P/1 – Eu queria que a senhora começasse me falando o seu nome completo, onde a senhora nasceu e a data do seu nascimento
R – Meu nome completo é Ângela Dolores Garcia Rodrigues. Eu nasci em Valdepeñas, província de Ciudad Real, Espanha
P/1 – E qual a data?
R – Ah, a data foi 29 de março de 1929
P/1 – E o nome dos seus pais, dona Ângela?
R – O nome de meu pai era Pedro Garcia o de minha mãe era Ângela Rodrigues
P/1 – E o que seus pais faziam?
R – Meu pai era vinicultor e minha mãe, do lar
P/1 – Que tipo de vinho ele produzia?
R – Clarete, era vinho branco. Valdepeñas tem vinhos muito bons, inclusive exportam para o Brasil. E ele fabricava um vinho muito bom
P/1 – E a senhora se lembra como era a vinicultura do seu pai?
R – Ah, eu lembro! Porque eu tive a sorte de ter pais que nos deixavam pintar o sete em todo lugar (risos). Era um cercado, não sei como se chamaria aqui, um quintal muito grande, com duas adegas, cada uma com, aqui não se chama lagar, em Espanha se chama lagar onde se pisa as uvas. As uvas não eram pisadas com os pés, eram com máquinas porque a produção de vinho era muito grande. Então, lá no lagar tinha uma máquina que chamava pinchadora e tinha só um homem que com uma pá ia colocando as uvas na máquina. Depois o mosto saía por umas canaletas e ia nas piletas porque era como um poço no centro da adega, onde ficava depositado o mosto que depois, com mangueiras, ou seja, uns depósitos de dez mil litros de barro. E aí com as mangueiras subia o mosto e depois seguia o curso, tinha a fermentação, tudo isso eu não sabia porque naquela época só ficávamos brincando fora. Tinha o orujo, que é o desperdício da uva moída, se punha em uma, como umas cisternas e se punha nas prensas. Juntava com um monte de dez ou 12 e a prensa vai rodando até comprimir o mosto que saía e ia também para a adega. E depois, esse desperdício se colocava em poços artificiais, chamava latilancos, eram cimentados e depois era vendido para as fábricas de álcool. Lá naquela cidade tinha duas fábricas de álcool, álcool vínico
P/1 – E a senhora falou que seus pais deixavam vocês pintarem o sete
R – Sim! Eu lembro. Se eu visse minha filha fazer isso eu morreria de medo. Lá na volta, que era muito fundo, nós corríamos por lá, e ninguém falava nada! (risos)
P/1 – A senhora tinha irmãos, quem eram?
R – Ah sim! Eu sou a mais velha de cinco. Hoje vivemos em quatro
P/1 – E o que seus irmãos faziam? Eles ficaram na Espanha?
R – Sim, todos ficaram na Espanha. Aqui só estamos nós
P/1 – E quais eram os costumes da sua casa que foram marcantes pra senhora nesse período da sua infância? Sua mãe contava histórias?
R – Não, minha mãe tinha filhos (risos). Verdadeiramente. Cada ano. Eu nasci em 29, minha irmã no 30, outra que morreu no 32, meu irmão nasceu em 33, ou seja, era um por ano! Não tinha tempo. Era o meu avô que nos contava histórias, pai de minha mãe. O pai de meu pai eu não conheci, morreu em 28. Ele nos contava histórias, inclusive, ele era filho de moleiros. Uma vez nos levou para ver as ruínas do moinho que ele tinha nascido, não era moinho de vento, estava na beira do rio. Ele disse que a corrente do rio move, não sei como se fala isso, move as pás; ele nos levou a conhecer as ruínas daquele moinho que ele tinha nascido
P/1 – E que outras histórias que ele costumava contar?
R – Ele contava tanto conto como histórias. Não lembro agora porque eu tinha cinco, seis anos. Não, foi depois da guerra. Na guerra meu tio, marido de minha tia, morreu na Frente de Madri, era tenente de artilharia e estava com sua metralhadora e morreu. Então, meu avô foi viver com a minha tia para cuidar dela e das crianças, e aí foram para outra cidade
P/1 – E a casa onde a senhora cresceu onde ficava, onde era?
R – Em Valdepeñas, no centro
P/1 – A senhora se lembra da casa?
R – Eu lembro da casa. Hoje não existe, derrubaram ela, era muito grande. Derrubaram ela e fizeram sobrados. Era uma casa, morávamos quatro famílias, duas em cima e duas embaixo. E na casa tinha saguão de entrada, um pátio grande daqueles com pilares, um poço, daqueles bem antigos com cisterna. Ah, e tinha galerias também em volta. Depois tinha um corredor que ia dar, lá chamávamos curral, e lá estavam os animais, meu pai tinha cavalos. E tinha uma adega que não usávamos, usávamos para lavar roupa, mas estava sem uso. Tinha lugar para por lenha, lá era tudo com lenha. Enfim. Ah, e nós morávamos em cima, duas famílias também. Também tinha quatro galerias e a casa tinha uma cozinha de inverno e outra de verão (risos). A cozinha de inverno era aquela com lareira interna, que se punha aquelas fogueiras isso, e a cozinha de verão era com fogo. E tinha um quartinho onde se guardava a linha de uso diário. Depois tinha a sala de jantar, depois o escritório do meu pai. E depois três dormitórios. Se matava porco todos os anos, não tinha geladeiras, então era lá que secava tudo. As uvas, na colheita das uvas, minha mãe pegava as uvas e fazia-se, prendia até o teto com, não corda, esparto, sabe o que é esparto? Partido. O esparto é uma fibra que se faz em corda. Partia e se punha para os cachos de uva e se colocava para fazer as passas. E tinha, ah, tem uma coisa, para se fazer passas tinha que ser uvas que não tinham pegado chuva. Se molhavam, apodreciam
P/1 – E a senhora ajudava a sua mãe?
