportes, assistia jogo, sabia quem era o Raí, o Leonardo. Muita gente nem sabia quem era o Leonardo porque o Leonardo era do Rio. Então, jogo do Rio só passava na TV quando jogava com time paulista. O Raí jogou no Botafogo de Ribeirão Preto, que foi onde ele começou, depois ele foi pra Ponte Preta, aí veio pra São Paulo, depois foi pro Paris Saint-Germain na França. E ele veio a ficar mais conhecido quando ele voltou, muita gente que veio conhecer, saber quem era o Raí. Quando ele fez aquele jogo com o Palmeiras, que fez aquele gol de letra, quando jogou com o Corinthians, foi campeão em cima do Corinthians em 98. Foi quando o pessoal começou a saber quem era o Raí. E as outras pessoas conheciam mais o Raí como o irmão do Sócrates, que jogava no Corinthians. “Ah, quem é o Raí?” “Raí é o irmão do Sócrates”. O pessoal não falava: “O Raí é um jogador do São Paulo”, do Botafogo, da Ponte Preta, da Seleção Brasileira, do Paris Saint-Germain. Ninguém conhecia, conhecia como: “Raí, irmão do Sócrates que joga no Corinthians”. Até muita gente com mais experiência, com mais tempo de convivência dentro do esporte, no futebol, falava. Quantas reportagens eu ouvi, mesmo do pessoal de esportes falando isso. Pessoal da mídia, repórter da televisão. O pessoal fazia uma trajetória muito grande pra chegar, saber quem era o Raí.
P/1 – E lá na comunidade então...
R – Na comunidade quando falavam: “É o Raí que vai montar” “Quem é o Raí?”. Aí falavam isso: “Raí, irmão do Sócrates, que jogou no Corinthians, na Seleção Brasileira” “Lembra da Copa de 82? Que o Falcão fez um gol, o Sócrates fez outro e o Brasil perdeu de 3 a 2 pra Itália?”. Aí, que o pessoal começava a lembrar. “Ah sim, jogava onde, mesmo?”. Não sabia que clube ele jogava, só alguns são-paulinos que sabiam, mas outras pessoas não sabiam. [aqui ele começa a repetir a mesma coisa]. A comunidade começou a se aproximar de lá: “Ah, o Raí está aí? Eu quero ver, eu nunca vi, não conheço ele”. Todo mundo foi se aproximando, quando percebeu a comunidade estava toda lá dentro. Mesmo antes de terminar as reformas.
P/1 – Apareceram mais voluntários?
R – Começaram a aparecer voluntários pra várias áreas de serviço. Foram tantos que quando o Raí começou lá, ele foi orientado pelo pessoal da Abrinq, eles ajudaram muito a Fundação Gol de Letra, não sei se eles comentaram isso com vocês. A gente ia na Abrinq também.
P/1 – Você também chegou a ir lá?
R – Cheguei a ir lá.
P/1 – Como que foi isso?
R – A Abrinq foi assim: Foi uma época de férias, a Abrinq e a gente estava de férias e eles queriam passar as férias fora, só que não tinham como ir pra lá porque a quantidade de gente era grande e eles tinham um trabalho pra fazer nas férias onde eles iam, em Embu das Artes.
P/1 – Isso durante a reforma ainda?
R – Foi depois da reforma. Durane a reforma, o pessoal começou a chegar mais na Fundação, de querer saber o que era a Fundação, quem era o Raí, o Leonardo, queria conhecer o pessoal, maioria era curiosidade. E outros, muita necessidade, porque necessitava mesmo de um emprego, de colocar uma criança lá dentro. Na verdade o pessoal nem sabia pra que era.
P/1 – Mas e o pessoal do tráfico? Como é que aceitou a vinda deles, porque eles ocupavam a escola antes, não ocupavam?
R – É, eles ocupavam o espaço.
P/1 – Não teve uma disputa por esse espaço?
R – Não, não teve. Foi até bom porque quando a Fundação chegou, que o pessoal falou que era do Raí, o pessoal falou: “Não, se é o Raí que vai montar a Fundação aqui pro bem da comunidade, a gente vai proteger a Fundação, não vamos deixar ninguém mexer”. Eles falaram, eu cansei de ouvir eles falando isso, lá na comunidade. E eles se afastaram. Ele falou: “O espaço não é nosso, então, vamos deixar o espaço pra ele”. Eles se afastaram da Fundação, não mexeram na Fundação, não mexeram e nem mexem com ninguém até hoje, nunca ninguém entrou lá, e eles aceitaram numa boa. E aquela rivalidade que tinha entre bandidos acabou, de um querer ser mais do que o outro, de querer matar o outro, de ser o dono do ponto de drogas. Ainda existem, há muitos pontos de droga, e não é só um ou dois, tem vários, muito roubo de carro, mas na Fundação eles nunca mexeram, eles respeitam, não entram lá dentro, não gostam que ninguém mexa lá. Você vê que as paredes não são pichadas, eles não deixam a molecada pichar. Acontece uma coisa ou outra, quebrar uma câmera, a fechadura de uma porta, mas só do portão de fora, nunca entraram lá dentro, nunca mexeram em nada lá dentro. Se eles fizerem alguma coisa, entrarem lá dentro, a gente chega, conversa, eles saem numa boa: “Olha, não pode entrar sem camisa” “Ô, desculpa”. Aí, eles saem, vestem a camisa e voltam, ainda pedem desculpa. Se está jogando bola e tá fumando, a gente chega e fala: “Olha, aqui é uma área que não pode fumar, é uma área de lazer, tem muita criança e adolescente. A gente está trabalhando pra Educação da comunidade, e a gente pede, por favor, que se você quiser fumar, fuma lá fora, depois você volta e entra”. Eles saem numa boa, fumam e bebem lá fora, não falam nada, voltam. Se voltar bêbado não arruma encrenca lá dentro. Já arrumaram, já saiu muita briga lá dentro, entre eles jogando bola. Mas por causa de droga nunca saiu, não. Eles aceitaram numa boa. Eles não vêm querer invadir lá, quando eles querem alguma coisa, eles pedem. Eles não chegam assim, querendo entrar no peito. Chegam e falam: “Olha, com quem eu posso falar para conseguir isso?”. Outro dia foi até legal. Teve um pessoal lá, o pessoal do meio do tráfico eu me dou bem, que eu conheço tudo eles lá. Eles chegaram e falaram: “Oliveira, como eu posso fazer pra arrumar um jogo de camisa?”. Eu falei: “Olha, fica difícil pra você conseguir um jogo de camisa porque a Fundação não está aqui pra ficar dando jogo de camisa pra ninguém, ela está aqui pra ajudar em um todo, na comunidade, a todos da comunidade.” Criança que precisa sair da rua, o pai e a mãe trabalham, não tem onde a criança ficar, aí, um horário fica na escola e no outro aqui dentro. Outro os pais estão presos, a criança não tem onde ficar, fica um horário aqui, outro na escola, à noite alguém responsável vem buscar, pega, fica com a criança, da idade de sete a catorze anos. Outros nem tem pai, nem mãe, vivem na mão de um, de outro, esses também a Fundação acolhe, dá uma proteção praquela criança, dá uma educação praquela criança, pra colocar aquela criança ali dentro. Está na escola um horário e o outro aqui. Tem o lanche, não é aquele lanche do Mc Donald´s, mesmo porque não tem condições de fazer isso, mas é um lanche reforçado com fruta, pão, manteiga, leite, suco, como vocês acompanharam lá e viram, né? Pra quem não tem nada já é uma grande coisa. É como quando eu comecei a minha vida, estava lá na lama e saí pro colchão, né? É o que acontece com eles ali, é o que eu vejo a cada dia que passa, e eu me comparo com eles na época que eu era criança, na idade deles, na situação que eu tava pra que eu fui, na situação que eles tavam e estão agora. Eu faço essa comparação e vejo que é mais ou menos igual. É bem bacana o que fazem ali.
P/1 – Acabou a reforma, já estava construindo o prédio e ia ter um curso, é um curso, né? Na Fundação Abrinq. Foi todo mundo pra Fundação?
R – Nâo, não foi bem assim. Não foi todo mundo pra Fundação. Esse da Fundação a Abrinq dava uma ajuda pra Fundação tanto na área administrativa como na área de ajuda social pra crianças. Por exemplo, às vezes, tem uma família, o filho precisa usar óculos, ele não tem condições, a Fundação tá começando, ela não sabe por onde começar, como fazer aquela parte. A Abrinq se encarregava de fazer aquilo ali, fazia o exame e dava o óculos pra criança, através da Fundação. O meu filho foi um deles, que ganhou os óculos.
P/1 – E você mesmo, o que você foi fazer na Abrinq?
R – Estavam de férias, queriam fazer um trabalho da Fundação Abrinq e tinha muita gente e não tinha transporte pra levar. Daí, a Fundação Gol de Letra ofereceu o ônibus da Fundação pra levar o pessoal, e a Fundação Abrinq tinha alugado mais três ônibus, fora o pessoal que ia de carro. A gente foi pra lá, ficou o dia inteiro lá. Muito bom, muito bacana, o pessoal da Abrinq tratou a gente muito bem.
P/1 – O que foi feito lá?
R – O trabalho foi deles, a gente foi somente acompanhando.
P/1 – Ah tá, você não acompanhou o que aconteceu?
