P/1 – Bom, Cláudia, para começar eu queria te agradecer de você ter se deslocado até aqui para contar a tua história pra gente. E pra deixar registrado eu queria que você falasse o teu nome completo, o local em que nasceu e a data em que nasceu.
R – Meu nome é Cláudia Andrade Crispi. Sou descendente de italianos e de brasileiros, com certeza. Nasci em Ubá, Minas Gerais, em três de setembro de 1950.
P/1 – E qual que é o nome dos seus pais Cláudia?
R – Meu pai Francisco Crispi Neto e minha mãe Nicolina Cândida de Andrade Crispi.
P/1 – Você falou que é descendente de italianos, conta um pouquinho da história dessa família pra gente.
R – Meu avô, Genaro Crispi, veio com os pais na época da guerra. Ele era um bebê ainda. Instalaram-se na região, em Minas Gerais, e começaram a vida ali como sapateiros, depois como produtores de macarrão, de uma fábrica de macarrão. Depois começaram a mexer com móveis, depois fumo e foi crescendo a família ali naquela região de Ubá.
P/1 – Fala um pouquinho mais dos seus avós, teve contato com eles?
R – Sim. Muito. A minha vó também era filha de italianos, é a família Alpino, meus avós paternos. Meu avô eu tive a honra, o privilégio, vamos dizer assim, de conviver com ele durante muitos anos porque ele faleceu com 99 anos. A minha vó, eu era garota quando ela faleceu, teve um enfarto e morreu. Mas meu avô era um homem muito inteligente, sem estudo nenhum, mas com muita habilidade. Uma das filhas dele, a irmã do meu pai, teve uma fábrica de árvores de Natal, ela construía árvores de Natal belíssimas durante muitos anos e foi o meu avô que criou todas as máquinas pra fazer a árvore, eram feitas de sisal. Muito bom. Esse meu avô gostava muito de... Ele era muito habilidoso. Muito. Fazia sapatos lindíssimos, mas tudo a mão, ele era sapateiro. Ele gostava muito de dobrar papeis, apesar de não ser japonês ele gostava muito de dobrar papeis. E trabalhou muito tempo como viajante também do Moinho da Luz, que era uma empresa muito forte, mexia com muita farinha, coisas assim, acho que é por isso que eles começaram a fazer macarrão, fábricas de macarrão. Porque a minha vó tinha as receitas de fazer o macarrão, que a gente comia macarronada todo o domingo, mas a massa era feita em casa, minha vó que fazia. Mas ela também aprendeu ali com a família que produzia macarrão. Por isso que a gente, todo mundo lá é bem robusto, gostamos muito de massa, bastante.
P/1 – Cláudia, fala um pouquinho dos seus pais agora pra gente.
R – Meus pais? Meu pai chegou a ajudar meu avô na fábrica de macarrão durante muitos anos, depois ele começou, ele chegou a ser fiscal do Estado por um tempo, mas ele era muito agitado, essa coisa de ficar sentado atrás de uma mesa não era com ele. Ele gostava muito de caçar, andar pelo mato, subir morro, descer morro, muita coisa assim. Hoje em dia nem é possível isso mais, ele pescava muito, caçava muito. Ele então, depois, começou a mexer com fumo, foi ainda até ele que criou na nossa região o fumo desfiado e foi assim que ele sustentou a família, vendendo fumo. Eu tenho um irmão que até hoje... Aliás, dois irmãos que até hoje mexem com isso. Foi a base do crescimento da família, foi através do fumo. Minha mãe foi dona de casa durante muitos anos, porque ela teve sete filhos e meu pai era muito ciumento, porque ela era 11 anos mais nova que ele, mas depois de certo tempo as coisas foram ficando mais difíceis e ela viu a necessidade de trabalhar pra ajudá-lo. Ela resolveu fazer a faculdade, que tinha aberto recentemente em Ubá. Ela foi fazer Pedagogia, ela foi ser professora, depois ela foi diretora de escola, trabalhou na Superintendência de Ensino durante muito tempo. A minha mãe ainda é viva, muito inteligente, gosta muito de ler, de estudar, tem muita cultura e ela ajudou muito o meu pai, apesar de o salário do professor não ser nada agradável, mas ela chegou a ser diretora ela tinha um ordenado até que legal e ajudava muito. E assim criou sete. Era muita gente. Família grande.
P/1 – E esses irmãos, fala um pouquinho deles e qual lugar dessa posição de sete você está.
R – (choro) Desculpa. Eu sou a segunda dessa família de sete. Família grande é muito interessante, é muito divertido porque como meu pai era caçador, ele tinha em casa cachorro de caça, galinha, papagaio, periquito. A gente tinha um terreno, não perto da casa, colado na casa, que era como se fosse o zoológico da cidade. Nós vivíamos quase os sete irmãos, os seis irmãos mais velhos, nós passamos a nossa infância no meio desses bichos aí. Tinha até veado. Na época podia ter. E esses irmãos foram criados muito assim, no ar livre, junto com a natureza, todo mundo gostava muito de bicho, adorava ficar naquele lugar, porque pra gente era uma farra só. Eu acho que minha mãe deu um pouco de sorte porque primeiro nasceram as três moças, e depois nasceram os quatro rapazes e as três moças ajudaram ela a criar os quatro rapazes (choro). Hoje um deles tá no hospital. Meu irmão mais velho dos homens tá passando por um problema muito sério, hoje exatamente ele tá tentando fazer uma transfusão de sangue porque ele tá com um câncer muito violento, que a gente descobriu agora em julho, o Fernando. Ele é mais novo do que eu quase cinco anos, ele tem um metro e 84, muito forte, muito grande e sempre andou muito de bicicleta todos os dias, fim de semana ele anda 30, 40 quilômetros de bicicleta e, de uma hora pra outra, sem mais nem menos, sem um sintoma ele começou a ter enjoo, enjoo, enjoo. Em uma semana ele perdeu cinco quilos e assustou muito a gente, foi fazer exame aí deu um câncer nele, já tava bem propagado no pulmão e no fígado, hoje ele já perdeu uns 30 quilos, é uma coisa que me incomoda muito (choro). A gente tem torcido, hoje ele tá fazendo uma transfusão no hospital, como eu já disse, por mais que os médicos tenham dito que é um caso muito sério, muito difícil, mas pra Deus nada é impossível, a gente acredita que ele vá sair dessa. Ele é viúvo, ele tem duas filhas, hoje ele tá na casa da minha mãe, que ele prefere ficar perto da mãe, é muito bom isso pra ele, minha mãe é viva ainda, tem 88 anos. Minha irmã mais velha foi professora também, tem três filhas, mora em Vitória do Espírito Santo. A mais nova até mora aqui, mudou pra São Paulo em agosto parece. Tenho uma neta linda que é ruiva, Helena, muito linda, que a família de italiano de vez em quando sai um ruivo. A segunda irmã também tem três filhas, mora em Curitiba, o Fernando mora em Ubá. Os únicos que moram em Ubá, o Fernando e eu. Depois tem o Francisco, que mexe com fumo também, mora em Alagoas, mora muito longe, tem uma renca de filhos, ele tem um, dois, três, quatro, cinco filhos. Quase pegou a mamãe. Muito alegre, gosta de cozinhar, muito tranquilo, é o mais tranquilo da casa. E os dois mais novos, Aroldo, Aroldo mora... Ele é meio nômade. Hoje ele mora em Minas, há dois meses ele morava no interior da Bahia, agora ele tá morando no interior de Minas. Ele é engenheiro de minas, tá morando numa cidadezinha chamada Pitangui, mas é próxima de Belo Horizonte. Também tem quatro filhos. E o caçula da família, Marcelo, tem 20 anos menos que eu. Ele também é engenheiro de minas, trabalha na Vale em... Esqueci o nome da cidade, mas mora em Ouro Preto, adora Ouro Preto, com a esposa, mora lá. Então ele trança todo final de semana. E ele tem um filho de nove anos que eu acho que, é meu sobrinho, João Pedro, mas eu acho que ele é meu filho porque a gente que criou o Marcelo. Nós três irmãs que criamos o Marcelo, então ele tem quatro mães, as três irmãs e a mãe. Também engenheiro de minas. Então assim, a família tá toda bem, graças a Deus, tudo com muita luta no princípio, mas tudo certinho.
P/1 – E nessa infância, nessa casa, do que vocês gostavam de brincar, como que era o dia a dia de vocês?
