Projeto Conte Sua História
Depoimento de José Carlos Neves
Entrevistado por Carol Margiotte e Nori Navarro
São Paulo, 13/03/2019
Realização Museu da Pessoa
Projeto PCSH _ HV738 _ José Carlos Neves _ PT 1
Transcrito por Liliane Custodio
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – “Seu” Neves, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – É um prazer recebê-lo aqui hoje. E para a gente começar, eu queria que o senhor lesse o que o senhor preparou para a gente hoje.
R – Ok. É tudo?
P/1 – O que o senhor quiser. Eu não me importo se for tudo. Pode ficar à vontade.
R – Então, para a nossa introdução, ontem resolvi fazer alguma coisinha aqui.
Legar um poema
Escrever um poema para ser legado,
algum fragmento da vida gravado.
Pedem-me que eu faça em depoimento,
para posteridade qual monumento.
Então aqui me apresento,
todo proa, ao legar-me todo ao Museu da Pessoa.
Tenho dúvidas se o legado terá valor,
para quem um dia o veja numa só cor.
Acho até que os meus entrevistadores
se cansarão de uma vida sem louvores.
E cortarão a conversa logo de antemão,
pois de papo interessante, nada terão.
Valerá algo a história do menino
nascido trasmontano, um campesino.
Na sua pequena aldeia lá de Sampaio,
num três de abril de 1945, já quase maio.
Antes da Segunda Guerra Mundial acabar
na Europa, como em Portugal.
Nasci órfão, como um filho ingrato,
pois ao viver, perdi a mãe no parto.
Solidárias, outras mães me adotaram,
com o seu leite, elas me amamentaram.
Amor de avós, tios e tias nunca faltou,
até que o pai ao outro mundo me levou.
Mas vou parar aqui a minha história,
ou não registrarão a minha memória,
se seguir a escrita, de forma tão banal,
quem poderá se interessar pela verbal?
Então que venham, pois, os arguentes,
saciarei a curiosidade dos cá presentes.
Vamos, coragem, vai ser muito ____00:02:37___,
o seu país é também onde você está.
Serás peça de museu nesse teu Brasil,
que te perpetuarás por anos, mais de mil.
Serás no futuro personagem do passado,
nunca serás esquecido, sempre lembrado”.
P/Ah,obrigada,“seu”Neves, por começar assim. Muito obrigada.
R – Eu que agradeço pela oportunidade.
P/1 – “Seu” Neves, então vamos começar a nossa entrevista. Muito obrigada por começar lendo esse poema tão bonito que o senhor trouxe para a gente.
R – Eu que agradeço a oportunidade.
P/1 – Agora a gente vai destrinchar um pouco de tudo que o senhor já trouxe para a gente nesse começo bonito.
R – Vamos lá.
P/1 – Para começar, eu quero que o senhor, por gentileza, me fale o seu nome completo.
R – José Carlos Neves.
P/1 – O local e data de nascimento.
R – O local foi Sampaio, uma pequena aldeia de Portugal, em Trás-os-Montes, bem ao Norte, no Nordeste de Portugal. Eu sou quase um nordestino. Em vez de ser nordestino do Brasil, eu sou nordestino português. E o nascimento foi em 03 de abril de 1945.
P/1 – E o senhor sabe por que os seus pais lhe deram esse nome: José?
R – Não tenho ideia. Não tenho a menor ideia do porquê. Mas Portugal é cheio de Josés, Marias, Joaquins, Manuéis, enfim.
P/1 – E o que o senhor sabe sobre o dia do seu nascimento? Como foi o dia do seu nascimento?
R – Não, não tenho recordação e não tenho registro de informação. Tudo que eu sei é que eu nasci e a minha mãe faleceu do parto. Não na hora, mas algum tempo depois - um ou dois meses depois - em consequência do parto. Naquela época, era muito difícil, o índice de mortalidade infantil era elevadíssimo, porque não havia médicos, não havia, enfim, assistência médica adequada nessa época.
P/1 – E sobre essa história do falecimento da sua mãe, em que momento essa história era contada para o senhor?
R – Na verdade, eu não tenho lembrança de que alguém me tenha contado. Na medida em que fui crescendo, fui tomando consciência de que ela não existia, mas não tenho registro, nem tive informação de como faleceu, ou de que forma faleceu. Como não tinha as referências de mãe, então só passei a saber gradativamente da ausência dela.
P/1 – E qual era o nome dela?
R – Ester Maria Sampaio.
P/1 – E do seu pai?
R – Do meu pai era Antônio Joaquim Neves.
P/1 – E o que o senhor sabe sobre a história dos dois?
R – Eu sei que eles namoravam antes, minha mãe já tinha sido mãe da minha irmã mais velha que eu - dois anos mais velha - eles não haviam se casado ainda, meu pai e minha mãe. Quando eu nasci, sim, já eram casados.
P/1 – Eu estava perguntando sobre a história dos dois.
R – Ah, sobre a história dos dois.
R – Bom, as aldeias em Portugal são muito pequenas, então todos se conhecem, todos são como família, são como uma grande família, há uma interligação entre quase todas as pessoas. Então eles se conheciam já desde crianças também, cresceram juntos, mas não tenho outros registros de como foi, ou de como era o namoro. Enfim, não tenho.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre o seu pai, como ele era, o que ele fazia.
R – Bom, o meu pai, como todos os pais da época, era bastante autocrático. Então era bem rigoroso. Eu não o conheci muito, porque logo depois do falecimento da minha mãe, ele se mudou para Lisboa, então ele ia uma vez por ano à aldeia para levar algumas coisas para mim e para minha irmã. Então, eu só voltei a morar com o meu pai aos nove anos. Foi uma infância um pouco, não diria solitária, mas órfão de pai e de mãe até os nove anos. Só a partir dos nove anos que eu... Ele sempre foi um pai rigoroso, mas, por outro lado, nunca nos deixou faltar nada que fosse necessário, efetivamente. Nunca nos obsequiou com coisas ricas, ou com coisas... Enfim, mas sempre foi um pai rigoroso. Tive alguma dificuldade na convivência depois com ele, mas isso é mais na frente. Agora, enquanto criança, realmente eu não pude senti-lo muito como pai, pelo menos até os nove anos. A partir dos nove anos, sim, aí já é outra história.
P/1 – Mas quando seu pai se mudou para Lisboa, deixou o senhor e a sua irmã aos cuidados de quem?
R – Aos cuidados dos meus avós, tanto maternos... A minha irmã ficava mais com os meus avós maternos, e eu ficava mais com os meus avós paternos. Então, as próprias... Quando eu nasci e ela faleceu, as próprias mulheres da aldeia me criaram, me amamentaram. Tenho uma recordação muito linda das mulheres da minha aldeia, elas foram fantásticas. Então eu cresci, fiz o primeiro... Eu cresci com os meus avós paternos, e ajudava, já ajudava, desde a minha mais remota memória, eu já ajudava no campo, os meus tios, os meus avós, enfim. E estudava. Fiz até a terceira classe - lá chamava primeira, terceira, até o quarto, equivalente ao primário - mas na minha aldeia eu fiz até a terceira classe. Depois eu completei o primário em Lisboa, que era a quarta classe. Então, essa memória do meu pai durante a infância, não tenho assim grandes recordações, realmente. Só a partir do momento em que comecei a morar com ele, já em Lisboa, aí sim tenho toda a história dele.
P/1 – Se o senhor se sentir confortável, eu queria que o senhor falasse um pouco sobre essas mulheres da aldeia que...
R – As mulheres da aldeia são a coisa mais bela que pode existir, porque não é só da minha aldeia, é de todas as aldeias. A minha história é igual a de muitos outros. A mortalidade era realmente muito elevada, e as mulheres das aldeias, não só da minha aldeia, como de todas as aldeias que eu conheço, elas eram de uma intensa solidariedade. Solidariedade em tudo. Elas não tinham o menor problema em adotar e amamentar o filho da outra mulher que se foi, fossem parentes ou não. Embora dentro da aldeia quase todos tinham um ligeiro parentesco entre si.
P/1 – Parentesco.
R – Mas é uma memória das... Eu tenho um texto que fala sobre a mulher universal, mas tenho um texto específico também, que fala sobre a mulher da aldeia.
P/1 – Se o senhor quiser ler esse trecho.
R – Esse fala sobre a mulher universal. Se quiser, posso ler também.
P/1 – Sim.
R – “Mulher universal. Sim, claro, há um Dia Internacional da Mulher. Vejam só, foi preciso que alguém tomasse a iniciativa de um decreto planetário para que a mulher tenha sua efeméride, como se apenas esse dia lhe fosse meritório, ou concedido por mera cortesia e condescendência. Desde Eva, mãe primeira, e a Virgem Mãe, de dogmática fertilidade, a mulher perpetua a humanidade. Ela é religião, mito, história. Já foi deusa, ninfa, bacante, santa, vestal e glória. Já foi Valquíria, escrava e princesa, já foi rainha, cruzada, feiticeira e fada. E será sempre eterna musa dos poetas. Apesar de tão diversificados papéis através dos tempos, poucas vezes elas puderam ser protagonistas do seu tempo, relegadas quase sempre ao papel de coadjuvantes nas relações humanas, como subalternas, parideiras, donas de casa, ou servir de objeto de apetência dos homens. Muitas delas levadas à morte sem terem passado pela vida. Nada melhor que o tempo para fazer-se justiça. Foi-se a época em que as mulheres não tinham futuro, só tinham destino” – essa era típico da minha aldeia – “De coadjuvantes, passaram a ser protagonistas na construção da modernidade, da transformação da civilização, do progresso e do futuro. Com iniciativa, criatividade e rebeldia, e sem perderem a sensibilidade, a doçura e a ternura, foram conquistando merecido equilíbrio e igualdade nas relações familiares, sociais, educacionais, sexuais, políticas, religiosas e profissionais. Unidas e antenadas, percebem, afinal, que podem ser tão, ou mais capazes, que o seu par, o homem. Chegou a hora de nós homens esquecermos o tolo conceito e preconceito de machistas e provedores. É tempo de desenvolvermos uma consciência de que não é possível sermos livres, se a mulher não desfrutar da mesma liberdade e direitos; de sabermos que ela não é mais uma dona de casa, que ela é também a dona da casa, uma empresária, uma executiva, atleta, educadora, doutora, cientista, legisladora e até governante máxima em muitos países. É hora de nós, homens e mulheres, darmos as mãos, caminharmos juntos e construirmos um mundo melhor. Gêneros não podem dividir-nos; ao contrário, se somados, o resultado será a humanidade mais pacífica, mais igual e, por isso, mais justa.”
P/1 – Muito bom, “seu” Neves. Muito obrigada por ter lido. Muito lindo.
R – Isso, na verdade, reflete o meu posicionamento sobre a mulher, quer sejam das aldeias, quer sejam de qualquer outro lugar.
P/1 – Muito obrigada por ter lido, “seu” Neves.
R – Obrigado.
P/1 – E ainda dessas mulheres da aldeia que ajudaram a criar o senhor, eu não sei se existe alguma em específico que o senhor se lembre com carinho.
R – Ah, as minhas tias maternas. Como eu não tinha tias paternas, eu tinha tias maternas. Então todas elas foram de... Principalmente a minha tia Tereza, a minha tia Maria dos Anjos, essa que faleceu agora recentemente - a minha tia Tereza já tinha falecido antes. Agora, recentemente, eu estive em Portugal, em agosto, e a minha tia Maria dos Anjos, que era a mais velha das minhas tias, estava internada, já com um tempo, no asilo. Mas quando eu estive agora em Portugal, eu fui visitá-la num hospital. Mas antes, uma das minhas primas me havia contado que ela não queria morrer antes de me ver, voltar a me ver. E foi essa tia onde eu achei aquela foto, a única foto da minha mãe. E ela já estava com Alzheimer, estava internada no hospital em Vila Real - já é uma cidade maior - e ela não pôde nos reconhecer, como não reconhecia. Mas, provocada, ela ia retomando coisas do passado.
P/2 – Flashes.
R – Como flashes assim, com flashback que vinham vindo à sua cabeça, foi algo emocionante. Foi algo muito interessante. Muito, muito, muito. Muito emocionante, para mim, para Eiko, que estava junto comigo, e uma das minhas primas também. Foi algo muito, muito emocionante. E ela havia dito que não queria morrer sem antes vê-los. E, de fato, dois meses depois que ela... Três meses depois ela faleceu. Então a minha relação, esse meu respeito pelas mulheres, vem um pouco de tudo isso.
P/1 – Se o senhor precisar, pode ficar à vontade. Tem lencinho também.
R – É melhor.
P/1 – E, “seu” Neves, como era esse dia a dia de você acessar essas tias? Como era a rotina? Como você sabia quem deveria procurar, quem ia lhe ajudar?
R – Bom, como eu disse, eu morava com os avós paternos. Então, eu me relacionava, no dia a dia, mais com os avós paternos. Nas aldeias, as distâncias são curtíssimas, a gente anda quinhentos metros, já percorre toda a aldeia. Mas sempre que eu procurava algum consolo, algum carinho, alguma coisa, eu me deslocava sempre para as minhas tias, para as minhas tias maternas, porque lá eu sempre tinha um carinho maior. No lado paterno, era sempre a obrigação de nos criar. E com isso, também desde muito pequeno, eu fui desenvolvendo o sentido da responsabilidade de ajudar, do trabalho, de ajudar em tudo que a família pudesse. Fala-se muito sobre a escravidão da infância, do trabalho infantil. Eu não tenho essa sensação. Poderia ser considerado como um trabalho infantil, mas isso para mim foi de um valor extraordinário, foi muito útil, me ajudou a sentir os valores do trabalho, a sentir os valores da família, o quanto é necessário. Então, eu jamais me queixei sobre a... Embora tivesse todas as possibilidades de me queixar da infância, não, não tenho queixa, acho que isso me fortaleceu, me ajudou a ir em frente.
P/2 – O senhor tem lembranças do que você fazia? Um exemplo assim do que era esse trabalho.
P/1 – Quais eram as obrigações.
R – Ia para o campo com os meus tios.
P/2 – Ah, tá.
R – Ia para o campo e pegava na enxada.
P/2 – Ah, ia junto.
R – Pegava na enxada, ia para as hortas fazer o cultivo.
P/2 – Todos os afazeres.
R – Ia para, enfim, ajudar em azeitona, apanhar azeitona, a colher uvas. Então, além de tudo, além desse sentido do trabalho, tem um sentido, como eu diria, bucólico. O de você estar no campo, o de apanhar figos na figueira, apanhar pêssego no pessegueiro, apanhar nozes na nogueira, cereja na cerejeira. Enfim, eu não guardo isso como algo ruim da infância, esse trabalho da infância, eu guardo como algo bom, mais poético e mais bucólico do que algo ruim, ou de que eu tenha sido explorado.
P/1 – Eu queria que o senhor descrevesse alguma dessas atividades. Como era fazer a colheita ou da azeitona... Como vocês se organizavam para ir?
R – Então, para colher azeitona, normalmente se fazia mutirão. Isso era feito no inverno. O inverno lá é muito pesado, então, não podia ser uma atividade solitária, tinha que ser uma atividade coletiva. Hoje não. Hoje se faz tudo por máquinas. Mas naquele tempo não, naquela época se estendia um tipo de lona em volta das oliveiras, tinha umas varas com umas lâminas na ponta das varas e você ia recolhendo, cortando os galhinhos das azeitonas que caíam e depois então se juntava tudo nessa lona e ia para outro lugar, que depois iam para os lagares. Lá também tinha o lagar. O lagar era onde se espremia a azeitona e saía o azeite, normalmente muito forte. E uma das lembranças que eu tinha, uma das coisas mais saborosas que eu tinha, era pegar pão, tostar um pouco no fogo - pão de centeio, era um pão rústico de centeio - você passava um pouco o pão no fogo, depois molhava no azeite, molhava no azeite ainda quente, que passa por um processo quente o azeite; depois, punha açúcar, que era também algo extraordinário, era mais açúcar de beterraba que se utilizava naquela época, e comia. Aquilo era paladar dos deuses, manjar dos deuses. São lembranças, assim, dos sabores de infância, que são realmente muito bons.
P/2 – Aí o senhor tinha quantos anos? O senhor tinha quantos anos aí? Sete, oito?
R – Entre cinco e nove anos. Porque você começa a ter lembranças a partir de uns quatro, a partir daí. Claro que eu não tenho lembranças anteriores, mas a partir dos quatro, assim, você já começa a ter algumas lembranças bastante boas.
P/1 – E, “seu” Neves, o senhor comentou do coletivo, que tudo era feito no coletivo, a parte do trabalho. Além do trabalho em si, mas durante o trabalho, o coletivo cantava alguma coisa?
R – Cantava. Cantava. Eram canções típicas, muitas vezes até inventadas na hora, produzidas na hora. Mas onde se cantava mais era na segada. A segada era onde se segava o trigo. Então na segada do trigo... Tem uma canção do Alentejo que é muito linda, sobre os segadores. Então nesse mutirão... Normalmente se fazia mutirão, se fazia mutirão para um, depois se fazia mutirão para outra família. Na segada, a mesma coisa. Na segada de trigo, centeio, da cevada, que também eram feitos com... Eram ainda com foices, não tinha essas máquinas, essas máquinas automáticas de hoje. E é muito interessante, porque... É pena que não tenha aqui a... Está para lá. É muito interessante, porque esse trabalho também era feito pelas mulheres. Da ceifa do trigo, de tudo isso. Então, mais do que essas atividades, mais do que ser, digamos, um castigo de trabalho, eram prazerosas. Eram prazerosas para as pessoas. Porque era o momento de socializarem umas com as outras. Era realmente muito interessante, muito bonito esse tipo de lembrança.
P/1 – Queria que o senhor cantasse a música que o senhor comentou.
R – Uh lala (risos).
P/2 – Lembra-se de alguma?
R – Vamos ver. Essa que fala da ceifa [cantando]: “Eu não sei que tenho em Évora, que de Évora me estou lembrando. Quando chego ao rio Tejo, as ondas me vão levando. Quando chego ao rio Tejo, as águas me vão levando. Abalei do Alentejo, olhei para trás chorando” (choro). “Alentejo...” (choro). “Alentejo da minh’alma, tão longe me vais ficando. Ceifeira que andas à calma, ai, à calma...” (choro). “Ai à calma, ceifando o trigo. Ceifa as penas da minh’alma, ceifa-as e leva-as contigo. Ceifa as penas da minh’alma, ceifa-as, leva-as contigo.”
P/1 – (Palmas).
P/2 – (Palmas).
P/1 – Que lindo, “seu” Neves. Que lindo isso.
R – Então essa não é uma canção trasmontana, é uma canção alentejana - do Alentejo - mas que são todas parecidas, elas são iguais. E, realmente, essa canção me emociona muito, porque me traz toda uma quantidade de coisas. Enfim, estou refeito.
P/1 – E o senhor era uma criança participando dessas atividades. O que era dado para as crianças fazerem? Quais...
R – Principalmente, ou você levava as merendas, a comida para as pessoas, ou você apanhava, ajudava a apanhar azeitona, ajudar a colher. Todo tipo de serviço. Você podia ir fazendo tudo. Então, você estudava pela manhã, era obrigatório... Na verdade, as crianças da minha aldeia eram os escribas e leitores, porque os adultos eram quase todos analfabetos, não tinha adulto alfabetizado, praticamente. Meu pai foi alfabetizado aos trinta e seis anos, em Lisboa. Mas, dentro da aldeia, não havia adultos alfabetizados, praticamente podia haver dois, ou três, alguma coisa assim. Mas os leitores e escribas da aldeia eram as crianças. Desculpa. Então, de manhã estudava, ia para a escola, dentro da aldeia mesmo. A escola era uma espécie... Sobre um palheiro - palheiros, onde guardava a palha, onde se guardava os próprios animais etc. E a escola era sobre um palheiro. Era uma sala comum, um pouco maior do que essa, porque as crianças também não eram tantas. A aldeia, para vocês terem uma ideia, tinha cento e poucos habitantes, não mais que isso. Aliás, também, não mudou muito. Embora hoje seja uma aldeia moderna, com todo o conforto, toda a modernidade que se possa ter em qualquer outro lugar, ela não cresceu. Como tem muitos emigrantes, então ela continua praticamente com a mesma população fixa, de velhos, de mulheres - mesmo as mulheres também migraram para outros países, mas que voltam sempre. Então, há uma população flutuante e uma população fixa. E essa população fixa não passa dos cento e dez, cento e vinte habitantes. É menos do que meu prédio (risos).
P/1 – O senhor estava comentando dessa rotina, que de manhã as crianças iam para a escola.
R – É. De manhã para a escola. Aprendíamos... Bom, praticamente aprendia a ler, a escrever, um pouco de História, um pouco de História de Portugal, um pouco de Geografia. Geografia não muito, porque ela era muito incipiente ainda o ensino, lá nas aldeias. Mas aprendia, basicamente, a escrever. Que era o principal, a função da escola, ensinar a ler e a escrever. Agora, leituras, eu só tenho lembrança de um único livro e de uma única história. Não tenho, realmente, lembrança de leituras mais que me tenham ficado assim na memória enquanto... Eu só me lembro de uma história que dizia assim... Que terminava assim, na verdade, que agora também não me vem à memória. Ah: “Gosto mais da gatinha, mas não diga nada à boneca”. Era uma história que terminava assim: “Gosto mais da gatinha, mas não diga nada à boneca”. Era uma história de menina, em que ela imaginava o possível ciúme da gata e da boneca. E me lembrava um pouco do som do comboio. Comboio é o trem, que era: “pouca terra, pouca terra, pouca terra, pouca terra, pouca terra”. Enfim, desse período na aldeia, realmente, tenho poucas recordações da atividade escolar, do que se fazia. Eu sei que, obrigatoriamente, tínhamos que ir para a escola. Uma professora... Era uma professora ainda jovem também. Eu lembro que era jovem, mas não lembro o quanto jovem era, e que morava... Ela não era da aldeia, vinha de Mogadouro. Mogadouro era o Concelho, a vila mais próxima e mais modernizada, mas que ficava na aldeia enquanto havia aulas. Ficava na casa de um, de outro, sei lá, não me lembro também bem. E brincadeiras. Praticamente a gente brincava muito de correr, de andar, mas não tinha brinquedos. O único brinquedo que eu lembro era um pião, que o meu tio José, irmão do meu pai, fez para mim. E um estilingue. Eram os únicos brinquedos que eu tenho recordação da minha infância. Não tenho recordação de nenhum outro tipo de brinquedo.