R – Não, não acompanhei o que aconteceu lá dentro. Eles fizeram o serviço que tinham que fazer, começaram por volta de umas nove horas, nove e meia, quando foi mais ou menos duas horas, eles terminaram o que tinham que fazer. Foi só festa, churrasco, comida e bebida à vontade, piscina pra tomar banho, quadra pra jogar bola. Foi muito bom, o pessoal da Abrinq foi muito educado com a gente, tratou a gente muito bem, e eu fiquei muito grato com a Fundação Abrinq por ter criado esse espaço pra gente ir lá.
P/1 – Isso foi antes da inauguração?
R – Foi antes da inauguração.
P/1 – Você acompanhou esse processo. Quando acabou a reforma, antes da inauguração, ficou um tempo se organizando, né? Você lembra quando acabou a reforma, mais ou menos?
R – A reforma acabou, eu não lembro direito, mas foi no começo de 99. Ela começou a funcionar em agosto, começou com quarenta crianças, se não me engano. A gente vai ficando velho e a memória vai ficando fraca, né? (risos).
P/1 – Você lembra dessa inauguração?
R – Lembro. Foi muito bom, muito bacana. Ele já tinha feito a quadra de baixo, quadra de cima. Eles colocaram uma câmera pra filmar em cima do telhado do prédio, colocaram rojão em cima, os fogos ficaram estourando por uns cinco minutos lá em cima, eles filmando lá de baixo. Colocaram um telão na quadra de baixo pra todo mundo assistir. Na hora da inauguração, estourando os fogos, filmando, estavam o Raí, o Leonardo e outras celebridades que estavam juntos também. Eu não me lembro se o Sóstenes estava na inauguração. Era muita gente, chegou época de chegar cem, cento e cinquenta pessoas ali dentro. Ficar lotado, ali.
P/1 – O pessoal da rua toda lá?
R – O pessoal da rua toda. Foi aberto pra comunidade, nunca teve restrição com a comunidade, sempre ajudou. Tem muita gente da comunidade que, às vezes, eles recuam, não querem ir, mas a Fundação abre as portas pra comunidade. Eu sei como é o pessoal da comunidade porque eu estou ali e acompanho todos os dias. É difícil lidar com o pessoal da comunidade, como é ainda. Porque é difícil você chegar em um lugar com um pessoal que é acostumado ali, só naquele pedacinho e não conhece outro lugar, o máximo que ele vai é até Santana. Santana, Jardim Tremembé, Vila Albertina, Horto Florestal, não conhece outro espaço. Quando ele conhece uma cultura diferente, pra ele é novidade. Eles acham que querem tomar o espaço deles, é isso que às vezes a gente vê. Mas não é que a Fundação quer tomar o espaço, ela quer abrir um espaço pra nós, principalmente pra mim, eu moro ali, eu acompanho e vejo como é que é. Pra mim, a Fundação foi muita coisa. Os meus filhos passaram tudo ali, dois e ainda tem um que estuda lá. Ajudou, não vou dizer que não ajudou, porque ajudou muito. Plano de saúde, não tinha condições de ter plano de saúde, a gente conseguiu através da Fundação. Tanto da Unimed como o Odonto, pela Unimed. Todas as crianças têm, toda a família tinha o plano de saúde da Unimed. Mas chegou um tempo que a Unimed cortou, não foi a Fundação. A Fundação ainda tentou ver se conseguia, mas não conseguiu. Mas as crianças que são matriculadas na Fundação tem o plano da Unimed e da Odonto, os funcionários também. O pessoal do Social também tem, que não é funcionário, mas é contratado por dois anos. E a Fundação ajuda muita gente. Mas é difícil você pôr na cabeça de uma pessoa que a Fundação está ali pra ajudar, não pra atrapalhar. Depois que a Fundação chegou, mudou a vida de muita gente.
P/1 – Você tem um exemplo pra gente sentir essa mudança?
R – Olha, eu tenho exemplos de muitas pessoas, a minha mesmo foi uma. Mudou muito a minha vida depois que eu comecei a trabalhar na Fundação, não só quando comecei a trabalhar, como quando a Fundação chegou ali. Primeiro, uma mudança muito grande como se fosse uma mudança radical de tempo. A gente saiu de um lugar que era muito violento, que a gente não tinha sossego, um espaço, hoje a gente tem um espaço que é a Fundação Gol de Letra, a gente tem a nossa liberdade de andar na rua, qualquer hora do dia ou da noite, saber que ninguém vai mexer, ninguém ameaça ninguém. Pode haver um tipo de ameaça de outras pessoas entre eles mesmo, de eles com algumas pessoas da comunidade. Mas a rixa entre eles mesmo, mas eles não mexem com ninguém, com pessoas dali ou que vem de fora. Eles respeitam muito isso. Pra mim, isso é um exemplo. Segundo, pessoas que ainda moram ali e que não tinham condições financeiras de ter um pão pra tomar o café de manhã. Eu sei porque eu moro ali e eu conheço, sei como é a convivência de todos os moradores dali. Não vou dizer que eu conheço a vida de cada um como eu conheço a minha, mas acompanho e vejo, e quando a gente vê uma pessoa passando necessidade a gente percebe, porque eu já passei e sei. Quem já passou necessidade, quando vê uma que está passando necessidade, a gente conhece, a gente sabe. E a Fundação ajudou.
P/1 – Ela ajudou como?
R – A Fundação ajudou muita gente ali até com cestas básicas. Teve uma época que a Fundação arrecadou umas quinze, dezesseis toneladas de alimentos, logo que ela chegou ali. A Fundação trabalhou de uma maneira que fez uma distribuição por igual, pra toda a comunidade. Você pode perguntar pra qualquer um que mora lá que eles vão falar isso. E a Fundação deu a cesta básica pra todas as pessoas, não deu direto, todos os meses dando cesta básica, não é isso. Mas ela tirou muita gente que tava passando fome, que não tinha nada pra comer em casa, e deu esse alimento que foi arrecadado e veio. Inclusive, quem foi buscar fomos eu e o Nininho, o seu Gerson. A gente trouxe no ônibus, em duas viagens: arroz, feijão, macarrão, café, farinha, farinha de trigo... E ajudou aquele pessoal, a maioria do pessoal em volta. Muita gente levou.
P/1 – Não teve um levantamento, sabia quem precisava?
R – Teve, foi feito um levantamento das pessoas, foram na casa das pessoas e viram a necessidade.
P/1 – Quem? Era o pessoal da Fundação?
R – Da Fundação.
P/1 – Já tinha agente?
R – Já, na época era o “Mulheres em Ação”. Tinha um grupo antes, era do pessoal que trabalhava na Fundação, mas não tinha um nome. Aí, deram esse nome de Mulheres em Ação, foi até a minha esposa quem sugeriu esse nome: “Vamos pôr esse nome, Mulheres em Ação, porque todo mundo está contribuindo pra alguma coisa. Se você não está contribuindo com dinheiro, mas está contribuindo com sua boa vontade, o seu trabalho, com aquilo que você pode oferecer”. Era isso que a Fundação faz até hoje. Fizeram uma pesquisa, levantamento e distribuiu para muitas pessoas que estavam precisando. Pessoas que precisam ir ao médico e não podem ir, vai uma pessoa da Fundação, liga, marca a consulta. Eu sei porque fizeram isso pra mim, pros meus filhos. A minha filha tinha um problema de saúde e operou pela Fundação Gol de Letra, não foi pelo convênio. Se eu fosse pagar a operação eu iria gastar três mil reais. Ela tinha que cortar o maxilar pra encurtar, porque o maxilar dela era muito pra frente, tinha que tirar um pedaço pra colocar ele no lugar pra ficar o tamanho certo. E foi feito pela Fundação. A Bia se encarregou disso aí, arrumou médico especializado nisso aí, foi feito tratamento e não precisou fazer operação. Só no tratamento que foi feito no aparelho tudo, ela usava aquele aparelho que segurava o queixo aqui, outro aqui atrás, outro na testa que descia aqui. Ela fez e foi tudo pela Fundação Gol de Letra, não foi pelo convênio. Ela fez isso, depois ela fez a outra operação, operou a adenóide, aí já foi pelo convênio. Ela operou no Hospital Santa Helena, na estação de metrô São Joaquim, não ficou na enfermaria, ficou em quarto particular. Eu fiquei com ela, acompanhei toda a operação que foi feita, tudo pela Fundação. E não foi só comigo que a Fundação fez isso, fez com mais gente. Fez com a Esmeralda também, com o seu Gérson. Com o seu Gérson, a Fundação fez um trabalho com ele. Ele estava cansado, tinha trabalhado muito, estava na Fundação e acredito que todo mundo gosta muito dele, uma pessoa muito boa. O Sóstenes, eu não queria citar o nome de ninguém, mas já citei. Ele se encarregou, falou pro pessoal levar pra fazer o tratamento dele, fez o tratamento, aposentou ele. Ele ainda trabalhou por dois anos lá depois da aposentadoria, dentro da Fundação, e a Fundação cuidou tudo isso dele. Dele, da família dele. A filha da Esmeralda foi presa e a Fundação se encarregou de ajudar pra soltar ela. O pessoal não comenta isso, tem umas coisas que a Fundação ajuda e o pessoal esconde. Eu acho que a gente tem que divulgar aquilo que a Fundação faz pra ajudar. Eu acredito assim, a gente tem que divulgar pra saber o trabalho que a Fundação está fazendo. Mas não é como aquele que a Fundação está fazendo e as pessoas escondem e as outras pessoas de fora não ficam sabendo quem fez. Tudo aquilo que é feito, tem uma pessoa que está por trás daquilo lá pra dizer: “Foi feito, mas foi fulano quem fez. Foi uma instituição que fez”. Quando você vai em um hospital: “Você foi operado em que hospital?” “Ah, fui operado em tal hospital”. Mas ele não vai falar que médico operou, você não sabe quem fez, sabe que foi no hospital. Tinha que ser divulgado, é como um artista, ele canta uma música, mas não sabe quem compôs a música, eles não divulgam. E aqui no Brasil acho que acontece muito isso, a gente tem que divulgar desde a raiz de quem faz, começa, levanta... É como um prédio, você vai levantar um prédio, você não começa por baixo, até terminar em cima? A gente tem que divulgar quem foi quem fez esse trabalho, não é porque o trabalho ficou feito que não sabe quem fez.
