P/1 - Bom dia, Ismênia. Eu gostaria de agradecer sua presença e iniciar dizendo seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Ismênia de Araújo Coaracy, eu assino nos meus quadros Ismênia Coaracy. Nasci em Sertãozinho em 19 de dezembro de 1918.
P/1 - Eu gostaria que você me dissesse também o nome de seus pais e avós.
R - Meu pai, José Garcia de Araújo, minha mãe Ismênia Ramos Garcia, meu avô, Domiciano Ramos Arantes e minha avó, Delfina Ramos Arantes. Os avós do lado do meu pai eu, sinceramente, não me lembro do nome porque tive muito pouca convivência com eles.
P/1 - A senhora sabe a origem do nome dessas pessoas da família?
R - Coaracy é o meu nome de casada e eu sou nora do Vivaldo Coaracy, que foi escritor e jornalista durante muito tempo. Garcia de Araújo, do meu pai, não sei. Sei que os meus antepassados, do lado de minha mãe, eram portugueses. Tanto assim que, como lhe falei antes, nós fomos há dois anos a Portugal para rever a santa terrinha.
P/1 - E o que vocês descobriram nessa ida a Portugal, com relação a esses antepassados?
R - Eu descobri que antepassado é uma coisa assim: você fala antepassado mas, no fim, você não tem nada a ver. Fomos muito bem tratados, mas não havia... Você sabe que são antepassados, mas não tem um sentido de uma ligação mais afetiva. É mais para você ver de onde veio, conhecer suas origens, mais nada. Não tem grande importância.
P/1 - A senhora nos havia dito que vieram três pessoas para o Brasil nessa época, mais ou menos no século XVII, e que cada um encontrou um ramo e um lugar do Brasil. Conte um pouco a respeito disso.
R - Segundo meus pais, minha mãe principalmente, os três irmãos, um deles ficou em Minas Gerais, em Itaoca, não me lembro o nome da cidade. Outro foi para o Vale do Paraíba e outro foi para Goiás. Nessa viagem conseguimos reunir descendentes dos Arantes dessas três cidades, desses três locais.
P/1 - Quantos irmãos e...
Continuar leituraP/1 - Bom dia, Ismênia. Eu gostaria de agradecer sua presença e iniciar dizendo seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Ismênia de Araújo Coaracy, eu assino nos meus quadros Ismênia Coaracy. Nasci em Sertãozinho em 19 de dezembro de 1918.
P/1 - Eu gostaria que você me dissesse também o nome de seus pais e avós.
R - Meu pai, José Garcia de Araújo, minha mãe Ismênia Ramos Garcia, meu avô, Domiciano Ramos Arantes e minha avó, Delfina Ramos Arantes. Os avós do lado do meu pai eu, sinceramente, não me lembro do nome porque tive muito pouca convivência com eles.
P/1 - A senhora sabe a origem do nome dessas pessoas da família?
R - Coaracy é o meu nome de casada e eu sou nora do Vivaldo Coaracy, que foi escritor e jornalista durante muito tempo. Garcia de Araújo, do meu pai, não sei. Sei que os meus antepassados, do lado de minha mãe, eram portugueses. Tanto assim que, como lhe falei antes, nós fomos há dois anos a Portugal para rever a santa terrinha.
P/1 - E o que vocês descobriram nessa ida a Portugal, com relação a esses antepassados?
R - Eu descobri que antepassado é uma coisa assim: você fala antepassado mas, no fim, você não tem nada a ver. Fomos muito bem tratados, mas não havia... Você sabe que são antepassados, mas não tem um sentido de uma ligação mais afetiva. É mais para você ver de onde veio, conhecer suas origens, mais nada. Não tem grande importância.
P/1 - A senhora nos havia dito que vieram três pessoas para o Brasil nessa época, mais ou menos no século XVII, e que cada um encontrou um ramo e um lugar do Brasil. Conte um pouco a respeito disso.
R - Segundo meus pais, minha mãe principalmente, os três irmãos, um deles ficou em Minas Gerais, em Itaoca, não me lembro o nome da cidade. Outro foi para o Vale do Paraíba e outro foi para Goiás. Nessa viagem conseguimos reunir descendentes dos Arantes dessas três cidades, desses três locais.
P/1 - Quantos irmãos e irmãs a senhora tem?
R - Eu tive onze irmãos. Oito irmãos e três irmãs.
P/1 - A senhora é uma das mais velhas?
R - Eu sou das mais novinhas... Contando as mais novinhas, eu sou a terceira mais novinha.
P/1 - A senhora se lembra de sua casa da infância, em Sertãozinho?
R - Pouco. Pouquíssimo, porque eu vim de lá muito criança. Não tenho... Meu pai tinha uma coletoria nessa casa, então eu tenho uma vaga... Sei que era um casarão imenso. A lembrança é muito vaga porque eu vim muito jovem, muito criança para cá.
P/1 - A senhora veio com quantos anos?