P/1 – Mas o pião, o seu tio lhe deu em alguma ocasião especial?
R – Ele me deu... Não lembro em que ocasião. Ele fez para mim.
P/1 – Sim.
R – Ele mesmo fez. Fez o pião. Esse meu tio Zé, também tenho uma forte ligação com ele, uma forte ligação afetiva, porque era ele que me cuidava. Eu tinha outro tio, esse já era mais mandão, mais autocrático. E esse meu tio Zé, ele tinha dez anos de diferença de mim, era também um adolescente ainda, mas que me cuidava. E passou me cuidando durante muito tempo, muitos anos ainda. Então, desse período da aldeia, da infância, não tenho muitas outras recordações de brincadeiras, de coisa. Eu me lembro de um namorico, namorico de oito, nove anos.
P/1 – Sim.
R – Que era a Glória, que depois ela veio para o Brasil, muito antes de mim também. E a gente se reencontrou aqui também e reatamos um namorico de adolescentes, já de adolescentes, posteriormente. Mas que foi só um namoro de adolescência e ficou. Ficou por aí. Depois encontrei a Eiko.
P/1 – Mas eu posso tentar explorar um pouquinho mais sobre a aldeia?
R – Ah, claro.
P/1 – Se não tiver o que falar, não tem problema, mas só para...
R – Não, o que você quiser.
P/1 – É que eu queria saber em quais momentos os adultos procuravam vocês crianças por essa questão da escrita e da leitura.
R – Bom, era um tema obrigatório. Quer dizer, as famílias tinham que mandar as suas crianças para... Ora, não havia muita interação entre adultos e crianças. Como eu disse, os adultos eram, em sua maioria, analfabetos. E muitas vezes nem mostravam muito interesse em como poderiam estar os estudos das crianças. Então não havia muita relação, assim, ou muita conversa entre adultos e crianças. Era mais de crianças entre crianças mesmo. Era quase um mundo... Uma dicotomia, assim, entre o adulto e a criança. O adulto, às vezes, usava da sua autoridade, era autoritário, era assim mesmo naquelas épocas. E nós, creio que ainda sofremos um pouco disso também, mas não havia assim uma interação muito grande entre os adultos e as crianças. É claro... Eu, por exemplo, nunca saí da minha aldeia, eu só saí da minha aldeia para ir para Lisboa já depois, já com nove anos. Fora disso, nunca saí da minha aldeia. Embora, as demais aldeias ao redor fossem muito perto. Então, eram dois, três quilômetros, assim, que ficavam distantes umas das outras. E havia várias. Era como se fossem comunidades específicas. A gente via o pessoal, gostava de ver o pessoal adulto fazer alguns jogos, gostava de ver os bailes, mas eram mais de adultos mesmo. Lá tinha um tio, casado com uma tia minha, quer dizer, não era tio biológico, era casado com minha tia, que era gaiteiro. Gaiteiro é aquele que toca a gaita escocesa, aquele tipo escocês. E tinha mais dois ou três homens que tocavam bumbo, tocavam aquela caixa repenicadora. E os bailes se formavam em torno dessas pessoas. E a criançada se juntava a esses tocadores, os instrumentistas. Juntava-se a eles. E uma das coisas que eu tenho mais na memória é, realmente, esses bailes, principalmente dos pauliteiros. Os pauliteiros eram bastões, são bastões de madeira, que se juntavam os homens... Essa era uma dança só de homens, se juntavam os homens, vários, e ao som da música eles iam dançando e batendo, ritmicamente, nos paus; por isso se chamavam pauliteiros. Isso é uma tradição bem portuguesa, que existe até hoje. E seguiram... às vezes eles davam volta à aldeia tocando etc. Então, seguir aquele som de bombos. Eu tenho até um texto, não está aqui, que tenho muitas crônicas que falam sobre esses costumes. E uma das recordações mais fortes é essa mesma, de ir atrás dos tocadores, do conjunto, dos quais o meu tio, casado com a minha tia, era o principal. O gaiteiro era sempre o principal tocador. Mas é isso. O que mais?
P/1 – Tinha mais alguma outra festa na aldeia, por alguma questão religiosa?
R – Tinha. Tinha a festa de Santa Madalena, que era a santa padroeira. E tinha a festa da aldeia mesmo, do foral da aldeia. As aldeias lá são muito antigas. Os forais das aldeias datam de 1300, 1200. Então, cada aldeia tem o seu dia de festa. Como se fosse aqui - São Paulo tem o seu, 25 de janeiro. E uma é próxima da outra, da padroeira, que era Santa Maria Madalena, e o dia da festa da aldeia mesmo. É próximo. São duas semanas de diferença entre uma e outra. Então, foguetório, muitos foguetes, e eu tinha um medo desgraçado de foguete. Eu tinha um medo enorme de foguetes. Nessas festas, eu ia me esconder. Qualquer semelhança com os cachorros que fogem por medo do espocar dos foguetes não é mera coincidência, porque eu tinha o mesmo medo. Eu imaginava que indo para longe eu não escutaria o barulho dos foguetes. Isso durou até uns sete, oito anos. Então, nesse dia, tinha os rituais religiosos da missa... Ah, da missa, eu fui ajudante de coroinha. Não era ajudante do padre, era ajudante do coroinha. Então, muitas coisas... E, nessa época, a missa era em latim. Era ainda em latim. Então, muita coisa em latim ficou ainda das missas. Que eu fui perdendo pouco a pouco, mas que sabia bastante latim por causa das missas. Podia ser analfabeto... Aliás, os adultos eram analfabetos, mas sabiam latim (risos). Eram analfabetos, mas sabiam latim, por causa do latim das missas. Eu também fui coroinha. E nesses dias de festa, era feita uma procissão que andava por toda a aldeia, por toda... Também, andar por toda aldeia não tomava mais que meia hora (risos) e já voltava para a igreja. O que mais eu poderia acrescentar?
P/1 – Para onde o senhor ia se esconder na hora dos fogos?
R – As aldeias são cercadas de hortas. Então tem a aldeia em si e são cercadas de hortas. E existia uma ribeira - uma ribeira é um pequeno riacho - e eu escapava, eu fugia para essas hortas, onde a minha família tinha uma horta grande, além de outras coisas. E eu me escapava para lá. Mas tem uma história interessante, que não foi bem numa das festas, mas a gente tinha muito hábito, tinha meloais. Meloais é onde se planta o melão, melancia etc., e a gente tinha muito hábito de ir, principalmente com o meu tio Zé, de ir para esses meloais. E pegava o melão, cortava na hora com o canivete e já comia ali mesmo - ou melancia também. E um dia, eu fui sozinho. Fui sozinho para um dos meloais. E era comum, nos meloais, para evitar coelhos, ter armadilhas de coelhos. E o que aconteceu um dia? Um dia eu fui à tarde, sozinho, peguei o canivete do meu tio... Era perto da aldeia, mas o suficiente longe, ainda que você gritasse, ninguém ia escutar na aldeia. E eu caí numa armadilha de ferro e não conseguia... Tinha uns cinco, seis anos, sei lá, eu não tinha força suficiente para puxar a armadilha. E eu fiquei lá toda uma tarde na armadilha, até à noite. À noite, como eu não aparecia em casa, o pessoal começou a me procurar. O meu tio chegou do campo, também queria saber o que tinha acontecido. Aí ele desconfiou, porque ele não viu o canivete dele no lugar (risos) onde ele deixava. E lá foi ele com o lampião, uns lampiões que se usavam nas aldeias, porque não tinha eletricidade, não tinha absolutamente nada. As aldeias, naquela época, não tinham eletricidades, não tinham esgoto, não tinham banheiros, não tinham nada, era tudo feito naturalmente nas cercanias. E lá foi com o lampião, e ele me encontrou lá no meloal (risos), no meloal habitual onde a gente ia, onde às vezes eu ia com ele também. Mas era o meloal da família mesmo. É uma recordação que eu também guardo para sempre.
P/1 – Mas quando voltou para casa, teve algum castigo?
R – Não. Não. Não me lembro de castigo, não. Mas tinha um tio que me castigava. O tio Henrique, de vez em quando, me dava uns tabefes, umas remadas, mas...
P/1 – Mas quais eram os motivos?
R – Eram coisas... Hã?
P/1 – Quais eram os motivos?
R – Poderia ter motivo ou não ter. Às vezes, ele não sabia por que batia, mas eu sabia por que apanhava (risos).
P/1 – (risos).
R – Enfim. Mas não teve... Que eu lembre, não teve nenhum castigo, nada, nesse dia.
P/2 – Deixe-me perguntar uma coisinha. Nessa aldeia vocês colhiam... Plantavam e colhiam só para a aldeia, sobrevivência da aldeia, ou…?
R – É assim... A maioria era de autossustento mesmo, para autossustento da... Alguma coisa era vendida. Havia as feiras do Mogadouro, mas o que se comercializava mais era a uva, a azeitona, algum gado - algumas famílias tinham uma meia dúzia de vacas, três ou quatro vacas. Então, quando tinha alguma novilha, alguma coisa, se vendia nas feiras do Mogadouro, que era a vila mais próxima. De resto, era tudo de autossustento. Quer dizer, não se gastava com alimentação, mas também o dinheiro praticamente inexistia. Não circulava, praticamente, dinheiro. Existia mais o sistema de trocas: eu lhe dou uma couve, você me dá uma beterraba; lhe dou uma alface, você me dá um nabo, alguma coisa nesse sentido. Então era mais o sistema de trocas. E a comercialização era, realmente, muito pequena, não havia quase. O dinheiro não circulava, não havia dinheiro. Só quando havia essas feiras no Mogadouro que aí sim se vendia uva, ou vinho, ou azeite. Ele poderia ser vendido ainda em bruto, na azeitona, ou podia ser em cântaros - cântaros eram vasilhas - já feito, destilado. E se vendia uma ou outra novilha, de vez em quando. Isso era quando se via algum dinheiro. Mas esse dinheiro já ficava na própria vila para comprar algumas roupas, algum calçado, alguma coisa assim. Então nós, crianças, se os adultos não tinham dinheiro, imagina o que poderiam ter as crianças. Não tínhamos essa... Não conhecíamos o consumismo. Tudo que nós tínhamos nos bastava. Não tínhamos essa expectativa do consumismo, mesmo porque não conhecíamos também os objetos de consumo. Como os nossos limites ficavam nos limites da aldeia, os nossos limites de saída, a gente não conhecia nada do que poderia... Mesmo no país também não tinha grandes coisas de apetência ao consumo. Era isso.
P/1 – E, “seu” Neves, quais os nomes dos seus avós?
R – O meu avô paterno era José Augusto Neves; da minha avó era Maria Mendes Neves. Eu não conheci também a minha avó - a minha avó paterna - a minha avó materna, sim. E da minha avó materna era... O meu avô era Manuel Maria Sampaio, que coincidia com o nome da aldeia, mas que não tinha uma ligação entre os nomes. Uma história interessante, porque durante muito tempo, até a minha adolescência, eu imaginava que a aldeia havia sido fundada pelo meu avô (risos). E eu nunca tinha tido assim a curiosidade de saber por quê. Mas até a minha adolescência, eu imaginava. O meu imaginário era de que o meu avô é quem tinha fundado a aldeia. Então, era Manuel Maria Sampaio e Merência Sampaio. Merência era a minha avó materna.
P/1 – E o senhor falou que ficou essa parte na aldeia, na casa dos avós paternos, sabe?
R – Sim.
P/1 – Mas então o senhor só tinha convivência com o seu avô paterno?
R – A minha convivência era maior... Quer dizer, a convivência do dia a dia, enfim, era com os avós paternos. Mas eu sempre escapava - porque também era pertinho - sempre me escapava quando precisava de algum carinho, alguma coisa. Me sentia mais acarinhado nos avós maternos.
P/1 – Até porque não tinha a avó paterna na casa.
R – É. Mesmo porque não tinha avó paterna, quer dizer, tinha “vodrasta”.
P/1 – Ah, sim.
R – A “vodrasta”. Então, na casa dos meus avós maternos, eu tinha as minhas tias que me acarinhavam, que, enfim... O meu avô também era uma pessoa muito carinhosa. Não tenho nenhuma foto do meu avô também. Nem o pessoal atual tem. Não consegui foto do meu avô. Mas sim, eu convivi com ele, com ele vivo ainda. Com a minha avó materna não convivi também. Então, sempre tinha um... Como eu me sentia mais acarinhado lá, quando podia, me escapava para lá.
P/1 – E como era essa casa onde o senhor passou...
R – As casas eram muito rústicas, normalmente feitas... As paredes eram de pedras - era de pedra de cantaria. Hoje não, hoje a aldeia é toda de construções normais, a maioria dessas casas já foram substituídas por residências novas. Hoje as residências são com maior conforto. Conforto normal, que todos nós temos. Mas, na época, eram casas de pedras, que normalmente eram acopladas, ou ligadas aos estaleiros da... Aos estaleiros não, aos estábulos dos animais. Quem tinha vacas, quem tinha bois. O transporte era feito muito por carros de bois, então quase todos tinham uma junta de bois - uma junta de bois era uma dupla de bois - e todos tinham o seu carro de bois. Hoje não, hoje todos têm o seu carro, o seu automóvel, o seu trator. Na época, os arados e as charruas... Os arados era como se arava, então eram também puxados por vacas, ou por burros, jumentos. E toda agricultura era feita nessa base, e o transporte era feito com carro de bois. Era muito interessante isso.
P/1 – E ainda falando nessa casa, como ela era? Se o senhor puder descrever como era entrando nessa casa, como era dividida.
R – Olha, entrando na casa dos meus avós, como ela foi trocada, demolida depois, eu lembro que tinha... Nós morávamos em cima, na casa dos meus avós paternos, nós morávamos em cima, embaixo tinha o estaleiro... Um estaleiro... Um estábulo. Tinha um estábulo, onde ficava o gado, onde ficava o palheiro. Tinha um palheiro também. Tinha um... Eu lembro vagamente, tinha um local ermo, que era onde a gente fazia as nossas necessidades. Quer dizer, as nossas necessidades ou eram feitas no penico mesmo, durante a noite, e durante o dia eram feitas fora. Não era um banheiro, não era nada disso, era um local ermo, onde você fazia as suas necessidades gerais. Tem uma história também sobre... Tinha um local... A casa tinha dois dormitórios. Dois dormitórios, tinha uma pequena sala e tinha uma cozinha. A cozinha, na verdade, era lareira. Era lareira, mas não é uma lareira que você conhece, que a gente conhece, era uma lareira... Era uma roda de fogo. Então, ficava a lareira aqui no meio, um círculo, você tinha o fogo, e você fazia a sua comida em panelas de ferro, normalmente, aquelas de ferro mesmo, não existia de alumínio, nada disso; se fazia a comida na panela de ferro, em cima tinha um fumeiro. Fumeiro era onde se esfumeavam os enchidos da matança do porco. Então, tudo o que você produzia, após a matança do porco, ia para enchidos. E era chouriço, linguiça, paio, bulho, salpicão... Salpicão não é o salpicão que a gente conhece aqui, mas é uma espécie de salame um pouco mais incrementado, mais grosso, uma espécie de salame. E tudo isso ia no fumeiro. Alheiras, morcela, tudo que se produzia, tudo que vinha derivado do porco. Do porco se aproveitava quase tudo, até os ossos. Então, ficava tudo pendurado e a fumaça que saía do fogo é que fazia o... Como é?
P/1 – Defumado. Tipo defumação.
R – Escapou-me o termo agora. Bom, enfim, que tornavam os enchidos comestíveis posteriormente, defumados.
P/1 – Defumados. Si/m.
R – Ah, então... Continuando na casa... Não tinha banheiro, não tinha nada disso. E nós tínhamos um estábulo, uma parte em cima e tinha o que a gente chamava de loja, que era o estábulo. Lá não era estábulo, era loja, onde ficava a palha, ficavam os animais. Os animais eram bovinos. Ovinos tinham outro curral, outro local onde ficava para tosquia. Esqueci também de mencionar que, na parte econômica, a tosquia das ovelhas era muito importante, porque se vendia a lã, a tosquia, ou se utilizava... As fiandeiras, as mulheres fiandeiras, as mulheres lá faziam absolutamente tudo. Então, além disso, também eram fiandeiras, fiavam, tinha uma roca, um fuso e iam desfiando a lã e criavam a lã, os novelos de lã, e depois transformavam isso num tear, num tear manual. A minha avó tinha um tear manual - a minha avó materna - então ela fazia as colchas, fazia tudo lá. Era tudo completo, desde a tosquia da ovelha até a produção das toalhas, enfim. Eu me desviei. Existia uma parte plana e tinha umas tábuas meio soltas lá. Era um lugar onde a gente guardava coisas assim, diversas. E tinha umas tábuas soltas e eu caí numa dessas tábuas soltas, caí no palheiro embaixo, na loja. Mas caí sobre a palha, não tem problema, o problema foi que a tábua veio junto e ela me fez essa tonsura aqui na cabeça. O que eu lembro depois disso é que ela foi curada com pó de café, uns unguentos, que eu não lembro bem o que era, mas o tratamento foi através disso, com pó de café, que era um luxo ter café. Era um luxo ter café. A gente tinha porque o meu pai já trabalhava numa torrefação de café em Lisboa, então, quando ele ia à aldeia, ele levava uma quantidade boa de café. Então a gente tinha só por causa disso também, porque senão também não tinha dinheiro. E benzimento. Então, pó de café, uns unguentos que eu não lembro, mas acho que eram feitos de gorduras também, de coisas de animais, e benzimento. Tinha uma benzedeira lá também. Isso serviu tanto para isso, como também para um furúnculo que eu tive aqui, enorme, também sem medicação - a medicação era a mesma. Essa cicatriz aqui é também de um furúnculo que eu tive, quando criança. E também pelos mesmos métodos, os remédios eram basicamente isso.
P/1 – Como eram esses momentos da benzedeira?
R – Da benzedeira? Não tenho muita informação sobre ela, mas ela benzia. Era a tia Idalina, que era a mesma pessoa que dava catecismo para a gente, à noite, na igreja. A igreja parecia uma catedral para nós, mas era uma capelinha. Acho até que te mandei umas fotos. Uma capelinha. Então, à noite, ela dava catecismo para todas as crianças da aldeia e era a mesma que nos benzia, fazia o benzimento curador. Se curava ou não curava, eu não sei. Também não sei o que curava, se era o pó de café, se era o unguento, ou se era o benzimento (risos). Mas, enfim, sobrevivi (risos). De alguma maneira, sobrevivi.
P/1 – Como era o seu quarto?
R – O meu quarto. Olha, o meu quarto, nós dormíamos... O meu avô e minha “vodrasta”... E eu e meu tio Zé dormíamos no mesmo quarto. Eram enxergas. Enxergas eram colchões de palha. Colchões de palha. Então era mais ou menos desse tamanho, que tinha uma cama, tinha outra aqui, tinha um pequeno lavatório, aqueles de ferro, de metal, com água, cada um tinha seu penico, cada cama tinha seu penico. Eu lembro de que meu avô dormia numa cama, e eu e meu tio Zé dormíamos em outra. O meu tio Henrique ficava num outro quarto, não lembro exatamente. Lembro de que muitas vezes fiz xixi na ceroula do meu tio (risos). A gente sempre ri quando se junta. Fazia xixi na ceroula do meu tio, ficava tudo certo, o colchão era de palha, punha para secar no dia seguinte, ou trocava a palha, enfim, ficava tudo certo (risos). As camas eram de ferro. Aquelas camas de ferro, armação de ferro. Enfim, esse era o meu quarto. Ah, embaixo tinha também uma adega. Adega onde ficavam... Depois de defumados todos os enchidos, o presunto, o presunto cru, que era feito da matança do porco também, era todo defumado e ficava lá. E, obviamente, o vinho, aguardente, onde se fazia... O vinho não se fazia nas adegas, se fazia num lagar também, mas depois ia para lá. Antes se fazia aguardente. Aguardente era feita lá mesmo, tinha um destilador, que era aguardente de uva, não aguardente de cana.
P/1 – Aproveitando esse assunto, eu queria que o senhor falasse como era a comida do dia a dia.