R – Nãooo, ia no colégio. Además, ah, depois da guerra ajudamos ela. Eu era muito pequena, eu tinha sete anos quando começou a guerra e estou te falando antes da guerra
P/1 – Só para a gente contextualizar, Guerra Civil Espanhola
R – É
P/1 – Que começou?
R – Dia 18 de julho de 1936
P/1 – A senhora tinha?
R – Sete anos
P/1 – Sete anos. A senhora se lembra?
R – Lembro! Eu lembro certo para poder datar, desde os quatro anos. Lembro o dia que completei quatro anos fui na escola e me expulsaram dois meses depois
P/1 – E como foi esse primeiro dia de escola pra senhora?
R – Isso eu já não lembro porque era um grupo escolar muito grande e tinha uma sala que era como o Jardim da Infância, ali chamava classe de párvulos
P/1 – Párvulos. O que seria párvulos?
R – Crianças pequenas, como seria Jardim da Infância aqui, não vai uma criança de sete, oito anos, mas quatro anos ou cinco. Eu fui no dia que completei quatro anos. E depois, no ano seguinte eu já fui para o colégio de freiras até 36, quando fecharam o colégio. Depois, com dez anos voltei ao grupo escolar e fiquei até os 11 anos. Como nasceu o meu irmão, minha irmã tinha nascido em 39 e morreu. Meu irmão em 40, mais os outros três era muita coisa e meu pai perdeu todo o dinheiro na guerra. O dinheiro que tinha só valia 500 pesetas, o resto estava no banco, perdeu tudo. Porque Franco desvalorizou o dinheiro a partir de 1920, porque em 22 foi a ditadura de Primo de Rivera até 29. E em 31, 14 de abril de 31 entrou a República e o rei da Espanha abdicou e foi viver em Roma. Então, só o dinheiro que tinha sido emitido pelo rei valia, quem tinha dinheiro de 1920. Como meu pai tinha todo o dinheiro no banco, nós ficamos na zona da república o tempo todo. As tropas de Franco entraram na cidade que eu nasci desfilando em quatro de abril de 39
P/1 – A senhora se lembra das tropas?
R – Lembro! Lembro! Eu estava lá vendo eles desfilarem (risos). Eu lembro. Lembro disso, do primeiro dia que fui na escola, me expulsaram do colégio porque uma menina grandona, de 14 anos, eu estava sentada no jardim e ela falou para eu sair de lá que ela ia sentar. Eu falei: “Não quero, eu estou aqui!”. Me pegou em um braço e me jogou fora. Aí eu levava um jarrinho para beber água, e pum, na cabeça dela (risos), sangue. E aí me expulsaram do colégio. Só descobri anos mais tarde porque levava uma carta, uma prima da minha mãe que me levava na escola levava uma carta para meu pai. Ela falou: “Teu pai vai bater em você!”. Eu falo: “Meu pai não bate em mim” “Ah, mas quando ele ler essa carta ele vai bater”. Então eu cheguei em casa, troquei de roupa e fui brincar. Aí quando chegou meu pai, veio a empregada me falar que ele estava me esperando. Eu lembro dele sentado atrás da mesa de escritório e minha mãe bem do lado dele. E a carta na frente. Ele me falou: “Fala-me o que aconteceu na escola” “Mas se a professora falou na carta” “Sim, ela falou na carta, mas eu quero que você me conte com as tuas palavras”. Aí eu falei o que tinha acontecido e meu pai falou: “Está certo, você não vai voltar à escola”. Porque lá, como as estações são cambiadas, as salas de primário terminavam 15 de junho e começavam 15 de setembro. Era o fim de maio e ele falou: “Como já está terminando o ano, você não vai voltar na escola. Para o próximo curso a gente vai procurar outra escola”. Eu soube anos mais tarde que eles tinham me expulsado, nem me bateram, nem nada, meu pai só queria que, com minhas palavras, eu explicasse o que tinha acontecido (risos)
P/1 – E nesse período que a senhora esteve na escola tem alguma professora que seja marcante?
R – Ah sim, sim, sim tem. Sor Cecília. Era colégio de freiras, claro. Eu gostava muito dela
P/1 – Era uma freira.
R – Sim, sim
P/1 – Freira Cecília
R – Sim. Depois quando fecharam o colégio, essas freiras ficaram em uma casa de duas famílias conhecidas e eu juntei um grupo de meninas da classe e fomos despedir-nos da professora
P/1 – E por que fecharam o colégio, a senhora sabe?
R – Nós estávamos na zona da república, os vermelhos, os rojos. A gente chamava Los Rojos. Eles fecharam as escolas, mataram os padres, fecharam tudo que era... Matou-se muita gente
P/1 – Los rojos que a senhora diz são os comunistas?