R – Olha, na época, é muito interessante, a gente brincava de correr, de queimada, de pique, de pular corda, porque não existia brinquedo. Brinquedo pra mulher era uma boneca que a gente ganhava no Natal, mas ela era boneca de louça, ela não podia levar água nem nada que ela derretia. Essa boneca de louça ficava guardada numa caixa em cima do armário e a gente só podia tirar a boneca na época do Natal. Era como se a gente tivesse recebendo a boneca de novo. Os carrinhos dos meninos eram todos de madeira e normalmente feitos por presidiários. A cadeia tinha lá esse processo de aproveitamento de madeira, alguma coisa assim, eles faziam esses brinquedinhos, carrinho, alguma coisa de empurrar, cata-vento, brinquedo era assim. E a gente brincava muito era de subir em árvore, apanhar fruta, ir pra roça, nadar no rio, nadar em cachoeira, esse tipo de coisa. Escorregar em barranco, sujar bastante a roupa pra mãe quase descabelar que tem que lavar aquilo tudo na mão. E foi uma infância tranquila. Meio pobre, meio sem recurso, mas muito tranquila. Como diz o outro “A gente era feliz e não sabia”.
P/1 – Fala pra gente um pouquinho, além dessas brincadeiras, como que a sua família comemorava. Você falou do Natal, os aniversários, essas festas maiores.
R – Normalmente... Aniversário, eu não tenho muita lembrança de festa de aniversário, mas assim, a gente tinha a casa da minha vó, essa vó italiana, que era uma casa muito grande no Centro da cidade, então a família toda reunia na casa da vó. Todo Natal, Ano Novo, era tudo comemorado na casa da vó, ia todo mundo pra casa da vó. Aliás, todos os domingos a gente ia pra casa da vó porque tinha macarronada. A gente gostava de comer a macarronada. E a gente gostava muito de entrar na dispensa dela que era cheia de coisas, dos quitutes que ela fazia, pra gente roubar os quitutes, mas eu acho que ela deixava ali de propósito pra gente, sabe? Eu lembro muito da casa da minha vó, que a gente ia, e as brincadeiras daquele tempo eram na rua, uma cidade pacata, interior, sem calçamento, sem movimento, carro na cidade devia ter uns cinco ou seis. Telefone também era muito interessante que poucas pessoas tinham, tinha no hospital, no asilo e mais umas cinco famílias, não existia telefone pra todo mundo. Quando eu era criança a televisão apareceu, eu já tinha 11 anos, apareceu na minha cidade e a gente ficava... Uma coisa que encucava a gente, a gente tinha um vizinho que tinha televisão, eles convidavam a gente pra assistir a televisão, passava assim um programa por dia em determinado momento e a gente ficava dando volta atrás da televisão pra saber como que a pessoa entrava ali naquela caixinha. Pra saber como é que entrava naquela caixa e como é que funcionava aquilo. Hoje em dia é tudo microchip, antigamente a gente ficava... E ninguém sabia explicar pra gente, a televisão preto e branco, muito interessante. E era isso aí, a gente brincava muito... Era muito comum, os vizinhos eram muito chegados, tinha aquela história de almoçar e todo mundo vai pra porta da rua, coloca cadeira na rua pra ficar ali batendo papo, pra fazer “o quilo do almoço” como dizia. E a gente tinha tempo de brincar na rua, brincava de pique, que é um pra correr, pra pegar, brincava de queimada porque não passava carro. Era muito diferente, muito, sabia pular corda, tinha competição de corda, jogava muita peteca. Eram essas as brincadeiras.
P/1 – E quais são as suas primeiras lembranças escolares, Cláudia?
R – Escolares? Bom, eu lembro estudava numa escola que existe até hoje, numa escola pública, na época não existia escola particular. Eu gostava muito de ir à aula e foi muito bom, tive ótimos professores, a escola oferecia muita coisa interessante, a gente adorava merendar na escola, a gente pagava um X por mês lá e tinha direito de merendar. A minha turma era muito grande, a gente era muito amigos... A turma da escola é a turma de fora da escola, que praticamente eram os mesmos alunos. Tinha um colega, lembro muito dele, um dos que tocava piano, João Batista Magro. Ele era o filho único e tinha um tratamento muito especial dos pais, que era filho único, tocava piano muito bem, então toda festa da escola ele tocava piano. Os colegas mexiam muito com ele, brincavam muito com ele, falavam que... Ficavam mexendo com ele: “Homem não toca piano”. Aquela coisa toda. Mas ele, hoje eu não sei se ele toca piano, mas hoje ele é o marido da Cássia Kis. Ela é Cássia Kis Magro, ela é casado com esse colega de infância meu. É casada com ele, João Batista. Parece-me que ele é psicólogo, psiquiatra, alguma coisa assim. Muito inteligente o garoto. Eu lembro muito dele, muito agitado, espevitado, ele esquentava muito a sala. A gente teve uma... Pelo menos da primeira a quarta série era um grupo só e tinha outros colegas, eram aquelas carteiras grandes que sentavam dois juntos, os que não sabiam muito queriam ficar sempre perto da gente pra gente soprar a lição pra eles. Mas a escola eu gostava muito, tinha professores que incentivavam muito a gente, muito dedicados e a gente tinha muito tempo de estudar, dedicar-se, porque não tinha mais o que fazer a não ser estudar. Não tinha outra como tem hoje, televisão, internet, computador, celular, hoje ninguém tira a cabeça do celular. Era tudo muito diferente, a gente conversava muito, tinha muita amizade, contava muita história. Na escola eu sempre fui muito tímida, mas me sugeriram fazer teatro. Eu sempre tive uma voz muito forte, falava muito alto, eu sempre participava dos teatros, apesar da timidez, mas minhas professoras me convenciam: “Enquanto você estiver ali no palco você não é você, não é a Cláudia, você é outro personagem. Você pode ir tranquila que ninguém vai ver a Cláudia, vai ver o personagem”. E com essa eu me embalei nesta e fui. Depois dessa escola de primário eu fui estudar numa escola que era em frente a minha casa, aí já era uma escola particular, com todo o sacrifício do meu pai, O Sagrado Coração de Maria, que antigamente se chamava Sacré-Coeur de Marie, que foi a primeira escola da Rede Sagrado fundada no Brasil. Era uma escola de freiras, então tinha um rigor muito grande com tudo, com o uniforme, com tudo. Com estudo, era tudo muito exigente, mas foi muito bom. Era só escola de moças, não tinha meninos, não tinha rapazes no início. Muitos anos depois foi ter meninos. Mas era uma escola, eu achava muito chique, muito arrumada, uma escola completa, que tem capela. Até hoje a escola tá lá, funciona e eu tenho muito boas lembranças dessa escola. Eu fiz muitas amizades e ali tinha um internato e a gente ficava admirando as moças mais velhas que tinham uns uniformes mais elaborados, tinha uniforme de gala pra dia de festa, pra desfile de Sete de Setembro, essas coisas assim. Depois disso continuei lá até terminar o Ensino Médio, que hoje é, formei professora e assim que terminou o colégio não tinha mais nada pra eu fazer porque não existia faculdade na cidade. Aí eu fui ser professora. Mas logo depois apareceu a faculdade, eu queria mesmo era, não sei porque eu sempre gostei de desenhar, eu era boa de desenho e eu cismei que eu queria fazer o Belas Artes ou Arquitetura. Mas eu acho que eu nem sabia mesmo o que era, meu pai não deixou eu sair de Ubá. Ele falava assim: “Mulher é debaixo da barra da saia da mãe, não pode sair”. Quando a faculdade abriu eu fui fazer Letras, que eu já gostava muito de inglês, eu já estudava no colégio onde eu estudei. Estudei francês a vida inteira, mas nos últimos anos, no Ensino Médio eu comecei a estudar inglês e eu tive uma professora que falou comigo assim: “Ah, você tem muito jeito pra inglês, eu acho que você devia ir pro IBEU”. Mas eu não podia pagar o IBEU [Instituto Brasil Estados Unidos]. Depois com muito custo eu fiquei atormentando o meu pai, que o filho atormenta o pai até ele deixar, aí meu pai me colocou no IBEU. E foi aí que eu fui pra faculdade, quando eu fui pra faculdade eu já tinha alguma coisa de inglês, já tinha bem uma base boa, e fiz a faculdade, continuei dando aula e gostei de dar aula. Hoje eu percebo que se eu tivesse sido arquiteta eu acho que eu não seria uma boa arquiteta, porque eu não tenho jeito nenhum pra nada de casa, pra decoração, pra trocar coisa de lugar, nada disso. Não tenho jeito pra isso, não. Não tenho muita paciência, coloco uma coisa ali, fica ali pra sempre, a minha casa é toda de alvenaria, não tem como mudar nada de lugar, muito interessante isso. Eu não tenho jeito, se eu colocar o enfeite aqui ele fica aqui 20 anos, se ninguém falar: “Olha, esse enfeite já ficou velho, troque-o”. Não vejo isso, não é importante pra mim. Eu acho que eu tinha que ser era professora mesmo, certo? Gosto até hoje. Hoje eu sou diretora da escola, mas eu prefiro muito estar numa sala de aula ensinando.
P/1 – E como é que foram essas primeiras experiências como professora, primeira sala?