R – Ah, a comida do dia a dia era... A comida mais simples e que mais se comia era pão mesmo. Era pão, às vezes acompanhado de um chouriço, de um salame, de uma fatia de presunto. Por exemplo, quando a gente saía para trabalhar no campo, a primeira coisa que a gente comia era um pedaço de pão e figo seco. Os adultos tomavam um copo de aguardente. Algo de aguardente ou algo de vinho. Então, a comida mais comum pela manhã, antes de sair para o campo, era pão e figo. Não tinha café - café com leite. Às vezes, até tinha um pouco de leite das cabras, ou das ovelhas, mas não era algo do dia a dia, era de vez em quando. Mas se comia um pedaço de pão de centeio, algum chouriço, alguma linguiça que acompanhava, ou às vezes um figo seco, ou uva, uva-passa, que também era feita, os figos secos também eram feitos, tudo feito na aldeia. E se levava depois um bornal para o campo. Então, lá se mantinha... Levava-se dentro da pele de um cordeiro, da pele de cordeiro, porque mantinham frescos os alimentos. E se levava também pão. Eu não me lembro de ter comido, assim, que se levasse cozido na cozinha, alguma coisa, porque isso era quando a gente voltava do campo, aí sim, aí tinha um almoço, batatas, infalivelmente, não tinha como. Batatas, infalivelmente. Arroz, dificilmente. Arroz, só em dia de festa, porque não se plantava, não tinha arroz plantado, então não se plantava arroz por ali e era um alimento de luxo naquela época. Alguma carne, às vezes de caça, porque os meus tios também caçavam. Mas de caça também era mais em dias de domingo, fim de semana, algo mais elaborado. Mas havia sopa, sopa de couve, sopa de nabiças. Nabiças são as folhas do nabo. Sopa de grelos. Grelos era uma espécie de... Caramba, não tenho nada para comparar com grelos. Deixe-me ver. Vamos imaginar que fosse aquele repolho ninja, algo parecido, me vem à cabeça agora mais parecido. Então era acompanhado de muita hortaliça. Consumia-se, realmente, muita hortaliça. Era quase tudo agrícola. Carne muito de vez em quando; a gente praticamente não comia carne, só quando se matava alguma vitela, alguma coisa, mas também em dia de festa. Então a comida era muito à base de agri... Era bem vegana (risos).
P/1 – Percebi (risos).
R – Era bem vegana (risos). Sem querer, eu já fui vegano. Sem saber. E essa era a base. Mas se comia muita sopa. E muitos comiam a sopa de cavalo cansado. Cavalo cansado era uma sopa feita no pão, com vinho. Essa era mais para os adultos homens, que comiam essa sopa de cavalo cansado. Era sopa de pão e vinho. Como também se comia muita açorda. Açorda era feita de pão, era uma massa de pão cozida e temperada com azeite, alho, às vezes um pouco de carne, toucinho etc., que se consumia bastante também. Era gostoso. Aliás, quando eu vou, eu sempre procuro alguma açorda, embora já não seja do uso cotidiano, porque os tempos já são outros, já se tem tudo. Então, era basicamente isso que a gente comia. Em época de festa tinha alguma carne de caça, que os meus tios caçavam; nas festas da Santa Madalena, enfim. Doces, por exemplo, eu não lembro. Não tenho nenhuma... A não ser pão de ló. A única lembrança de infância de doces era o pão de ló, e de vez em quando a gente ganhava um rebuçado. O rebuçado era uma balinha, que ganhava de vez em quando, como criança. Mas chocolate nem conhecia, nem existia. Não conhecia nada disso.
P/1 – E, “seu” Neves, como vocês se preparavam para a chegada do inverno?
R – Para a chegada do inverno. Era algo bonito o inverno. Era frio. A neve se sobrepunha a tudo, então era muito bonito. A preparação... Você fazia fogueiras em todo o lugar. Ia para o campo, fazia uma fogueira para se aquecer, e se usava muito uma roupa muito rústica, mas bastante consistente para se guardar. Usavam-se umas samarras. Samarras eram casacos, parecidos com japonas. Lembra-se das antigas japonas? Acho que você não lembra mais. Parecidos com japonas, com uma pele, que tinham pele assim para resguardar. O que mais? Claro, não podia faltar lenha, tinha sempre um grande depósito, um grande estoque de lenha para consumir, porque depois, durante o inverno, tudo ficava nevado, molhado, porque vinha chuva, vinha neve, vinha tudo isso e tudo ficava úmido, e era difícil para fazer fogo, para fazer fogueira. Então a gente ia se preparando. Tinha pouca... As atividades no campo diminuíam bastante, com exceção de alguns produtos mais prioritários para a alimentação, ou na colheita da azeitona. Mas as atividades realmente reduziam, bastante reduzidas. E também se enchiam os estábulos de bastante comida, feno e palha para os animais, para ter também durante o inverno. Isso não significa que eles não saíam também. Mas a atividade era bastante reduzida. Agora, o que era linda era a primavera. A primavera, Nossa, os campos todos floridos. O outono também era bonito. A aldeia tinha muitos olmos. Olmos são uns tipos de árvores muito típicas de lá. Então eram muito lindas as folhas caídas, caindo, esvoaçando. Era tudo bastante...
P/2 – Todas nativas?
R – Mas a primavera realmente é muito... A primavera em Portugal é muito bonita, porque todos os campos floridos, flores naturais, que nascem de todas as espécies, sem precisar plantar. Mas o inverno era bastante duro. Era bastante duro para as pessoas, embora bonito. Embora bonito pela neve. E eu que já sou Neves, então... (risos).
P/1 – (risos).
P/2 – (risos).
P/1 – E, “seu” Neves, eu queria que o senhor falasse como era a visita do seu pai. Como era receber o seu pai, em que momentos ele vinha.
R – Então, ele vinha... Quando a minha irmã tinha seis anos, quando ela completou seis anos, meu pai a levou para Lisboa. Depois disso, ele começou a vir uma vez por ano, vinha com a minha madrasta - já havia se casado - e ele sempre trazia uns caixotes de coisas, principalmente de mantimentos, mantimentos que a gente não tinha na aldeia, mas que vinham de Lisboa, como um ou outro enlatado, bacalhau. Ele trazia muito bacalhau. Porque também nas aldeias não existia bacalhau. Mas em Lisboa era o prato, era a comida do cotidiano. Tinha bastante, ele sempre trazia esses tipos de alimentos, que a gente não tinha na aldeia, mas que eram normais em Lisboa; e qualquer outra coisa. Não tenho... Ele vinha todo ano, até quando eu completei nove anos, que ele me levou para Lisboa também. Então era assim... Eu via meu pai às vezes como herói e às vezes como vilão. Então, é um sentimento um pouco ambíguo, mas que... Era herói quando ele vinha, e vilão quando ia, me deixava, enfim. Porque ele vinha já como um cidadão, andava como um lisboeta, todo bem vestido, todo proa, todo pimpão, então a garotada me invejava: “Nossa, que pai você tem”. E você tem essas coisas assim que você vai sublimando. Mas quando ele ia embora, tudo voltava ao normal, tudo voltava ao dia a dia. Até que um dia, ele me levou também para Lisboa, aí passou a ser outro tipo de vida, tivemos outros tipos de experiências.
P/1 – E o senhor se recorda desse momento em que lhe falaram que ia para Lisboa?
R – Não. Não lembro. Não lembro exatamente do momento. Não tenho recordação assim do momento. Mas me lembro do meu entusiasmo de ir para Lisboa. Pela primeira vez eu ia para uma cidade diferente, ia para Mogadouro. Pela primeira vez ia tomar um comboio, ia conhecer um trem, ia conhecer um automóvel, ia conhecer, sei lá, essas coisas que não eram tão modernas para o dia de hoje, mas que eram modernas naquela época. Então, é um deslumbramento. Deslumbramento da criança que sai dos limites que... O mundo era a aldeia. E quando você sai dos limites, você fica perplexo, você fica surpreso. Então, foi muito interessante essa viagem, a primeira viagem do comboio, que é o trem. Trem aqui, comboio lá. E que foi uma viagem de deslumbramento. Como foi deslumbrante chegar a Lisboa também, ver algo completamente diferente, um mundo totalmente diferente do que era a minha aldeia, isso foi, realmente, um... Foi um momento na minha infância, de absoluto deslumbramento do que era o mundo na minha aldeia e o que era o mundo lá fora, de uma metrópole, de uma cidade grande etc.
P/1 – Não sei se eu vou exigir muito do senhor, tá? Mas o que vier de lembrança desses últimos momentos ante de ir para Lisboa, expectativa de pegar o trem, como detalhar esse processo da viagem?
R – É um processo interessante. No meu livro, eu descrevo todo esse processo. Mas é o deslumbramento que você vai tendo de deixar uma cidade para trás, que era o seu lar, a sua aldeia, onde você tinha o seu mundo, e de você ir descobrindo, pouco a pouco, na própria viagem do comboio, pela janela, você ir vendo, gradativamente, um mundo mais moderno, mais... Você vai perdendo as casas de pedra, você vai vendo as outras de alvenaria, você começa a ver uns campos mais modernos, que já não são mais de arado, mas são de algumas máquinas, que não chegavam à aldeia. Você vai pouco a pouco... O comboio é como se fosse um cavalo de aço, como se você tivesse montado um cavalo, deixado o seu burro lá na aldeia, e você vai entrar num cavalo de aço assim, que você vai percorrendo, você vai descobrindo a luz nas estações, que existe eletricidade, que você não sabe. Você descobre o rádio, que você não conhecia, que ninguém tinha rádio na aldeia. Descobre as coisas modernas, que hoje são corriqueiras, mas naquela época, para um menino da aldeia, eram absolutamente modernas. Então, você vai, gradativamente, quase que hierarquizando as cidades, cada uma maior que a outra. Quando cheguei à cidade do Porto... Porto é a segunda cidade principal de Portugal, e a mais importante economicamente hoje, é o Porto, a cidade do Porto. Você vê aquela gare de trens, que vão para todo lado, para todas as partes do país. As luzes, as primeiras, que você não sabe como elas vêm, não sabe nem como ligar a tomada. É um completo deslumbramento. É, realmente, a memória... E quando você chega a Lisboa então, é algo impressionante. Você chega a Lisboa, você começa a ver os prédios, não eram arranha-céus, porque lá não tem prédios muito grandes. Você começa a ver os prédios, um monte de elétricos, que são os comboios, os bondes, antigos bondes. Caramba, comboios que andam sem nada. Você começa a ver as pessoas bem vestidas, arrumadas, as crianças uniformizadas, que vão para a escola. O pessoal todo “enternado”. Todo “enternado”, porque vão para os seus trabalhos, para as suas coisas. As construções monumentais, as praças, os parques, que você vai vendo, até chegar à casa onde você vai morar. Isso é de um deslumbramento impressionante. É, realmente, muito marcante na minha infância. Até você chegar à casa onde você vai encontrar uma nova família, outra família. Normalmente eu divido ciclos por família: a família da aldeia, a família de Lisboa, algumas outras famílias que eu tive aqui também, que me adotaram quando eu cheguei aqui, a família da minha mulher, que também me adotou. Enfim, eu divido muito isso em ciclos, por cada uma. Enfim, Lisboa passou a ser o meu grande deslumbramento. Não tinha a menor ideia do que era a grandiosidade. Hoje me parece pequena também. O mundo me parece muito menor, conforme... Como eu tive a oportunidade de, futuramente, conhecer uma boa parte do mundo, claro, as coisas que nos pareciam imensas, deslumbrantes etc., passam a ser... Mas no nosso inconsciente continuam grandes da mesma forma, e eu as considero assim. Até hoje ainda considero. A minha aldeia era uma aldeia global. É isso.
Programa Conte Sua História
Depoimento de José Carlos Neves _ Parte 02
Entrevistado por Carol Margiotte e Nori Navarro
São Paulo, 20/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV738_ José Carlos Neves _ Parte 02
Transcrito por Mariana Wolff
Revisão / edição - Paulo Rodrigues Ferreira
MW Transcrições
P/1 – “Seu” Neves, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Muito obrigada por ter retornado. É um prazer revê-lo.
R – Eu que agradeço, também é um prazer estar de volta aqui.
P/1 – A gente tinha parado, “seu” Neves, no momento em que o senhor chegava em Lisboa. Se a gente puder começar a partir daí, eu queria que o senhor contasse como foi chegar em Lisboa e ver a casa em que o senhor iria morar.
R – Então, a chegada em Lisboa, na grande estação de Santa Apolônia. Santa Apolônia é uma estação tradicional de trens em Lisboa, um grande terminal de trens, e aí veio o grande impacto, de ver a cidade grande, de ver tudo diferente, embora Lisboa não seja tão grande assim, para os padrões de São Paulo, por exemplo. Talvez um sexto de São Paulo, em termos de população; ela também é bastante larga. Mas era uma cidade que, para nós, parecia… Para mim, aos nove anos, parecia interplanetária, quando cheguei. Então, ver todas aquelas pessoas diferentes, todas bem vestidas, todas bem arrumadas, os homens todos de terno, as mulheres todas bem vestidas, maquiadas, as crianças uniformizadas para as escolas, uma infinidade de automóveis, que na minha aldeia eu nem conhecia automóvel, não é? Os elétricos, os elétricos eram os bondes; os autocarros é que eram os ônibus. E todo aquele burburinho de uma cidade grande. Então, não lembro de que forma cheguei ao lugar onde, possivelmente, iria morar. Mas lembro de que era uma vila enorme, era quase um centro de Lisboa, era um bom lugar, um bom local também para uma pessoa que vinha da aldeia. E essa vila começava com uma torrefação de café, onde o meu o pai trabalhava como torrefador também, com as máquinas de torrefação, havia uma oficina mecânica e havia também uma… como é que chama? Me escapou o nome, de couros, que trabalhava com couros. Então, os cheiros de óleo de couros se misturavam, mas o café predominava (risos), o cheiro do café se estendia até a vila onde havia as residências. Lá, havia quatro residências. Quatro? Cinco. Cinco residências, das quais uma morava o meu pai e a minha madrasta, que já eram casados então, e a minha irmã. E também, os filhos da minha madrasta, dois filhos. E, além disso, uma prima que casaria com um dos filhos da minha madrasta também. Era uma casa pequena, tinha uma sala, dois quartos, uma cozinha; depois no fundo tinha uma sala de banho, que é o banheiro, não é? E tinha uma ____00:04:28_____, que era onde havia o vaso privado, que era diferente da casa de banho. Essa vila ficava num elevado, numa espécie de colina, e essa área de serviço, ela dava para… Tinha uma grande murada e tinha um metro e meio mais ou menos de altura o muro. E daí, se via… Havia uma grande Quinta, uma espécie de grande chácara, onde o hortelã… A gente podia comprar as verduras, mandavam cestos com uma corda e eles mandavam de volta o que a gente quisesse da chácara, da Quinta, e a gente mandava o dinheiro, pagava e etc. Então, em termos de residência, eu me lembro de que eu dormia em um divã, numa espécie... Que lá chamam de divã - não é o divã do psicólogo, do psiquiatra, mas era um divã - tinha uma sala, um mesa de jantar, tinha algumas coisas assim, uns complementos da sala de jantar e, nos dois quartos… honestamente, eu não me lembro como é que a gente se acomodava com tanta gente, até que os dois filhos se casaram. Na verdade, não demorou muito, acho que um ano depois, os dois já estavam casados também. Então liberaram quase tudo e passamos a morar só eu, minha irmã, meu pai e minha madrasta. Então, em termos de residência, o bairro chama-se Campo de Ourique, é um bairro de classe média alta, não me pergunte como a gente conseguia morar lá, mas a vila era relativamente mais humilde, mais… A casa era alugada, não era casa própria, enfim, em termos de residência de chegada era isso.
P/1 – E ainda nessa chegada, nesta cidade nova, que é completamente diferente da aldeia onde o senhor cresceu, o que de diferente, talvez de tecnologia ou alguma coisa nova, de algum objeto que o senhor conheceu, que teve um deslumbramento assim: “Nossa, isso existe???”
R – Acho que um deslumbramento grande foi conhecer o rádio, porque eu não conhecia o rádio (risos). Então, eu comecei a me apaixonar pelo rádio a partir daí. Não havia televisão ainda, a televisão só viria... No ano em que nós imigramos é que chegaria a televisão a Portugal. Não que nós não tivéssemos televisão, é que não havia televisão no país. Isso foi em 1954 e nós emigramos em 1957, então, só em 1957 é que chegaria a televisão a Portugal. Agora, de tecnologia nova, os veículos, as coisas… Eu me lembro de que… Mas o rádio foi a minha primeira… Eu ficava olhando: “Mas como é que pode vir a voz? Como é que pode funcionar?” A eletricidade, que eu também não conhecia, não é? Você apertava um botão e tudo acendia: “Caramba, que legal”. Então, essa foi… O restante você vai assimilando pouco a pouco, principalmente, os veículos, as coisas… Mas o que me chamou demais a atenção assim, naquele momento, em tecnologia, foi o rádio - foi o meu primeiro deslumbramento tecnológico.
P/1 – Em que momentos que o senhor ligava o rádio?
R – Havia momentos especiais, mas o rádio fazia parte da vida das pessoas, não é? Mas especialmente para o time masculino, era quando havia jogos de futebol, não é? E aí, uma coisa interessante, porque eu ficava imaginando o rádio e imaginava movimentos no rádio. Eu não tinha nem ideia do que seria televisão, mas ficava imaginando movimentos. O futebol também era uma coisa nova para mim, porque na minha aldeia não se jogava. Então, não havia jogo de futebol, não havia jogo de nada, havia alguns jogos, mas não esses de bola, futebol. Eu ficava imaginando os movimentos de um lado para o outro na telinha do rádio. O que mais você havia perguntado?
P/1 – Mas o senhor já tinha visto um jogo antes?
R – Não.
P/1 – Sabia quais eram os movimentos que eles estavam…
R – Sim. Não antes de ir para Lisboa, mas já tinha… Meu pai já me havia levado a algum jogo de futebol. Eu me lembro de que a primeira inauguração do Estádio Alvalade... Meu pai era adepto de um clube, que é o Sporting. Em Lisboa são o Sporting e o Benfica, como o São Paulo e o Corinthians aqui - os dois rivais maiores, não é? E o meu pai me havia levado à inauguração de um estádio… Meu pai e mais toda uma turma que foi junto, no estádio do Sporting. E esse jogo foi Vasco da Gama, daqui do Brasil, e o Sporting, de Portugal; eu acho que o da Gama ganhou, claro! Então, essa foi a minha primeira grande sensação com o Sporting, meu primeiro deslumbramento, não só com o estádio em si, que me parecia algo monumental. E a partir daí é que eu tive a minha primeira sensação como esporte, meu primeiro contato. E daí, veio essa imaginação dos movimentos, porque o time masculino… Lá de casa, eu ficava escutando os jogos de futebol, não é?
P/1 – E em Portugal, o senhor torcia para quem?
R – Para o Sporting. Sporting é o rival principal do Benfica. O Benfica é mais conhecido que o Sporting, sem dúvida, internacionalmente. Mas como o meu pai era torcedor do Sporting, eu também fui familiarmente para isso.
P/1 – E falando no seu pai, como é que foi ter essa figura todos os dias em casa? Vocês começaram a se aproximar e a ter essa relação?
R – Não era fácil, porque nós tínhamos uma madrasta que era muito irascível e não era necessariamente uma mãe para a gente - para mim e para a minha irmã. Mas não porque nós fossemos ‘filhastros’ e ela madrasta, mas porque a personalidade dela era assim, ela tratava os filhos dela como tratava a gente, ou vice-versa; ela tratava tão rispidamente os filhos dela, irascivelmente como nos tratava Então, não era uma questão de sermos madrasta ou ‘filhastros’, mas porque a personalidade dela era assim mesmo. Com o meu pai então, sempre haviam expulsões, alguns probleminhas, ela se queixava para o meu pai, o meu pai a maior parte das vezes tomava partido dela, então, ele também se tornava… Durante esse tempo que nós moramos em Lisboa, que foram três anos - dos nove aos doze anos - nós passamos a ter… Quer dizer, no nosso sentimento, na nossa… A ter não só uma madrasta, mas também um padrasto (risos). Então, esse sentimento existiu até quase adulto, quando a gente começou, realmente, a ter uma relação muito mais de pai e filho, muito mais amorosa, muito mais afetiva. Mas isso foi algo que veio desde a infância até eu me tornar adulto, mesmo. Era uma relação bastante difícil, ele era muito autocrático, muito ditador, era um pouco… Não que ele fosse porque ele queria ser, mas porque os valores da época eram assim, os pais tinha autoridade máxima, eram ditadores, eram autocráticos, o que eles diziam você não podia contestar. Então, refletiam simplesmente o ‘modus social’ da época.
P/1 – E “seu” Neves, eu queria saber como é que era a rotina nessa casa, como que era desde o amanhecer até o final do dia?
R – Bom, eu comecei a estudar… Eu fiz o quarto ano para completar o primário, em Lisboa, não é? Então, logo cedo, nós saíamos - eu saía para a escola. A minha irmã, nessa época, já trabalhava - ela tinha doze anos, eu tinha nove - já trabalhava ao lado de casa, com uma modista, que tinha o mesmo nome dela. Olinda e Olinda, não é? Então, ela começou a ser aprendiz de modista, de costureira, ao lado de casa, na mesma vila em que nós morávamos. Então, nós saíamos de manhã, meu pai também saía de casa para a torrefação e a minha madrasta era ajudante de serviços gerais em um hospital de Lisboa, que era o maior hospital de Lisboa - Hospital Santa Maria. E ela voltava só à noite. Então, ela voltava já com o seu cabaço - cabaço era uma espécie de cesto, aquele cesto de vime, era muito comum em Portugal, hoje quase não se utiliza mais - mas ali na praça, no mercado, onde se comprava as coisas de que necessitava para o jantar, para o dia seguinte, etc. E o meu pai ia almoçar em casa, nós também almoçávamos em casa, minha irmã cuidava das coisas para aquele momento, do almoço, e depois a minha madrasta, à noite, fazia o jantar. Eu não me lembro bem o que eu fazia depois da escola; voltava em torno de uma hora por aí. Íamos bem cedo, às sete da manhã já estávamos na escola, perfilados no pátio para ouvir o Hino Nacional, o hasteamento da bandeira e depois, irmos para a aula. Na aula, eu nunca fui um aluno brilhante, sempre… E menos ainda por vir de um ensino de aldeia e que, comparado com o ensino da Capital, era realmente uma diferença abismal. Então, nessa época, os professores ainda usavam a palmatória. E não só por indisciplina, usavam por não saber a matéria, por não haver estudado. E eu tinha um professor que já tinha uns setenta anos, um professor velho, mas estritamente rigoroso, então eu me esforçava em dobro para estudar em casa, porque senão levava palmatória… Algumas palmadas por não saber ou não ter aprendido direito a matéria, porque o distanciamento entre o conhecimento do pessoal de Lisboa com o que vinha das aldeias era muito grande; então, para você se nivelar, você precisava se esforçar em dobro. Eu só tive um ano também, que foi o complemento da quarta classe, que seria o equivalente ao primário aqui, não é? O que mais?