R – Sim. Eram de esquerda. O rei abdicou porque ganhou a república
P/1 – O que mudou? A senhora falou que seu pai perdeu todo o dinheiro. O que cambiou na vida de vocês nesse período?
R – Aí minha mãe não pôde ter mais empregada. Mas em casa meu pai era contra dar muito dinheiro às crianças porque dizia que acostumava mal. Então, digamos, uma mesada nos dava nos domingos. Nos dava em dinheiro, íamos na doceria,comprávamos balas, iamos na banca de jornal, comprávamos um gibi, essas coisas. Mas isso antes da guerra, depois não tinha mais. Mas nunca tornou-se uma vida assim, meu pai era contra, dizia que as crianças costumavam ter uma vida assim, muito folgada, não faltava nada. E depois meu pai continuou trabalhando com crédito bancário, meu tio era o fiador, até que se declarou o câncer
P/1 – O seu pai?
R – É. Ele faleceu de câncer em 44, eu sei 42 já não pôde trabalhar mais. Câncer na garganta. Ele falava sempre que não gostaria de falecer sem ver o caminho que ia tomar a guerra. Ele morreu dois dias antes do Dia D
P/1 – De terminar a guerra?
R – Não, do Dia D
P/1 – Ah, do Dia D
R – Que foi a invasão das tropas americanas na Normandia. Eu lembro de tudo isso. Mesmo na guerra eu já lia as notícias da guerra, oficiais
P/1 – Quantos anos a senhora tinha?
R – Quando começou a guerra? Eu tinha dez. E quando terminou eu tinha 16
P/1 – E o que mudou nesse período na vida da senhora?
R – A fome. Só lembro de fome. Porque Franco era a favor de Hitler. Não tem nada a ver com o povo, mas, depois da guerra, tudo bloqueio econômico, como tem em Cuba. Então fez, olha, Espanha é uma produtora de azeite muito grande. Nós cozinhávamos com pasta de cacau, não tinha azeite na Espanha, se exportava tudo. Porque não chegava nada, então o que podia exportar, exportava, pra cambiar por outras coisas. O mercado negro era muito grande, quem tinha dinheiro tinha de tudo, mas em casa, quando morreu meu pai, depois de pagar o resto do enterro ficaram 65 pesetas e cinco crianças. Eu tinha 15 anos. Então deixamos a escola e fomos trabalhar
P/1 – E a senhora foi trabalhar do quê?
R – Costureira, eu tinha muita habilidade, sempre tive muita habilidade com costura. Isso é outra coisa que eu lembro dos quatro anos. Não sei se foi com três ou quatro anos, uma vizinha que era costureira aposentada me ensinou a embainhar, ela pegava um fiozinho embaixo e outro em cima (risos). Eu sempre tive muita habilidade com a costura, então fui trabalhar de costureira, aprender
P/1 – Onde a senhora foi trabalhar de costureira?
R – Com minha prima que era costureira
P/1 – E vocês trabalhavam pra quem?
R – Particular. Na cidade que eu nasci a indústria é vinícola, só tem vinho e azeite, e cereais. La Mancha é uma região da Espanha muito seca, com um clima muito estivado. Tem um dito popular que fala que na Mancha são nove meses de inverno e três de inferno. Hoje eu tenho conhecido lá, não é normal, mas as temperaturas de dez a 15 graus abaixo de zero são todos os anos. E o verão dura só três meses. Mas é conhecido lá temperatura de 48 graus positivos. É um calor horroroso e um frio horroroso. Era aquilo de ter, os cobertores eram pesados, tinha até três, quatro cobertores nas camas. Não tinha calefação. Bom, tinha calefação em lojas, edifícios públicos, mas nas casas era fogo. Minha mãe tinha braseiro, não sei se a senhora sabe o que é isso, punha nas camas para esquentar antes de dormir. Esquentava a cama e aí íamos dormir
P/1 – Então, só voltando um pouquinho. Quando o pai da senhora faleceu...
R – Ele faleceu em 44 como falei
P/1 – Ah, 44. Mas durante a guerra vocês continuaram morando nessa mesma casa?
R – Sim, sempre. Eu nasci nela e só mudamos quando meu pai faleceu
P/1 – E vocês foram pra onde?
R – Fomos para outra casa. Acho que os donos da casa não eram da cidade. Tinha um administrador… acho que os donos da casa mataram na guerra. E o administrador ou sumiu ou mataram, não sei, porque ninguém cobrava aluguel nem nada, então acabamos mudando
P/1 – A senhora, seus irmãos
R – E meus pais. Depois quando ele faleceu, aí mudamos outra vez para uma casa menor
P/1 – A senhora, sua mãe e seus irmãos?
R – Sim. E depois, quando eu tinha 16 anos fomos para Valência, um ano e meio depois do meu pai falecer
P/1 – Por que vocês foram pra Valência?
R – Porque, como te falei, ali não tem fábricas, só podia trabalhar de costureira, tanto de modista como de alfaiate, ou empregada doméstica. Para mulher não havia emprego de nada, então fomos para Valência que tinha mais chance de emprego
P/1 – Era uma cidade grande?
R – Sim. Está entre Valência e Sevilha. É Madri, Barcelona, Valência ou Sevilha
P/1 – E como foi pra senhora essa mudança? O que a senhora se lembra de marcante?