P/1 – Vou só voltar um pouco. Você falou que a sua esposa Jerusa participou do Mulheres em Ação. Você lembra quando ela começou a participar? Porque também era uma novidade, as mulheres não participavam da Fundação, né?
R/1 – Não, não participavam.
P/1 – Como é que foi o início das mulheres? E você, o que você achou dela começar a ir lá na Fundação?
R – Eu achei bom porque ela iria conhecer coisas que ela também não conhecia. Penso eu que ela pensava que as coisas fossem de um jeito e era de outro. Quando começou, começou com a Jerusa, a Marlene e outras pessoas. Bastante gente que foi lá, era muita gente. Começou fazendo um trabalho, ajudando, um fazia uma coisa, outro ajudava na cozinha, outro na limpeza. Cada um tinha uma área pra ajudar. Veio o Dia de Fazer a Diferença. Nesse dia o pessoal não sabia como começar e o que começar. Não me lembro qual foi a pessoa que disse: “Olha, pra fazer a diferença a gente pode pintar uma escola, uma creche, arrumar uma praça, plantar uma árvore, a gente está fazendo a diferença”. Sei que a gente se reuniu na Fundação e foi dividido em vários grupos. Um vai para uma escola, um para um creche, outro pra praça. Cada um vai fazer um tipo de coisa. A gente se separou e foi. E o ônibus da Fundação que levava, a Fundação deu lanche, ônibus pra levar o pessoal, ela estava empenhada em todos os aspectos dessa campanha. A gente pintou seis escolas e quatro creches em um dia só, pra você ver a quantidade de gente que tinha.
P/1 – Foi a primeira vez dela?
R – Primeira vez.
P/1 – Você lembra quando foi?
R – Foi no finalzinho de 99, 2000. Foi logo quando tava começando a Fundação. Estava crescendo, assim, ó, de uma maneira que a gente não acreditava que fosse crescer tanto daquele jeito.
P/1 – Você fala crescer, porque tinha muita gente lá?
R – É. Crescer porque tinha muita gente. Além de ter o pessoal da comunidade, vinha muita gente de fora, não era só o pessoal da Vila Albertina, tinha gente de Tucuruvi, Jaçanã, do Joamar, Vila Galvão, da Cachoeira...
P/1 – Moradores?
R – Sim, os moradores. O pessoal se empenhava ali. Uma escola que a gente foi pintar lá no Jardim Fontalis, a gente pintou uma escola e pintou um centro de recreação, em um dia só. A quantidade de gente que tinha, e a escola lá é muito grande. E começou a crescer, o pessoal começou a vir, não sei se era pra conhecer, era novidade, e o pessoal queria saber o porquê se instalou ali e não em outro lugar. O pessoal perguntava isso: “Mas por que eles vieram pra cá?”. Falei: “Gente, eles vieram pra cá porque a gente também merece, a gente é um ser humano. Ele também olha pra gente, aqui era um bairro esquecido”. E agora não, agora é um bairro que está... Você vê que até o movimento ali na rua está muito grande. É ônibus pra cima e pra baixo, muito carro, muita gente. Foi tudo através da Fundação, era uma rua morta. Tanto que a rua de cima não tinha saída, da vila que os ônibus passam, não tinha saída, depois que abriram.
(TROCA DE CD)
P/1 – Havia muita gente de tudo quanto era lugar, o pessoal queria conhecer o local, né? O pessoal tinha ideia? Uma coisa que passou um pouco pra mim, que eu queria entender: Inicialmente, o pessoal não teria ideia do que era aquilo.
R – Exatamente.
P/1 – Como o pessoal foi entendendo o que era a Gol de Letra? O pessoal não confundia com escolinha de futebol?
R – Até hoje confundem, muita gente vem ali pensando que é uma escolinha de futebol. O pessoal vinha, se aglomerava muito, uns não sabiam o que era, queriam saber. Outro, pensavam que era um escolinha de futebol, queria participar, colocar os filhos, se era pago, se era gratuito, como que era. A gente tinha que dar várias informações a cada um que vinha com a pergunta diferente. Aí, começava a aglomerar muita gente. Tinha gente até de alta sociedade que vinha pensando que era uma escolinha de futebol, quando sabia que era do Raí. A gente explicava que não era uma escolinha de futebol, era apenas uma ONG para o pessoal da comunidade, pra dar uma oportunidade para as crianças que estavam na rua, tirar eles do caminho do tráfico pra seguir uma carreira melhor: em um horário estuda na escola, no outro está dentro da Fundação, e dali ser encaminhado até para o mercado de trabalho, como aconteceu com muitas crianças, minha filha foi uma delas. Eu falo isso com orgulho, o primeiro emprego dela foi pela Fundação Gol de Letra no Banco do Brasil, ela trabalhou lá por dois anos. E tem muita criança, não são cem ou duzentos adolescentes que passaram pela Fundação e já passaram ou hoje trabalham no Banco do Brasil, ou em outras empresas, agora mesmo eu estava vendo várias vagas de emprego que a Fundação está encaminhando aqueles adolescentes, em supermercados, área administrativa, técnico em secretariado, tem várias coisas que a Fundação encaminha os adolescentes.
P/1 – Conta um pouco como foi o processo dos seus filhos entrarem lá. Como você fez? Eles entraram pequenininhos?
R – A minha filha Kelly foi a primeira entrar. Quando ela entrou eu já estava trabalhando lá como voluntário.
P/1 – Com quantos anos?
R – Ela tinha sete anos, ia fazer oito. Eu falei com a Célia: “Eu trabalho aqui, eu posso fazer uma ficha pra minha filha?”. Ela falou: “Pode”. Preenchi a ficha, trouxe os documentos que eles pediram e, em seguida, já chamaram e ela já começou. Ela foi uma das primeiras a entrar. Um ou dois anos depois eu coloquei o meu filho, foi até uma história engraçada. Ele queria porque queria estar na Fundação, mas ele era muito pequenininho, muito magrinho, e a gente tinha medo que as outras crianças machucassem ele, de tão pequeno que ele era, tinha idade, mas não tinha estrutura. Eu falei: “Seja o que Deus quiser, vamos colocar ele aí dentro, que aí ele vai crescer, de um jeito ou de outro”. Ele ficou sete anos lá, entrou com sete e saiu com catorze anos. Depois eu coloquei a minha outra filha, há três anos. Ela agora tem treze anos e tem mais um ano pela frente pra ficar lá dentro. Eu não tive dificuldade pra colocar eles lá dentro, eu tive paciência pra esperar, porque a demanda é muito grande. Todo mundo quer colocar os filhos lá dentro. A gente não tem dificuldade, a gente tem que ter paciência e esperar a hora certa porque faz a fichinha, vai ficar na lista de espera. Espera chegar o final do ano, sai a turma que completa catorze anos, vai saindo do VJ [Virando o Jogo] e entrando no FAC que é o programa que tem de Formação de Agentes Comunitários, tem artes visuais, audiovisual, grafite, o novo que é o DP, sei a sigla, mas esqueci o significado. Antes tinha mais oficinas, tinha dança, teatro, música e fotografia, mas estava crescendo muito, tinha muito adolescente, a despesa estava muito alta e os recursos poucos, não tinha como manter tanta oficina, eram oito ou dez. Não tava dando pra manter todas essas oficinas, tanto aqui como no Rio. Eles resolveram resumir um pouco das oficinas sem excluir os alunos, diminui a quantidade de oficinas e distribui aqueles alunos para outra oficina. Por exemplo, tirou a oficina de música, os alunos foram pra artes visuais e audiovisual, o que eles escolhessem iriam se encaixar na oficina. Como tanto a oficina de música como a de áudio visual trabalham muito com instrumento, uma é música e a outra é com filmagem, ficava mais fácil pra eles passarem pra lá. Tanto que a oficina de audiovisual tem muito aluno hoje, a maioria da fotografia e da música ficaram no audiovisual. Pra diminuir a quantidade de oficina porque diminuindo, a despesa fica menor. Mas como a despesa diminui se os alunos passam pra outra oficina? A despesa ia ser resumida porque teria um professor a menos, um salário a menos pra pagar, e o material que eles iriam usar nas duas oficinas, ia sobrar o material de uma oficina. Um educador foi dispensado, paciência teve que ter porque não era pra acontecer isso, mas você sabe que chega uma hora que as despesas aumentam, o dinheiro é curto e não dá pra cobrir todas as despesas. Eu não trabalho na parte administrativa mas acompanho, vejo...
P/1 – Mas você sentiu isso...
R – Isso, eu senti isso.
P/1 – Que ano que foi, mais ou menos?