P/1 – Da rotina, que a gente estava falando, e aí eu queria saber... Quando chegava em casa, tinha alguma divisão de tarefas, que o senhor tinha que fazer alguma coisa específica?
R – Eu ajudava… Sempre ajudava em alguma coisa na cozinha, ou a lavar a louça, ou… Isso era praxe, normal. Um hábito que eu trago até hoje é que, para mim, fazer qualquer coisa em casa não tem a menor diferença, não tem o menor problema para fazer. Então, esse tipo de disciplina ajuda também para o futuro, para a gente. Não tenho assim, muita lembrança de como a gente dividia tarefas, além de cada um ajudar nas coisas que o outro precisa fazer, mas sim, desde muito pequeno, eu comecei a ajudar sempre, em casa, naquilo que fosse necessário. Normalmente, era lavar a louça, ou limpar alguma coisa, ajudar a limpar alguma… Fazer algum tipo de limpeza, essas são as coisas que eu lembro mais especificamente.
P/1 – E como foi fazer amizades em Lisboa?
R – Difícil! Na escola, como camponês, eu sofri algum tipo de bullying. Não que isso me trouxesse qualquer tipo de problema, porque são normais as brincadeiras de criança uma com a outra, mas hoje eu classificaria como bullying. Mas, naquela época, a gente não tinha a menor noção do que seria bullying, ou não. Eram apenas brincadeiras e assim…. Eu lembro que tinha um… Assim... Não tive, na escola, amigos. Tive um único amigo que se chamava Jorge e que se tornava uma espécie de protetor. Como éramos quase vizinhos - ele não morava muito longe de onde eu morava - sei que a gente ia a pé e voltava a pé, sem nenhum problema. Mas não guardei nenhuma lembrança ou nenhuma amizade dessa época de escola, a não ser com esse… Mas que também, terminado o quarto ano, encerradas as aulas, a gente não teve… Não tive mais contato, não tenho sequer lembranças de como eram as pessoas, de como… Eu só lembro desse tipo de bullying, que às vezes não me agradava e que esse outro menino, Jorge, se tornava uma espécie de protetor, não deixava que os demais mexessem muito comigo. Só isso. Da escola lá, eu não tenho maiores lembranças.
P/2 – Você terminou a quarta série?
R – Terminei o quarto ano e logo em seguida eu comecei a trabalhar, aos dez anos. Terminado… Não sei se vem alguma pergunta sobre isso, mas terminado o quarto ano, eu comecei a trabalhar imediatamente, aos dez anos, numa drogaria.
P/1 – Antes de começar a falar da drogaria, como que isso era conversado em casa? Ou como o senhor refletia sobre a sua vida de: “o que eu quero fazer, quais os planos para quando eu crescer… ?”
R – Não era conversado. Não havia conversa familiar, assim, em relação ao futuro, em relação ao que faria. Meu pai era praticamente analfabeto, minha madrasta analfabeta, meu pai se alfabetizou aos trinta e seis anos numa escola de alfabetização de adultos. Alfabetizar no sentido de aprender a escrever alguma coisa, fazer o nome dele, etc., alfabetizar-se. Então, eles também não tinham um background, não tinham uma cultura suficiente para dar qualquer tipo de orientação. Era uma época em que a gente não tinha futuro, a gente só tinha destino. Então, era assim: o que fosse para ser, seria, mas não havia nenhum tipo de conversa sobre o futuro. Também conversava-se muito pouco… Meu pai e minha madrasta conversavam muito pouco conosco sobre qualquer outro tipo de coisa, de resolução em relação ao futuro da família, etc., Havia, realmente, muito pouca coisa. Então, não havia nenhum tipo de orientação. A orientação era que nós nos comportássemos. O filho tinha que se comportar bem, a filha tinha que se comportar bem, não podia trazer problema para casa e se tivesse, apanhava (risos). Enfim… Não que a gente tivesse apanhado muito, mas de vez em quando levava uns tabefes por uma malcriação ou outra, que, para nós, talvez nem fosse malcriação mas que era tomado por alguma espécie de desafio. As pessoas, os pais, nessa época, não gostavam de ser desafiados. Então, qualquer atitude mais irreverente, mais de rebeldia, era castigado. E era normal, ninguém morreu por isso.
P/1 – Então... Como se deu a sua entrada no mundo do trabalho?
R – No mundo do trabalho havia uma drogaria muito próxima de casa, eu comecei a trabalhar lá, era ajudante de tudo, ajudante de limpeza, ajudava a colocar as coisas… As drogarias lá era um misto de produtos químicos e era uma drugstore, o mais parecido com um drugstore. Não era uma farmácia, era uma loja de produtos químicos, que vendia também brinquedos, uma porção de coisas, não é? Mas a minha principal função era fazer entregas. As pessoas ligavam para lá, então era o delivery da época. Eu fazia entregas, havia muito pedido de petróleo e lixívia. Petróleo era o combustível para os fogareiros das casas. Havia pouca gente ainda que tinha fogão à gás, essas coisas. Eram fogareiros que você… Eram vários fogareiros… Eu acho que não tenho… E aí, se cozinhava nesses fogareiros. Então, o combustível era petróleo. E lixívia era para lavar, para limpeza - lixívia é o que a gente chama aqui de água de Cândida. E então eu ia fazer essa entregas, e o que mais me deslumbrava é que tinha os… Como é que era? De vez em quando me escapam também os nomes, você tocava a campainha e alguém… Interfone… Mas que não era ainda um interfone moderno, mas que você podia falar e alguém respondia lá de cima. Para mim, era algo deslumbrante também. E mais, abria a porta sem ninguém vir abri-la, não é? Então, a tecnologia, uma das coisas tecnológicas que me deslumbravam, era isso aí também. Mas nessa drogaria, eu trabalhei cerca de um ano, depois fui trabalhar numa loja de fazendas e, nessa loja de fazendas, eu também fazia um pouco de tudo, não é? Essa loja de tecidos em geral, e tinha coisas que a gente chama de pronta___00:29:27____, lá chama ____00:29:29____ a roupa já pronta, não é? Algumas coisas como camisas. Não era bem uma loja de roupas, mas que também tinha alguma coisa, tinha tecidos principalmente, e tinha algumas roupas assim, mais de uso diário. E nessa loja, também fazia um pouco de tudo, ajudava a arrumar as montras - as montras eram vitrines - ajudava a fazer a limpeza, etc., e a fazer… Levar ou trazer alguma coisa ao centro da cidade, escritórios ou alguma coisa. Eu não lembro, exatamente, o que ia fazer, mas com frequência ia fazer algumas coisas que eram burocráticas em relação à loja. Então, essa loja de fazendas também era perto de casa, era tudo pertinho. Eu ia para o centro da cidade, e aí comecei a ter contato com Lisboa, com a cidade mesmo. Muitas vezes eu ia de bonde, ia no elétrico, mas outras vezes eu ia a pé para economizar alguma coisa e comprar... Entrava numa pastelaria, as pastelarias são as doceiras - não são pastéis, mas doceiras - e comprava alguma coisa para comer, alguma guloseima enfim, porque o que eu ganhava era praticamente nada, tanto na drogaria quanto na loja de fazendas. Mas eu entregava religiosamente ao meu pai, no fim do mês. Então, eu comecei a ter contato com a cidade, ver… Conhecer mais a cidade, porque o meu pai e a minha madrasta não nos levavam para passear na cidade, no centro, etc., embora Campo de Ourique já fosse quase centro também. E então eu ia para a Baixa. A Baixa é o centro comercial de Lisboa - Rossio, Liberdade, eu não sei se alguns de vocês conhecem Lisboa. Então, essas avenidas, essas ruas assim, que eram históricas - são históricas ainda para mim. Era uma novidade, mas não tomava ainda como história, não lhes dava a importância histórica que elas realmente tinham, como a avenida, o Parque Eduardo VII, chegava até o Tejo, não é? Até o rio Tejo, que é um ícone de Lisboa. E o Tejo me parecia o mar, me parecia algo impressionante. Então, voltava, ia, fazia o que eu tinha que fazer e voltava, às vezes, a pé, às vezes, de elétrico, dependendo dos horários ou do tempo que me tomava. E isso me fez ter os primeiros contatos com a cidade que, realmente, era deslumbrante para o aldeão, não é? Mas nessa loja de fazendas, fiquei acho que uns dez meses e, logo em seguida, entrei numa loja de calçados, numa sapataria. E nessa loja também, era o meu terceiro emprego já, já era veterano (risos), já tinha quase doze anos, era veterano de trabalho (risos) nessa época. E nessa sapataria também fazia um pouco de tudo. Ajudava, arrumava os calçados, trazia os sapatos que… Não era um vendedor, mas ajudava o vendedor que atendia as outras pessoas a trazer o sapato com o número certo, com o calçado certo, etc. Então, aí, nessa sapataria, fiquei mais uns dez ou… Menos de um ano também. Aí começou a me despertar um pouco a minha puberdade, porque via aquelas mulheres elegantes, que iam buscar sapatos. E daí, comecei a aprender também um pouco da sacanagem dos adultos. Porque eu me lembro de que havia uns espelhos em que as clientes olhavam se os sapatos ficavam corretos ou não. Aí, você começa a espiar, principalmente naquela época, era muito difícil a mulher usar calça, usava saia, então, era como… Isso, os vendedores antigos, os adultos, nos ensinavam a ficar olhando pelo espelho o que pudesse aparecer de… Enfim, era o primeiro contato assim com a puberdade, com a… Como é que eu chamaria? De… Quando se começa a entrar um pouco na adolescência, começa a se deixar a infância para entrar na adolescência. Então, o trabalho na sapataria foi até o momento em que a gente imigrou para o Brasil.
P/1 – Vamos então fazer uma pausa, só que eu ainda quero fazer algumas perguntas. E nessa entrada na adolescência, “seu” Neves, acabou tendo alguma mulher que o senhor acabou se apaixonando, ou algum romance?
R – Não, não, não. Lá, não. Tinha tido uma namoradinha, mas aos sete, oito anos, que eu já contei sobre isso, mas não. Mas até lá, não. Na verdade, essa relação homem e mulher começou já mais aqui no Brasil. Em Portugal não tinha.
P/1 – E ainda nesses três anos em Lisboa, como ficava o seu contato com os seus avós e com quem tinha ficado na aldeia?
R – Não tinha. Eu não tinha contato, não. Não tive mais contato. Desde que saí da aldeia, eu só voltei à aldeia vinte anos depois. Não tive mais contato. Meu pai, sim, foi mais uma vez para se despedir, etc., quando eles decidiram. Não a gente. Decidimos que deveríamos imigrar para o Brasil, mas não tive mais contato com…
P/1 – E, “seu” Neves, qual a lembrança mais antiga que o senhor tem de começar a ouvir falar de ir para o Brasil, sair de Portugal?
R – Foi um ano… A minha madrasta tinha uma irmã aqui no Brasil e ela trabalhava em casa… Era uma espécie de governanta em casa de família, não é? E ela começou a insistir muito para que a família viesse para cá, a irmã da minha madrasta. E ela insistiu tanto, pintava o eldorado que era o Brasil, que, finalmente, o meu pai e a minha madrasta se convenceram de que a gente deveria vir para cá. Obviamente, a gente não teve nenhuma participação na decisão, a gente simplesmente... Então, foi a partir daí. Ela, a irmã da minha madrasta, já havia até arranjado emprego para… Mesmo porque era necessário, nessa época, ter uma carta de chamada. Uma carta de chamada era a garantia de emprego para que pudéssemos vir e entrarmos no Brasil como imigrantes, não é? Foi por aí que se decidiu, começou a conversar, quer dizer, meu pai e a minha madrasta falavam e se decidiu, então, vir para cá, migrar para o Brasil.
P/1 – E qual era a imagem que vinha sobre o Brasil? O que estava no imaginário sobre como era o Brasil?
R – Bom, a gente imaginava outra vez, o eldorado. Porque todos falavam que o Brasil era o país do futuro, não é? Continua sendo, até hoje, no fundo (risos), o país do futuro. Mas já naquela época, já era. E, naquela época, com muito mais razão do que hoje, eu imagino. Porque, naquela época, havia, efetivamente, oportunidade para todos, para quem quisesse vir, quisesse trabalhar, estivesse disposto a trabalhar. Era, realmente, um país do futuro. Então, realmente, a imagem que a gente tinha era de que a gente chegaria aqui e já ficaria bem de tudo. Não era exatamente assim, mas era… A gente poderia considerar o país como muito mais de futuro do que hoje, não é?
P/1 –E como vocês começaram a arrumar as coisas para vir, o momento decisivo que veio: “Vamos mesmo, vamos começar a nos organizar”?
R – Aí, começaram, meu pai e a… Começaram a vender algumas coisas que seriam inúteis trazer para cá e aí, encaixotaram aquilo que deveria vir para cá. As viagens, nessa época, eram de navio. Os voos comerciais não eram tão habituais, então, nessa época, os navios ainda tinham uma função de transporte, uma função de transporte de pessoas, não essa função turística que têm hoje. Porque hoje, essa função de transporte intercontinental está mais voltada para avião do que para navios. O navio hoje tem uma função mais turística do que na época. Então, arrumamos tudo o que precisava. Primeiro, a gente precisava arranjar passaportes também. Bom, era a burocracia da época, não é? Então nós… Uma vez que tudo isso foi arranjado, foi marcada a viagem e nós viajamos pelo Santa Cruz, Santa Cruz era um dos maiores transatlânticos europeus na época, era muito importante, e a função dele, na época, era transportar gente. Então, tinha primeira classe, segunda classe, terceira classe no navio, e por lá viemos. É muito interessante as recordações que eu tenho do embarque, porque o embarque vai uma porção de gente ver e aquela sensação da gente querendo ficar, os outros querendo ir junto com a gente e a sensação de quando a sirene do navio começa a ecoar com a partida. A gente sobe no navio, e já de longe começa a ver as pessoas como um formigueiro, se dispersando, não é? É uma sensação muito… A gente não tinha ainda essa ideia de deixar um país para ir para outro. Mas sente como se fosse a última vez, e para muitos é a última vez mesmo que vê. Para o meu paí, para a minha madrasta, para minha irmã, foi a última vez, mesmo. Eu tive a oportunidade de voltar muitas, muitas, muitas vezes a Portugal. Voltei muitas vezes, mas para eles foi, realmente, a última vez que viram o Continente, o país se afastar e as pessoas como um formigueiro, ir cada um para a sua vida. É uma imagem muito estranha, é bela, triste e estranha ao mesmo tempo.
P/1 – Alguém foi se despedir de vocês?
R – Sim! Todos os irmãos, as pessoas que a gente conhecia, pessoal da vila. Na vila havia… era quase uma comunidade, porque todos moravam muito tempo juntos. Então, eram como irmãos. O pessoal da vila foi todo, quase todos foram, os que podiam ir, os que não tinham compromisso de trabalho, alguma coisa, e os familiares da minha madrasta, os filhos dela, enfim… Com os filhos dela, a gente sempre teve uma relação muito boa, muito melhor só que com ela (risos). Nunca tivemos problemas assim, com os filhos dela. Então, sim, havia muitas pessoas que foram ao nosso embarque lá.
P/1 – E o que era falado? O que essas pessoas que foram se despedir falavam para vocês?
R – Não tenho muita recordação, mas as despedidas são muito emotivas, não é? São emotivas, são mais de boa viagem, boa sorte, boa… Enfim, volte logo, volte quando puder - era mais ou menos isso. Então, a despedida representava mais uma emoção do que propriamente uma verbalização do que a gente fazia.
P/1 – E o que vocês levaram na mala?
R – Na mala? Não lembro de muita coisa do que veio, mas lembro da máquina Singer que (risos) veio em um dos caixotes - a máquina de costura Singer, que durou até o falecimento da minha madrasta - que ela usava, que tinha uns oitenta anos. Tem um relógio que está na minha casa, que tem uns cem anos - um relógio de parede que está na minha casa. E, de resto, roupas, algumas coisas de colchas, de lençóis, de uso assim mais diário, não é? Mas, de resto, não lembro de muita coisa do que nós trouxemos. Eu lembro, vivamente, disso porque eram coisas que… Lembro da máquina fotográfica do meu pai, que era um caixotinho, assim, daquelas Kodak bem antigas. O que mais? De resto, não lembro de muita coisa que veio de lá não. As nossa roupas do dia a dia.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse como era o dia a dia no navio.
R – Ah, o dia a dia do navio? Nós viemos numa segunda classe. Tinha a primeira classe, que era em cima; a segunda classe e a terceira classe eram mais ou menos coletivas, não é? Então, havia os dormitórios das mulheres, os dormitórios dos homens, eram coisas coletivas. A segunda classe já eram camarotes separados, já com famílias, eu não sei como o meu pai conseguiu um camarote e nós pudemos viajar em camarotes, não na terceira e nem na primeira, mas numa classe intermediária. Normalmente… E na terceira classe era um pessoal mais abastado, mais… O navio tinha de tudo que era possível ter na época, de moderno, etc., era, realmente, um navio bastante bom, que não devia nada aos transatlânticos de hoje, de turismo, enfim. Então, tinha as suas piscinas, os seus locais de lazer. Lazer tinha… Eu não tenho muita recordação do que tinha de lazer, mas tinha. E aí, os horários de refeições, as refeições, eram abundantes, não tinha nenhum problema de refeições, eram boas, de boa qualidade. De lazer, eu me lembro que quando estávamos para chegar… Nós passamos por três portos - um era a Ilha da Madeira, a gente saía de Lisboa, o primeiro porto em que deixaram algumas pessoas e entraram outras foi a Ilha da Madeira. Depois, foi Açores. E qual era o outro? E depois, já seria Recife, o porto seguinte. Eu lembro que, na véspera de Recife... Havia uma espécie de jogo de malha, e tinha um tabuleiro e, assim, números. E a gente jogava… Era uma rodela de borracha, a gente jogava para acertar… Tinha os números, os números de um a dez, alguma coisa assim, e você ia pontuando de acordo com o que você fosse encaixando, enquanto jogava. Em um desses jogos, que eu me atrevi a jogar um pouco, fiquei com raiva e joguei a malha no chão, ela ricocheteou e foi atingir a testa de um senhor (risos). Abriu um pouco e fez um ferimento nele aqui, não é? O meu pai me deixou de castigo o resto da viagem, não saí mais (risos), não saí mais do camarote. Ele foi atendido, nada grave, mas o fato de eu ter feito isso me custou o castigo… Então, não vi Recife, não vi Salvador, que eram os próximo portos - Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
P/2 – E desembarcava? Era comum desembarcar?
R –Não, o desembarque só era permitido em Salvador.
P/2 – Você já não fez isso?
R – Nos outros não era permitido, a gente via o porto, etc., via tudo, mas não era permitido o desembarque. Também não me pergunte porque era permitido em Salvador e não era permitido no Recife e no Rio de Janeiro, mas não era permitido. Então, eu fiquei de castigo o resto da viagem, Recife, Salvador, Rio de Janeiro. Só fui liberado do camarote aqui em Santos, quando chegamos aqui. É isso. Eu era bonzinho, sempre fui um pouco tranquilo, mas nem tanto também, também tinha as minhas traquinagens aqui que eu fazia de vez em quando.
P/1 – Antes da chegada que eu acabei perguntando, nesse tempo que o senhor teve que ficar trancado no camarote... É camarote que se chama, não é?
R – É, camarote.
P/1 – O que o senhor fazia lá dentro? Quais eram os sentimentos que vinha? E para passar o dia?
R – De raiva (risos). Um pouco de mim, um pouco do meu pai, que não me deixava sair mais. Mas como não tinha… No camarote não tinha outros jogos, era complicado porque a única coisa que você podia ver era… Pela janela do navio, como que chama? A comporta? Não, era… Bom, tem um nome específico para isso, mas enfim… Foi bastante chato. Isso me trazia também algum certo enjoo, então algum tempo passei enjoado também.
P/2 – Você saía para comer? Você podia sair para comer? Para fazer as refeições e voltar?
R – Para comer, sim. Para comer, podia sair, então eram os intervalos. Mas não podia mais ir para a área de lazer, não podia mais ir para nenhum lugar, fiquei fechado.
P/1 – E como foi a chegada em Santos?
R – A chegada em Santos… Não tenho muita memória assim, de como foi chegar. Mas eu lembro de que passamos pela alfândega, esperamos pelas coisas que vieram nas malas, nos caixotes; naquela época era mais… Imigrante não carrega muita mala, carrega mais caixotes mesmo, enfim, esperávamos que passassem pelas alfândega também. E aí eram examinados ou não examinados. Naquela época, não se examinava muito porque não havia muito tráfico de droga também. Não havia também muito contrabando, porque não havia o que contrabandear também; enfim, então passava tudo meio livremente. E como era de imigrantes, para ficar aqui, então não havia muito problema. Mas eu me lembro de que a irmã da minha madrasta nos esperava no porto e nós fomos… Depois que liberamos tudo, fomos para uma casa no Guarujá, não lembro de que forma a gente foi, mas eu lembro que fomos dormir na casa da família de quem ela era governanta na época e fomos dormir lá no Guarujá. Curiosamente, eu só voltei ao Guarujá uns trinta anos depois, não voltei mais ao Guarujá. E foi profissionalmente, nem foi por turismo ou outra coisa. Não por nada, simplesmente nunca mais fui ao Guarujá. Dormimos uma noite lá e depois viemos para São Paulo.