R – Nada demais. Costumo aceitar as coisas conforme vêm. Fomos viver na casa de uma tia da minha mãe. Procurei emprego, minha mãe nos levou, meu irmão caçula e a mim, e voltou à cidade para desmanchar a casa. Eu procurei emprego numa Casa de Modas. E quando ela voltou a gente já estava trabalhando
P/1 – E o que a senhora fazia lá?
R – Que se faz numa Casa de Modas? Se costuram vestidos e casacos, tailleurs e todos. É uma casa que os modelos vinham diretamente de Paris. Duas vezes por ano, quando se apresentavam as coleções, a dona do atelier ir a Paris. E vinham os modelos. Se eram assim, era a metade solo, e se eram, que de um lado era de um jeito e do outro de outro, aí vinha o modelo completo. Nós desmanchávamos, se cortava em papel e depois costurávamos
P/1 – E a senhora costurava para deixar à venda na loja?
R – Não, não, não, não era loja. Não havia loja. Era um ateliê num prédio, era um andar. Eram clientes particulares, havia muitos novos ricos, então não era para loja, era para particulares
P/1 – Então a senhora ficou morando, a sua mãe e sua família, na casa de uma tia?
R – Sim, de uma tia de minha mãe que tinha um apartamento muito grande. Tinha três dormitórios, sala de visita, sala de jantar. Banheiro, cozinha, área de serviço, todas essas coisas
P/1 – E como era a cidade na época?
R – Era grande! Hoje é maior, mas o centro é igual. Nós morávamos perto da Plaza de Toros e da Estação, um terminal
P/1 – E nesse período que a senhora vivia e trabalhava em Valência, além de trabalhar o que mais a senhora costumava fazer?
R – O que a gente faz sem dinheiro? Eu trabalhava dia e noite. Trabalhava e depois passei a trabalhar particular para as casas. Aí tinha casas que eu ia uma vez por semana e tinha, era ordenado diário e mais café da manhã, almoço e lanche da tarde. Então, como não tínhamos dinheiro para comprar nada, pelo menos eu comia (risos)
P/1 – E a senhora se lembra o que fez com o seu primeiro salário?
R – Dava na mão de minha mãe. Algumas vezes meu irmão vinha comigo para que me pagassem o que eu havia de ganhar naquele dia para minha mãe poder ir ao mercado comprar comida. Eu tive uma vida muito difícil, eu falo que o pior que a gente faz é nascer bem de vida e ficar pobre (risos). Foi verdadeiramente muito difícil porque a gente se acostuma e a educação que a gente recebe não prepara para quando vem as vacas magras
P/1 – E nesse período como foi que a senhora começou a namorar?
R – Ah, meu marido vivia no prédio ao lado! (risos) Ele trabalhava no ferrocarriles, ele era mecânico. E eu saía no balcão, na sacada de noite e ele também. Ele morava no terceiro andar e eu também, então a gente começou a falar assim e acabamos saindo juntos (risos)
P/1 – Quantos anos a senhora tinha?
R – Dezessete
P/1 – E ele nasceu em Valência?
R – Não, ele nasceu em Chinchilla de Monte-Aragón, ele estava lá trabalhando. Quando a gente ficou na zona da república, ou comunista que chamava, os soldados que tinham sido da parte nacional, de Franco, eles tinham um ganho de servir o exército. Mas os que tinham sido da zona da república, aí ficavam quatro, cinco anos. Sei que meu marido só foi licenciado com 26 anos. Foi com 21, ficou cinco anos, aí quando serviu o exército ele fez um concurso para entrar na Renfe, Red Nacional de Ferrocarriles Españoles. Lá não são companhias, é tudo nacional. E aprovou para Madri, mas quando ele se apresentou não tinha praça em Madri, então destinaram em Valência
P/1 – E vocês se conheceram no terraço
R – Na sacada! Ele morava na casa do lado
P/1 – E como foi dessa conversa pra vocês saírem a primeira vez? Como aconteceu?
R – Foram vários meses
P/1 – Por que?
R – Você não pode pensar na Espanha dos anos 40, comparar com o Brasil. Lá a coisa era muito devagar e a gente ia muito despacio. Eu lembro que uma amiga de minha prima, que é nascida onde eu nasci, ela tinha tido um namorado, um ano ou dois, não sei quanto, e brigou com ele. E depois quando conheceu um outro rapaz e começou a namorar com ele, ficou mais de um ano sem dar um beijo! Porque se lhe dava um beijo mais cedo, ia pensar que tinha sido fácil com o outro. Você não é capaz de imaginar o que era a vida na Espanha no pós-guerra
P/1 – E a primeira vez que ele a convidou pra sair o que vocês fizeram, onde vocês foram?
R – Fomos dar um passeio, ninguém tinha dinheiro! Sabes o que fazíamos para esquentar as mãos no inverno? A gente comprava castanhas torradas, punha nos bolsos dos casacos e enfiávamos as mãos
P/1 – E a sua mãe permitiu que vocês namorassem? Como foi?
R – Ah, mas a gente nem namorava em casa, não. Ele só entrou em casa quando já namorávamos um ou dois anos. Entre namoro e noivado foram dois anos e meio
P/1 – E aí ele te pediu em noivado?