R – Foi há uns dois anos, final de 2006 pra 2007. Foi um ano muito apertado pra Fundação, pra todos. A gente teve a morte da criança no Masp, teve o outro que foi atropelado. Foi um ano muito ruim pra gente lá e teve que fazer esse resumo pra começar a erguer tudo de novo. Ainda tinha a Fundação do Rio, tinha o Jogo Aberto. A Fundação ali, é a sede, os recursos vem todos pela Fundação e ali são distribuídos para as outras. O pessoal não tem a noção da despesa que tem a Fundação. Eu tenho uma noção mais ou menos porque a gente acompanha, tem mais ou menos uma visão pela despesa que tem em casa. Se em casa são seis pessoas e eu tenho uma despesa de mil reais, imagina na Fundação, com 240 crianças. Quantos mil reais não vai gastar pra manter aquilo ali? E não é só as crianças e o lanche das crianças. É o pagamento dos educadores, dos mediadores, monitores, funcionários, estagiários. Se você pôr na ponta do lápis é uma despesa muito, muito alta. Não é o salário de um que é alto, mas juntando todos que vai dar uma quantia alta. E muita gente que trabalha ali dentro não tem essa noção, de quanto é a despesa. Eles acham que cinco, dez, quinze mil reais paga a despesa. Não é por aí. Tem ano que só tem correio são vinte mil reais.
P/1 – Correio?
R – Só de correio. Pra você ter uma ideia. Agora imagina o resto das outras coisas.
P/1 – Só voltando um pouco nos seus filhos: O que você sentiu que mudou nos seus filhos depois que eles entraram na Gol de Letra e ela passou a fazer parte da vida deles. Porque eles iam pra escola e pra Gol. Você sentiu que teve uma mudança no comportamento, alguma coisa?
R – Eu senti uma mudança tanto no comportamento como na educação. Porque eles eram de casa pra escola, eles tinham um tipo de comportamento, educação. Eles tinham envolvimento só com as crianças que eram da escola, só com os educadores da escola e com o pessoal de casa. Eles não tinham envolvimento com outras pessoas, não tinham conhecimento de como era, vamos dizer assim, a mesma cultura, mas os dois lados da mesma cultura. Tem o lado da escola que tem o ensino fundamental e tem o lado da Fundação, que é um complemento da escola, pra ajudar. Tanto que tem aula de leitura e escrita, tem dois professores de leitura e escrita pra ajudarem aquelas crianças que tem dificuldade na escola. Eu senti a diferença porque a minha filha sempre tirava nota baixa, o comportamento dela era assim uma menina meio apagada, quieta, não era de conversar muito. Depois que ela entrou na Fundação, ela mudou o comportamento dela, ela ficou mais alegre, conversa mais com as pessoas, ela teve uma mudança, não sei nem como explicar a mudança que ela teve, do que ela era para o que ela é hoje. Porque ela era uma menina tímida, hoje não é mais. Hoje sabe chegar em qualquer lugar, entrar, sair. Quer dizer, com o tempo, que a pessoa vai crescendo, vai vendo, ela vai aprendendo. Mas muitas crianças ali, os meus filhos, por exemplo, aprenderam isso muito rápido, a desenvolver a mente da criança. Parece que abre mais a mente, não sei se é porque eles tem um espaço pra brincar, tem mais crianças pra eles brincarem, tem educadores diferentes dos que tem na escola. O ensino da Fundação é diferente do da escola. A escola ensina você a ler e a escrever e a Fundação ensina você a viver e respeitar. Isso que a Fundação ensina. Porque muitas crianças que entram ali não sabiam respeitar as pessoas e hoje eles respeitam. Porque eles aprenderam ali dentro. Tem muitas crianças que não respeitam, você tenta e não consegue, eles são danadinhos mesmo, crianças que você fala e eles ainda ficam tirando um barato de você, fica fazendo gozação, mas isso a gente releva porque, no meio de duzentas e quarenta crianças, se tiver dez, quinze, assim, a gente está na vantagem, né? Vamos supor, com duzentas e quarenta, se tiver quarenta crianças rebeldes, a gente tem duzentas que são bem comportadas, a gente sai ganhando. E a gente tem mais força pra poder lidar com aqueles que são rebeldes e colocar eles no lugar. Não querer ser o pai, mas querer ajudar no desenvolvimento e na Educação dele, pra que ele seja uma criança comportada amanhã ou depois ele esteja envolvido no meio da sociedade com um bom emprego, uma boa escola. Porque as escolas são fracas, mas por que elas são fracas? Os próprios alunos enfraquecem a escola. Antigamente não era a mesma escola e não era boa? E hoje são fracas por quê? Porque os alunos não tem uma disciplina. Muitas vezes em casa eles não têm uma disciplina. Chega na escola, eles querem fazer a mesma coisa que fazem na rua, em casa, em qualquer lugar. E eu vejo na escola, quando eu vou em reunião dos meus filhos na escola. Na Fundação, dos meus filhos e outras crianças que têm junto. Porque você lidar com três, quatro crianças é uma coisa, lidar com duzentas crianças é outra coisa diferente. Três crianças, quatro, cinco, você domina facinho, pra você dominar duzentas e quarenta crianças já é mais difícil. Se um é quieto, dez são danados ou, um é danado e dez são quietos, mesmo o que é danadinho vai influir na vida do quietinho pra puxar pra ele. Você nunca viu o lado ruim querer passar pro lado bom, mas você já viu o lado bom querer passar pro lado ruim, que é o que a gente mais vê hoje em dia. Você vê, por que existe o tráfico de drogas? Por que aumenta? Porque é fácil, é fácil um adolescente, uma criança, entrar no tráfico, difícil é ele sair. É fácil você ver uma criança educada e uma que é mal educada, e fácil você falar com a que é educada, mas é difícil você educar aquela que é mal educada. A função da Fundação é essa: a criança que é mal educada, estúpida, ignorante, a gente tem que tratar de uma maneira diferente daquele que já é educado, porque o que já é educado, a gente trata ele bem, o que é mal educado, a gente tem que tratar ele melhor, não fazendo a diferença de um pra outro, mas pra trazer ele pra que ele seja igual ao educado. A gente trabalhar nessa maneira de educar as crianças que são bem sapequinhas.
P/1 – Agora vou voltar para o que você estava colocando. Do que você vê na Gol, nesse tempo todo que você está lá, desde a reforma, o que você diria que você viu de acontecimentos. Como é que foi o desenvolvimento da Gol de Letra na região? Você viu momentos, como o que teve que diminuir oficinas, esse foi um momento. Que outros momentos você viu ali?
R – Eu já presenciei várias coisas lá, momentos bons. Momentos ruins que eu presenciei foi só esse de resumir as oficinas, passar uma dificuldade, até empresa que tem recursos próprios passa por dificuldade, imagina uma Fundação que depende de outros recursos? Sem fins lucrativos, que depende de doações, da força de outras pessoas de boa vontade que ajuda. Aí, a gente sente porque a gente vê que ali não tem fins lucrativos. Eu entendi dessa maneira, eu não comentei com ninguém, porque às vezes você comenta com uma pessoa que sai e comenta com outra e, quando você vê vira uma pandemia. E fala quem falou e ninguém sabe quem foi que falou. Então, muitas coisas é melhor a gente ver e não falar nada que a gente não pode resolver, melhor deixar quieto. Mas eu senti assim. Eu vi que, pela quantidade de material que é comprado, muitas vezes eu também acompanhava nas compras, ia buscar, às vezes estava comprado e eu só ia buscar. Mas a gente sente, a gente vê o volume, a quantidade que vem, chega, a quantidade que era comprada e está sendo comprada, o estoque que tinha, o que tem. A gente vê que o estoque está diminuindo, não está entrando, só está saindo. A gente começa a perceber. Eu, pelo menos, senti isso. Foi na época que eles diminuiram as oficinas. Foi um momento que a gente ficou abatido, eu mesmo fiquei, mas eu sabia que a Fundação tem tudo pra crescer e não iria cair mais do que aquilo. Parou ali e ela iria voltar ao que era antes, como está voltando. Na época ela ficou com duas oficinas, a de artes visuais e audiovisual, e era somente os dois professores. O professor que dava aula pro VJ dava aula pro FAC. Vamos supor, o Daniel dava aula pro VJ e, à noite, dava aula pro FAC. A Lídia dava aula pro VJ, à noite dava aula pro FAC. Agora já foi contratada mais uma professora, foi contratado professor de grafite. Já está melhorando porque eles estão começando a contratar mais professores e as oficinas vão começar a voltar. A de grafite já voltou, a de DP é uma nova, e eu tenho certeza que ela vai crescer muito mais.
P/1 – E de atuação, você sentiu que a Gol de Letra tinha uma atuação, depois teve outra, depois teve outra?
R – Como assim?
P/1 – Por exemplo, a Célia passou por lá, teve uma atuação. Depois mudou, outra pessoa passou. Você sentia isso?