P/1 – E o primeiro contato com o Brasil, como foram as primeiras impressões?
R – Então... Era tudo muito diferente, mas não tanto assim. Nós dormimos nessa casa, depois viemos para São Paulo, não me lembro também de que forma, não lembro, não tenho nenhuma lembrança, e trouxemos as coisas que vieram de Portugal, fomos para a Parada Inglesa, na casa de um tio do meu pai, que era irmão da minha avó. A minha avó paterna, que já havia falecido também. Esse tio Hermínio teve uma grande importância para mim, tive muito carinho, foi minha segunda família aqui. A minha terceira família. A primeira, a da aldeia; a segunda, a de Lisboa, e a terceira foi…
P/2 – Era um tio-avô, não é?
R – É, era tio-avô. E lá, nos acomodamos uns dias. E lá passou a ser o nosso ponto de referência enquanto não estávamos trabalhando, e etc. Isso era na Parada Inglesa. Esse meu tio era pipoqueiro, quer dizer, ele já era aposentado, mas vendia pipoca em uma das ruas da Parada Inglesa, na General Ataliba Leonel, junto a uma padaria. Ele punha o carrinho dele lá e lá ficava o dia todo vendendo pipoca para as pessoas. Era uma pessoa muito conhecida no bairro porque era o pipoqueiro do bairro, digamos. E então... Aí começamos a… Era o nosso ponto de referência, onde sempre nos encontrávamos, a família, enfim. E aí, começou. Foi o nosso primeiro contato com o Brasil, com São Paulo, não é? Foi a partir de lá. Meus pais - meu pai e a minha madrasta, logo em seguida…Como eles já tinham um emprego garantido, eles foram para esse emprego aqui no Jardim Europa, na rua França, foram trabalhar com uma família - o meu pai como motorista da família e a minha madrasta como uma espécie de arrumadeira da casa, enfim… E eles começaram, imediatamente, a trabalhar lá. A minha irmã começou a trabalhar também numa fábrica de aparelhos, a antiga Epel, que produzia liquidificadores, ferros elétricos, essas coisas. Ela começou a trabalhar logo lá também, perto da… Na Parada Inglesa mesmo, perto da… Então ela morou algum tempo com o meu tio. E eu morei um pouquinho, também, um pouco de tempo, com ele. Mas ela ficou mais tempo do que eu porque eu... Logo em seguida, já começou a minha adolescência enfarinhada, não é? Que mais?
P/1 – Você chegou a acompanhar o seu tio alguma vez na venda da pipoca?
R – Ah sim! Sim, eu ficava muito tempo com ele lá. Ajudava a fazer pipoca, ajudava a vender também, mas isso nas horas vagas, não é? Isso, na verdade, era até um prazer ficar junto com ele, ia comendo uma pipoca ou outra, ou um amendoinzinho, tremoços, os tremoços… vocês conhecem o tremoço? Enfim, era típico da… E havia alguns jogadores da Portuguesa de Desportos que faziam ponto lá com ele, também. Ele tinha um banco lá e eles iam sentar e conversavam, ficavam conversando com o pessoal que frequentava a padaria, porque era junto da padaria. Ele até utilizava a eletricidade que precisava para o carrinho, usava da padaria, eram todos amigos da padaria e de lá. Então, ajudava sim. Ajudava no carrinho. Um tempo, como eu não tinha nenhuma função ainda, nos primeiros meses, eu cheguei a aprender a ser barbeiro em uma barbearia, amigos deles também, do meu tio. Então, eu fiquei um mês e pouco lá, mas depois, entrei em outro ciclo, que era o de padarias, até conseguir outra. Mas eu sobrei, porque minha irmã empregada, o meu pai e minha madrasta empregados - eles moravam na própria residência onde eles trabalhavam - tinham uma edícula boa lá, moravam bem até porque a edícula era muito boa. Enfim, então eles moravam lá, a cada duas semanas tinham uma folga - um domingo a cada duas semanas - a minha irmã, como trabalhava perto, também. Mas depois, também a minha irmã foi trabalhar… Abriu uma vaga de… Uma das filhas do casal onde eles trabalhavam teve bebê e então precisavam de uma baby-sitter, então, lá foi a minha irmã também viver com eles, como baby-sitter nessa época, não é? E eu sobrei. Eu sobrei um pouco. Então, não sei se tem alguma pergunta mais…
P/1 – O senhor que vai me ajudar agora para ver se a pergunta faz sentido nesse momento ou se essa pergunta fica para depois, tá? Porque eu tenho muito interesse em saber agora como surgiu essa oportunidade do senhor começar a sua juventude enfarinhada, não é? Mas se teve algum momento antes do senhor começar a se apropriar das ruas, que da mesma forma que o senhor começou a conhecer Lisboa, também teve essa oportunidade de conhecer um pouco desse ambiente de São Paulo. Aí, o senhor que conhece a história, o senhor que vai me ajudar a ver qual que faz sentido agora.
R – Então... Como eu não tinha ainda um rumo definido do que fazer, estava então com doze anos - doze para treze, não é? - aí começa a minha adolescência enfarinhada, porque é o ciclo de padarias, é o estigma de todo português que vinha na época - ou ia trabalhar em padaria, ou em mercearia, ou em bar. Não escapava daí. Um parente de Santos, que eu nem lembro que tipo de parentesco tinha, comprou uma padaria na Vila Maria Alta - rua Padre Sabóia de Medeiros, ou Avenida Padre… não me lembro mais também. Então, como eu não tinha ainda um rumo definido, não tinha pensado também em estudar mais, etc., mesmo porque eu não tinha como estudar na época, eles me levaram para lá, para trabalhar na padaria, mas o salário era dormir, ter um lugar para dormir e ficar. Nessa época, a Parada Inglesa, Vila Maria, a maioria desses bairros de subúrbio - porque então era subúrbio, hoje são quase centro estendido, não é? -, não era asfaltado, a maioria não era asfaltado, só as ruas centrais é que tinham asfalto, o resto era tudo de terra ainda, na época. Mas eu fui trabalhar nessa padaria, de um parente de Santos, que, realmente, nem lembro que tipo de parentesco havia porque não tive muita relação afetiva assim com eles também, não é? Lá na Vila Maria. Então eu dormia lá, trabalhava lá, trabalhava à noite e de dia; à noite, eu ajudava a fazer pão, etc., ajudava a fazer as coisas da padaria e dormia por lá mesmo. Onde é que eu dormia? Dormia num tabuleiro, um tabuleiro desses em que se fazia pão, nas costas de um tabuleiro. Ou dormia nos sacos de farinha, em cima de sacos de farinha. Então, essa foi a minha residência durante dois anos, mais ou menos. Durante o dia, eu ajudava a entregar pão. Essa padaria tinha uma carroça e um cavalo; de manhã, a gente saía com o tio Claudino. Claudino era o dono da padaria, chefe da família, que também era padeiro e confeiteiro, ao mesmo tempo. Então, eu saía com ele, íamos entregar pão nos empórios, nos empórios e pequenos botecos que abriam e que precisavam de pão. A gente ia fazer essa entrega de pães na carroça, com o cavalo. Fazíamos essas entregas pela manhã e depois voltávamos à padaria e talvez eu ia dormir um pouco, ou não. Dependendo do trabalho que tinha, eu não tinha horário nem para dormir, nem para descansar, fazia quando dava tempo, e etc. Mas não ganhava absolutamente nada, era só pela possibilidade de ter um lugar para dormir e ir aprendendo alguma coisa, a fazer alguma coisa. Isso durante dois anos, mais ou menos, foi em 1958. Lembro-me de que na Copa de 1958, na Copa do Mundo da Suécia, em 1958, a gente ficava… Tinha a padaria, embaixo tinha uma moradia, eu... Eles moravam, e existiam algumas edículas, algumas casas que eles alugavam também. E em cima, no nível da rua, tinha a padaria mesmo. E em cima, tinha um sobrado que era a sede de um clube de várzea. Porque, nessa época, a Vila Maria, Vila Sabrina, Vila Munhoz, Vila Novo Mundo eram várzeas de campos de futebol, não tinha nada, não tinha casa, não tinha nada nessa época, eram campos de futebol, então, era uma infinidade de campos de várzea. E nesse sobrado, era a sede do Clube Esportivo do Alto da Vila Maria, alguma coisa, e ali havia bailes, principalmente os antigos bailes de gafieira, no fim de semana, no sábado, domingo, eram bailes de gafieira. E lembro-me de que, em 1958, na Copa do Mundo, na Suécia, os jogos eram transmitidos ou pela Rádio Panamericana, com o Geraldo José de Almeida, ou pela Rádio Bandeirantes, que era o Pedro Luiz e Edson Leite - eram os melhores locutores da época, não é? Eram transmitidos por alto-falantes na varanda, então todo mundo se juntava, a televisão não transmitia nessa época - não transmitia jogos - e quase ninguém tinha televisão também, era pouca gente que tinha televisão nessa época, embora ela já fosse… em 1954 que chegou, desde 1954 já havia. Então, nos horários de jogos, se formava um monte de gente junto à padaria, das ruas vizinhas, que vinham escutar os jogos da Copa do Mundo. Então, era uma catarse que se formava quando o Brasil marcava gol, tinha alguma vitória, etc. Era fantástico. Mas a primeira padaria foi aí, mas não a última.
P/1 – Mas nesses dois anos que o senhor ficou nessa padaria, o senhor visitava o seu pai, a sua madrasta? Como que ficou essa relação?
R – De vez em quando a gente se encontrava na casa do tio Hermínio. Lá era o nosso ponto de referência, era onde nós íamos sempre nos encontrar. Às vezes, eu ia… Para ir da Vila Maria até lá era um bocado, mas eu ia a pé. Da Vila Maria até… Passava pela Vila Medeiros, etc., ia até a Parada Inglesa. A maioria das vezes eu ia a pé, aliás, sempre a pé, porque eu não lembro de transporte da Parada Inglesa para lá, não lembro. Então, ia sempre a pé, era uma caminhada de uma hora, uma coisa assim, mas não mais do que isso também.
P/2 – Então vocês conversavam, nessas reuniões com o seu pai, na casa do tio, sobre a sua profissão? Sobre o que você estava fazendo lá, com o seu pai, lá na padaria?
R – Olha, o meu pai apareceu lá na padaria acho que umas duas vezes, no máximo, nesses dois anos. Onde a gente se encontrava, a gente conversava, mas nada…
P/2 – Não falava de profissão?
R – É, como eu não ganhava salário, não contribuía com nada em casa, de vez em quando eu ganhava algum dinheirinho lá da família, mas que eu ia gastar no cinema da Vista Alegre - tinha um cinema lá que era a minha diversão principal, era onde eu me divertia mais. Mas não tinha assim, muita conversa não. Só quando essa família acabou vendendo a padaria, eu fui para outra padaria, na Vista Alegre que não era muito longe da Vila Maria, era uma padaria maior, já mais organizada, e etc. Aí eu já ganhava um salariozinho, mas dormia lá também. Também dormindo lá, mas já tinha pelo menos um colchão, alguma coisa para morar lá. Aí, o meu pai, sim, já ia lá buscar mensalmente (risos), o que eu ganhava… Eu não julgo que isso fosse com o espírito de exploração, não é isso, porque era assim... A gente trabalhava no conjunto da família, nós tínhamos obrigação de contribuir com o que pudesse no final do mês, enfim, não imagino que fosse com o espírito de pai explorar o filho, ou alguma coisa assim. Mesmo porque isso ia tudo para um caixa só e que depois se transformaria na compra de uma casa, na compra de alguma coisa que era também… Era da família. Então, eu não julgo isso como espírito de exploração, mas como espírito de administrando a família. Nessa padaria, eu fiquei uns seis ou oito meses, mas logo depois, um dia, ele apareceu lá para me levar, mandou eu arrumar as coisas e irmos para uma outra padaria.
P/1 – Quem?
R – O meu pai. Para uma outra padaria, mas aí, já era uma padaria aqui na Pamplona, no Jardim Paulista, já era algo mais organizado. Porque, nessa época, havia muitos entregadores de pão, com carroças ou com triciclos, eles compravam o pão na padaria… era habitual, era cotidiano do trabalho de padarias aprontarem para os seus entregadores… entregadores autônomos, na verdade, eles não eram empregados da padaria, esses entregadores de pão, então eles pegavam o pão pela manhã, com seus carros, uma espécie de pequenas peruas como Torino, Fiorino, alguma coisa assim, ou com triciclos, e iam entregando pão e leite. Nas casas do Jardim América, do Jardim Paulista, enfim, nas casas com mais posses, de famílias ricas. Então, o meu pai havia feito amizade com um desses entregadores de pão, lá na França Pinto, e aí, entre uma conversa entre eles, surgiu a possibilidade de eu ir trabalhar em outra padaria, na Rua Pamplona. A partir daí então, eu saí lá da Vista Alegre e fui trabalhar na Rua Pamplona. E aí já não morava mais na padaria, já tinha um upgrade assim, eu morava na Brigadeiro Luiz Antônio, ao lado do Paramount - Teatro Paramount - num bar que era da família Silva, que era a família amiga da irmã da minha madrasta, a que nos havia trazido, Francelina. Eles moravam em Campo Belo, mas tinham um bar na Brigadeiro Luiz Antônio. O bar era grande, era imenso, e lá atrás tinha uma residência que não era utilizada por ninguém, tinha dois quartos, tinha mais não sei o quê, e aí eu trabalhava na padaria de dia e à noite - ou da tarde para a noite, sei lá - ajudava no bar e, em troca, eu dormia lá no bar também.
P/1 – Mas só o senhor foi ou foram também o seu pai e a sua madrasta?
R – Não, não, não… Só eu. Eles continuavam lá com a família da rua França Pinto. Na mesmo família original, ficaram cinco anos lá. E a minha irmã também ficou lá durante um tempo, depois, ela foi… Ela saiu também, foi ser baby-sitter na família Pereira Barreto, que era uma família conhecida também e depois ela teve uma outra carreira. De baby-sitter ela foi ser… A família Pereira Barreto tinha uma Financeira e levou a minha irmã para a Financeira, depois de baby-sitter, de trabalhar como baby-sitter. Como ela era uma funcionária de confiança, de absoluta confiança, levaram-na para a Financeira, aí ela já teve outro tipo de carreira, outra coisa. Mas eu continuei ainda na padaria e no bar. Lá, no bar… Eu até gostava de ficar no bar, porque lá eu conhecia muita gente, muitos artistas que iam lá no bar, principalmente as vedetes da companhia Valter Pinto, enfim, e muitas outras atrações internacionais. Porque o Paramount, na época, era o maior teatro de atrações internacionais e de revistas e outras coisas assim, não é?
P/1 – “Seu” Neves, falando ainda da padaria e do bar, eu tenho algumas perguntas sobre eles. A primeira é: tinha nome tanto o bar quanto a padaria?
R – A padaria era Super Pão. E o bar… aí, aí, aí… O bar, eu não lembro como é que chamava, mas a padaria era Super Pão. Tinha duas padarias Super Pão - uma que ficava na Pamplona e outra na rua Estados Unidos, quase esquina com a rua Augusta, que era a Matriz. Uma era a Matriz e a outra era a filial. A Matriz era na rua Estados Unidos; a Pamplona era a filial.
P/1 – E o senhor já falou um pouco sobre quem frequentava o bar principalmente, mas…
R – O bar era frequentado… Bom, durante o dia, eram crianças normais, porque era bar e restaurante, era um restaurante. Mas era um restaurante assim simples, não era onde o prato principal era o comercial e era o… Que mais? Bom, enfim, era um prato que era tabelado na época, esses pratos eram tabelados, no podia cobrar nem mais e nem menos. E, à noite, então, mudava o aspecto dos clientes - o perfil dos clientes - e aí já começava a vir mais o público do teatro, ou alguns artistas que apareciam por lá também, porque o bar mais próximo era por ali. Então, várias vedetes que apareciam por lá, como Marly Marley, como Virgínia Lane, como Íris Bruzzi, uma porção que eram ícones na época, hoje são desconhecidas praticamente, mas que, naquela época, eram figuras de proa do teatro de revista. O teatro de revista ainda era importante na época, hoje já não… Acho que nem existe mais o teatro revista praticamente, como era na época. Mas esse era o perfil dos clientes que iam lá no bar.
P/1 – E o senhor jovem, vendo essas pessoas, como que o senhor se relacionava com eles?
R – Era um misto de curiosidade, era mais de curiosidade do que uma relação mais… A relação era mais de vê-los visualmente, mas não verbal - havia pouco relacionamento verbal - mesmo porque eu tinha treze para quatorze anos, não é? Naquela época, com essa idade, não se podia trabalhar em bares, não é? De vez em quando, o Juizado de Menores dava uma busca por lá, então como eu passava por sobrinho do dono, alguma coisa, e como eu morava lá, então era mais fácil. Mas o Juizado de Menores era na rua Asdrúbal do Nascimento, bem pertinho também, e de vez em quando, baixava lá. Mas, principalmente, por causa das pessoas de teatro, e etc. E então não havia um relacionamento grande, era mais de curiosidade visual, de conhecer, de ver, de cumprimentar, um bom dia, boa noite ou alguma coisa assim. Mas não havia… Não tive maior assim, relacionamento com essas pessoas.
P/1 – E já nessa época, o que o senhor já sabia fazer de padaria? O que o senhor já dominava nessa parte da cozinha, da confeitaria, padaria?
R – Bom de cozinha, eu era ajudante de cozinha, então ajudava a fazer uma coisa ou outra, lavar a louça também, não era… Nunca fui um bom aprendiz de culinária. Aliás, nem hoje eu sou (risos). A única coisa que não faço em casa hoje é a culinária; de resto, tudo. Mas de padaria, ajudava… Já na Pamplona, na Super Pão, eu não ajudava como ajudante de padeiro, mas fazia entregas de pão também, era mais atendimento de público. E no atendimento de público, sim, eu fui me especializando um pouco mais, fui tendo mais versatilidade para atender as pessoas, enfim… Mas eu me lembro de que como entregador de pão, a gente ia entregar pão… Tinha um senhor, que era o “seu” Rosa, nós íamos na bicicleta entregar pão na Telefônica, na Light, no prédio da telefônica lá na Sete de Abril, na Light, no antigo Fasano do Conjunto Nacional, muito antes de mudar lá para… Ocupava todo um andar do Conjunto Nacional, o Fasano nessa época, era luxuosíssimo - bom, continua luxuoso, ainda, não é? E fazia entregas também nas residências. Mas aí, eu comecei a lidar mais com o público, no atendimento de balcão, etc., comecei a ter esse contato mais social. Porque antes, era um trabalho mais de bastidores, em que você não tinha muito contato com as pessoas. E a partir do balcão, quando comecei a atender o balcão, comecei a ter mais relacionamento, a ter mais contato social, conhecer mais as pessoas... As pessoas se conhecem, passam a te conhecer, não é? Enfim…
P/1 – E viver nesse novo bairro de São Paulo, diferente do outro? Como que o senhor foi se apropriando dessa nova região?
R – A gente vai mudando um pouco os hábitos, os costumes, a gente começa… Queira ou não, a gente começa a ficar um pouco mais refinado também, um pouco mais sociável, um pouco mais disciplinado, um pouco mais… Enfim, é um processo de crescimento social, começa a te fortalecer um pouco também.
P/1 – E na parte social, para se divertir, o senhor fez amizades? Quais eram as diversões na época?
R – Na época, eu gostava de cinema. Então, a minha diversão principal era cinema, sempre gostei de cinema. Quer dizer, a partir do momento em que conheci o cinema. Então, a minha diversão maior era o cinema, ou quando nos encontrávamos, na casa do meu tio, não é? O contato social com os primos, com os netos do meu tio, começava a crescer também, não é? Começavam a… Porque eram crianças, mas que… E eu já era um pouco mais adolescente, mas começávamos a nos relacionar um pouco mais.
P/1 – Mas o senhor se recorda da primeira vez em que foi ao cinema?
R – A primeira vez foi em Lisboa mesmo. Aliás, a primeira e única vez em que eu fui ao cinema foi em Lisboa, mesmo, e fui ver um filme de… A Rainha Anastácia, pode ser? Com Yul Brynner, ou… Acho que era Anastácia, o nome do filme. Eu não me lembro exatamente [Anastácia, a Princesa Esquecida], mas eu lembro do Yul Brynner, e a atriz eu não lembro quem era. Mas foi a primeira e única vez em que eu fui ao cinema em Lisboa, não é? Depois, aqui, não lembro qual foi o primeiro, não. Mas foram… Eu assisti muito filme, muito filme. Antigamente, os cinemas aqui estavam espalhados pelas ruas, enfim, tinha mais cinemas em São Paulo do que no resto do país, eu acho. Espalhados sempre pelas ruas. E boa arte dos cinemas do centro, passavam dois, três filmes com a mesma entrada, com a mesma sessão, então, às vezes, eu ficava quatro horas no cinema assistindo… Mas era muito ainda de faroeste, de chanchadas brasileiras, naquela época. De Nair Belo. Enfim, todos esses grandes artistas brasileiros, não sei se grandes, mas enfim, era o que eles tinham na época das chanchadas brasileiras. E de filmes assim, predominavam filmes americanos, o cinema americano - como hoje ainda - mas era muito de faroeste. E alguns dramas também. Então, o meu lazer principal era cinema, ainda não tinha outros lazeres assim mais... Que eu lembre, assim… Às vezes ia a um parque ou outro, mas nada especial. Ainda era uma vida… Ainda levava uma vida um pouco fechada, um pouco… Não tinha maiores amigos, não tinha maiores amizades, era uma vida um pouco solitária, ainda.