R – Ainda estou esperando que me peça em noivado ou em casamento. A gente casou! (risos)
P/1 – E vocês casaram em Valência?
R – Sim, claro
P/1 – E a senhora se lembra do dia do seu casamento?
R – Ah, lembro sim
P/1 – Como foi?
R – Eu casei numa sexta-feira. O dia de azar na Espanha é terça-feira
P/1 – O dia de casar em Espanha é terça?
R – Aqui azar é na sexta e em Espanha é terça. Eu casei em sexta-feira porque quando fomos a tratar dos papéis. Outra coisa, a gente era obrigada a casar na igreja. Três dias antes a gente ia no cartório, punha todos os dados. Mas os papéis do cartório, ia um rapaz do cartório e entregava na igreja, na sacristia. E o salário família, a a gente chamava pontos, dos filhos, só começava a contar quando a criança era batizada; com a certidão de batismo passava a receber o salário família (risos). Ou você era católica ou não existia (risos)
P/1 – E a senhora se casou como? Teve festa, vestido de noiva?
R – Ah sim, vestido de noiva. Mas podia até ter sido mais nova, não ligo muito. Um vestido branco com cauda, daminha, véu, tudo, tudo. E casamos de manhã porque em Valência o casamento era com missa, misa de velasion, só tinha missa de manhã. Essa missa de tarde é novidade. Então, casamos de manhã teve festa toda a manhã na casa dos padrinhos. Teve festa toda manhã, depois cada um foi na sua casa para comer, nós fomos num restaurante com os padrinhos e de tarde continua a festa (risos)
P/1 – E vocês ficaram morando onde?
R – Em Valência. Meu marido trabalhava lá
P/1 – E dona Ângela, e nesse meio tempo, e a guerra? Em que momento ela acabou?
R – A guerra terminou no dia primeiro de abril de 39 foi as últimas notícias da guerra, dizendo que a guerra terminou. Na realidade terminou no dia 27 de março de 39 quando as tropas de Franco entraram em Madri
P/1 – A senhora se lembra?
R – Ah, lembro sim! Lembro. Eu completei dez anos dois dias depois
P/1 – E como isso entrou na sua casa, de que forma a senhora soube
R – A gente saía, em casa se recebia o jornal todos os dias. E a gente sabia, quem tinha rádio, que não éramos nós, que tinha porque a república recolheu os rádios, mas quem conseguiu guardar sabia das notícias
P/1 – E como a senhora se sentia, a senhora se lembra?
R – Com dez anos, como a gente se sente? Você lembra como se sentia? Terminou a guerra, terminou. Continuamos sem comida, não tinha comida durante a guerra e não tinha comida depois da guerra, então, não cambiou nada (risos).
P/1 – Então quando a senhora casou com o seu marido, vocês foram morar em que lugar? Uma casa, um apartamento?
R – Um apartamento, em Valência só tem apartamentos, são prédios de apartamentos. Nós já morávamos em um prédio de apartamento e fomos morar também em um apartamento
P/1 – E como era a sua nova casa na vida de casada?
R – Normal. Meu marido ia trabalhar e eu ficava em casa. Ia fazer compra. Não tinha geladeira, então eu tinha que ir ao mercado todos os dias. Cozinhava
P/1 – E parou de trabalhar?
R – Só continuei trabalhando na casa da que foi madrinha do casamento
P/1 – O que a senhora fazia lá?
R – Costura
P/1 – Pra ela, pra madrinha?
R – Pra ela
P/1 – E quantos filhos vocês tiveram?
R – Dois. As duas meninas que têm hoje. Esta que é a mais velha e a que está em Portugal, que é a caçula, nasceu cinco anos depois
P/1 – As suas filhas nasceram em Valência?
R – Esta sim, a outra nasceu aqui
P/1 – E em que momento que vocês resolveram sair da Espanha?
R – Ah, meu mardo estava sempre querendo sair da Espanha, pra qualquer lugar que não tivesse Franco (risos). Eu fui com ele. Para mim tinha que estar com ele. Nem queria ir, nem queria sair, nem nada, para mim foi para vir com ele. Agora, foi difícil. Vir com uma menina de 16 meses é difícil
P/1 – Como que vocês vieram pra cá, pro Brasil?
R – De navio
P/1 – Quanto tempo foi a viagem?
R – Dezessete dias. Viemos no Navio Cabo da Boa Esperança
P/1 – E desceram onde?
R – Em Santos. Nós vinhamos a São Paulo. Nós não viemos numa aventura, foi documentação assinada pelo cônsul do Brasil em Barcelona, tudo certinho. Nós viemos com toda a documentação certa
P/1 – E por que resolveram vir pra São Paulo?
R – Olha, eu vou te falar. Em qualquer país de América exigiam um contrato de trabalho ou ser reclamado por alguém. Meu marido não conhecia ninguém aqui e o único país que aceitava imigrantes sem contrato de trabalho era o Brasil. Então não foi opção, era o único país onde poderíamos vir. E eu não tinha interesse nenhum em sair, foi meu marido que queria sair da Espanha, então eu vim com ele, era meu marido
P/1 – E a senhora lembra logo que chegou a Santos, a São Paulo, quais foram suas primeiras impressões?