R – Olha, eu devia ter meus 19 anos e entrava em sala de gente que era até bem mais velha que eu, de ensino público. Sempre trabalhei com Ensino Médio e a minha sala era assim, 50, 55 alunos. Era bem complicado, mas eu sempre fui muito... Eu tinha sempre uma postura muito positiva, muito forte eu acho. Não sei se é mandona, mas eu sei que eu conseguia disciplina, conseguia ensinar, meus alunos gostavam muito. Porque na minha cabeça eu tinha que ensinar e eles tinham que aprender. Esse negócio de falar que faz de conta que ensina e faz de conta que aprende não era comigo. Inclusive eu cheguei a trabalhar no Sagrado Coração de Maria e eles me colocavam pra dar aula sempre nas turmas mais velhas de sétimo, oitavo ano, que na época não existia o nono, porque eu conseguia mais disciplina do que professores mais velhos. Eu trabalhava bem. E eu sempre... O que eu aprendi com os meus professores de inglês, apesar de ser na escola particular, no IBEU, porque não existia preparação pra ser professor, foi a trancos e barrancos, pesquisando no nada, criando, porque não existia um treinamento. Mas antes assim, tudo que eu aprendia na escola particular eu queria ensinar na escola pública, era com muito mais sacrifício, com muito mais dificuldade porque o número de alunos era muito grande, mas eu conseguia. E na época os alunos eram mais dedicados, eles tinham mais respeito pelo professor, eles sabiam que se não aprendessem ali na escola, em casa menos ainda porque onde pesquisar? Eles pesquisavam era na biblioteca da escola mesmo, quando tinha alguma coisa pra pesquisar. Era muito diferente de hoje. Na época não existia nem fita cassete pra escutar o áudio, vamos dizer assim, pra língua. Muito complicado. E eu queria crescer também nisso... Depois que terminei meu curso no IBEU, não tinha também mais nada pra fazer, eu comecei a buscar congressos, hoje em dia eles falam muito de workshop, mas eu procurava congressos, vinha muito ao Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, alguma coisa assim pra participar sempre. E comecei a ver a possibilidade de ir pros Estados Unidos também pra eu poder conhecer um pouco mais da cultura e treinar a língua. E foi aí que eu comecei a juntar dinheiro pra fazer viagem aos Estados Unidos pra estudar. Aí eu consegui várias vezes estudar, aperfeiçoar e é isso aí. Fui convidada pra trabalhar na faculdade, tive uma experiência de um semestre, mas não gostei porque faculdade já é outra cabeça, outro nível. O pessoal de faculdade é muito relaxado assim no sentido “vou fazer o que eu quero, o que eu não quero eu não faço” e eu já não aceitava muito isso. Se é meu aluno tem que aprender. Eu sou assim. Quer ser meu aluno? Quer. Você vai ter que aprender, nem que eu gaste 24 horas pra te ensinar, mas você vai aprender de qualquer maneira, é o meu desafio. Eu acho que na faculdade eu não me dei bem porque são pessoas adultas e você não consegue manipular um adulto a esse nível, de fazer o que você propõe. A proposta tem que ser mais dele do que da gente.
P/1 – Cláudia, fala um pouquinho pra gente desse significado do IBEU que desde lá de trás a tua professora falou da sua facilidade com inglês e o IBEU que é uma instituição que era mais cara.
R – Realmente é isso. Na escola onde eu estudava eles colocaram... O colégio era só de irmãs, de freiras. Aí um belo dia convidaram uma professora que não era freira. Muito engraçadinha, muito cheia de novidades e tal e eu acho que eu me encantei pelo jeito dela dar aula e ela falou: “Você deve ir pro IBEU que você tem jeito”. E eu fui. E lá eu tive a sorte de ter uma professora chamada Margarida, que hoje ela é muito minha amiga, inclusive. E ela me incentivava muito. (choro) A gente falar da vida da gente remete às situações difíceis. Mas a minha amiga hoje está muito bem, graças a Deus. Bom, eu comecei a estudar e realmente eu tive muito incentivo. Eu fui desenvolvendo, aprendendo com muita facilidade, mas eu estudava muito, mas a gente não tinha onde buscar a não ser dentro da sala de aula. E foi aí que eu fui procurar estudar fora. No IBEU eu sempre fui uma aluna boa, eu acreditava que fosse porque eu ainda era aluna o diretor me convidou pra trabalhar lá como monitora de outros alunos. Eu achava que aquilo era impossível, eu falei: “Mas como assim? Eu nem formei ainda, eu não sou professora eu vou dar aula?”. Mas existiam uns alunos muito rebeldes e eu que tinha que dar jeito nos rebeldes. Eu dava aula pra eles depois da minha aula. Tudo que eu aprendia na minha aula eu tinha que sair da sala e dar aula pra outros alunos. Eu comecei a dar aula de monitoria. Depois dessa aula de monitoria eles me convidaram, eles queriam me convidar pra dar aula lá no colégio, lá na escola. Mas até que eu comecei a dar, mas assim, era aos trancos e barrancos porque não tinha... Hoje tem o manual do professor, tem treinamento, você vê... Quer aprender a dar aula? Bom, você busca alguma coisa na internet. Naquela época era tudo muito difícil, mas eu, o que eu pegava eu conseguia fazer porque eu corria muito atrás. A gente fala atrás, mas na verdade é na frente. Eu comecei assim, uma aulinha aqui, uma aulinha ali, uma aulinha aqui, uma aulinha ali. E depois eu comecei a ver, apareceu lá na escola uma senhora que parece que ela mora... Parece não. Ela morava em São Paulo, não sei qual lugar, e ela foi lá procurar a gente porque ela queria que o filho pequeno estudasse. O diretor da escola naquela época, o seu Ulisses, foi o fundador da escola junto com a Embaixada Americana, ele só tinha adolescentes a partir de 13 anos e adultos. Ele não gostava muito de trabalhar com crianças porque ele achava que aquilo não ia dar certo. Quando chegou aquela mãe lá, que ela trouxe até a metodologia junto, e falou: “Meu filho estudava em São Paulo, estudava nesse livro aqui e tal”. Aí meu olho brilhou naquele livro. Eu falei: “Como assim?” “Estudava lá e tal”. Eu não lembro, talvez seis anos o garoto, eu não me recordo bem. Aí aquilo mexeu muito com a minha cabeça, eu falei: “Espera aí, tem um negócio diferente”. Eu sempre gosto muito, não sei porque, mas eu gosto muito de coisa de criança. Aí eu fiquei olhando aquilo, fui pesquisar com a mãe: “Ah, você conseguiu isso e tal”. Fui buscar saber onde tinha aquilo tudo, o diretor não gostou muito da ideia não, mas ele falou comigo assim: “Olha, isso aí se você quiser mexer, você pode mexer, mas não tem como eu mexer com criança, não.” “Mas se o senhor me der a liberdade eu vou trabalhar com criança”. Aí eu comecei, eu consegui livros infantis, consegui achar onde tinha e comecei a trabalhar com livros infantis. Mas a gente percebia que ele não gostava muito daquele movimento de criança. Na época eu tinha as ideias, mas eu não tinha dinheiro, na época tinha uma secretária lá e eu a convidei, falei assim: “O que você acha da gente abrir uma escola pra criança? Porque se ele trabalha aqui de 13 anos pra cima a gente pode fazer uma escola de quatro a 12 anos e a gente não seria concorrente dele e trabalharia com criança”. Aí ela topou, eu me enfiei num ônibus em Ubá e vim pra São Paulo pesquisar. Consegui uma metodologia muito legal, foi trabalhoso porque foi uma franquia na época, montamos a escola e dali pra frente foi só criando, criando, criando, nunca mais parei. Mas nessa escola, no IBEU, eu continuei trabalhando no IBEU e o seu Ulisses me ajudou muito, ele era a minha fonte de informações, ele aprendeu muito. Ele aprendeu inglês, ele trabalhava na rede ferroviária e ele aprendeu inglês informalmente com os ingleses, a rede pertencia aos ingleses. Ele aprendeu ali sentado naqueles sacos de mantimentos que chegavam, que eram transportados, ele se encantou pela língua, aperfeiçoou a língua e depois ele, pra ser professor de escola pública naquela época tinha que passar por um exame que era uma banca examinadora que tinha em Belo Horizonte, pra ser professor de Estado. Eu sei que ele conseguiu ir pra Belo Horizonte, passou pela banca examinadora, foi aprovado e passou a ser professor de inglês na cidade. Ele foi professor numa escola estadual e foi aí que ele fundou o IBEU com o incentivo da Embaixada Americana. E foi aí também que ele começou a trabalhar com o AFS. Certo? Isso aí foi bem antes de eu entrar no IBEU, mas eu tinha colegas, como eu disse antes que eu não podia estudar lá, mas eu tinha colegas de escola que estudavam e antigamente o AFS se chamava American Field Service. Depois eles abreviaram pra AFS. E seu Ulisses então... Eu não entendi aquilo, mas os meus colegas me contavam que ele convidou, falou: “Ah, vai ter uma bolsa pra ir pros Estados Unidos”. Eu falava: “Como assim? Eu nem vou em Rio de Janeiro, vai pra Estados Unidos? Onde é isso, meu Deus?”