R – Eu senti assim, porque a Célia é uma excelente profissional, esteve lá, começou, foi uma das primeiras que começou na Fundação. Mas ela não dava conta de tudo o que tinha ao redor, era muita coisa pra ela sozinha. E começou a vir mais gente, vieram outras pessoas, não vou citar o nome de ninguém. As outras pessoas vieram com outra cabeça, pensaram assim: “Ah, é uma ONG, não tem fins lucrativos, mas tem muita gente pra ajudar. Então, vamos gastar”. Foi isso que eu vi, com outras pessoas. Tinha uns gastos desnecessários, tanto que a pessoa foi excluída de lá, foi mandada embora. Porque, às vezes, gastava com coisa que não dava pra gastar. Vamos supor: Se você usa uma folha de sulfite, por que você vai gastar um pacote? Se você usa uma, vamos usar uma. Se usa duas, vamos gastar duas. Mas não usar uma folha e querer rabiscar o pacote. Aí, já está extrapolando, né? Foi isso que eu senti. Ninguém me falou nada, mas eu senti isso. Tanto que essa pessoa foi tirada de lá, aí, entraram outras pessoas, começou a arrumar de um lado, de outro, mas era pessoa que não tinha uma estrutura de ter uma cabeça e dizer assim: “Tem que seguir esse caminho, tem que ser assim e tem que ter um braço forte, tem que ter um cabresto pra dizer assim: ‘Aqui tem uma pessoa pra mandar, administrar, cuidar’”. Falar: aqui tem que ser assim, a gente tem que seguir assim, porque se a gente for extrapolar, gasta o dinheiro todo, gasta com coisa desnecessária, que não está precisando, sendo que tem outra que precisa ser comprada. Vamos cortar isso e comprar o que precisa, pra não deixar faltar nada. Aí sim, as coisas iriam melhorar. Mas até esse ponto as pessoas não tinham essa direção, essa cabeça. Às vezes, poderia até ter, mas não conseguia fazer. Acabou que o Sóstenes foi pra lá. Quando chegou, ele teve muita dificuldade pra colocar as coisas em ordem. Eu sei, ele nunca falou nada, nunca perguntei pra ele, mas a gente vê, ele teve muita dificuldade pra pôr as coisas no lugar. Gente que teve que ser demitida por incompetência, às vezes não tinha força de vontade. Porque se você tem competência, mas não tem força de vontade, as coisas não funcionam. Se você tem competência e força de vontade, as coisas funcionam. Eu acredito que era isso que essas pessoas não tinham. E muitos tinham força de vontade, competência, mas acharam coisas melhores e acabaram deixando a Fundação. Não vou citar o nome de ninguém, mas, aconteceu isso com muitas pessoas. Pessoas que tinham competência, força de vontade pra fazer as coisas, sabia fazer, tinha visão do que estava fazendo, mas às vezes encontrou coisas melhores e acabou deixando a Fundação e foi pra outros lugares.
P/1 – E toda essa atuação da Fundação Gol de Letra, tudo isso é muito interno, né? Porque a relação com a comunidade sempre foi a mesma? Nunca isso passou pra comunidade, o pessoal da rua nunca sentiu isso?
R – Não, não. O pessoal da rua nunca sentiu isso.
P/1 – E como é que é a relação da comunidade, do pessoal que não tem filho na Fundação? Como é essa relação com a Gol de Letra?
R – O pessoal que não tem filhos lá dentro, eles não tem uma relação efetiva de estar lá procurando saber como a Fundação funciona, como que está o pessoal, como que é, como trabalha. Tem pessoas que sempre estão participando de curso lá dentro, às vezes não tem os filhos, mas participa de curso porque tem a ioga, a oficina de pão, aquela arte na agulha, tem crochê, têm várias outras atividades com voluntário que faz lá dentro da Fundação. Aquelas pessoas são empenhadas naquilo ali. Elas não têm filhos lá dentro, mas estão sempre lá dentro, porque elas fazem essas oficinas. Às vezes, tem orientação do pessoal lá dentro. Tem gente que não tem criança lá dentro, não tem vínculo com a Fundação, mas que precisa de uma Fundação, vai lá procurar quem pode dar a orientação. “Qual a orientação que você precisa? Em que assunto?”. Área social, se está com problema financeiro, de doença, conjugal, briga com vizinho. A Fundação vai lá, se envolve e consegue contornar isso e acabar aquela confusão e fazer com que aquelas pessoas se unam pra não ter mais aquele conflito.
P/1 – Você já viu alguma coisa?
R – Já, já vi.
P/1 – Como foi isso?
R – Foi um negócio meio complicado. Comigo mesmo aconteceu isso aí.
P/1 – Mas teve vizinho que você viu?
R – Teve vizinhos. Aconteceu isso com uma vizinha lá que bateu na minha filha. Ela bateu na minha filha, eu não fui na casa dela tirar satisfação e brigar com ela, não fui bater nela. Eu simplesmente cheguei na Fundação, procurei a área social, conversei com a Olga: “Olga, está acontecendo isso, isso, isso e isso. Como eu posso fazer? Que atitude eu posso tomar”. Conversamos eu, ela, o Sóstenes, a Fátima, a gente sentou, conversou, que atitude eu poderia tomar. Porque você sabe, se eu fosse brigar com ela, o que iria acontecer? Iria generalizar. Como ela bateu na minha filha, eu iria bater nela, e ia vir o marido dela, ia sair um crime, algo mais grave. Mas eu fui procurar a área social, como eu poderia fazer pra resolver o problema que estava acontecendo no meio da minha família porque eu não queria aquilo, eu não queria ver ninguém bater nos meus filhos, também não quero bater no filho de ninguém, nem quero bater em ninguém porque bateu no meu filho. Eu quero resolver de uma maneira socialmente, pra ficar bom dos dois lados. E explicar pra pessoa que uma pancada não vai educar ninguém. Se alguém fizer algo de errado, a gente tem que procurar saber por que fez aquela coisa errada, procurar corrigir aquele erro, pra não errar de novo, a não ser que a pessoa goste de viver no erro.
P/1 – Mas e aí, o que a Fundação fez?
R – A Fundação me orientou no que eu tinha que fazer, perguntou se precisava chamar a pessoa pra conversar com a pessoa também. Eu falei que gostaria, chamou, mas, infelizmente a pessoa não veio. Mas a Fundação chamou, foi atrás. Eu estou fazendo a minha parte.
P/1 – Mas ficou por isso mesmo?
R – Ficou, deixei pra lá, não quis arrumar caso, criar confusão.
P/1 – Mas só o fato de ter chamado, a pessoa deve ter... Porque tem um negócio da Fundação que é resolução de conflitos.
R – Isso, é com a Ana.
P/1 – E a comunidade participa dessas reuniões?
R – Participa, participa.
P/1 – Então, é uma coisa que está sendo espalhada?
R – Está sendo espalhada pra comunidade, pra evitar esse tipo de conflito entre famílias, vizinhos. Porque acontecia muito isso lá.
P/1 – E isso tem mudado?
R – Isso tem mudado, mudou bastante. Acho que o pessoal ficou com aquilo na cabeça: “Se eu arrumar confusão, o pessoal da Gol de Letra vai ficar sabendo, vai me chamar, vai vir polícia, aquilo outro”. Mas não é, não vem polícia. Eles querem resolver entre as duas famílias ou no meio da família que aconteceu. Resolver, apaziguar ali, pra que as coisas se resolvam ali dentro e não espalhem pra fora, que não seja caso de polícia.
P/1 – Uma outra coisa que você falou foi das oficinas. Você também dá aula em uma oficina?
R – Sim, eu dou aula em oficina de pão.
P/1 – E como que é a aula, o pessoal vai?
R – A oficina de pão começou em 2003. Eu conversei com a Olga, que se fosse fazer a oficina de pão eu teria tempo disponível pra fazer, e gostaria de fazer e ensinar aquilo que eu aprendi, passar pras pessoas. Porque se a gente aprende, não passa pra ninguém, a gente morre, leva com a gente e ninguém aprendeu, mas, se alguém aprendeu vai desenvolvendo. Assim que começa a crescer. A Olga falou: “Eu vou ver como eu vou fazer, vou entrar em contato com o Fundo Social pra ver o que a gente pode fazer”. Ela entrou em contato com o Fundo Social ali no Parque da Água Branca, na época era o governador Geraldo Alckmin e a esposa dele era quem estava na frente desse trabalho. Ela conversou e resolveu fazer a oficina de pão. Eu comecei a fazer oficina de pão, não me lembro se foi em 2002 ou 2003, parece que foi 2003. A primeira oficina veio oito pessoas, pouca gente, né? Aí a gente começou a fazer, a divulgar, o pessoal começou a falar, a gostar e o pessoal começou a vir. Chegou a trinta e cinco pessoas. Eu fazia no refeitório, tirava aquelas mesas, juntava ali. Aí, eu cheguei pra Valéria, que estava junto com a Olga, e falei: “Valéria, a quantidade de gente por oficina tá muito alto, o espaço é pequeno, trinta e cinco pessoas, mais duas pessoas pra ajudar, eu, o pessoal do DI que vem pra tirar foto. Então, vamos resumir a quantidade de pessoas e aumentar a quantidade de oficinas, se faz duas por ano, vamos fazer quatro”. A gente faz quatro oficinas por ano, em vez de ser trinta e cinco pessoas, coloca vinte. Que tal?” Ela aceitou a sugestão. Foi quando as coisas começaram a apertar e não tem patrocinador pra oficina, ela é patrocinada pelo Fundo Social. Mas o Fundo Social é assim, ele manda um produto pra gente. Manda farinha, um saco de 50 kg de farinha. Você vai ver a validade, ele vence amanhã. Não tem como eu usar tudo aquilo hoje. Apesar que, se a data de validade dele é hoje, você pode usar hoje, amanhã, até o final da semana. Mas não tem como usar 50 kg de farinha em três, quatro dias, em uma oficina que a gente usa, a receita é pequena, a gente faz pequeno que é pra ajudar a comunidade. Às vezes você quer comer um pãozinho, vai no mercado, compra um quilo de farinha e faz um pãozinho. Você vai fazer dez, quinze pãezinhos com um quilo de farinha. Agora imagina você fazer 50 quilos de farinha (risos). É muita coisa. A Olga parou com o Fundo Social pra não mandar mais, porque eles mandavam em grande quantidade e tinha que distribuir pra rede, que tem uma rede lá que foi feita com a Fundação Gol de Letra, que tem as escolas, creches. Chama rede. Eles distribuiram pra toda a rede pra gastar toda a farinha, açúcar, sal. Usa muito pouco sal, eles mandaram muito sal, muito açúcar, muita farinha. E o que a gente usava não era tanto. A quantidade de gente é grande, mas os produtos que a gente usa, os ingredientes, são poucos, porque a gente não vai pôr uma receita cara porque a gente sabe que eles não têm condições de comprar. A gente fez uma redução, eu fiz uma apostila pra fazer a oficina. Eu trouxe uma apostila do Fundo Social, daquela apostila eu tirei e fiz uma apostila pequena, com menos receitas, com a letra maior porque tem gente que já tem dificuldade pra ler. Depois eu levei pra Olga: “Olga, dá uma olhada, você vê se está bom assim”. Ela aprovou e a gente vem tocando a oficina.