R – São Paulo não era a megalópole que é hoje, tinha um milhão e pouco de habitantes. Então era uma cidade. Sabe do que eu me lembro? Do Parque Dom Pedro antes de fazer estacionamento, era lindo. Tinha lagos, tinha árvores grandes, era lindo, lindo, lindo. Mas como eu vinha de Valência que era uma cidade grande, conhecia Madri e Barcelona, então São Paulo para mim era uma cidade grande. Fomos morar na Água Rasa e moramos até que meu marido faleceu
P/1 – E como era o bairro e a casa em que vocês foram morar?
R – Era uma casa que tinha dois quartos, cozinha e banheiro
P/1 – E o seu marido foi trabalhar onde?
R – Olha, ele não trabalhou de mecânico, ele trabalhou de tudo. Foi construtor, foi vendedor, foi de tudo. Ele era um homem muito trabalhador e não tinha vício nenhum, bom, fumava, mas é só, muita gente não fuma (risos). Não bebia. Uma garrafa de vinho, às vezes, uma cerveja, mas ele não bebia, nunca vi ele bêbado. E não jogava nada. E era muito trabalhador.
P/1 – Quando ele morreu, quantos anos tinha?
R – Operou de coronárias e viveu quatro dias depois de operado. E não foi falta de, operou na Beneficência Portuguesa pela equipe do Zerbini, que então era o papa das coisas do coração, mas não viveu depois. Fez três pontes de safena e não resistiu
P/1 – E nessa época a senhora já tinha duas meninas
R – Sim, claro. A Mariângela, em 77, ela já estava na universidade, tinha 22 anos. E a outra, cinco anos mais nova, ela já tinha feito até vestibular
P/1 – Voltando um pouquinho lá pro período que vocês chegaram a São Paulo, a sua família ficou onde, dona Ângela?
R – Em Espanha, lógico. Aqui nós estamos sozinhas. Não venho ninguém da parte do meu marido e nem da minha, somos só nós
P/1 – E como foi pra senhora esse período de adaptação em um país novo?
R – Eu fui muito bem, todo mundo me entendia. Porque como não sabia português falava espanhol, mas todo mundo sabia espanhol, todo mundo tinha tido um vizinho, um amigo espanhol e me entendiam. Eu ia na venda e pedia as coisas em espanhol, não sabia português (risos). Então, todo mundo me entendia. Não teve dificuldade, na realidade
P/1 – Mesmo em relação aos alimentos?
R – Eu continuo cozinhando hoje como na Espanha, que na Espanha arroz e feijão não se come. Aqui eu faço de vez em quando. Mas se come muita batata na Espanha, muito arroz, mas com... Bom, você esteve na Espanha, sabes como é. Comemos grão de bico, lentilha, feijão branco
P/1 – A sua família ficou lá, como é que a senhora se comunicava com a sua família?
R – Por carta
P/1 – Quando tempo as cartas demoravam, a senhora se lembra?
R – Ah, eu não lembro. Eu punha no correio, mas... e as cartas vão de avião, então é rápido
P/1 – E vocês também costumavam fazer troca, a sua família mandava coisas de lá, ou era só carta?
R – Só cartas. Quando íamos à Espanha levávamos café, coisas assim. Mas a comunicação era só cartas
P/1 – Quanto tempo depois a senhora voltou pra Espanha?
R – Eu já tinha... A caçula já tinha seus 11 anos, creio que foi... Isso está anotado aí, não me lembro, acho que foi em 72
P/1 – E como foi pra senhora voltar pra lá depois de tantos anos?
R – Mira, eu sou espanhola. Eu gostei muito da Espanha, mas hoje eu não voltaria a morar lá porque lá eu seria outra estrangeira, entiendes? Então, hoje eu precisaria me adaptar aos costumes de lá que são diferentes. De turismo é uma coisa, viver é outra. Quando eu tenho dinheiro eu vou, mas não voltaria a viver
P/1 – Enfim, depois que o seu marido faleceu a senhora ficou morando onde?
R – Morei um ano na casa que morávamos, era um sobrado grande nosso. Aí quando casou a caçula, a outra já não viva conosco, então era uma casa com três dormitórios, sobrado. Entrada pela frente e quintal assim, por detrás, eram muitas casas, então, vendi a casa, estava sozinha, eu trabalhava. Então, vendi a casa e fui morar de aluguel em um apartamento. Não, aluguei a casa, depois vendi a casa e comprei um apartamento na Bela Cintra. Aí vendi lá e comprei aqui
P/1 – A senhora falou que a senhora voltou a trabalhar então, fora?
R – Sim, fui vendedora como meu marido
P/1 – Vendedora do quê?
R – Brindes. Agenda, caneta, chaveiro, toda essa coisa. Eu trabalhava nas firmas
P/1 – Como vendedora autônoma
R – Sim, sim
P/1 – A senhora começou a trabalhar junto com seu marido?
R – Não, não, não, depois que ele faleceu. Porque ele não acreditava na previdência social, ele dizia que valia mais por o dinheiro em poupança. Então, eu recibo um salário mínimo de aposentadoria dele. Bom, eu me aposentei com quase três salários mínimos e hoje eu recebo pouco mais de um porque o salário diminui para os que recebem mais de um salário. Então, com um salário mínimo eu não tinha pra começar e fui trabalhar
P/1 – E como a senhora aprendeu esse novo trabalho?