. E eu via, eu tenho até uma amiga que participou da seleção, na época eram só bolsas mesmo e ela chegou até na última fase da seleção, mas na hora do pai assinar o documento, o pai não assinou, falou: “Espera aí! Onde é isso? Minha filha sair daqui pra ir pra outro país?”. Naquela época que o telefone ainda era de manivela. Ela não foi por causa disso, na última... Quer dizer, vários fizeram isso. Eu não entendia muito o que é aquilo que ele tava fazendo, não, mas eu também não estudava lá, não ia ter nem oportunidade de fazer isso. Mas na realidade não era só pro aluno, mas precisava saber inglês, quer dizer, tinha que ser aluno ali. Ah, minha trajetória começou assim, fui pra escola, fui monitora, fiquei professora, depois eu abri essa escola. Eu tava trabalhando na minha escola, na escola pública e no IBEU. Era um corre-corre, sempre minha vida foi uma doidera, de manhã, de tarde, de noite e de madrugada. E chegou uma época que o senhor Ulisses faleceu. Ele faleceu, teve um câncer e muito preocupado com a escola dele ele chegou perto de mim e dessa secretária e falou assim: “Eu estou doente, eu sei que eu não estou muito bem, eu preciso que vocês tomem conta da escola pra mim, não deixem essa escola morrer”. Eu falei: “Como assim? Mas o senhor tem uma família, não é assim, você chega aqui e ‘Toma’”. Ele falou: “Mas a minha família não tem nada a ver com isso aqui, não. Isso aqui é meu, eles não fazem muita questão e tal”. Não sei. Não sei o que tinha na época, não sei se era uma coisa muito utópica, não sei o que eles achavam, mas ele sabia o que ele tava fazendo, com muita dificuldade. Eu me lembro de ele tirar dinheiro dele pra pagar a conta de telefone, de aluguel. A gente trabalhava no princípio nem salário tinha, a gente ficava ali como aprendiz mesmo. Aí ele falou, ele falou que ele ia morrer, mas que ele queria ter certeza que a gente ia tomar conta daquilo ali. Eu fiquei apavorada com aquilo, eu falei: “Mas eu não tenho...”. Sempre a gente achando que nunca pode. Eu falei: “Como que eu vou fazer pra tomar conta de uma instituição assim sem ter um preparo, uma coisa assim?”. E a outra moça que ele convidou também já era secretária lá há muitos anos, ela conhecia muito mais da instituição do que eu, mas ela não sabia inglês. Aí ela falou comigo assim: “Sozinha eu não fico porque como é que eu vou tomar conta de uma escola de inglês se eu não sei inglês?”. Aí ela falou: “Cláudia, se você topar eu fico junto com você”. Falei: “Então tá. Vamos tocar pra frente”. Aí realmente ele... Ele colocou no nosso nome, publicou, saiu no Diário Oficial, passando pra gente tudo como responsáveis pela escola e depois de certo tempo ele faleceu e foi assim que a gente começou. Então era assim, eu não me sentia muito dona, vamos dizer assim, porque eu falei com ela assim: “Olha, você vai continuar aí como secretária, dirigindo, fazendo tudo que você faz e eu vou continuar na sala de aula dando minha aula. Se você precisar de mim você me fala, tá bom?” “Tá.” “E assim, o que eu der aula, que eu produzir você me paga, o resto você fica pra você, que eu quero receber aquilo que eu trabalhar”. E foi assim a parceria durante muitos anos. Depois ela faleceu também, aí eu tive a oportunidade de ampliar a escola, era a única escola da cidade. Hoje ela tem 53 anos, é uma escola bem antiga, bem respeitada e alguns anos atrás, 15 anos atrás, nós somos centros binacionais, nós somos uma coligação que temos o apoio da Embaixada Americana e nós sempre nos reunimos. Reúne por região porque o Brasil é muito grande. Então a gente na época, 15 anos atrás, a gente reunia muito a turma de Minas. A própria Minas Gerais é muito grande. Numa dessas reuniões, eu tenho uma amiga de Ouro Branco, Nanci, e Nanci falou comigo... Eu sempre ouvindo Nanci contar histórias de intercambista que veio, intercambista que foi na família tal e na família tal e ela contava aquilo com muita empolgação. Aí eu falei: “Nanci, eu sei que o IBEU há muitos anos já trabalho com o American Field Service”. Ela falou: “Mas hoje se chama AFS. É a mesma organização.” “Ah, tá. Eu gostaria muito de trabalhar, ser voluntária do AFS.” “Você tem certeza?” “Tenho.” “Mas é muito difícil.” “Tudo bem.” “É muito trabalhoso.” “Tudo bem.” “Você tem certeza?”. Ela me perguntou umas três vezes se eu tinha certeza. Eu falei com ela assim: “Escuta, o que não é trabalhoso? O que não é difícil?” “Então tá bom. Eu vou ser a sua madrinha e vou te apresentar”. Isso foi no ano de 2000. Eu falei: “Bom, já dirijo uma escola, já trabalho com criança e adolescente, tem muito trabalho, um trabalho a mais, não sei se vai me alterar tanto a vida porque eu não vou mudar tanto assim”. Se eu não trabalhasse com adolescente, com criança talvez fosse um pouco mais complicado, se eu não fosse professora, mas eu já estava li naquele meio, achei que não fosse ser tão trabalhoso assim. Aí realmente ela me apresentou, convidou-me. Ah, sim. Isso. Existe uma convenção nacional que acontece duas vezes por ano, fui convidada pra essa convenção, aí fui apresentada e comecei a me inteirar. Deram-me uma apostila desse tamanho assim pra ler e tal, porque ainda era tudo muito manual. 2001, quase 16 anos atrás. Mas eu fui embora feliz com aquela apostila enorme e eles me falaram como é que era e tal. Eu não tinha noção nenhuma do que era o intercâmbio, mas eu falei: “Eu vou pegar e vou fazer. A gente consegue”. E um ano depois eu recebi a primeira... Você tem que ser aceita, depois os primeiros anos você tem que receber intercambistas e depois você tem que ir. Não tem que ir, mas se você tiver algum candidato você tem que enviar e pra tudo isso existe uma preparação. Então no princípio realmente foi muito complicado, muito difícil porque o AFS já tinha muitos anos e claro que ele foi crescendo e foi informatizando depois e tal, mas no princípio era tudo feito a mão. Tudo. Toda a papelada do estudante, todos os documentos. Fazia-se até um livro. Mas foi interessante. Era muito estranho pra todo mundo e pra mim também. Mas eu fui devagarinho, pedia muita ajuda pra essa minha amiga, pros outros que trabalhavam com o AFS, eu pedia muita ajuda na Secretaria Executiva no Rio de Janeiro porque tudo que eu não sabia eu ligava pra eles pra não fazer nada errado. Devagarinho eu fui aprendendo. Hoje eu tenho muita tranquilidade de trabalhar com isso porque se você se interessa, você vai aprofundando, nunca desanimei, com todos os obstáculos que a gente tem. Se eu fosse ver por algum problema eu teria parado na primeira intercambista que eu recebi, que foi uma menina da Alemanha que deu extremo trabalho. Ela deu tanto trabalho que ela teve que quase voltar pra Alemanha, mas ela foi mudada até de cidade de tanto que deu errado aquela primeira intercambista. Se eu fosse dessas de primeira falha, primeiro tombo desistir, eu teria desistido lá atrás, mas não sou bem assim, não. Falei: “Nem tudo são flores”. Hoje eu trabalho com muita tranquilidade, gosto demais, acho muito rico. O primeiro que me chamou mais atenção no objetivo da ONG [Organização Não Governamental] é porque ela trabalha pela paz mundial. Eu achei muito bom isso. Ao longo dos anos a gente vai vendo que realmente a gente tem oportunidade de divulgar a nossa cultura, o nosso país e aprender com eles também. É um aprendizado que não tem como explicar com palavras. Esse contato que eu tenho com jovens, com as famílias. Vocês aqui estão no Museu da Pessoa, a gente trabalha com pessoas, eu acho que vocês entendem melhor do que eu sobre a pessoa. Pessoa é uma coisa interessante. Não vou dizer que seja complicada, a pessoa é diferente uma da outra, tem sua personalidade, cada uma pensa de um jeito, uns conseguem abrir a cabeça, outros não, uns vão pro lado da neurose, da psicose. Às vezes eu fico pensando porque a pessoa complica tanto a própria vida, a vida é muito simples, muito rápida, tem que ser vivida a cada momento. Já recebi muita crítica também, de trabalhar como voluntária. (choro) Uma das coisas que mais me magoou nesse caminho todo foram as críticas das pessoas. Porque eu trabalho tanto de graça, vamos dizer assim? Aí eu penso assim: “Será que eu estou trabalhando de graça?”