P/1 – E está funcionando?
R – Tá funcionando. A gente diminuiu, eram quatro oficinas por ano, cada uma durava uma semana inteira, de segunda à sexta, fazia o encerramento na sexta. A gente diminuiu para duas. Agora tem uma em maio e uma em agosto. Eram em fevereiro, maio, agosto e novembro. Cortou a de fevereiro e a de novembro. Mas eles estão querendo voltar a oficina porque a quantidade de gente tem aumentado.
P/1 – E depois que começaram as oficinas, você sentiu que isso tem mudado a vida das pessoas, ou não?
R – Tem, não de todas as pessoas, mas de algumas, sim. Tem gente que comprava o pãozinho e ele falava assim: “Eu gasto três reais pra comprar o pãozinho, eu vou comprar um quilo de pãozinho”. Porque lá está nessa faixa, 3,50, 4,00 reais o quilo de pãozinho. Vai lá e compra. Vamos supor, eu gasto cinco reais para um quilo de pãozinho. Com cinco reais eu vou no supermercado compro a farinha, o açúcar, o sal e o fermento e faço cinco quilos de pão. Dá vinte e cinco, trinta pãezinhos. Rende mais. Ela vai ter o trabalho de fazer, mas vai render mais. Um quilo de pãozinho vem quanto? Oito, dez pãezinhos. Você vai pegar a farinha, um quilo de farinha dá dezesseis pãezinhos, dois quilos são trinta e dois. E outra, o sabor é diferente, é um pãozinho mais gostoso. Não tem problema de data de vencimento porque ele não tem química nenhuma, é natural. A gente ensina a fazer natural e você pode embalar e congelar assado ou cru, se congelar cru, você tira, deixa crescer e assa. Ou assa e congela ele assado e, na hora de comer é só esquentar e fica a mesma coisa como se você tivesse feito ele na hora.
P/1 – Mas assim, com todas as oficinas, você sentiu que as pessoas aprenderam um ofício, começaram... Porque você disse que tem a oficina de pão, de agulha, tem várias oficinas. E isso tem ajudado ao pessoal se virar mesmo, como um trabalho? Isso acontece?
R – Acontece. Na oficina de pão, eles estão fazendo pãozinho pra vender. Não são todas as pessoas que fizeram desde o início que está fazendo isso. Muitos fazem só pra comer em casa, e outros estão fazendo pra vender, inclusive teve gente que pegou encomenda de pãozinho, não deu conta de fazer, me ligou e pediu para eu ir lá ajudar a fazer porque ela não tava dando conta de fazer (risos). E eu fui lá ajudar ela a fazer os pãezinhos pra ela entregar a encomenda. A encomenda dela é grande, ela faz bastante pãozinho. Tem vários formatos. Não só ela, tem muita gente, mas essa mulher vende muito pão mesmo. Ela faz, põe no carro, já encomenda, ela leva nas lojas, posto de gasolina, porta de hospital. Entrega os pacotinhos, assado, pãozinho fresquinho, quentinho. Tem várias pessoas que estão fazendo isso. Na arte de agulha tem muita gente fazendo, eles estão fazendo um trabalho lá, que até eu fiquei olhando, é muito bonito o trabalho, os desenhos que eles fazem são muito bonitos. Tem um que a mulher fez na palha, coisa mais linda o que ela fez. Muito bonito, mesmo. O pessoal está se interessando porque é bonito, é bom de fazer, eles gostam de fazer. Então, eles estão fazendo, não sei se estão fazendo pra vender, ou porque o trabalho é muito bonito, não procurei informação com eles.
P/1 – Deixa eu aproveitar uma coisa. Você usou uma palavra e eu queria aproveitar ela. Você falou que a senhora não deu conta dos pãezinhos e você foi lá ajudar. Você acha que a partir do momento que a Gol de Letra se instalou no bairro, você acha que essa relação entre as pessoas também teve uma alteração? Essa relação de solidariedade, se isso começou a aparecer? Porque parece que antes o pessoal não tinha muito isso, né? Tinha muito medo, você acha que essa relação entre as pessoas também mudou ali?
R – Mudou e mudou muito. Antes o pessoal tinha medo, ficava em casa, não saía muito de casa. Depois que a Fundação veio e começou a fazer esse trabalho, as pessoas começaram a se soltar mais, começaram a se conhecer mais. Às vezes, tinha vizinho que não conhecia o vizinho, de tão preso que ficavam dentro de casa. Depois que a Fundação chegou, começou a se soltar mais, sair, começou a se conhecer mais. Vizinho conhecer mais o vizinho, saber mais da vida do vizinho, não fofoca, mas conhecer mais a pessoa, onde ela trabalhava, o que fazia, conversar. Você não via isso antes, agora você vê mais. As pessoas estão mais agrupadas, não estão individuais, como era antes. Antes era individual, passava um de um lado, o outro do outro, “bom dia”, às vezes nem falava, nem cumprimentava. Hoje não, as pessoas se falam, se cumprimentam, para, fica conversando.
P/1 – E existe uma relação de ajuda aí, ou não?
R – Uma relação de ajuda, não vou dizer que existe. Existe assim, se você está passando por uma dificuldade e precisa de um aconselhamento, de uma pessoa que te dê uma orientação, uma pessoa que chega e conversa com você, desabafar, isso existe. Agora dizer assim, ajuda, se tem, também, eu ainda não cheguei a perceber.
P/1 – Tem uma coisa assim, a gente conversou com uma pessoa que era agente social porque, queira ou não a Fundação começou a sair do próprio prédio pra ir atrás. E isso acaba mudando um pouco, porque ela visita as casas, né? Você sente comentários sobre isso?
R – Eu não vejo comentários sobre isso, dizer assim, que foi um agente, ou que a agente foi fazer uma visita lá na casa de uma pessoa que fez inscrição para colocar o filho dentro de casa. Quer dizer que aquela pessoa que foi lá, a agente social, foi lá pra ver as condições de vida daquela pessoa, se a pessoa realmente precisa ou não. Porque tem vezes que tem gente que dá o nome lá e, não é que não precisa, porque todo mundo precisa, mas tem uns que precisam mais. Então, a função do agente social é isso, ir na casa da pessoa que fez a inscrição, ver a situação daquela pessoa, as condições de vida da pessoa, se ela trabalha, se tem com quem a criança ficar ou não tem com quem ficar, se a criança fica na rua. Agora, dizer que ouvi comentários de um agente ir na casa de uma pessoa e ter alguma comentário sobre a vida daquela pessoa, eu nunca observei isso não.
P/1 – Porque teve algumas atividades, como o Dia de Fazer a Diferença. Acho que a agente social não foi um bom exemplo (risos). A atividade do Dia de Fazer a Diferença, queira ou não, aproxima um pouco as pessoas e elas acabaram participando das atividades. Esse tipo de atividade, você acha que mudou um pouco essa relação? O fato de ter acontecido?
R – Mudou e mudou muito. Mudou porque, conforme as pessoas se agruparam pela Fundação pra fazerem esse trabalho, que foi todas as pessoas da Fundação, da comunidade e juntou com a outra comunidade do outro bairro. Por exemplo, saiu uma equipe da Vila Albertina para o Jardim Fontalis, pra pintar um prédio. Só que a equipe que foi, quando chegou lá, juntou com outra equipe deles que estavam lá, da própria comunidade. Quer dizer, a gente fez uma equipe só: A nossa comunidade com a comunidade deles. Foi onde deu pra gente pintar os dois prédios. Porque a gente se juntou em um só, as duas comunidades virou uma só. Quando eles vêm de lá pra cá, faz a mesma coisa também. A gente se une, as mesmas pessoas, ou outras pessoas diferentes que vem, pra fazer aquela amizade, aquele grupo, como se a gente já se conhecesse há muito tempo.
P/1 – E essa atividade ainda continua acontecendo?
R – O ano passado teve, esse ano, não.. Não sei o que aconteceu, se foram pessoas que mudaram.
P/1 – Mas acontece em que mês do ano?
R – Foi o mês passado... No mês de junho, dia 10 de junho se não me engano. A gente fez a caminhada, no Dia de Fazer a Diferença.
P/1 – Todo mundo ali? Foi convidada a comunidade?
R – Todo mundo, a comunidade foi toda convidada.
P/1 – Você foi?