R – Eu aprendo sozinha. Además, nunca soube dirigir, então andava de ônibus por toda São Paulo e Grande São Paulo. Ia em Mogi das Cruzes, São Bernardo, a Volkswagem era cliente minha; eram firmas grandes. Então São Bernardo, Santo André, Diadema, São Caetano, Mogi das Cruzes, todos. E toda São Paulo. Eu ganhei muito
P/1 – Nessa época de vendedora?
R – Sim. Depois o dono da firma faleceu, eu me aposentei com 63 anos, mas continuei trabalhando. O dia das torres gêmeas nos Estados Unidos eu estava em um cliente quando deram a notícia pelo rádio
P/1 – Onde?
R – Aqui, lógico!
P/1 – Em São Paulo
R – São Paulo, sim
P/1 – A senhora trabalhou até quantos anos?
R – Eu me aposentei, como te falo, com 63 anos, mas até os 75 eu trabalhei. Com uma mala cheia de amostras e com a bolsa assim. Eu fazia todas essas papelarias de São Paulo, que tinham as agendas, eu que vendia. E era aquilo, com uma mala cheia de amostras (risos). Era difícil
P/1 – E fazia tudo de ônibus?
R – Tudo. De ônibus e a pé
P/1 – Até os 75 anos?
R – Sim
P/1 – E vive sozinha hoje?
R – Vivo sozinho. No prédio mora a minha filha, mas é no outro apartamento. Eu não sei dirigir até hoje, tenho pavor de carros (risos)
P/1 – A senhora me mostrou uma fotografia que está a senhora, uma amiga, suas filhas e um fusquinha
R – Sim, foi o primeiro carro que nós tivemos
P/1 – A senhora e seu marido?
R – Sim. Mas eu nunca soube dirigir. Sentei atrás do volante pra tirar a fotografia, acho
P/1 – E dona Ângela, nesse período que a senhora voltou a trabalhar, o que mais a senhora fazia além de trabalhar?
R – Cuidar da casa. Eu trabalhava e cuidava da casa porque además tinha que levar a contabilidade. No começo de ano pra fazer o imposto de renda eu contratava o contador, mas era eu que levava toda a escrituração. E quando era para fazer o imposto de renda eu levava todos os papéis para ele, tudo certinho, tudo explicadinho. Eu tinha medo de fazer alguma coisa errada e vir o fisco em cima de mim (risos)
P/1 – Mas a senhora costumava viajar, sair com amigas? Fazer algum tipo de programação cultural pela cidade?
R – Não dava. Se você passar o dia inteiro carregando uma mala e uma bolsa de ônibus e a pé, quando você chega em casa tem vontade de algo cultural? No fim de semana eu fazia compras e lavava roupa. E limpava a casa porque tinha uma faxineira, mas vinha a cada 15 dias. A roupa sempre fui eu que lavei. E como eu te falei, eu tenho máquina, mas minha roupa é sempre esfregada na mão
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje. Se não eu acho que os vestidos ficam cheirando mal embaixo dos braços, e os colarinhos não ficam limpos (risos). Manias!
P/1 – E hoje, o que a senhora faz, dona Ângela?
R – Bom. Hoje eu saio mais com a minha filha, a gente sai a andar, mas fora disso eu leio muito, sempre leio. O meu vício foi ler. Faço palavras cruzadas. Eu comecei a fazer para melhorar meu português (risos) pelo menos para escrever (risos). Porque se falo o portunhal, escrevo bem o portunhal (risos). Además eu tenho um problema com a a gramática, não só a portuguesa, a espanhola também. A ortografia não é comigo. Eu acho que Cervantes não escreveu Quixote falando, se uma palavra se escrevia com b ou com v, se tinha h ou não tinha, então por que eu tenho que me preocupar com essas coisas? Isso é o que eu falava. “Se Cervantes não se preocupava, por que eu vou me preocupar?” (risos). Eu sou uma negação. O único zero que eu levei na minha vida escolar foi com os verbos
P/1 – Com os verbos?
R – É. Os verbos em espanhol são tão chatos como em português. Por entender nomes diferentes para as mesmas coisas. Então, o verbo para mim foi sempre, quando eu levei aquele zero, naquela noite eu fui dormir às três horas da manhã, mas decorei o verbo
P/1 – A senhora falou que seu vício é ler. A senhora sempre gostou de ler?
R – Sempre, sempre, sempre. Olha, eu não sei quem me ensinou a ler. Como eu falei para você, eu fui na escola a primeira vez no dia que eu completei quatro anos e eu já sabia ler. Quem me ensinou, eu não sei, se foi meu avô, não sei, eu sei que eu já sabia ler. Aquele dinheiro que eu te falei que nos dava de mesada, todo dinheiro eu comprava era histórias. Eu sempre fui tarada por leitura, sempre sempre sempre
P/1 – E até hoje a senhora gosta de ler bastante?
R – Até hoje, até hoje. Leio tudo
P/1 – E pra senhora hoje quais são as coisas mais importantes, dona Ângela?
R – Mais importantes? Não tem nada assim muito importante, não faço nada. Só leio, continuo lendo jornal. Televisão assisto pouco, primeiro porque de dia não tem nada interessante e de noite, dez horas, é hora de estar na cama. Meu avô falava: “A las diez, en la cama estés, se non puede ser antes, un poquito después” (risos).