. O que significa trabalhar de graça? Gente, desculpa, não é à toa que quando eu era criança, isso é uma coisa que eu não lembrei, eu estou lembrando agora, meu apelido era manteiga derretida. Eu continuo sendo manteiga derretida. Sempre recebi muita crítica, que eu não sei o que é trabalhar de graça. Porque eu acho que as pessoas pensam que quando você trabalha e recebe dinheiro, você tá sendo remunerada, mas eu não acho que com o trabalho você só recebe dinheiro, só remuneração em moeda, espécie. Tem outro tipo de ganho. Eu acho que quando você trabalha com as pessoas o seu ganho é muito maior, muito melhor. Eu acho que você pode se tornar uma pessoa melhor também, e fazer, fazer pelos outros. Hoje eu tenho muitas histórias de, vamos dizer assim, não eu que fiz, mas o AFS através da minha pessoa conseguimos juntos fazer, mudar muitas histórias, muitas pessoas, muitas famílias, muitos jovens. É isso que eu acho que tem o valor. Eu falo assim, trabalhar com intercâmbio, pras pessoas que recebem e pra os estudantes que vão e que vêm, o intercâmbio mesmo é depois que termina a fase do contato do intercambista com a família. Ou então do intercambista que vem pra cá e vai embora, e também quem viaja. O intercâmbio deles começa depois que eles voltam pra casa, que é aí que eles vão começar a analisar, porque são muito jovens, vamos dizer assim, o AFS trabalha com intercâmbio pra todo tipo de idade, mas o carro chefe é o intercambista mais jovem, de Ensino Médio. Eu acho que é depois que termina o intercâmbio que realmente eles começam a processar aquilo, pra que aquilo tenha uma validade pra eles. Eu já escutei muito intercambista falando isso: “Meu intercâmbio terminou depois que eu saí do Brasil”. Ou então: “Meu intercâmbio terminou depois que eu voltei pro Brasil”. Isso é muito interessante. E é isso aí, tô nessa história aí tanto que eu recebi esse convite pra fazer essa entrevista, que a princípio falaram: “Ah, você vai fazer um depoimento.” “Legal. Vou pegar uma câmera ou, sei lá, um celular, vou sentar alguém na minha frente e vou falar o que eles me pedirem pra falar”. Aí de repente fala assim: “Olha, você vai ter que ir no Museu da Pessoa”. Falei: “Museu de quem?” “Museu da Pessoa.” “Onde é isso? É Rio?” “Não, é São Paulo.” “Quando?” “Você vai entrar na internet e vai marcar o dia.” “Meu Deus. Natal, Ano Novo, férias, que dia? Dia 15 tá bom”. Aí eu marquei. Tô aqui.
P/1 – Cláudia, eu queria que você falasse um pouquinho pra gente, além dessa tua experiência e todas essas coisas que a gente contou, como funciona você como esse elo também do AFS e dessa parceria com outra instituição. Fala pra gente um pouquinho do IBEU, dessa questão do AFS precisar desses parceiros institucionais pra continuar seguindo, recrutando. Fala um pouquinho de você sendo esse elo pra gente.
R – Eu acho que é muito difícil você ser um representante de uma instituição como o AFS se você não tiver ligada em alguma outra instituição no sentido, por exemplo, a gente tem o IBEU, na minha cidade foi ali que nasceu, junto com o IBEU de Ubá que nasceu o AFS. Facilita porque nós temos muitos jovens, a gente tá ligado, eu sou a professora, a gente tá ligado à língua estrangeira, a gente tá ligada ao jovem, todo mundo conhece a gente. Como o IBEU é uma instituição muito antiga também, ela deve ser mais ou menos da idade do AFS. Aliás, ela é mais velha, no Brasil ela é mais velha. A gente já tem centros binacionais com 80 anos. Então existe uma facilidade maior e eu acho que encaixa. É uma parceria que encaixa bastante porque incentiva também os meninos, os alunos, os jovens a quererem aprender um pouco mais de inglês, porque na cabeça deles, pra morar fora do Brasil tem que saber inglês. Eles têm que estudar primeiro inglês pra depois... Isso não é muito verdadeiro. Eles podem até ter uma noçãozinha e aprender porque às vezes eles não vão nem pra algum lugar que se fala o inglês. Obviamente que se ele for pra um país onde não se fala o inglês, a comunicação vai ser muito difícil no início, mas é muito bom se ele tiver o inglês no princípio pra poder se virar. É muito interessante porque o AFS é em qualquer lugar onde a gente tem uma porta aberta, onde alguém oferece um espaço pra gente e a gente tem essa facilidade de ter o espaço aberto pra receber as pessoas, pra fazer o contato com os estudantes, pra fazer as reuniões com os pais, as orientações todas. As pessoas também existem, principalmente em cidade de interior, existe muito receio dos pais quererem enviar filhos pra outro país e também pra receber estrangeiros. Mas a partir do momento que parte de uma instituição que tá ali há tantos anos, que a pessoa conhece a gente, a gente já tem certo respeito na comunidade, fica muito mais fácil deles acreditarem e conseguir isto. Bem mais fácil. Aquele espaço ali, tem muita gente que acha que só pode fazer intercâmbio se estudar no IBEU, e não é verdade, só pode receber estudante se estudar no IBEU. Ainda tem essa coisa também que a gente tem que trabalhar, mas facilita, eu acho que o que me ajudou a continuar com o AFS e trabalhar assim por causa dessa facilidade mesmo que a gente tem de estar ali no meio daquela coisa toda, meio de jovem e já estar trabalhando com língua. Eu acho que é muito interessante porque a gente trás pra dentro da nossa comunidade esses países que vêm representados pelos seus estudantes. A gente tem a oportunidade de mostrar os nossos alunos, o que é muito legal. E não deixa de ser também uma maneira de divulgar o nosso curso quando o estudante estrangeiro vem e consegue conversar com os meninos que estão ali aprendendo, eles ficam achando assim: “Será que eu sei falar? Será que eu não sei?”. E eles conseguem se comunicar, isso é muito legal. O próprio estrangeiro que vem, que chega aqui e encontra aquele grupo de jovens que fala uma língua que ele pode entender também. Outra coisa que é muito interessante, que ficou muito, muito ligado principalmente em Ubá, que eu durante 15 anos, vamos colocar 14 anos, eu fui a única voluntária desse comitê. A pessoa fala assim, pra área de recebimento fazia isso, pra área de envio fazia isso, pra área de coordenação isso, pra área de conselheiro isso. Beleza. Tudo eu. Agora que eu tenho alguns voluntários, os jovens também que estão começando e estão gostando. Eu sou tipo assim, 100% envolvida com o processo todo e eu acho que tem que ser uma coisa assim, a gente tem alunos, tem funcionários e tudo, mas a pessoa pra ser voluntária tem que ser voluntária de coração. Não pode ser voluntária só porque: “Ah, eu trabalho aqui, vou ser voluntário”. Não. Tem que ser uma coisa muito livre.
P/1 – Como é que é ter essa responsabilidade, por tanto tempo ficar com você de enviar e de receber? Fala pra gente algumas dessas histórias talvez que te marcaram e que também te incentivam a continuar, incentivaram a continuar firme e forte nessa trajetória.
R – A responsabilidade é muito grande, eu sei que é, mas a instituição é muito organizada, existem as leis, os estatutos. No princípio eu me sentia, alguma coisa que desse errado eu me sentia muito culpada. Alguma coisa que eu não pudesse fazer pela família ou pelo estudante ou por quem quer que seja, eu ficava agoniada de não poder resolver, porque você não consegue resolver tudo. Mas com o passar do tempo a gente vai aprendendo porque você tem um respaldo das leis, das normas, isso passou a ser muito fácil. Hoje eu faço, vamos colocar assim, 90% com o pé nas costas porque você tem que conhecer bem a organização, bem o que ela quer de você... Não de você, o que precisa ser feito. Se torna muito fácil, é só você seguir as regras. Não vejo que tenha complicação nenhuma, não consigo ver hoje complicação. É muito fácil porque o que pode ser feito é isso. O que às vezes fica difícil é você ter que... Eu não sei como se diz... Manipular. Manobrar, eu diria, a família, porque cada um é de um jeito e preparar as famílias é importantíssimo, e manobrar o estudante que é jovem, ele é adolescente, ele só muda de endereço. Ele é idêntico em qualquer parte do mundo, ele quer tudo, ele quer na hora, ele quer coisas que não pode, coisas impossíveis e você tem que saber o que é certo e o que é errado. O que é interessante é que não se torna uma coisa pessoal. A gente tem que colocar isso pra eles, o AFS, não é a Cláudia. Você pode isso? Não pode. “Cláudia, você...” “Eu não”. O AFS não permite. Aí se torna muito fácil. São as regras. Até os pais perguntam: “Posso fazer isso?”. Cadê o manual da família? Cadê o anual do aluno? Cadê o manual disso, manual daquilo? Hoje, inclusive, eu sou como eu te disse, lá no meu comitê eu sou eu, o comitê de eu sozinha, eu sou conselheira e eu sou conselheira regional também, então Minas eu tenho que ajudar a resolver os problemas. Na verdade não são muitos problemas, mais é a pessoa, é trabalhar com a pessoa, que não chega a ser problema.