R – Eu não fui, já estava cansado (risos). São oito quilometros de caminhada. Se junta aquele pessoal todinho pra fazer a caminhada, faz um carro atrás, se alguém passar mal. A pessoa assina um termo de responsabilidade dizendo que está em boas condições pra fazer a caminhada. E mesmo assim, vai um carro atrás, leva gelo, água, lanche, porque se [a pessoa] passa mal porque baixa a pressão, já tem um lanchinho pra alimentar (risos). Se acaso passar mal e precisar ir pro hospital, já tem uma pessoa com carro de prontidão pra levar. Foi bacana o que eles fizeram esse ano, eu achei bem bacana. A gente não fez aquele trabalho de sair pra ir pintar um prédio, uma escola, uma creche, mas também fez um trabalho com a comunidade pra fazer essa caminhada com todos os apetrechos à disposição da comunidade.
P/1 – E você olhando a história desse tempo que está na Gol, tem coisas engraçadas que aconteceram e você se lembra? Ligadas à Fundação?
R – Coisas engraçadas ligadas à Fundação acontecem todos os dias (risos). Sempre está acontecendo alguma coisa engraçada.
P/1 – Tem algumas que você lembra que foram mais marcantes pra você?
R – Uma delas foi no ano retrasado, em 2007, final de ano. A gente foi pintar o prédio, tava o tempo frio, garoando. Tinha um evento antes de terminar e tinha ficado uma lona, naquele pátio entre o alambrado da quadra e o prédio ali na cozinha. Não tem aquele espaço ali? Então, ali foi coberto com uma lona amarela. Eu falei assim: Eu vou tirar essa lona daqui porque a gente vai pintar, vai deixar tudo limpinho, bonitinho e tava garoando. Eu peguei a escada pra subir e cortar o barbante em cima. Aí, o Nilson, aquele moreno que trabalhava na limpeza lá, um cara muito bacana que saiu. Ele pega um balde de água, vai na geladeira, tira água gelada de lá de dentro, põe dentro do balde e sobe pela escada de dentro do prédio. E eu subindo a escada de madeira. Quando estava no meio da escada, ele pega o balde e joga a água em cima de mim. Água gelada, lá de cima (risos). Me molhou todinho com aquela água gelada. E todo mundo sabia que ele ia fazer isso, que já tinham combinado. Só eu não sabia. Eu pego e subo a escada pra cortar o barbante, quando estou no meio da escada, ele, lá de cima, joga o balde de água gelada em cima de mim (risos). E tava frio, mas tava um frio, e garoando. Foi um negócio muito engraçado. E o outro foi com o Marco. Deu um vento muito forte lá, lá venta bastante porque é alto, e a quadra de cima tem o alambrado. E um ferro daquele quebrou embaixo. Se o ferro é alto e quebrou embaixo, se você calçar ele no meio, o que vai acontecer? O pé dele vai vir pra cá, então você tem que prender ele embaixo, amarrar ele em cima pra ele ficar reto. E o Marco foi empurrar ele com o outro ferro pra calçar ele, inocentemente também. Ele quase sofreu um acidente. Porque a hora que ele empurrou a ponta do ferro em cima foi, o pé veio pro lado dele e quase pegou ele também. Foi um negócio que eu olhei assim e passei um susto danado também. Eu falei pra ele: “Toma cuidado porque às vezes a gente não está preparado pra esse tipo de coisa”.
P/1 – Nossa, que sorte.
R – Foi muita sorte dele também. Outra engraçada, essa foi tão engraçada que até o Luciano falou que ia falar, não sei se ele falou, não vou falar essa, não. Vou deixar pra ele falar.
P/1 – Não, ele já passou por aqui. Pode falar.
R – A outra foi de uma professora que tinha lá. Ela tinha ataque epilético e de vez em quando dava esses problemas nela, ela caía lá, e muita gente não sabia. Eu mesmo não sabia, as crianças também não. Ela começou a se sentir mal, e o que ela faz? Ela subiu pra quadra de cima e não avisou nada pra ninguém. Quando ela chegou no patamar da escada, ali, deu o ataque dela, ela caiu e saiu rolando pela escada. Eu tava sozinho e eu vi, eu peguei e fui chamar alguém pra ajudar: “Vem aqui que a professora caiu” “O que foi?” “Desceu a escada rolando, agora, se é promessa eu não sei, mas que ela desceu rolando desceu”. E a gente começou a rir e não sabia, quando a gente chegou lá que a gente viu, coitada, foi o ataque epilético que tinha dado nela (risos).
P/1 – Ai, Oliveira, cada caso triste. (risos).
R – Mas é coisa que acontece.
P/1 – Você estava falando com a gente uma hora, quando o Raí esteve lá com o Leonardo e tem uma relação com a molecada, né? Conta um pouco sobre isso.
R – A relação deles com a criançada é muito boa, tanto do Leonardo quanto do Raí, de outras pessoas que vêm, o Zetti e a esposa dele, e outros jogadores que vão lá.
P/1 – Já foi muita gente lá?
R – Foi, o Edmilson, que é zagueiro do Palmeiras, esteve lá esses dias também. Sempre vai. O Casagrande já foi lá, vários jogadores de futebol já foram lá. A criançada, é novidade pra eles, porque eles nunca viram um jogador de futebol de frente, ver pela primeira vez, saber que o cara tá na ativa, jogando bolo. Que nem o Robinho e o Diego quando foram lá. O Ricardinho que jogou no Corinthians. Pra eles tudo é novidade. A gente que já é um pouco mais adulto, está acostumado, pra gente já é novidade, imagina pras crianças, né? Eles chegam lá e fazem a festa com as crianças, não tem aquele negócio de ficar restrito, não. Eles se envolvem com as crianças, querem estar lá dentro. O Leonardo, o Raí, é uma relação muito bonita que eles têm com as crianças. O respeito que eles têm com as crianças, o respeito que as crianças têm com eles. As crianças não conhecem o Raí como jogador, mas como o dono da Gol de Letra. “Ah, o Raí da Gol de Letra”. Às vezes tá passando uma entrevista dele na televisão: “Ah, o Raí da Gol de Letra”, eles não chegaram a ver ele jogando, eles conheceram ele ali. O Raí, o Leonardo. Mesmo os jogadores que estão na ativa, há umas das semanas, o Edmilson, que jogou no São Paulo e que hoje joga no Palmeiras, tava lá na Fundação. Pouca gente conhecia ele, pouca gente sabia que ele era zagueiro do Palmeiras. Às vezes, tá assistindo o jogo na televisão, você vê de um jeito, quando vê pessoalmente é totalmente diferente. As pessoas confundem isso, eu mesmo, quando eu vi, eu contei pra você, a primeira vez que eu vi o Leonardo. Ele chegou no estacionamento da Fundação, estacionou o carro. Eu estava lá na frente, olhei, vi que ele tava com o carro parado, falei: “Senhor, o senhor vai entrar na Fundação?”. Ele falou: “Vou” “O estacionamento é exclusivo pra Fundação”. Ó que mico que eu paguei (risos). Daí, entrou e era ele. Ele começou a rir, mas não falou nada, foi super educado, não esbravejou, tanto ele como a esposa. Toda vez que vejo a esposa dele e converso com ela, eu lembro disso porque ela estava na hora. Pra mim, eu paguei um mico, chegar para o cara que fez a Fundação e trouxe pra nós, no meu bairro, na minha rua, eu chegar e falar isso pro cara, pôxa, pra mim foi bem constrangedor. Pra mim, pra ele não, né? Ele tava sabendo. Eu vi ele jogando bola pela televisão, jogou pela seleção brasileira, foi aquele que deu a cotovelada. Ele não gosta que fala isso, né? Deu a cotovelada no alemão lá nos Estados Unidos. Jogou no Flamengo, no São Paulo, em vários times lá fora. A gente vê jogando na televisão. Mas você ver uma pessoa com um uniforme esportivo é uma coisa, ver com outra roupa, roupa social, arrumado, em um lugar assim, é totalmente diferente. É a mesma coisa que você ver uma atriz, você vê a atriz, ela vai gravar uma cena lá, ela ta toda maquiada, ela tá de um jeito. Se você ver ela depois daquilo, ela é totalmente diferente. Eu cheguei a ver também, eu sei que é diferente. A maquiagem muda muito. O uniforme, a roupa, o jeito da pessoa correr, andar. No campo você está correndo, na rua você está andando. E você vê o jeito das pessoas. Jogando, o cara está com um espírito, fora é outro diferente. Muda muito. Às vezes a gente se confunde. Agora imagina uma pessoa que não acompanha esporte, que não assiste jogo, não vê uma reportagem esportiva, nada disso, vê a pessoa, não vai reconhecer. Tem pessoa que você conhece porque muda muito pouco, mas tem pessoa que você não conhece.
P/1 – Mas a molecadinha curte isso, né?