P/1 – E quando que isso muda? Existe algum momento que acontece alguma ruptura talvez, que o senhor começa a ter uma certa independência, pensando na vida adulta?
R – Então, ela coincide já com o final… Porque depois ainda dessa padaria, estive ainda em mais duas padarias, não é? Teve a Americana, que era lá na Cardoso de Almeida, nas Perdizes, e de novo, a Super Pão mas já na Matriz. E aí, encerrou-se o meu ciclo de padarias. Aí, comecei… Essa ruptura começou quando eu comecei… Fui ser vendedor da Duchen. Eu deixei o meu ciclo enfarinhado e fui ser… Mas, de alguma forma, ainda com farinha (risos), fui ser vendedor da Duchen, a Duchen era biscoitos. E aí, fiquei três anos mais ou menos. Aí, entrei na minha vida escolar, comecei a vida escolar, aí começou… Essa ruptura começou com a minha vida escolar. A minha vida escolar foi de Madureza, eu não sei se algum de vocês já ouviu falar em Madureza? Que é uma espécie de supletivo, hoje. Então, eu fiz seis meses de Madureza, de ginásio na Escola Dom Bosco, lá na rua Formosa, e depois mais seis meses de Clássico. Antigamente, existia o Ginásio, depois do Ginásio havia o Científico, o Clássico ou Técnico, era isso? Era isso, não é? Então, eu frequentei… Madureza era uma escola informal, não era uma escola formal, mas que lhe permitia, naquela época, se você se propusesse a fazer exames de Ginásio ou do Clássico, você podia fazer em algumas escolas, havia períodos para isso, para esses exames de Madureza. E se você passasse nas matérias, você ficava, você era um ginasiano ou um secundarista.
P/1 – Mas o que motivou o senhor a procurar…?
R – Eu comecei a ter… Na última padaria, que foi a Super Pão, eu comecei a ter contato com muita gente, com muita gente importante, que me estimulava a estudar: “Você não é para ficar na padaria, você tem que estudar”. Clientes com os quais eu começava a ter uma relação; tinha uma certa aptidão; eu era educado; eu era gentil com as pessoas, etc., etc., elas também eram gentis comigo. Então, essa troca… Gentilezas que… Essa troca de relações gentis, que uma chama a outra, enfim, e eles começaram a me estimular: “Você precisa estudar”. Tinha um capitão do exército boliviano - chamava-se Jorge - que foi expulso do Exército lá porque era revolucionário, enfim, e veio para cá... E ele trabalhava também comigo na padaria e tinha grande influência nisso, também: “Tiene que estudiar”. E havia um vendedor também, da Duchen, na época, que me atendia lá na padaria, porque era comprador da padaria, eu era comprador, já nessa época, da padaria, e ele também insistia: “Você tem que estudar”. E ele fez mais do que isso: ele procurou escola, me matriculou lá e depois eu fui trabalhar com ele também. Mas ele me matriculou e me forçou a ir lá. Então, começa a haver uma ruptura também mais intelectual, começa a haver uma formação maior. Eu fiz o Ginásio, em seis meses eu completei o ginásio. Depois fui para o Clássico. O Clássico, na época, as matérias principais eram Literatura, Filosofia, Psicologia… O que mais? História, Português, Literatura Portuguesa, que estava mais ou menos ligada, e Matemática. Então eu comecei a… Tive uma professora que foi fundamental, no Clássico. No Ginásio, eu tive vários professores assim, mas nenhum assim, que transcendesse. Mas no Clássico, eu tive uma professora que dava Filosofia e Literatura. Isso para mim foi um corte, realmente, com tudo. Eu comecei a ler de tudo. Eu já lia, eu já tinha algumas leituras - mais gibis, revistinha em quadrinhos, coisas assim sem a menor importância - mas o que ela despertou na classe, o interesse pela Filosofia, pela Literatura foi algo extraordinário, foi de um efeito fantástico. Eu nunca mais vi essa professora. Ela, realmente, não sabe a importância que ela teve, eu já tentei procurá-la nas redes e não consigo…
P/1 – Qual era o nome dela?
R – Ana Maria… mas não sei o… Não lembro o sobrenome. Nunca mais consegui. Mas ela fazia Filosofia na USP, na Maria Antônia, ali na… Lembra da Maria Antônia, por ali?
P/1 – Sim.
R – E ela, realmente, teve uma importância assim, fundamental, no que eu havia escolhido… Depois, eu me desviei um pouco também, não é? Mas a minha formação humanística, ela é fundamentada em tudo que ela me transmitiu, o que ela fez, o que ela nos proporcionou. Assim como você nos proporcionou toda uma revisão de vida, toda uma coisa assim, ela nos proporcionou para o futuro, não é? Então, a partir daí, eu comecei a ler muito, comecei a ler, ler, ler… Eu lia de tudo o que aparecia na mão, eu comecei a ler, principalmente, as coisas ligadas à Literatura e à Filosofia. Então, eu comecei a entrar na Filosofia grega, na Filosofia… Enfim, todo esse arcabouço de conhecimento teve uma importância fundamental na minha formação humanística, não é?
P/1 – Ainda com essa professora, eu queria entender como ela abordava o tema durante os encontros para fazer com que vocês se sentissem motivados também a procurar a Literatura, a ler, como que isso era abordado na sala de aula?
R – A motivação principal dela era o entusiasmo com que ela transmitia as aulas. Ela não transmitia por obrigação, ela transmitia com prazer, com… E isso se fundamentava a motivação principal, porque ela era convincente, naquilo que nos transmitia. Então, isso foi realmente fantástico.
P/1 – E teve algum livro, alguma leitura que o senhor se recorda de ter feito nesse período, que tenha sido marcante?
R – Olha, eu me lembro de um livro de Filosofia, que era de García Morente, um filósofo espanhol, filósofo educador, espanhol. Então ali foram os primeiros fundamentos que eu aprendi de Filosofia e fui desenvolvendo posteriormente. Na Literatura que ela dava também, eu comecei a conhecer… O Fernando Pessoa eu conheci por ela, português, não é? Ela babava quando falava dele, de Fernando Pessoa. Era impressionante o entusiasmo que ela colocava em todos os autores importantes. Não só da Literatura Portuguesa, como da brasileira também. Mas, especialmente, Fernando Pessoa. Nem conhecia, nunca tinha ouvido falar. Então, o Fernando Pessoa também continua sendo, através dela, continua sendo o meu guru literário. Que mais?
P/1 – E como o senhor acessava esses livros? Onde o senhor pegava esses livros?
R – Ou ia para a Biblioteca, na Mário de Andrade - lá na Biblioteca Mário de Andrade - ficava lá, todo o meu tempo livre eu ficava lendo lá, à noite. Aí, os que eu podia ir comprando, eu ia comprando. Então, para se ter uma ideia, entre 1965 e 1973, eu tinha formado uma biblioteca muito maior do que… Tinha cerca de quinhentos volumes, mais ou menos, de Literatura e de vários lugares. Quando eu comecei a trabalhar com Literatura mesmo, aliás, a viver da Literatura - não fazer Literatura - na verdade, eu já estava formado em tudo que… Quando eu comecei a trabalhar com Literatura foi profissionalmente. Foi quando eu entrei na Editora Melhoramentos. Mas, a partir daí, eu já não tive… Não tive mais aprendizado de Literatura, o meu aprendizado já estava feito até lá. Depois o que eu li já era profissionalmente, não… O que é muito diferente de quando você lê por prazer, por querer.
P/1 – Mas na linha do tempo, a entrada na Melhoramentos já é a etapa a seguir?
R – Não. Antes disso, eu passei ainda por… em 1966, eu comecei a estudar Inglês no Instituto Roosevelt - não sei se alguns de vocês conheceu, não existe mais. Mas era na época, junto com União Cultural Brasil-Estados Unidos, a Fisk e a Cultura Inglesa... Eram as escolas mais importantes de idiomas, aqui de São Paulo. Comecei a estudar Inglês lá e em 1969 eu já dava aula de Inglês. Em 1969 dava aula de Português para estrangeiros e Inglês para brasileiros. Foi lá que eu conheci a Eiko, ela era a minha chefe (risos), ela era minha diretora, foi lá que eu a conheci, depois fizemos a… Mas, depois que eu trabalhei na Duchen, trabalhei na Companhia de Ceras Johnson, era uma companhia americana e, por isso mesmo, por ser americana, é que eu fui estudar Inglês também. Depois, eu trabalhei na Mesbla. Na Mesbla eu trabalhei um ano mais ou menos; depois eu trabalhei na Alcan. Alcan era uma indústria canadense de alumínio, mais conhecida como Rochedo, como as panelas Rochedo, enfim. E trabalhei na Lustres Pelotas, era uma fábrica de lustres. Aí, que eu comecei a minha fase Melhoramentos. Foi uma fase mais longa, não é? Mas eu voltei a estudar na Faculdade mesmo, em 1973, já depois de… Eu tive um intermédio aí entre a formação do Ginásio e do Clássico. Naquela época, eu me interessava muito mais pelos estudos, eu gostava de dar aula, mas não (risos) rendia o que poderia render profissionalmente. Então, por isso que eu sempre acompanhei… Dava aula e trabalhava… Trabalhava durante o dia nas empresas e dava aula à noite, no Roosevelt. Eu dei aula até 1972. A partir daí, que eu entrei na Melhoramentos, não tive mais tempo para continuar dando aulas, etc., e aí parei. Mas aí começa a minha carreira, digamos, mais longeva como profissional.
P/1 – Antes disso, eu queria saber por que Inglês? Qual era a necessidade que existia ali para o senhor procurar uma escola para…
R – Então, eu trabalhava numa empresa… Teve um momento, em que eu trabalhava algum tempo na Companhia de Ceras Johnson, que era americana. E daí… Não que exigissem o Inglês para trabalhar, mas uma coisa puxa a outra: “Eu vou estudar Inglês, eles falam Inglês, aí eu quero estudar Inglês também”. E foi a partir daí que eu comecei a… E eu saí dessa empresa porque eu tive um acidente de carro - eu já tinha comprado o meu primeiro carro, o meu primeiro fusca (risos), já era importante.
P/1 – Qual era a cor?
R – Era azul. E até tinha rádio. Eu lembro dessa expressão, porque a minha irmã tinha deixado um bilhetinho assim para mim: “O pai já comprou o carro e até tem rádio” (sussurrando), essa expressão ficou gravada para sempre. E quando eu trabalhava na… Eu fui fazer uma viagem para Uberlândia, porque eu tive um ciclo também político, uns momentos… Todos nós temos algum momento de animal político, então também tive um ciclozinho político. Tinha saído de casa, fui morar numa pensão ali na Bento Freitas e conheci um grupo de estudantes que estudavam todos em volta dali, ou na Maria Antônia… era tudo rebelde, era tudo rebelde naquela época, e em algum momento, entrei também nesses grupos de… Que, naquele momento, chamavam de células, células de… E aí, estudávamos o marxismo, o comunismo, enfim, tivemos esse momento, foi durante uns seis meses, éramos uma meia-dúzia, vivíamos todos na mesma pensão também. Aí, um dia… Eu tinha comprado um gravador, que carregava comigo, gravava tudo naquela época (risos) também, era uma loucura, me lembrava do Juruna… Alguém lembra do Juruna? Não, não é? Juruna, que sempre trazia o gravadorzinho dele. Eu trazia o meu, só que o meu era grande, era de rolo, eu levava para o cinema para gravar filme, para gravar as músicas, eu gostava muito de operetas, e levava para gravar músicas. Então, o que nós fazíamos à noite? A gente se reunia para discutir Marx, discutir Engels, para discutir Trótski, enfim, discutir todo aquele núcleo comunista - Guevara, Fidel Castro, essas coisas. Isso durou uns quatro meses, mais ou menos. Aí, um dia, eles queriam que a gente conhecesse um núcleo em Uberlândia, porque boa parte deles era de Uberlândia. Então, nós tínhamos ido para Uberlândia, mas o carro… Só eu tinha carro, embora eles fossem de famílias de posse, mas eles não tinham carro aqui. Então, só existia o meu fusquinha, não é? E no caminho, quando a gente ia para lá, a gente teve um acidente, capotou, eu ia dirigindo, uma curva lá qualquer, de madrugada, de noite, e capotamos. Enfim, o carro acabou. Por sorte, nós tivemos alguns arranhões, assim, mas nenhum problema. Então, fomos assim mesmo para Uberlândia, porque eles tinham marcado… Era num sábado e tinham marcado uma reunião com o núcleo de Uberlândia, à noite. A gente foi assim mesmo, mas como a gente não podia… Naquele dia, a reunião tinha sido adiada para o dia seguinte, a gente não pôde se reunir com o grupo, mas como nós já tínhamos tido acidente - eu e mais duas pessoas que precisavam estar de volta a São Paulo, nós voltamos e eles ficaram lá - o pessoal de Uberlândia ficou lá, os que não eram de Uberlândia voltamos. Nós nunca mais vimos esse pessoal, não tivemos mais contato, não apareceram mais na pensão (risos), nunca mais vimos. A gente não sabe, mas como as famílias eram de lá mesmo, eles podem ter resolvido ficar lá, simplesmente. Mas eles simplesmente não nos contataram mais. E não sei o que eles fizeram, se eles voltaram de novo para São Paulo ou não, porque eles estudavam aqui também, então nunca mais tivemos contato. Assim, a minha vida de animal político também acabou aí. Depois, nunca mais eu tive nenhum tipo de envolvimento. A gente sabe que, na época, teve um núcleo que foram mortos vários rebeldes lá por Uberlândia, mas não sei se foram… Como eles usavam… Os nomes não eram os verdadeiros, a gente também nunca soube… Nunca mais soube deles, não tivemos mais notícias deles. E como na época não havia nem WhatsApp e nem internet, e nem absolutamente nada, nem telefones eles tinham também, a gente perdeu o contato, não soubemos mais o que aconteceu.
P/1 – Mas nesse núcleo que o senhor comentou agora, que tinham nomes diferentes, o senhor tinha algum que fosse diferente para alguma coisa, algum momento? Vocês combinavam sobre isso?
R – Não, a gente falava muito da rebeldia, de que a gente precisava derrotar, precisava isso, precisava daquilo… Não, eu estava vendo se o meu livro estava aqui, porque eu tenho foto deles (risos), eu tenho foto deles no livro. Mas nunca mais soube deles. Mas depois também, eu não quis mais saber de… Mesmo porque eu tinha perdido o carro, tinha perdido o emprego. Junto com o carro, eu perdi o emprego. Porque não tinha mais carro para trabalhar (risos), então acabou ficando por aí mesmo a minha aventura de animal político.
P/1 – E aí, podemos falar então da entrada na Melhoramentos?
R – Ok, podemos falar da entrada na Melhoramentos. Eu trabalhava na Lustres Pelotas e, nessa época, começavam a entrar os computadores nas empresas, era um processo ainda lento, então já havia alguma coisa de computação. E nessa época, havia o que se chamava de Organização e Métodos. E havia o CPD, que era o Centro de Processamento de Dados. Eram duas coisas que se juntavam e que, enfim, definiam os bons procedimentos de administração de todas as formas. Aí, um dos meus companheiros, que era o Lunardini, saiu de lá da Lustres Pelotas para ir para a Melhoramentos, trabalhar no O&M - Organização e Métodos da Melhoramentos. Uma semana depois, ele falou: “Tem uma vaga aqui para você”. Legal. Fomos ver o que era. Foi a primeira vez que eu tive rejeição numa entrevista, rejeição… Eu nunca tive problemas para empregos, nunca. Nunca tive. Onde eu ia, sempre conseguia vaga. Mas, pela primeira vez, eu tive a primeira rejeição de emprego. Era para administração de vendas de uma das unidades da empresa. A Melhoramentos tinha várias unidades - tinha a unidade editorial; a unidade gráfica; a unidade de cadernos; a unidade de papéis, os tissue papers, os higiênicos toalhas e etc.; e tinha a unidade florestal. Quer dizer, era um grupo que compunha… Tinha todas essas unidades. Aí, não deu certo. Uma semana depois, o Lunardini de novo liga: “Olha, tem outra vaga aqui, só que é para trabalhar com…”. Eu não entendia nada de computador, absolutamente nada; aliás, eu não sei até hoje (risos), quase nada de computador. Mas era para trabalhar... Era introdução do faturamento da Editora por computador. Era… Aí, lá fui eu. Quem me entrevistou foi Arnaldo de Giacomo, que era o diretor dessa unidade - da unidade editorial. Aliás, ele cuidava de duas unidades: a unidade editorial e a unidade gráfica. Ele, não sei por que, se encantou comigo, eu me encantei com ele e aí, sem ter a menor expertise para o que o cargo exigia, acho que foi mais o que se deu entre linhas, a empatia natural entre as pessoas, ele me contratou. Então eu fui ser coordenador de faturamento por computador, que eu não entendia absolutamente nada, mas enfim, não tinha muita coisa… Quem fazia, na verdade, eram os meus auxiliares, as pessoas que trabalhavam comigo é que tinham que saber, efetivamente, de computação. Aí, fiquei um tempo coordenando, logo em seguida veio a Coordenação de Estoques e Transportes, aí eu já tinha… Estoques e Transportes também das unidades gráfica e editorial. Aí, eu já tinha quase cerca de sessenta pessoas trabalhando comigo - diretamente comigo. Aí, gradativamente, eu fui subindo, depois passei… Algum tempo depois, passei a ser assessor econômico das duas unidades, deixei as funções anteriores e passei a ser econômico das duas unidades. Depois, faleceu o Arnaldo Giacomo, meu… Ele era um grande editor, era conhecido internacionalmente. Aí, passei a ser subordinado a Francisco Marins, que é o autor do Taquara Poca - havia toda uma coleção Taquara Poca que falava sobre os contos das fazendas, enfim, os livros eram todos de leitura escolar. Passei a ser subordinado a ele, porque ele era o editor, na época, o editor-chefe da Melhoramentos. Aí como assessor econômico e de marketing. Aí, logo depois, entrou a Assessoria Econômica também. Depois, mudou a direção. Francisco Marins se desligou da Melhoramentos, depois de quarenta anos de empresa. Na Melhoramentos eram todos funcionários acima de trinta, quarenta, cinquenta anos, tinha gente de cinquenta e cinco anos de empresa, porque a Melhoramentos é uma empresa centenária - tem cento e trinta anos agora, aproximadamente. E então, esse novo diretor era um cara jovem, era Oscar Neves, não tinha nada a ver comigo (risos), muita gente confundiu e eu não sei por que, ele achou que eu deveria ir para o mercado internacional, que eu deveria ir buscar, prospectar mercados internacionais. Como eu era o único - uma das poucas pessoas que falavam Inglês na época, lá me mandou para o mercado internacional. Eu não sabia nada de mercado internacional, como também não sabia das outras coisas, mas eu sempre tive alguma facilidade de apreender e aprender as tarefas que me eram dadas, não é? Então, a partir daí, começou a minha carreira internacional. Isso foi em 1980 - de 1980 a 1998. Não… a 2005 - de 1980 a 2005. Aí, eu passei a viver mais fora do país do que aqui. Comecei a viajar constantemente, permanentemente. Não que eu ficasse muito - ia e voltava, ia e voltava, ia e voltava… Então, o tempo que eu ficava fora era entre oito e nove meses por ano, o tempo que eu ficava, sempre indo e voltando, indo e voltando… Porque eram viagens específicas. Então, comecei a trabalhar o mercado argentino aqui. Em um primeiro momento, era oferecendo serviços gráficos, porque tinha uma área gráfica importante, era a segunda gráfica, segundo parque gráfico mais antigo do país, depois da FTD. Então, começamos a oferecer serviços gráficos para editores estrangeiros, que, normalmente, a gente começa pela Argentina, que é o mercado mais próximo e enfim… E depois, começamos também a desenvolver edições infanto-juvenis para mercados de fora, que não eram, necessariamente, os mesmos livros daqui, do mercado interno, mas sim, que eram adaptados às características do mercado externo. Aí começou o meu trabalho também como uma espécie de agente literário, só que não era um agente literário, porque, além disso, acumulava outras coisas como serviço gráfico, depois também outras unidades, como papéis, enfim… Então, a gente começou a vender, também, edições da Ruth Rocha, Ziraldo... Ziraldo era o nosso principal autor fora também, por isso eu viajava muito com ele também para o lançamento de livros dele. Então, foi um trabalho de lançamentos de autores brasileiros no mercado internacional, quase sempre infanto-juvenis, com exceção do José Mauro Vasconcelos que era um autor mais adulto. Você pensou no Laranja Lima (risos)…
P/1 – Mas muitos outros também. Rosinha, minha Canoa; Doidão, todos (risos)
R – E o José Mauro ainda era vivo nessa época, mas também não muito tempo, ele acho que faleceu em 1983 ou 1984. E o primeiro livro que eu vendi, de um autor brasileiro, foi dele. Chamava ___02:10:31___, que eu acho que ele nem publicou aqui, não, ele não publicou aqui. E era o único livro infantil dele, ele não chegou a publicar aqui, foi a minha primeira venda de um autor brasileiro, foi um livro dele ____02:10:56___. Ele pintava também, então, as ilustrações eram dele também. Em todos os livros, ele ilustrava também. Para ela, atendeu em Buenos Aires. Então, Buenos Aires praticamente passou a ser a minha nova casa, eu tenho catalogadas cento e vinte e quatro viagens a Buenos Aires, ao longo desses anos. Aí, depois do mercado argentino, eu fui abrindo outros mercados. Veio o Chile, veio o Uruguai, a Venezuela. A Venezuela… Bom, a Venezuela era um mercado bem ativo na literatura infanto-juvenil nessa época, agora está uma desgraça, não é? A Colômbia, Equador, Peru, enfim, América Latina até chegar a/o México, não é? Depois, também Estados Unidos. Nos Estados Unidos, os livros infantis daqui tinham tiragens inimagináveis para a literatura infantil, eles eram distribuídos principalmente nas cadeias de supermercados - era o chamado mass market, onde a gente… Eram cadeias de supermercados e grandes magazines, como a Woolworths, que era uma cadeia de supermercados. Mas todas as grandes cadeias compravam… Eram em Inglês - os livros iam todos em Inglês - enfim, eram livros de baixo custo, mas que é uma característica do mercado americano entrar nesse tipo de mercado, de supermercado, grandes magazines, em toy stores, em lojas de brinquedos, etc. Então, depois, uma vez nos Estados Unidos, foi para a Europa. Na Europa, a gente vendia os autores brasileiros na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal, na Inglaterra, na Suécia… Não, na Suécia nunca cheguei a fazer nada, mas na Dinamarca, na Noruega, em todos esses. No Japão, na Índia - se bem que eu nunca viajei à Índia, mas eu vendia através de representantes e compradores também. Então, esses foram trinta e dois anos que eu estive na Melhoramentos e que foi onde eu tive assim, a carreira mais longa, não é?