P/1 – Tem algum estudante ou alguns que tenham te marcado?
R – Muitos.
P/1 – Fala algum ou alguns pra gente.
R – Ih, tem muita história. É muito interessante isso porque existe uma diferença de idade muito grande, da minha pros jovens. Tem intercambista, por exemplo, eu tenho aqui um segundo furo na orelha que talvez fosse chamado de piercing, isso aqui eu fiz por sugestão de duas alemãs: “Ai, você tem...”. Chamavam-me de vó: “Você tem que fazer, você tem que fazer”. E fomos pra farmácia fazer esse buraco aqui. Eu falei: “Vamos sim. Vamos pra farmácia”. E fiz o buraco. Isso aqui é um incentivo de alemãs. Uma delas me chama de vó até hoje, eu sempre me correspondo com todos, a maioria volta pra visitar, uma delas foi uma das que me falou: “Olha, o meu intercâmbio...”. Quando ela voltou pra visitar a família ela falou: “Olha, meu intercâmbio tá começando agora. Tô muito feliz porque ninguém se esqueceu de mim”. Mas ela voltou um ano depois. “Ninguém se esqueceu de mim e a minha mãe hospedeira agora senta à mesa e conversa comigo de igual pra igual”. Ela ficou muito feliz, mas é uma menina muito inteligente, tem muita história boa, muita coisa boa. A gente já tem intercambista que quando eu fui à França pra festa dos cem anos do AFS, nós fomos à Bélgica, eu fui à Bélgica, ela foi aqui pertinho pra gente se encontrar, é uma intercambista da Alemanha que já voltou aqui umas seis vezes... Deixou uma família em Ubá, então ela volta. Voltou agora recentemente, agora em julho pra formatura do irmão, terminou a faculdade. Eu tenho muitas histórias assim, famílias. Vamos lá. Existe uma cidade perto da minha que chama São Geraldo. Uma cidadezinha pequena de dez mil habitantes. Isso já deve ter uns talvez cinco anos, não sei, o tempo passa tão depressa, a gente não lembra. A gente tem um processo de preparar a família, arrumar a documentação pro estudante vir, aquela coisa toda, como Ubá é uma cidade pequena a gente tem uma matriz pra cumprir, seria assim um estudante por semestre. Naquele semestre eu já estava com três estudantes colocados nas famílias e a gente fica naquela aflição se vai dar certo, se a família vai realmente firmar pra ficar, arrumar papel de escola e é sempre perto de férias, escola tá de férias, aquela confusão toda, material, muita coisa pra preparar. Tava tudo organizado aí chega esse garoto que estudava lá no IBEU e falou comigo: “Cláudia, eu gostaria muito de receber um menino na minha casa.” “Como assim?”. Ele falou: “Na minha casa. Nós somos três filhos, tem uma irmã, duas gêmeas e eu... Aliás, somos quatro. Seria um menino porque na minha casa tem vaga no meu quarto, tem um espaço no meu quarto, tem uma cama a mais no meu quarto”. Eu falei: “Meu Deus, como que eu vou arrumar um estudante agora no final do processo pra colocar numa cidade de dez mil habitantes, bem menor que Ubá, sem nenhum tipo de atrativo por nada”. Eu sei que não é isso, mas a gente fica preocupado com isso também porque o jovem que vem de outro país quer conhecer muita coisa diferente, muita coisa nova e numa cidade tão pequenininha. Eu falei: “Mas eu preciso conversar com os seus pais primeiro, é um processo longo, tem que preparar todo mundo e tal. Não é assim eu quero e vem”. Ele falou: “Ah, mas a minha mãe pode vir aqui. Você pode receber a minha mãe?” “Posso, Claro que eu posso”. No dia seguinte a mãe desse menino tava lá. Sentou, eu falei: “Tudo bem, tal”. Conversei com ela, expliquei o processo todo, fiquei ali umas duas horas com ela. Ela falou assim... “Tem um aplication pra preencher muito longo e tal.” “Você tem ele aí? Eu posso preencher agora?”. A mulher preencheu rapidinho, eu falei: “Mas eu preciso de fotos.” “Ah, não, o Rodolfo traz as fotos na próxima aula”. Isso era uma terça-feira, ele voltaria na quinta. Eu sei que em 24 horas eles arrumaram aquilo tudo, eu falei: “Olha, eu vou tentar porque eu já coloquei os meus estudantes e eu não sei se eu vou conseguir um garoto nesse perfil que vocês estão me pedindo”. Eles queriam inclusive por seis meses porque o Rodolfo, a família hospedeira iria mudar de cidade pra estudar faculdade. Liguei pro AFS e falei: “Gente, consegue aí um garoto que seja de uma cidade menor que 10 mil habitantes, que seja mais tranquilo, que queira vir por seis meses e pra morar numa cidade pequenininha”. Era muita coisa que eu tava exigindo ali no momento. Essa família de São Geraldo é uma família de descendência italiana com o sobrenome Temponi. Tudo bem até aí. Eu conhecia o menino que estudava e a mãe de vez em quando aparecia pra buscar o menino e tal. Eu não conhecia o pai nem os irmãos. Aí me mandaram um perfil de um menino e a foto desse menino, ele tirou ela de cima assim, ele com o olho virado, o cabelo escuro, os olhos verdes, de cara ele tinha um piercing acho que aqui. Uma cara muito estranha naquela primeira foto de frente, que eles pedem pra colocar uma foto de rosto. Eu falei: “Minha nossa senhora, que cara é essa?”. É julgar a pessoa pela cara, assim por uma fotografia. Aí eu falei: “Seja o que Deus quiser”. Só a foto de rosto. Comecei a ler o perfil dele e tal, uma cidadezinha de sete mil habitantes, ele italiano, quer dizer, já tinha a ver. Eu fui lendo o nome do pai, nome da mãe, irmão, tal, tal, tal. Endereço, o menino morava numa vila de sete mil habitantes, a rua dele se chamava Via Temponi. Eu falei: “O que? Como assim? Pode mandar que vai dar certo”. Na hora. Eu parti pra cidade, fui lá pra conhecer a escola, preparar os professores, todo mundo apavorado porque: “Como que vai receber um estrangeiro aqui nessa cidade? Nessa escola?”. Só tinha uma escola estadual, não escola particular e tal. Expliquei todo o processo pros diretores, pros professores e tal, fui conversar com os alunos, aí foi aquele alvoroço na escola. E fui na família também conhecer o resto do pessoal, preparar, como é que faz, não sei o que, não sei o que. Conclusão, chegou o Paolo, muito tímido, muito quietinho, educadíssimo. Nunca vi uma coisa dar tão certo assim. Foi um espetáculo. Ele era o rei da cidade, todo mundo conhecia. Na escola era o melhor aluno, inclusive o irmão hospedeiro que não gostava de matemática, ele que dava aula de matemática pro irmão, mudou a atitude do Rodolfo que só gostava de inglês. E o Paolo, ele fez uma diferença tão grande naquela comunidade que parecia que ele era o que? O enviado, entendeu? E dentro da casa, ele fez muita transformação dentro da família. Foi muito legal porque a gente todo mês tem que fazer uma pesquisa com a família, com a escola e com o próprio estudante pra você fazer um relatório mensal. Eu às vezes perguntava pro próprio Rodolfo: “Como vão as coisas na sua casa?”. Ele falou: “Lá tá tudo bem. Agora a gente aprendeu a conversar.” “Como assim?” “É. Porque lá em casa, tipo assim, almoçar, cada um chega num horário, jantar, cada um chega, faz seu prato, uma senta na televisão, outra senta na outra, outro senta no computador, outro senta na outra. Mas a partir do momento que o Paolo chegou, pra gente poder jantar com ele, todo mundo agora senta em volta da mesa e conversa. Foi a partir dali que a família começou a se reunir pra conversar”. Eu não tinha entendido o que ele falou comigo: “Ah, nós aprendemos a conversar”. Isso eu acho que faz uma diferença muito grande, da família aprender a conversar porque tem uma pessoa ali, eles vão passar a conviver com ele durante seis meses. Isso eu acho que pra eles foi muito bom, se ele chegou a vir me contar isso é porque foi legal, e a mãe também tava muito feliz porque ela falou comigo: “Ele não me deixa lavar o prato dele. Ele que lava a louça. Agora nem a roupa dele eu posso mexer mais. Ele aprendeu a mexer com a máquina, ele mesmo que lava”. Foi uma benção pra mãe também, ele queria fazer tudo pra agradar aquela mãe, que era uma coisa eu acho que os três... Não, quatro filhos talvez não fizessem. Eu acho também que essa mãe pode ter se alertado ali que os filhos podem ajudá-la mais em casa. Com certeza não havia necessidade porque ela fazia todo o serviço e não envolvia os filhos, que eu acho que pode envolver. Isso é uma coisa que fez muita diferença, foi muito bacana. Existem mil histórias, mas essa eu achei que foi uma que marcou muito e uma coisa que eu tinha dúvida, porque a cidade seria muito pequena. A gente vê que não tem nada a ver o tamanho da cidade. Outra coisa interessante, veio um menino da Groelândia. Groelândia é um lugar muito diferente do nosso, e que a família achou muito estranho que tudo que o menino trouxe na mala foram meias. Muita meia, muita meia, muita meia. E ele colocava aquelas meias enormes todo dia e falava que tinha medo de aranha. Eu falei: “Será que na Groelândia tem aranha desse jeito?”