R – A molecadinha curte muito isso. O relacionamento dele com as crianças é muito bom. Ele chega lá, as crianças já fazem um círculo em volta, assim. As crianças abraçam ele, ele abraça as crianças, não tem negócio de excluir uma criança porque ela tem um problema, ou é preta, é pequena, é magra, tem isso, tem aquilo. Pra ele, todas as crianças são iguais, do jeito que ele trata uma, ele trata todas. Você precisa ver, é impressionante. Pode ser criança pequenininha, maiorzinha, branco, preto, sujo, bem limpinho. Ele trata todos da mesma forma. Pede autógrafo que ele dá autógrafo pra eles. Às vezes ele tá sem caneta: “Ah, não tenho caneta” “Eu vou buscar” “Então você aguarda, eu vou ali, já volto, e te dou o autógrafo”. E toda vez que ele vai lá é assim. Ele está lá quase todos os dias. Ontem mesmo ele estava lá. Quando ele veio pra cá, ele veio ontem pra cá, né? Então, ele tava lá. Ele tava na quadra de cima com as crianças, elas fizeram um círculo assim, ele no meio, e tinha uma moça que tava lá entrevistando e fotografando ele também. É muito bacana a relação dele com as crianças. Tanto ele como o Leonardo, o Sóstenes. O Sóstenes tá todo dia ali. Se as crianças estiverem no corredor, elas ficam tudo batendo palma pra ele. Você precisa ver, é impressionante. Ontem mesmo. Ontem o pessoal foi pra França. Todo mundo que passava lá, as crianças fizeram um corredor, assim, todo mundo que passava as crianças ficavam aplaudindo. E elas não tinham esse hábito de fazer isso, aprenderam lá dentro, porque fora da Fundação eles são uma coisa, lá dentro eles são outra porque lá dentro eles estão em grupo, são uma turma de trinta, trinta e cinco crianças. Quando ele sai dali, é um só. Às vezes você vê, lá fora ele tá de um jeito, lá dentro tá de outro, um influencia o outro. Às vezes a criança é quietinha. De repente, ela faz uma coisa que você fala: “Não, não foi essa criança que fez isso”. Por quê? Pela influência de outros que estão acostumados a fazer aquilo. Você chega, chama, conversa. Você explica: “Não pode fazer isso, se você fizer vai prejudicar, vai prejudicar a Fundação. Você pode até perder a sua vaga, tem outra pessoa pra ficar na sua vaga”. Ele vai pensar duas vezes pra fazer isso de novo.
P/1 – E você percebe o carinho das crianças em relação à Fundação?
R – O carinho das crianças é muito grande. A gente percebe quando chega final de ano e as crianças saem. Algumas saem e não estão nem aí, aquela criança meio rebelde que você tenta, tenta, você vê que não consegue, mas tá insistindo ali, em conseguir levantar o astral daquela criança, tirar ele daquele jeito, que aquilo ali não é o jeito dele viver. É uma criança que tem um comportamento que, acho que é genético mesmo, aquele comportamente agressivo. Mas têm outras que não, você vê, eles choram quando eles saem. Porque na Fundação todo ano eles dão um passeio, pro Hopi Hari ou pro Playcenter e dá um almoço. Todas as crianças, todos os anos, chega em dezembro quando ele sai.
P/1 – Quando ele completa catorze anos?
R – Isso, quando completa catorze anos. Chama aquelas crianças, dá almoço, leva pro passeio, e eles ficam com a vaga pra entrar ou no Jogo Aberto ou em uma das oficinas que a Fundação oferece pra eles.
P/1 – Se você pudesse traduzir a Gol de Letra em algumas palavras, como você traduziria?
R – É difícil pra mim traduzir a Gol de Letra... Como eu posso dizer? A Gol de Letra é a mãe, é o pai da Vila Albertina. É como se fosse... A Vila Albertina sem a Gol de Letra, é um peixe fora d´água. O que eu posso te dizer é isso.
P/1 – Pra você, desde que chegou a Fundação, o que você teve de aprendizado? O que você tirou pra você, ou o que você está aprendendo ainda?
R – Eu aprendi muito, tive muita experiência na Gol de Letra. Porque assim, a gente aprende vendo, fazendo e falando. Eu aprendi muito com as pessoas que vieram pra dentro da Fundação. Com os educadores, o pessoal da área social, da área pedagógica, área administrativa. Tem a área do DI e a área administrativa que fica naquele outro prédio. Eu aprendi muito com eles. E a gente aprende também como se comportar, porque às vezes, a gente mora na periferia e, não sei todo mundo, mas a maioria das pessoas, e eu tiro por mim. Às vezes a gente tá aqui, na periferia. A periferia é diferente do centro, de um bairro de classe alta, média-alta. Se você ver duas pessoas conversando, uma da periferia e uma de classe média, média alta, que é envolvida dentro da sociedade, que tem um estudo razoável. Pode não ter um curso superior, mas estudou, aprendeu alguma coisa. Você vê que a conversa dos dois tem um nível diferente. É diferente a pessoa da periferia da que tem escolaridade mais adiantada. Mas se você prestar atenção e se basear nos dois, você vai aprender. Porque eu convivi dos dois lados. Por isso que eu tiro essa experiência por mim mesmo. Se você convive com a pessoa que vive na periferia, como eu vivo, bairro no meio da favela. Eu moro no meio da favela, para uma pessoa que mora em Alphaville, é totalmente diferente. Mas se você se interessar e quiser, vai saber, entrar e sair na favela e em Alphaville. E é isso que a Fundação tenta fazer com o pessoal da periferia, lá. A gente sente essa diferença porque o diálogo é totalmente diferente. A maioria das pessoas que mora na periferia quer falar na gíria, quer ser o malandrão do pedaço. Quando você chega ali você vê como é, a molecada fala na gíria, dez palavras, nove é palavrão, uma não aproveita porque a metade já foi palavrão. Ele fala: “Meu, pô”. Meu é uma palavra, pô é um palavrão.
P/1 – Então, é um aprendizado?
R – É um aprendizado pra qualquer pessoa que mora na periferia que não teve uma oportunidade na vida e quer ter a oportunidade de entrar ali dentro. Ele tem que aproveitar porque ele aprende. Ali é um aprendizado, não só pras crianças, como pra qualquer um que seja dali que queira aprender e ser alguma coisa na vida. Pode não chegar lá, mas tenta, né? E é isso que eu faço. E vejo muita gente fazer ali também.
P/1 – Tem alguma coisa, Oliveira, que você queira acrescentar, que a gente não tenha perguntado e você queira deixar registrado aqui?
R – Não, no momento não. Acho que a gente já falou tudo (risos). Se tem também não me lembro.
P/1 – Esvaziou a cabeça (risos).
R – É, esvaziou (risos). Às vezes pode ter, quando a gente chega lá fora se lembra: “Pôxa, podia ter falado isso e não falei”. Já aconteceu comigo em muitas entrevistas e passou. Mas no momento acho que não. Eu tenho mais que agradecer, né? Tanto a vocês como à Fundação que abriu as portas pra mim e pra minha família. É isso que eu gostaria de deixar registrado.
P/1 – O que você acha dessa ideia, desse projeto da gente estar resgatando esses dez anos de história da Fundação?
R – Eu acho que a ideia é genial, quem teve essa ideia foi um gênio. Porque é bom resgatar uma história que pouca gente conhece. De fora, de lá da comunidade todo mundo conhece. Mas outras pessoas não conhecem. Às vezes o cara pode dizer assim: “Mas o que é a Fundação Gol de Letra?”. Só sabe quem está empenhado lá dentro, porque a gente que está empenhado sabe o que é a Gol de Letra, mas a gente não divulga a Gol de Letra. Porque se a gente tá lá dentro a gente tá trabalhando. A Gol de Letra é praticamente conhecida no mundo inteiro. E muita gente aqui em São Paulo não conhece a Gol de Letra. Uma vez o pessoal foi pra Porto Seguro e viu um poster da gente lá. Em 2004 a gente fez a capa do livro da Johnson, era a família Johnson. Fomos eu, minha esposa e meus dois filhos, a Kathleen e o Kennedy. Eles fizeram um pôster grandão, assim, e colocaram em Porto Seguro. Pessoal daqui foi pra lá, chegando lá viu o pôster da gente lá em Porto Seguro, bem na entrada de Porto Seguro. Eu falei: “Que bacana, nem eu sabia que estava lá”. Bacana, foram lá, viram, chegaram aqui comentando. Pra mim isso é muito gratificante. A gente assina o direito de imagem. Porque eu falei assim, e isso já falei aqui, já falei uma vez pro pessoal do Museu da Pessoa quando o pessoal de Pinheiros foi pra lá: “Pra Fundação, pra Abrinq e pro Museu da Pessoa, eu assino o direito de imagem a hora que quiser, o dia que quiser, porque são instituições que procuram ajudar”. Então, quando a pessoa procura ajudar, que a gente se sente ajudado, é gratificante pra gente. Então, a gente tem mais é que agradecer, por mais que a gente faça, acho que ainda é pouco.
P/1 – Estou fechando mesmo, você falou o nome dos seus filhos, só pra deixar registrado, quantos filhos você tem?
R – São quatro: É Kelly, a mais velha, de dezenove pra vinte anos. Kennedy, de dezesseis anos, Kathleen que tem treze anos e Kauã, que tem três anos e é a raspinha do tacho (risos).
P/1 – E o que você achou de ter participado, ter estado aí desse lado?
R – Eu achei bacana, bem legal, muito bom a gente estar contando uma história que a gente viveu, está vivendo. Contar pra vocês que já acompanharam um pouco lá com a gente, já viu como é lá, a barra é pesada, não é fácil. Mas se torna fácil porque um ajuda o outro. É difícil pra gente tocar sozinho, mas quando é pra tocar com outras pessoas, um ajudando o outro, o grupo, te põe engrenagem e acaba se tornando fácil. É difícil, mas é fácil. E eu achei muito gratificante ter o privilégio de ser convidado por vocês pra vir aqui dar essa entrevista pra vocês. Pra mim é muito gratificante, eu fico muito grato.
P/1 – A gente que agradece.
P/2 – Brigadão.
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