P/1 – Existia um catálogo desses livros, mas assim... Como o senhor trouxe…? Como Fernando Pessoa era para aquela sua professora, os seus olhos brilhavam quando o senhor apresentava algum livro específico?
R – Nossa, sempre, não é? Você, normalmente, não trabalha com o livro pronto, a menos que você pretenda ter uma edição brasileira que você queira… Como no caso do O Menino Maluquinho, que, por exemplo, você tem… Isso é um aspecto importante também em relação às linguagens. Porque O Menino Maluquinho estava em quase todos esses países que eu mencionei, e em cada país, sendo a mesma língua, ele tinha títulos diferentes. Então, por exemplo, O Menino Maluquinho na Argentina era… Aí, caramba! Bom, no Chile era El Polilla; na Colômbia era El Pelado Pillas (?02:15:31), aliás, não, El Pelado Pillas era no Equador; na Colômbia era... Não lembro. Na Espanha, por exemplo, era, quando em Espanhol, era Cabeça de ___02:15:56___. E em Catalão era ___02:16:01_____. Então, mesmo sendo no mesmo idioma, você adaptava o título até mesmo... O texto em Espanhol, você adaptava às características do país. Caramba, estou tentando lembrar ainda o nome… Na Argentina, que era o principal e o primeiro, e esqueci. Era… Bom, em algum momento ele virá. Então a gente fazia isso em várias edições. No México, por exemplo, a gente vendia para o Ministério da Educação do México, e eram tiragens absolutamente incríveis. Sempre infanto-juvenis, e não era só… O Ziraldo era o autor mais vendido, mas não era só ele que a gente vendia, a gente vendia muito Ruth Rocha, Rogério Andrade, Rogério Borges, vendia o Bandeira... Como é que chamava? Da Ática, Bandeira… Esqueci. Bom, era alguma coisa… Vai-me escapando. Vendia Ciça Fittipaldi, vendia Ruth Rocha, já falei também. Para a maioria desses mercados. E as edições eram desenvolvidas para esse tipo de mercado, que poderiam ou não entrar no mercado brasileiro também. Muita coisa era vendida…Nós tínhamos uma coleção que se chamava Animais da África e que era desenhada por Rogério Andrade. Para o Ministério da Educação do México, em vários anos, em várias cidades, foram mais de um milhão de exemplares. E aqui não vendia nada, é impressionante, um milhão de exemplares, não é de uma só… Mas de vários anos seguidos que se repetiam e repetiam, não é? O que mais? Então, era um trabalho muito interessante. Agora, o brilho nos olhos era quando eu conseguia ver - e via sempre nas livrarias. Você entrava em Buenos Aires, via os nossos livros; entrando no mass market americano e via os livros, eu era o produto do seu trabalho, da sua… Então, os contatos eram feitos… Eu era a Melhoramentos lá fora. Muitas vezes, os clientes nem conheciam a Melhoramentos, conheciam a mim. Então, para eles, eu era a Melhoramentos. Foi uma… A minha ligação com a Melhoramentos foi quase visceral, que era uma empatia recíproca de confiança. Isso, em algum momento, terminou com o Plano Real. O Plano Real nos prejudicou muito na época, não é? E outra coisa importante é que, com isso, nós levamos também outros editores. Outros editores começaram a seguir nossos passos, outros editores brasileiros, mas nunca com… Não conseguiram muito sucesso. Então, eu participava de muitas Feiras Internacionais, eu participei de cerca de cento e oitenta Feiras Internacionais do Livro, não é? Você pega Feiras como a de Frankfurt ou a de Bologna. A de Bologna é a maior Feira Mundial Infanto-Juvenil; a de Frankfurt é a maior Feira Mundial, que nada se compara à Feira de Frankfurt. Bologna eu fiz durante quatorze anos seguidos e Frankfurt acho que dezesseis anos seguidos também, não é? Até chegar o momento em que o Plano Real nos tirou fora de competição e etc., como tirou os demais. Então, isso se resume um pouco à vida... À parte da vida profissional que foi… Eu considero até exitosa. Você tem problemas pessoais, não é? Era muito solitário viajar, principalmente quando você tem que trazer resultados, porque você vai com uma pressão de trazer resultados e você está só. Você está só nisso. É difícil você tomar decisões quando você está só aqui e a decisão é sua, você tem que tomar, não tem outro jeito, sejam elas boas ou ruins, é a sua decisão. Então, é muito solitário. Tem um capítulo no meu livro, que fala em Globetrotters solitário, é interessante para sentir as dificuldades que é viajar solitariamente. É claro que eu não viajava sempre só. Quando tinha uma ou outra Feira importante, alguém sempre ia junto, dos editores, etc. Principalmente Frankfurt. Mas, das outras Feiras latino-americanas eu participava sozinho, mesmo porque outros editores não iam, outros editores brasileiros não confiavam muito no mercado latino americano. E, ao contrário, eram a nossa força, no mercado latino-americano. No aspecto pessoal, isso também tinha as suas consequências, não é? Eu convivi pouco com os meus filhos, eu convivi pouco com… Principalmente com o Júlio, que a gente acabou perdendo aos nove anos, nove e meio. Então, isso tinha também essas dificuldades de conviver pouco com eles, não é? O Cláudio que é o mais velho, durante quatorze anos eu nunca estive no aniversário dele, porque eu estava no México, em Guadalajara, normalmente na Feira de Guadalajara, ou… Estava sempre próximo. Como as viagens eram programadas para que ficasse uma próxima da outra, se eu não estivesse em Guadalajara, estava em alguma outra. Ou estava nos Estados Unidos, ou em algum lugar próximo por ali. Então, durante quatorze anos seguidos, eu nunca participei do aniversário dele. E, no sentido contrário, o Júlio, ele nunca viu um aniversário meu, porque eu estava sempre em Bologna, que coincidia com a Feira de Bologna. Normalmente, as Feiras são sempre ao redor da mesma data, e são repetitivas, não é? Ele nunca viu um aniversário meu. Um dia, ele me perguntou: “Pai, você nunca faz aniversário?” Porque ele nunca viu uma festa minha, um bolo, alguma coisa assim. Então, se há um aspecto de glamour, etc., há outras coisas mais complicadas; as pessoais são sempre difíceis. É muito solitário isso. Muito solitário.
P/1 – Mas para quem ficava aqui no Brasil, a sua família, tinha algum tipo de combinado com a sua esposa…
R – Ah sim, eu ligava quase diariamente. Dificilmente, eu tinha… Quer dizer, ou eu estava ligando ou estava escrevendo, ou mandando postal, mandando… Então, eu me ocupava muito com isso. O meu lazer era música ou escrever alguma coisa. Na verdade, eu só comecei a escrever mesmo depois de aposentado, já depois… Eu costumo dizer que eu vivia da Literatura, sem fazer Literatura. Agora, meio que faço uma presunçosa Literatura, mas não vivo dela, não ganho nada com ela, porque é só diletante, é só diletantismo mesmo, não é? Mas o contato, sim. Ou ligava, ou estava escrevendo, estava alguma coisa. Mas é muito solitário. Eu me lembro que uma vez, eu estava em Miami, eu decidi ir até a Disney, que é próximo, não é? Em um fim de semana qualquer - porque você tinha os fins de semana que não tinha nada para fazer - então você procurava, ou ia para um museu, se enfiava num museu, ou ia para um teatro, ou ia para um cinema, alguma coisa assim. Eu fui pela primeira vez à Disney, sozinho. É angustiante, porque você queria ter o seu filho, a sua mulher junto com você, não é? Então, até levá-los lá… Foi uma glória, depois, eles foram mais umas duas ou três vezes, já não teria mais problemas. Mas até que acontecesse alguma coisa que eu pudesse compartir com eles, que eu pudesse fazer com eles, foi, realmente, angustiante.
P/1 – Falando na família, queria que o senhor contasse como conheceu a sua esposa.
R – A minha relação com a esposa?
P/1 – Como o senhor a conheceu?
R – No Roosevelt. Ela fez a minha matrícula como aluno, embora, ela estivesse na filial da João Adolfo. Tinha na Senador Feijó e tinha na João Adolfo. Eu fiz a matrícula na João Adolfo, mas fui estudar na Senador. Mas, ao mesmo tempo, existia uma coisa que chamava Clube do Inglês, que a gente fazia na João Adolfo. A gente se reunia aos sábados, principalmente, e aí, cantávamos músicas em Inglês, ajudava a desenvolver o seu Inglês de alguma maneira. Alguns professores eram voluntários também, iam, te ajudavam a tirar dúvidas e etc. E aí, fomos desenvolvendo um grupo de amigos, amigos mesmo, então esses são… Você me perguntava se foram desenvolvidas amizades. Esses foram os meus primeiros amigos, com quem eu desenvolvi depois um contato efetivo e que dura até hoje. Foi com essas pessoas lá do Roosevelt. E depois começamos a fazer um jornal… Ah, um ano depois que nós começamos, eu fui escolhido para ser coordenador geral do Clube de Inglês e aí, nós resolvemos fazer um jornal - aí entrou o Roosevelt News. Nós publicávamos as coisas dos alunos, em geral. Quem quisesse mandar algum artigo, alguma poesia, alguma coisa, a gente fazia e eu era redator do jornal, escolhia os artigos, fazia alguma correções que precisava fazer, etc. e coordenava a redação do jornal, também. E nisso, quem me ajudava muito era a Eiko, ela… A gente foi desenvolvendo uma amizade e passamos a ser confidentes um do outro. Ela, na verdade, gostava de outra pessoa, que era o João ___01:30:13___. Era um alemão, boa pinta, um cara muito legal, que se eu fosse mulher até eu gostaria dele também. Mas não era só ela que gostava, era a mulherada do Roosevelt toda (risos) que gostava dele. Mas ela não tinha ninguém em especial; de vez em quando saía com alguém, etc., não tinha ninguém em especial. Mas essa amizade foi se desenvolvendo e acabamos namorando. Depois, ela passou a ser minha diretora, porque eu passei a dar aula na João Adolfo também, de Português para estrangeiros e Inglês para bilíngues ou para os primeiros estágios, não é? E aí, foi. Acabamos casando, mas ela sempre foi uma pessoa extremamente extrovertida. O introvertido era eu, na verdade, eu era muito quietão. Quem me conhece hoje, não imagina que eu era tão tímido, era tímido, introvertido, dificilmente falava. Quando eu comecei a perder essa timidez e ficar extrovertido foi quando eu comecei a dar aula, que eu me forçava, me preparava, comecei a conversar com os alunos, enfim, foi a partir desse momento que eu comecei a perder um pouco dessa timidez e essa introversão. Mas era bastante introvertido, sim. E o Clube de Inglês me ajudou muito nisso, então, a partir daí que começou a nossa relação.
P/1 – E como foi o casamento?
R – O casamento foi… Bom, nessa época, para uma japonesa namorar com um gaijin era complicado! Era muito complicado. Quando a gente andava na rua, nós éramos olhados como bichos raros, não é? Era mais ou menos como o negro ou a negra com o branco, etc. Por mais que você não seja preconceituoso, você olha. Então, nessa época, era muito complicado com as famílias e também com o resto das pessoas com quem a gente cruzava. Na minha própria família, a minha madrasta sempre perguntava: “Mas como é que tu vais namorar com essa menina? Essa gente tão esquisita, tão diferente de nós?” (risos) Depois eles se apaixonaram pela Eiko também, não houve nenhum problema. Com a família dela… A família direta dela, as irmãs, etc., nunca tivemos problema, as irmãs, o pai, a mãe, nunca tivemos problema. A minha sogra é que, de vez em quando, colocava algum obstáculo, porque ela, apesar de setenta anos de Brasil, ela não conseguia se comunicar em Português, só em Japonês. Então, ela falava… Aí, eu fui aprender Japonês, eu entrei na escola BUNKA (? 02;34:09), na União Cultural Brasil Japão, e estudei seis meses Japonês e aí já comecei a me comunicar com ela também; então eu escrevia em hiragana, katakana, começava a ter a linguagem familiar também…
P/1 – E a reação da família quando viu que o senhor estava começando a falar Japonês?
R – Foi… Então... Eu conversava com o pai e a mãe… Nunca tive problema. A única dificuldade com a mãe era… Agora, com os tios e entorno, aí era complicado (risos). Mas, pouco a pouco, a gente também… Eles foram perdendo essa defensiva, assim. Hoje, a minha relação com a família japonesa é extrema… É tão ou mais forte do que com a minha própria família. Com a família da Eiko é, realmente, muito… E o meu sogro foi uma pessoa extremamente importante. Eu sempre dizia… Mesmo em relação à sogra, sempre dizia: “Minha sogra é uma santa, mas a sua…”. Eu falava para a Eiko: “A minha sogra é uma santa, mas a sua…” (risos). Eu me lembro de que uma vez nós estávamos em Ouro Preto, nós estávamos subindo uma ruazinha lá, tinha uns garotos que começaram a olhar e a... Começaram a seguir a gente, eles foram chamando, os outros começaram a seguir, um deles fala assim: “Vem ver, vem ver japonesa com outro cara” (risos). Outro cara era eu. O surpreendente, quer dizer, para eles não era ver a japonesa; o surpreendente era ver uma japonesa com um cara diferente. Que mais?
P/1 – Se fala Eko?
R – Eiko.
P/1 – Eiko. Tem um significado esse nome? Significa alguma coisa na tradução?
R – Tem, mas não lembro, não lembro o significado, não. Mas tem um significado, sim. Todos os nomes em japonês têm um significado.
P/1 – E o casamento, como é que foi? Foi japonês, foi português, foi brasileiro? Como se deu a festa?
R – Então... Nessa época, eu estava na Alcan. Na Alcan, eu tinha o meu chefe, que era um austríaco, era o meu gerente. E era pianista e regia um coral - ele e a mulher regiam um coral. Mas o casamento foi em 30 de janeiro de 1971. A gente marcou o casamento na rua da Glória. Não, na Igreja Nossa Senhora da Glória, que é no Cambuci, na rua Lava-Pés, subindo até uma ladeirinha que é o começo da Lacerda Franco, lá no Cambuci. E foi muito engraçado, porque nós tínhamos muitos convidados - tínhamos cerca de trezentos e poucos convidados - a gente tinha muita gente do Roosevelt, tinha muita gente da Alcan, tinha muita gente da família dela, porque não era só a família, eram os amigos de Arujá. O meu sogro era muito influente na comunidade de Arujá, na comunidade japonesa em Arujá, era bastante influente, ele foi diretor, enfim, da Associação lá. Então, tinha muita gente. Mas a gente havia marcado um casamento só para fazer um bolo com champanhe, que eram... As nossas economias tinham sido gastas no primeiro apartamento que a gente comprou ali mesmo, na rua Alves Ribeiro. E os meus pais e os pais dela também não tinham para ajudar muito. Então, nós tínhamos marcado assim, Eram cinco horas, a minha… A gente tinha marcado na igreja às cinco horas para o casamento começar e eram cinco e dez, cinco e quinze e a Eiko não chegava, não é? O que aconteceu com a Eiko? Alguns tios dela, dois tios dela tinham se oferecido para levá-la para a igreja, e um pensou que o outro levaria, e nenhum deles apareceu (risos). Nenhum dos dois apareceu para levá-la, aí o que ela teve que fazer? Era pertinho, não era longe, ela desceu, vestida de noiva, foi para a rua, chamou um táxi (risos) e foi de táxi. Era um DKV, lembra do DKV? Um daqueles DKVs velhos lá, ela foi de táxi para a igreja. Ela desceu, o porteiro do prédio ajudou a chamar o táxi, ela foi de táxi para a igreja. Chegou com meia-hora de atraso. Mas foi muito emocionante. Depois, assim... Porque o meu chefe tocou, a mulher dele regeu o coro lá também, tudo oferecido sem… Gravamos um disco que não tocava nada depois também (risos), um LP que não funcionou (risos), as fotografias não funcionaram, mas depois, na hora do… Acabou a cerimônia, a gente ia para o champanhe e bolo, lá no salão da igreja, mesmo. Quando a gente entra, a gente vê um bruta de um banquete que os japoneses haviam preparado, todos os amigos, as famílias, prepararam uma montanha de coisa, era um misto de culinária oriental, ocidental, de todo jeito (risos). Foi, realmente, surpreendente. E é muito legal, muito bonito ver essa… Porque foi a comunidade, cada um fazia uma coisa, o meu sogro ordenou: “Você vai fazer isso, você vai fazer aquilo, você vai fazer aquilo…”. Não só para os familiares, como para os amigos também, os amigos também colaboraram. E foi surpreendente, eram trezentas e poucas pessoas, sobrou comida depois para todo mundo… Porque levaram muita coisa e a gente nem viu, não viu que eles levaram. A gente foi surpreendido depois lá no banquete, foi muito legal, muito surpreendente.
P/1 – E ainda nessa parte da família, eu queria que o senhor falasse da primeira gestação, da primeira gravidez.
R – A primeira gestação foi… Nós casamos em 1971, nós planejamos ter… Primeiro conseguir nos formar na Faculdade, porque ela também entrou para a Faculdade mais ou menos na mesma época, em 1973, na São Marcos. Ela fazia… Os dois fizemos Administração, contrariamente ao que eu… Em algum momento pensei que entraria em Letras ou Filosofia, ou Psicologia, mas acabei me determinando por Administração de Empresas e os dois fizemos na São Marcos. Então, a gente havia planejado ter o primeiro filho - nós casamos em 1971 - termos o primeiro filho lá para... Depois que terminássemos a Faculdade. Isso deveria ser lá por 1977. Ela terminou primeiro, porque ela entrou um ano antes, eu terminei depois - porque terminei um ano depois. Então nasceu o Cláudio. A gestação dela foi incrível, ela sempre… A saúde dela… O que lhe falta de saúde hoje, sobrava naquela época, não é? Ela era uma atleta. Ela corria, era uma atleta, quer dizer, não era uma atleta profissional, mas havia as competições, os locais japoneses, etc. em que… E ela era realmente uma atleta, então, ela tinha uma saúde de ferro, de uma competidora atlética mesmo. E a gravidez foi ótima, até o final. Só que nós tínhamos acabado de mudar do apartamento do Cambuci para Moema - na Avenida Nhambiquaras - e ela estava no final da gravidez. Então, na mudança, ela ficava meia-hora mexendo nas coisas da mudança para arrumar e depois mais meia-hora deitada, porque era cansativo e doía. O Claudio estava planejado para nascer... Ele decidiu por sua conta se adiantar quarenta dias - mais ou menos quarenta dias. Então, um belo dia, a Eiko foi trabalhar no Roosevelt, e começou a se sentir estranha. Ela foi para o médico dela e ele falou: “Você está em trabalho de parto”. Ela voltou para o Roosevelt, terminou todo o trabalho que ela tinha que fazer lá, porque ela saía mais ou menos nove e meia da noite, dez horas, por aí, voltou para lá, aí foi para casa, arrumou as malas e foi para o Santa Joana, que, na época, ainda não era tão Santa Joana, era um Santa Joaninha ainda. E nós não tínhamos nem… E como nós estávamos andando, nós não tínhamos nem preparado quarto para ele, nada, porque estava previsto a gente fazer isso durante dezembro, não é? E num belo 29 de novembro, apareceu, nasceu, e aí que a gente foi correr para arrumar. Ela ficou uns dois dias internada e saiu, mas o Cláudio ficou ainda mais uns três dias pela icterícia, alguma coisa assim. Mas quando ele saiu, a gente já tinha conseguido, junto com as irmãs dela, ver berço, arrumar o quarto dele, enfim… Mas o resto da gestação foi tranquila, ela só veio com antecedência depois.
P/1 – E por que o nome Cláudio?