. Eu não sei. Ele veio com isso na cabeça e a família levou muito tempo pra conseguir que ele tirasse, um calor danado, conseguisse que ele tirasse aquelas meias quentes. Só tinha meia na mala, uma coisa que a gente não entendeu muito, foi muito engraçado. E esse custou mais pra se adaptar, tem uma língua muito diferente, sei lá, ele era todo muito diferente. Mas foi muito bom pra família, que a família tinha passado também por uma situação de assalto a mão armada dentro de casa, tava todo mundo apavorado, todo mundo fazendo terapia, todo mundo tomando um monte de remédio. Foi uma coisa que me preocupou muito também. Eles foram famílias de boas vindas, porque quando você não tem uma família ainda marcada você deixa uma família de boas vindas, mas assim, antes do menino chegar eles falaram: “Não, a gente já tá em comunicação com ele, porque é internet, a gente não o quer ele como boas vindas, a gente quer ficar com ele”. E foi muito bom pra família porque aquele foco que estava naquele problema do assalto sumiu. Eles se focaram no garoto que chegou, aquela coisa de assalto, de pavor passou. E naquela foto que eu te mostrei essa mãe tá naquela foto. Eu acho que é interessante porque pra mim, pessoalmente, existem pessoas que moram na sua comunidade que você não conhece, não tem ideia de quem são e a gente passa a conhecer muita gente. Passa a conhecer as histórias, então pode ser, não vou te dizer que seja uma amizade, mas você cria um vínculo ali. Eu acho que quanto mais vínculo você tiver com as pessoas eu acho melhor. Assim, você sempre precisa de uma mão amiga, uma pessoa te ajudando. Se você conhece mais pessoas você tem mais facilidade de ser atendido, de ser ajudado, eu acho essa parte interessante porque você não pode falar: “Eu faço sozinho. Eu sei tudo. Eu resolvo tudo”. Não. Você precisa das pessoas. Quando as pessoas não te conhecem, o mineiro é muito desconfiado. Ele primeiro te olha assim, depois ele te olha assim, depois ele: “Vamos ver como é que funciona”. É tudo mais assim desconfiado. Mas quando você já conhece as pessoas se torna muito mais fácil e a gente tem a oportunidade de conhecer muita gente. Quando você recebe um intercambista naquela família ali, por exemplo, num dia de aniversário, aí eles te convidam, a família inteira tá ali. Muitas vezes eles te conhecem, no meu caso como eu sou professora há muitos anos na cidade tem muita gente que me conhece, nem que seja: “Ah, aquela ali que é a Cláudia do AFS. Aquela ali que é a Cláudia do IBEU”. Mas eu não conheço. Eu passo a conhecer as pessoas mais de perto e de repente a gente pode até ajudar sem saber que tá ajudando, que é o mais importante.
P/1 – Cláudia, como é que é pra uma cidade como Ubá receber gente da Tailândia assim? Você contou o caso da Groelândia, fala um pouquinho.
R – Olha, da Tailândia é muito interessante inclusive pras pessoas entenderem os tailandeses, porque eles são muito reservados. Parece que lá é tudo muito severo e pra nossa comunidade entender os tailandeses a gente tem que explicar, porque eles não usam alcinhas, por exemplo, as meninas não podem usar roupas de alças, peladas. O cabelinho é todo cortado de um jeito só, não pode usar brinco, pra eles lá não pode ter tatuagem, não pode uma série de coisas. Eles chegam aqui, eles se tornam muito... Primeiro que os olhinhos são todos puxados, chamam a atenção da criançada que é uma coisa impressionante, toda criança apaixona, acha que é um boneco, uma boneca. Eu nunca recebi tailandês homem dentro da minha cidade, na região sim. As meninas passam a ser as bonecas das crianças, é muito engraçado. E as famílias, as jovens das famílias ficam achando que sair com as tailandesas, do jeito que elas se vestem ou que elas querem se vestir ou do jeito que elas vão pra praia é pagar mico. Eu tive uma família lá que foi me levar a menina pra conversar e falar: “A gente tá indo pra praia, a gente queria sair pra comprar um biquíni pra ela e ela falou que não vai de jeito nenhum”. A menina tava apavorada parecendo um bichinho acuado, eu falei: “O que tá acontecendo aqui? Vamos lá conversar”. Mas a família não falava inglês, não entendia nada, eu falei: “O que eu posso ajudar?” “Ah, ela não quer ir, ela quer ir pra praia de roupa”. Eu falei com ela: “Como você vai pra praia?” “Ah, eu vou de bermuda...”. Bermuda tipo ginástica colante e blusa. “É assim que você nada na Tailândia?” “É.” “Tá bom. Você tem essa roupa pra nadar?” “Tenho”. Ela vai do jeito que ela vai. Ela não vai pagar mico? Não. Qualquer pessoa que vir essa menina na praia vai ver que ela não é brasileira e vai entender que a maneira dela vestir é dessa daí. Então é a nossa cultura de não aceitar a pessoa como ela é, e isso faz com que as pessoas passem a entender como elas são. Acho muito bonitinho o jeito delas cumprimentarem, depois elas aprendem a abraças, beijar, gostam de tudo, mas que realmente elas são muito diferentes, são. A escrita deles, eles não tem as romanas, mas são muito dóceis, são carinhosos, não todos, mas a maioria é muito assim respeitador. Asiático. Muito interessante que bate o olho: “Ah, ela é japonesa! Ela é chinesa!”. E eles não gostam: “Não. Eu sou tailandesa”. Até o pessoal entender que é tailandês é muito engraçado. E a comida também é diferente, eles gostam muito de pimenta, uma pimenta que a gente pode colocar todas as pimentas pra ele, nenhuma é igual a pimenta deles. O que é a outra coisa? Mas eles, você viu naquela foto as meninas dançando, é tudo muito delicado. Depois que eles chegam aqui eu falo: “Vamos dançar.” “Mas eles vão dormir com a nossa música, a nossa música é muito devagar.” “Não tem problema, mas eles precisam conhecer”. Eles fazem as apresentações sobre a Tailândia, é muito legal. Eu acho que é muito tranquilo receber os tailandeses. Aliás, hoje eu acho todos tranquilos, pela experiência que a gente tem, é só você lembrar que eles são jovens, mas cada um com a sua personalidade, mas é adolescente, só muda de endereço. São idênticos.
P/1 – Cláudia, fora todo esse seu trabalho, o trabalho como voluntário, o que você gosta de fazer nas horas de lazer?
R – O que eu gosto de fazer nas horas de lazer? Ah, eu gosto muito de ficar em casa, porque eu trabalho fora o dia inteiro. Não sou muito de cuidar de casa. Mas gosto de ficar em casa, gosto de ler, gosto de assistir um bom filme. O que eu gosto mesmo de fazer é de viajar. Adoro passear. Viajo muito. Porque, eu não sei, talvez seja pelo fato de, se eu tiver de férias na minha cidade, eu tô trabalhando de qualquer maneira, eu não fico em casa, eu estou trabalhando. Então eu gosto de sair. Gosto muito de viajar. Gosto muito de praia. Apesar de eu não gostar muito de sol, eu gosto muito de mar, do mar, da água. Identifico-me muito com a água. Com o ar não, mas com a água sim. Gosto muito.
P/1 – E como é que foi ter ido pra Paris no centenário do AFS?