P/1 – Que bonito
R – Entendeu?
P/1 – Sim, sim, sim. E a senhora tem netos?
R – Não. Eu sei que se não saio, fico em casa fazendo o trabalho de casa, como te falei tenho uma faxineira que vai a cada 15 dias, principalmente para limpar vidros. Na Espanha era fácil de limpar porque as portas de vidro abrem para dentro, você duas sabem, então é fácil de limpar. Agora, eu tenho que sacar o corpo e subir numa escada, não dá, para mim não dá para limpar vidros aqui
P/1 – Então no resto dos dias a senhora que faz a limpeza de casa?
R – Ou se é ela que me limpa o vidro e faça a limpeza, mas durante a semana eu consigo ir, lavo toda a roupa
P/1 – A senhora tem amigos, amigas?
R – Eu não confio muito nas pessoas, tenho tido muitas desengaños, então, cumprimento todo mundo, a gente se vê na rua: “Aí, como vai?” e tal, mas amigos, amigos assim, o que eu chamo de amigo, aquele que fala toda hora, isso eu não tenho
P/1 – E a sua família?
R – Está na Espanha
P/1 – A senhora tem contato com eles?
R – Ah claro, lógico! Agora eles me telefonam ou chamam pela internet, aí a gente se fala
P/1 – E a senhora tem sonhos, dona Ângela?
R – Sonhos? Não. Eu vou te falar, não sei se és verdad ou não. Um ano, mais ou menos antes, de morir meu pai eu sonhava com a morte dele. Quando ele murió nunca mais sonhei. Não sei se é que não lembro ou que inconscientemente me nego a sonhar, se é coisa que vou ver uma desgraça que vai acontecer. Porque diziam que quem sonha que uma pessoa morre, encomprida a vida dela sete anos, falavam na Espanha. Não é verdade. Então, nunca mais tive sonho depois da morte do meu pai
P/1 – Nada? Nem um?
R – Pois eu te falo, não sei se é uma coisa mental, um negócio, que se eu sonho não lembro
P/1 – Antes a senhora lembrava?
R – Sim, sim, te falei que eu vi a morte do meu pai?
P/1 – Mas ele estava doente?
R – Ele tinha câncer. Ele ficou dois anos enfermo de câncer, câncer na garganta. Ele perdeu a voz
P/1 – E a senhora sonhava com a morte dele?
R – Eu sonhava com a morte dele. Agora, era câncer dormido que chama na Espanha, faz o caminho, mas não dói. Tanto que ele morreu afogado porque arrebentou a garganta. Mas não tenía dolor nenhum. Na Espanha vulgarmente se chamam câncer dormido, não sei qual é o nome aqui, é muito raro
P/1 – Tá ótimo. E dona Ângela, como foi aqui pra senhora contar sua história?
R – Aqui? Normal. Meu marido trabalhava e eu ficava em casa cuidando da menina e da casa
P/1 – E tem alguma coisa que eu não perguntei à senhora, que a senhora gostaria de deixar, de contar, alguma história interessante? Algum fato marcante na sua vida?
R – O fato marcante já contei, foi a morte de meu pai. Eu sei da guerra, mas a morte de meu pai desgringolou tudo porque ele continuou trabalhando com crédito bancário, uma vez que ele não podia ter crédito bancário porque já não podia trabalhar, então, nos quedamos em nada. Esses são fatos marcantes. Aqui nada, fato marcante quando meu marido comprou a casa, o sobrado que morávamos na Água Rasa, foi um fato marcante, foi o dia que minha filha soube que tinha entrado na faculdade
P/1 – Faculdade de quê?
R – Na USP
P/1 – No que ela entrou?
R – Farmácia e Bioquímica. No mesmo dia, à noite que dormimos lá, de manhã ela soube que tinha entrado na faculdade
P/1 – Isso foi marcante pra senhora?
R – Foi
P/1 – E a outra filha, o que ela estudou?
R – Ela estudou Artes Cênicas, Comunicação. Ela estudou artes cênicas, podia ter feito Jornalismo e isso. Ela trabalhou aqui na TV Cultura como figurinista
P/1 – E a sua mãe, a senhora nunca mais viu?
R – Eu fui várias vezes
P/1 – Foi várias vezes e depois...
R – Ela faleceu com 78 anos. Depois eu estive duas vezes mais
P/1 – Então tá bem. Tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de falar?
R – Não, é que minha vida foi tão simples! As coisas marcantes são fome (risos). Mas de resto nada. Eu tive uma vida pacata, nunca me meti em brigas, nunca fui fofoqueira, acho fofoca muito desgastante e muito ruim. Você prejudica uma pessoa que muitas vezes não te fez nada e ela, às vezes, nem conhece bem. E faz fofoca de um fato que você não sabe o que levou a essa coisa. Então não faço fofocas, não me incomoda que façam fofocas minhas. Como se diz, entra por um ouvido e sai pelo outro. Eu sou uma pessoa muito quieta, muito pacata, vivo uma vidinha simples porque não dá pra fazer muita coisa com o que eu recebo da aposentadoria (risos). Então...
P/1 – Tá ótimo! Muito obrigada pela sua história, foi um prazer conversar com a senhora
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