R – Cláudio, na verdade… O meu pai… O sobrenome do meu pai, anteriormente, era Cláudio - era Antônio Joaquim Cláudio. Ninguém sabe por que também, porque o meu avô era Neves, o meu avô paterno era Neves, todo mundo… O meu avô materno era Sampaio, então minha irmã é Sampaio, eu era Neves e o meu aí, Claudio (risos). E como eu tinha um outro tio que era Henrique, saiu como Cláudio Henrique. Homenageia os dois: o meu pai e o meu tio - Cláudio Henrique. Depois, veio o Júlio Gabriel, já dois anos e meio depois, ele também se adiantou um pouquinho, mas foi o inverso. Eu tinha uma viagem programada para a Argentina, que eu tinha adiado, tinha antecipado uma semana porque ele estava previsto nascer na semana seguinte, aí eu fui para a Argentina, ele decidiu antecipar também o nascimento dele, uma semana. Então, eu não estava no nascimento do Júlio. Estava em Buenos Aires.
P/1 – E o nome dele?
R – Júlio Gabriel. Júlio foi por… Júlio foi em homenagem ao meu tio gaiteiro, que era marido da minha tia Teresa que eu já mencionei - tio gaiteiro porque ele tocava gaita escocesa. O Gabriel eu não lembro, acho que era um nome que era da moda na época, então foi Júlio Gabriel.
P/1 – E depois dele, teve mais algum?
R – Não, depois não tivemos mais.
P/1 – E se o senhor se sentir confortável e quiser contar para a gente o que aconteceu com ele…
R – O Júlio foi interessante, porque nem nós sabemos, exatamente, o que aconteceu com ele. Porque num novembro qualquer, num começo de um novembro qualquer, ele começou a se sentir mal na piscina… Teve uma falta de ar na piscina do prédio. Aí, ele ficou rolando em vários médicos, indo de um médico para outro, mas nunca teve uma informação precisa do que ele tinha, efetivamente. E durante dezembro… isso foi começo de novembro, a ter alguns sintomas, essa dificuldade de respiração, ele foi em vários médicos, chegou a ficar hospitalizado uns dois dias para ver o que poderia ser, mas nunca tivemos assim, uma informação, diagnóstico que nos desse a certeza de ser alguma coisa diferente. Mas em dezembro, ele começou a piorar muito, a ter muita dificuldade de respiração, até que finalmente, no Natal de dezembro de 1989, nós o levamos para… Ele estava se sentindo muito mal, nós o levamos para o Hospital… Como é que chama? Era o gastro…
P/2 – Gastroclínica?
R – Gastroclínica, que depois mudou o nome para Edmundo alguma coisa [ Hospital Edmundo Vasconcelos] e falaram: “Ele tem que ficar internado”. Então, no Natal, nós internamos e, no dia seguinte, ele iria para a cirurgia, ou… Iria ser diagnosticado. E, no dia 27 de dezembro, ele foi… Quando foi fazer uma biópsia, era um câncer no mediastino. Mas a gente só soube aí o que era, não… Nem os médicos nos preocupavam e nem a gente chegava a ter uma preocupação extrema de que fosse isso.
P/1 – E a partir daí, como é que foi em casa? Como é que foi viver com a ausência do…?
R – Complicado. Foi complicado. A Eiko teve um papel muito importante, porque a gente tinha marcado uma viagem para o Japão, que já estava… Porém, com a perda… Nós viajaríamos em janeiro e nós o perdemos em dezembro. Ela ia comigo também para o Japão. Mas aí, ela não foi mais. Eu acabei indo sozinho, porque era um compromisso profissional também, era uma Feira que eu tinha lá, em Tóquio. Mas aí, ela foi de extrema importância, porque ela foi uma… Em vez dela receber consolo, ela acabou consolando a família toda, não é? Ela foi um elemento tranquilizador, enfim, redutor de dores, enfim… Mas isso também algum tempo depois teve o seu preço para ela: ela teve um AVC. Na verdade, ela não gosta muito que chame de AVC, porque o nome técnico era encefalite do tronco cerebral. Não sei bem o que é isso, mas suponho que seja algum tipo de AVC, porque entupia as veias, não é? E isso foi um pouco além dessa situação, da perda do Júlio; teve alguns problemas também profissionais, na escola, etc., e o acúmulo disso levou a ela ter esse tipo de pressão. Então, depois disso, ela realmente nunca mais foi a mesma. Ela passou doze anos, praticamente reaprendendo a… reaprender tudo, porque ela passou a ter dificuldade na mobilização, ela não paralisou nada, mas sempre com dificuldades de mobilização. Memória foi embora, ela começou a reaprender tudo, a escrever, reaprendeu a escrever, reaprendeu a… Ela fazia terapia de jogos infantis para conseguir se movimentar, as mãos... Como eu disse, não paralisou nada, mas os movimentos eram… Passaram a ser muito lentos em quase tudo. E a dificuldade de raciocínio, ela tinha uma atenção… Ela não conseguia ter uma atenção difusa, ela se focalizava em você, era só você, não existia nada mais em volta. E ela demorou uns dez a doze anos para se recuperar. Além disso, fazia outras terapias de hidroginástica. Ela passou muito tempo nas clínicas fazendo uma porção de outras terapias e uma porção de outras coisas, mas ela nunca mais voltou a ter… o que é interessante é que ela esquecia quase tudo, mas a linguagem, falava com dificuldade, mas a linguagem ela não deixou, ela continuou falando Inglês, continuou falando Japonês normalmente, sem nenhum problema. Nesse mesmo ano, a gente marcou um encontro em… A empresa, sabendo do problema dela, falou: ”Você tem que levar a Eiko para uma viagem”. Então, como eu ia para o México e depois, voltava para New Orleans para uma Feira lá, também: “Então nós vamos para New Orleans e depois vamos fazer um cruzeiro até às Bahamas”. Para conseguir. Eu marquei com ela no aeroporto de Miami, ela conseguiu… Escrevi tudo, tudo o que ela tinha que fazer: “Você vai chegar lá, vai para essa fila…”, escrevi tudo direitinho o que ela tinha que fazer: “Você vai para a sala de embarque, espera lá na frente da Varig, ou não lembro mais que… Me espera lá na frente, porque os horários vão ser mais ou menos próximos um do outro - da minha chegada e da sua chegada também. Então, eu estava voltando do México, ela conseguiu ir lá direitinho, alguém foi com ela até o aeroporto, mas ela conseguiu ponto por ponto, e ir me encontrar lá.
P/1 – E como foi vê-la?
R – Foi fantástico, não é? Porque era uma vitória também pelo que ela havia passado. Aí, fomos para New Orleans, voltamos para Miami, pegamos um Cruzeiro e fomos até às Bahamas. E com as dificuldades dela. Mas a viagem a deixou mais tranquila. Enfim… São as histórias.
P/1 – Vamos voltar para a nossa última parte aqui da nossa conversa, que está tão boa, “seu” Neves. E o que eu queria trazer agora para o senhor era sobre a decisão de escrever esse livro. O que motivou o senhor e como foi esse processo de escrita sobre eles?
R – A motivação do livro... Na verdade, eu sou muito grato a todas as pessoas que passaram pela minha vida. Algumas podem não ter sido tão interessantes, mas todas foram importantes no meu processo, na minha formação humanística, na minha formação como pessoa, como gente. Então, eu achei importante fazer o registro de todas essas pessoas que, sem ele, passariam também sem ninguém se lembrar, ou sem ninguém… Então, é um registro de família, é um registro profissional. É claro que há partes que podem interessar mais a um leitor do que a outro. Para alguns, não interessa nada também, mas, enfim, é mais do que tudo um registro das pessoas e de acontecimentos que passaram pela minha vida e de como eu as vi, de como eu absorvi no aprendizado dessas pessoas. Eu não busquei focar em mim, porque eu não consigo me ver - ou como as pessoa me veem também - mas eu sei como eu vejo as pessoas. Então, eu posso registrar como eu vejo você, como eu vejo a Nori, como eu vejo ele, mas não consigo me ver. Ou, se me vejo, me vejo mais em uma névoa, não sei exatamente qual. Enfim, essa é a minha motivação principal para escrever esse livro, então, aí tem vários registros de coisas, de acontecimentos, de pessoas. Fala sobre várias pessoas, fala sobre vários acontecimentos, fala sobre um pouco das minhas raízes, que são, realmente, o mais importante para mim. As raízes que eu tenho e que definiram os meus valores, não é? E os meus valores não passam por aspectos econômicos, financeiros, mas passam pelo aspecto de ser gente e sermos como somos, de alguma maneira. Basicamente, essa é a minha motivação, não tenho uma motivação literária, mesmo porque o livro não é comercial, ele não foi feito para se vender, ele foi feito para se distribuir pela família e pelos amigos novos ou antigos. Então, é essa a minha motivação.
P/1 – Mas teve um evento de lançamento?
R – Não.
P/1 – Na família?
R – Na família, sim. Mas não teve nenhum evento, porque não era comercial, mas sim distribuído pelos amigos que estão… Podem estar registrados ou não, mas que são… Que foram importantes para mim.
P/1 – Então, para a gente caminhar para o fim, a minha pergunta, que pode emendar no texto do senhor, logo depois que o senhor responder, é: como foi para o senhor ter contado a sua história para a gente nesses dois dias?
R – Olha, é uma experiência muito interessante, muito importante, uma experiência realmente muito feliz para mim. A gente vive, de uma forma ou de outra, muito isolado. Isolado no sentido de não estarmos, ou de não estarmos mais em contato com as pessoas. Eu vivo num condomínio em que não conheço o meu vizinho do lado. Tem até um artigo sobre isso que chama… Como é que é? Ermitões Urbanos. Nós somos, de alguma maneira, ermitões urbanos. Então, se nós pudermos deixar alguma coisa de nós para… Há uma coisa que me chamou muito a atenção que são os objetivos do próprio Museu, que é de cultura da paz. Há uns… Em 2015, eu fiz um… Dentro da Prevent, houve uma semana da cultura da paz, eu escrevi um artigo lá sobre o que imaginava ser a cultura da paz. É claro que ficaria muito longo para lê-lo aqui, mas posso resumir, rapidamente, tudo o que eu imagino sobre a cultura da paz. Posso?
P/1 – Por gentileza.
R – “Por uma cultura de paz. O mundo vive uma época de deterioração de valores, de agressividade, impaciência, intolerância, racismo, corrupção e preconceito em todo conjunto de inter-relacionamentos humanos, desde o mais simples ao mais complexo. Não está sendo nada fácil propor mudanças para conviver numa cultura de paz permanente, mas ainda que a tarefa de mudar a consciência do mundo pareça utopia improvável, ela não será impossível se cada um de nós, se ainda não faz, começar a fazer a sua parte aqui e agora. Somos causa e efeito dos nossos atos, então é mais determinante buscarmos essa cultura de paz dentro de nós mesmos do que esperar que nos seja concedida como um favor. É preciso transmitir esse sentimento a todos que nos rodeiam e alargá-lo até onde seja possível alcançar. Agir local, pensar global. Ela não se constrói com autoritarismo, nem algumas aulas em alguns dias, em alguns anos. Poderá demorar gerações até que o nosso DNA desenvolva uma consciência de pequenos ou grandes gestos, de atitudes tão naturais quanto comer e o respirar. Uma cultura de paz exige uma série de atitudes de comportamento em busca de uma convivência pacífica, sustentável e permanente, de inter-relacionamento dos seres humanos, e destes com a Natureza que os cerca. Todos devemos ter um claro entendimento do que são valores positivos e negativos, do que é ter direito à vida, à saúde, à alimentação, à segurança e à educação. Do que é a igualdade e a oportunidade para todos. Saber o que é o bem, o que é o mal, a honradez, a tolerância, a urbanidade, a civilidade, a cidadania, honestidade ou transgressão. O que é respeitar a Natureza, fauna, flora, mananciais e atmosfera, como a nós mesmos. Como compreender e aceitar as diferenças com outros povos, culturas, valores, raças, religião, política e preferências sexuais? Uma clara concepção de direitos e deveres conosco e com o mundo que nos cerca. Como evitar que o consumismo se torne fonte permanente de ambição, ganância e delinquência? Como dizer não a qualquer espécie de guerra formal, violência física, verbal ou moral? Evitar que os jovens se transformem em agentes ou vítimas do tráfico, do vandalismo e da delinquência? Como alcançar uma visão cosmopolita de mundo com menos fronteiras, menos guerras e mais, muito mais humanidade? A sedimentação de uma cultura de paz não se delimita no tempo, e nem a extratos sociais. Ela exige uma atitude permanente de comprometimento de tudo aquilo que almeja transformar-se num ser humano integral e íntegro, qualidades exigidas de um verdadeiro ser planetário”. É isso. Claro que eu poderia me esticar muito mais…
P/1 – Em que ano foi escrito, “seu” Neves?
R – Foi escrito em 2000… Bom, esse foi adaptado para agora, mas o original é de 2015.
P/1 – Muito obrigada por ter lido ele, muito obrigada, mesmo. Minha última pergunta, que também é para o senhor emendar com outro presente, que é com outro texto que o senhor vai ler para a gente: quais são os seus sonhos hoje, “seu” Neves?
R – Os meus sonhos é ver um mundo melhor, ver um mundo com mais valores de família, com mais valores que não nos deixe só direitos, mas que nos tragam, também, a consciência de deveres. Hoje, nós buscamos só… Reclamamos de direitos, direitos, direitos… E não falamos de deveres, não nos propomos deveres. Então, existe uma pergunta sempre de que mundo nós vamos deixar para nossos filhos. Mas devemos também perguntar que filhos vamos deixar para o mundo, porque se a gente não conseguir equacionar, deixar uma equação firme sobre isso, a gente não consegue se entender. Nós hoje não temos mais entendimento, não temos mais… Quer dizer, todos temos uma diversidade enorme de opiniões e tudo, sobretudo que são boas, que devem ser essenciais, mas não conseguimos ser tolerantes em nenhuma delas, somos intolerantes a todas elas, não é? Então, se eu tivesse… No livro, o que eu escrevi sobre o legado, deixa um capítulo, que é o último capítulo, que vou resumir também porque seria muito longo lê-lo aqui. E que eu imagino o que seja o meu legado para as pessoas. Então seria: Que legado é esse? ‘Dejo mis viejos libros, recogidos en rincones del mundo, venerados en su tipografia majestuosa, a los nuevos poetas de América […]’, Pablo Neruda. No livro que eu escrevi em 2006, com o título de Legado de um luso-nipo-brasileiro, no último capítulo que titulei Que Legado é Esse?, escrevi: “Eu sei que não há nada mais chato que ter um amigo ou amiga, vizinho, familiar ou companheiro de trabalho que, de repente, ou insistentemente, se julga escritor, artista ou cantor e quer porque quer mostrar os seus predicados em busca de uma voz de aprovação ou incentivo. Na verdade, apenas buscam cúmplices para dividir a responsabilidade de um eventual fracasso. O drama é que nem todos os amigos lhe dizem a verdade; alguns, com pena, incentivam o seu futuro à mediocridade. Outros, por despeito, podem desacreditar uma vocação verdadeira. Também é certo que, no fundo, esperamos ter algum tipo de reconhecimento, para que não nos fique o sentimento de que o que fizemos seja inteiramente vazio de valor. O meu legado não é literário, mas sim demonico, mas não é meu, mas sim, de todos aqueles que passaram por ele. Meu é apenas o registro dos fatos, das pessoas, dos lugares, das opiniões, das experiências, do meu testemunho pessoal, da vida e dos sentimentos que nela vivi. Assim, o meu legado não é o de bens físicos, econômicos ou financeiros, esses não valem o trabalho de um testamento, mas sim, o do conhecimento e do culto às minhas raízes, a forma de como elas se robusteceram e geraram árvores de frondosos galhos que foram se estendendo pela minha aldeia, pelo meu país, pelo Brasil e que foram deixando rastros por outros países e por outros continentes como sombras voadoras. Eu mesmo sou um legado e espelho dessas raízes e espero que o meu filho e, quem sabe, meus netos nele possam refletir-se para melhor entenderem as suas origens, de onde vieram, onde estão e para onde poderão ir. Quando a minha memória me remete à minha aldeia, à sua gente, valores e costumes, ela se remete a todas as aldeias do meu país e, com raríssimas variações, a todas as aldeias do mundo. Quando se refere ao meu país, ela se refere a todos os países antigos que se modernizam e envelhecem periodicamente, que conquistam e são conquistados, que enriquecem e empobrecem de acordo com os seus governantes, suas idiossincrasias sociais, culturais, religiosos e círculos históricos que podem ser belicosos ou pacíficos, que podem ser grandes, mesmo sendo pequenos; ou que podem ser pequenos, mesmo sendo grandes. Se é contada um pouco da minha família camponesa é para mostrar que sim, se pode sair do esquecimento, do analfabetismo e da pobreza sem cair na delinquência, sem cair na droga, sem corromper-se, sem perder a dignidade. É para mostrar que está nas pessoas simples a verdadeira solidariedade, a grandeza do trabalho; sem querer que lhe pareçam um fardo ou um castigo, a humildade de viver a vida de acordo com suas possibilidades; sem invejar aos que dela desfrutam nadando em facilidades e abundância. Quando a minha memória traz a minha infância e a minha adolescência, não é para que se tenha pena delas, ou de mim. Aliás, não gosto muito de quem exercita a atitude da pena, nem de quem a busca; prefiro a generosidade da orientação e do ensinamento. Mas, para ressaltar as diferenças ambientais, culturais, familiares, e sobretudo de atitude, se comparada com a geração atual, a minha infância e adolescência não tiveram tempo para queixar-se, nem para as drogas, elas não tiveram tempo para o consumismo, nem para delinquir, nem para as drogas, elas só tiveram tempo para enfrentar a vida lá fora, sem cadeira, sem sofá, sem controle remoto. Se é verdade que o trabalho infantil não pode ser escravizante, também é verdade que ajudou a fortalecer-me e a encarar a vida adulta sem medo. Ao passar a limpo os rascunhos da vida pessoal, só agora exposto, o que quero transmitir é que não devemos deixar de abrir nossa alma por mais doloroso que seja o motivo e por mais que não queiramos magoar outras pessoas ao redor. Por mais delicado que se possa ser, é melhor falar do que calar. Ao falar, poderemos sofrer as sanções da verdade, mas libertaremos a nós mesmos. Ao calar, carregaremos todas as sanções da mentira e da culpa. A mentira ou a omissão poderá ser generosa algumas vezes, mas, via de regra, ao longo do tempo, ela será sempre mais dolorosa do que a verdade. Ao discorrer sobre as grandes perdas necessárias ou desnecessárias, tentei trazer para a discussão das novas gerações o sentido de que elas se revelarão maiores ou menores de acordo com a forma como podem ser encaradas: a pragmática, quando se vê nelas o equilíbrio biológico da natureza; a emotiva, quando ela se torna um puro e inconsolável sofrimento de quem as tem; ou religiosa, para quem as vê como determinismo de vontade de um Deus, seja qual for a religião que professe. Enfim, é possível que esse legado tenha sido apenas um exercício de todas obviedades, mas é exatamente o óbvio que sempre termina por nos passar despercebido, pelo seu simplismo e pela sutileza de nos chamar a atenção. Não procurei fazer um texto em profundidade intelectual, primeiro porque a minha intelectualidade não passa de uma superficial camada de verniz que, se arranhada levemente, porá imediatamente à mostra toda face de abundância e ignorância; segundo, porque se o óbvio passa despercebido, o preciosismo intelectual não é entendido. Enfim, o que eu quero legar ao meu filho e a todos aqueles que um dia tenham a paciência de ler este livro, não é nem a minha ignorância, nem a minha intelectualidade, mesmo porque não se lega o que não se tem por inteiro como só seu, mas sim, a minha coragem de escrevê-lo como incentivo a todos aqueles que tenham medo de expor as suas almas. Lego o aprendizado de outros legados e o meu respeito a quem os legou. Lego o registro da memória daqueles que, humilde e anonimamente, passaram pela minha vida sem que se percebessem do quanto me foram importantes. Lego a minha percepção do mundo em ambientes em que vivi, passei e passeei. Lego o meu alerta para futuras gerações para que não transfiram a sua alma e a sua capacidade de pensar para a tecnologia. Lego o entendimento e o respeito às gerações que me precederam, na esperança de que as seguintes façam o mesmo. Lego a minha mensagem de que é preciso viver e conviver com amor, com fé, com paz, com alegria, com tolerância, e fora com os rancores, com as mágoas, com a inveja. Lego a minha parte de liberdade sem libertinagem conquistada pela minha geração. Lego a minha convicção de que é melhor uma boa luta pela paz do que uma paz pela guerra. Lego minhas poucas vitórias e conquistas para que sejam imitadas na sua justa medida. Lego meus fracassos e derrotas para que sejam compreendidos e evitados. Lego um pouco da minha solidão para que seja solidária a alguém ainda mais solitário. Lego a minha luso-nipo-brasilidade para que o meu filho e seus descendentes não esqueçam as suas origens e que é possível, sim, a miscigenação harmoniosa e pacífica. Lego a minha tristeza contida e impotente por ver os valores do bem serem subvertidos pelo mal como nova filosofia de vida. Lego a minha história banal, na esperança de que possa ter algum valor no futuro. Lego a minha memória para que os que por ela passaram não caiam no esquecimento. Lego esse legado como marca da minha passagem por aqui, se é que eu possa ter tido alguma importância para que alguém possa notá-la algum dia”.
P/1 – “Seu” Neves, muito obrigada.
R – Obrigado a vocês.
P/1 – Foram muitos presentes nesses dois dias. Te ouvir foi incrível!
R – Obrigada. Eu que agradeço pela oportunidade de poder transmitir alguma coisa, de poder transmitir… Acho que tudo que a gente transmite… Todas as pessoas que transmitem alguma coisa acrescem a humanidade, o conhecimento, enfim… Espero que seja útil para alguém algum dia.
P/2 – Para nós e para todos nós a importância disso que você traz.
P/1 – Muito obrigada, “seu” Neves.
R – Obrigado vocês.
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