R – Olha, acho que foi um pontapé pra eu conhecer a Europa. Eu gostei muito quando eu vi essa possibilidade, primeiro que eu tinha muita curiosidade, porque toda aquela programação que eles apresentaram pra gente eu tinha muita curiosidade... Eu sou muito assim de gostar de conhecer aquilo que eu divulgo, aquilo que eu trabalho com ele. Eu vi a possibilidade de conhecer o início de tudo ali. Foi muito bom, meu marido concordou, que ele também é um voluntário, a gente convidou outras famílias, mas teve uma família que quis ir com a gente. Éramos marinheiros de primeira viagem, mas a gente sabia também que lá a gente ia encontrar um grupo de voluntários e de pessoas ligadas ao AFS que estavam com o mesmo objetivo. Isso aí já era uma segurança pra gente, porque eles falavam sempre que a França, Paris principalmente, é meio com quem não fala francês, aquela coisa toda, e a gente não fala francês. Falamos: “Olha, vamos nós quatro aqui nos dar as mãos, cada um dá força pro outro e vamos”. E foi muito, muito bom. Eu gostei demais. Eu já tinha tido a oportunidade de conhecer um dos fundadores do AFS, um daqueles motoristas de ambulância, quando o AFS Brasil fez 50 anos. Ele veio com a esposa, senhor Arthur, e lá a gente conheceu, eles têm a história viva, eles conservaram algumas áreas onde as guerras aconteceram, as trincheiras, as histórias todas ali de cidades que foram totalmente destruídas várias vezes e reconstruídas. A história viva está ali. Achei Paris maravilhoso, é um museu a céu aberto, a gente aproveitou bastante porque nós ficamos. A comemoração era cinco dias, nós ficamos 15 dias só em Paris pra conhecer tudo, muito bom, andamos muito, conhecemos muito. A coisa você fala assim, é uma guerra, morrem muitos jovens, porque os soldados são jovens, aí você fica vendo muita história. É uma coisa que você vê de perto quantas pessoas perderam a vida pela guerra, quantos jovens. Você vê infinitos cemitérios e ossuários só com ossos de jovens de 18 a 25 anos, uma quantidade assim que não tem explicação. A gente fica pensando que loucura é a guerra. Esses acho que 74 homens, esses americanos que se reuniram pra começar a trabalhar pela paz e não pela guerra, acho que foi uma ideia muito brilhante. Queiram eles onde estiverem, que eu acredito que não exista mais nenhum sobrevivente hoje, pode até ser que tenha algum, porque o AFS fez cem anos, mas teve a Segunda Guerra e tiveram aqueles outros que continuaram aquele trabalho inicial ali, que pode ser parente, alguma coisa, não sei. Foi uma ideia muito brilhante e eles devem estar muito, onde quer que estejam, devem estar muito felizes de o trabalho estar sendo continuado. Vocês já devem conhecer bem a história do AFS, ela é toda de base voluntária que eu acho que é aí que tem o valor. Todo mundo, as próprias famílias são voluntárias, é muito gratificante isso. E obviamente que foi numa cidade maravilhosa, em Paris, gostei demais. Tirei aquela ideia de França não recebe a gente bem, muito pelo contrário, fomos muito bem recebidos, são super-receptivos. Foi muito bom. Foram 15 dias que eu vou lembrar pro resto da minha vida. Muito, muito bom. E tivemos ainda a felicidade de encontrar com uma das primeiras intercambistas que tiveram em Ubá, que é da França, tava em Paris, encontrou com a gente, a gente passeou junto, foi muito bom. Gostei muito.
P/1 – Fala um pouquinho da sua família, como que você conheceu o seu esposo, só pra gente já começar a encerrar a entrevista.
R – O meu esposo? Interessante, é o segundo casamento, meu e dele. Tem o que? Fizemos 13 anos de casados e nos conhecemos já há 18... Não. A gente se conhece há uns 50 anos, ele era meu vizinho. Era meu vizinho de rua em Ubá, a família dele é vizinha da minha mãe até hoje e ele saiu da cidade com 19 anos, foi embora, fez a vida dele, casou, teve filhos. Eu continuei em Ubá, casei, separei, não tive filhos. E depois de muitos anos a gente se reencontrou por acaso, aí não foi muito difícil de ficar conhecendo porque esse negócio de conhecer família, quem é, saber o pedigree, aquele negócio é meio complicado. Mas aí ele sabia da minha, eu sabia da dele, que os nossos pais eram amigos, pelo menos bons conhecidos na época e a gente começou a namorar, deu certo, por acaso, não é tudo que encaixa. A gente se casou tem 13 anos, já comemoramos 13 anos e ele é uma benção. Eu falo que ele é melhor do que eu, eu sou mais agitada, mais nervosa, não sei se é pelo meu lado italiano, meio estovada com as coisas, e ele é muito tranquilo, ajuda muito. Hoje ele tá aposentado, ele também gosta muito de viajar, que isso é muito bom, a gente combina muito nisso. Tranquilo. E hoje ele é voluntário porque ele me ajuda, ele fala: “Eu não sou voluntário.” “Você é voluntário, que só de me tolerar tomando conta de AFS já é um voluntariado”. Porque ele abre mão das coisas, mas ele me ajuda muito. Ele gosta muito das festas, de carregar os intercambistas pra praia, ajudar nessa parte, mas ele me ajuda muito que eu falo só dele me apoiar já é um voluntariado dele, que às vezes eu abandono ele muito pra tomar conta do AFS. Ele fala: “Eu já sei que eu não estou em primeiro lugar. Primeiro o AFS. Não. Primeiro é o IBEU, o segundo o AFS, eu já estou lá no terceiro lugar.” “Tá bom, mas você tá lá”. Ele é muito paciente, o Bernardo.
P/1 – E quais são os seus sonhos, Cláudia?
R – Meus sonhos?
P/1 – É.
R – Nossa, eu nem sei se eu tenho mais... Bom, a gente sempre tem sonhos. Continuar trabalhando pelo AFS por um tempo até a gente conseguir, que a gente não pode falar que é pra sempre porque você não é pra sempre. Até que eu possa ter uma pessoa pra continuar, aliás, eu já até tenho a Kelly, que é minha voluntária, e falou: “O dia que você não conseguir mais você pode deixar que eu vou fazer pra você.” “Que coisa boa”. Não sei nem se ela tá se lembrando disso, mas que eu vou cobrar, vou. Acho que só continuar passeando, continuar tendo a minha família com saúde perto de mim, poder ajudar a todos, conseguir também uma pessoa pra deixar o IBEU com eles, com essa pessoa pra cuidar também, pra que ele continue existindo, como o seu Ulisses fez comigo. Passear mais, conhecer mais lugares, viver o máximo que a gente puder com saúde, ter o meu marido sempre comigo pra gente passear. Gosto muito de passear e conhecer lugar novo, adoro passear. Não posso ter sonhos tipo andar muito, subir muito que eu não aguento mais, mas eu gosto muito de fazer essas coisas também, conhecer lugares novos, igual: trilhas, nadar em cachoeira, em rio. Eu gosto dessas coisas, eu sou meio atirada. Uma coisa que eu tinha muita vontade de fazer, que você falou um sonho, eu tenho vontade de conhecer a África, mas pra fazer um safári. Hoje eu penso em conhecer a Tailândia, que o tanto que essas meninas mostraram da Tailândia parece que é muito legal. Na verdade é isso aí, como eu conheci o princípio do AFS, agora eu quero conhecer o cantinho onde cada um desses estudantes que tiveram aqui moram, um pouquinho de cada lugar, que é muito bom.
P/1 – Pra gente encerrar eu só queria te perguntar como é que foi pra você receber a notícia de que você tinha sido escolhida pra dar um depoimento aqui pra gente, que a tua história ia fazer parte dessa comemoração dos 60 anos?
R – Em princípio não me foi colocado... Só me perguntaram assim: “Você quer fazer um depoimento pro AFS?” “Tudo bem”. Aí depois que me falaram que era pra fazer parte da história, pra te falar uma verdade no início não me encaixou, eu não entendi muito o que era a ideia do negócio. Mas eu achei, depois eu fiquei pensando: “Mas será que eu tenho uma história que seja suficiente pra ficar gravada como história do AFS?”. Fiquei um pouco surpresa, mas eu acho que ainda a minha ficha não caiu, ela só vai cair depois, eu acho isso. Mas eu fiquei feliz de qualquer forma porque depois eu entendi que não foram muitas pessoas escolhidas, foram algumas que tinham alguma coisa pra contar. Não sei nem se a minha história é uma história pra ser tão contada assim, pode ser que no futuro ela vá fazer uma diferença.
P/1 – Cláudia, em nome do AFS e do Museu da Pessoa eu agradeço por você ter contato a tua história pra gente.
R – Eu que agradeço o convite e espero ter contribuído com alguma coisa.
P/1 – Com certeza.
R – Obrigada, gente.
P/1 – Obrigada.
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