R - Eu devia ter no máximo dois anos.
P/1 - Para que local de São Paulo? Vocês vieram para São Paulo?
R - Para São Paulo.
P/1 - Para que local?
R - Que eu me lembre, fomos diretamente para a Rua São Joaquim.
P/1 - E a senhora morou quanto tempo nessa casa, a senhora se lembra?
R - Eu não sei porque quando a gente é criança, as mudanças... A gente vai, não presta muita atenção. Eu sei que em seguida nos mudamos para uma casa ali também perto. Embora essa casa fosse muito grande, sempre vinha gente, sabe como é... Pessoas do interior, os tios, sempre se alojavam na casa. Vinham cá passar uma semana, ficavam três meses; era uma satisfação. E tinha como acomodar, como receber. Embora fosse enorme, meu pai achava que precisava ter uma casa maior, então nós fomos para uma casa... Daí para diante eu não me lembro mais. Rua Galvão Bueno.
P/1 - Quais eram as atividades, como eram divididas as tarefas em casa, a senhora se lembra?
R - Lembro. Como a família era muito grande, minha mãe sempre teve cozinheira, lavadeira. Como meu pai, além de coletor, também tinha uma fazendola, negociava com café, então o café era torrado em casa, torrado e moído. A obrigação que eu me lembro que a gente tinha era moer não sei quantos moinhos de café. E, dependendo, se a gente tivesse feito alguma arte séria, de três passava para cinco moinhos.
P/1 - A senhora lembra de alguma arte muito séria que a senhora fez nessa época e que fez com que a senhora moesse cinco moinhos? (risos)
R - Eu acho que fiz muitas artes mas nunca fiz assim, sabe? Arte que toda criança faz, não é? Não me lembro de nada que eu tivesse feito, uma arte que tivesse prejudicado alguém ou que tivesse prejudicado um de meus irmãos. Acho que não. Sempre foi tudo muito tranquilo na minha casa, apesar dessa criançada, dessa família enorme.
P/1 - Quais são os momentos mais marcantes na sua família, nessa época?
R - Ah, eu me lembro sim. Isso eu lembro bastante porque era uma coisa que eu tinha um profundo respeito: era a hora das refeições. Estava pai, mãe, a filharada e tios e agregados. Era sempre muito bonito, sempre visto com muito carinho.
P/1 - Os Natais na sua casa, como eram comemorados?
R - Pois não?
P/1 - Os Natais.
R - Dos meus pais?
P/ - Isso.
R - Olha, sempre foram comemorados com comidarias. Tinha que ter leitão, aquela coisarada toda e muita alegria, sempre.
P/1 - Tinha algum sentimento religioso nessa comemoração?
R - Não, acho que... Eu sou de família católica, mas nunca houve ninguém fanático de igreja. Respeito pela religião, mas sem nenhum fanatismo.
P/1 - E aniversários, essas datas mais importantes, eram bem comemoradas?
R - Bem comemoradas, principalmente dos nossos pais. Os filhos faziam questão de comemorar, de ter um ambiente alegre, agradável.
P/1 - Duas vezes a senhora falou em tios. Havia uma relação bastante grande entre a família e os tios?
R - Bom, alguns tios até moraram conosco. Na Rua São Joaquim, um tio, irmão da mamãe, morou conosco. E esses tios vinham com uma certa frequência. Eu tinha um tio meu que era fazendeiro em Guaratinguetá, uma fazenda de gado e ele gostava de vir a São Paulo. Quando ele vinha ficava em casa e as primas também, as filhas dele, de meus tios, ficavam em casa. É uma coisa que hoje a gente acha estranho. Quem pode hospedar assim, durante um mês, dois meses, enfim, com a maior satisfação? Havia possibilidade de espaço e também de poder tratar de acordo.
P/1 - Alguma dessas primas continuou com a sua amizade?
R - Não, não existe mais nada. Nem tio, nem primo, nada.
P/1 - E a senhora disse que tinha lavadeira, cozinheira, agregados. Alguém ficou muito marcado na sua vida?
R - Em que sentido?
P/ - Um sentido afetivo, no sentido de ficar o resto do tempo todo.
R - Ah, acho que bastante gente.
P/1 - Dos agregados, principalmente.
R - A gente chamava de agregados porque não eram parentes, não eram parentes chegados, mas até [se] fossem parentes longínquos... Não me lembro de ninguém [em] especial. Todos eram tratados com muito carinho, muito afeto e a gente não tinha a sensação de que tinha uma pessoa pesada, não, era uma coisa muito cordial.
P/1 - A senhora colocou que a atividade do seu pai estava ligada à questão do café. Que ele era negociador de...
R - Negociava com café, além de ser... A atividade dele era, principal, em Sertãozinho. Ele tinha uma coletoria, [era] coletor de impostos.
P/1 - E quando ele veio para São Paulo continuou ainda com essa atividade de coletor de impostos?
R - Sim... Não, aí ele deixou a coletoria e só ficou com café. Depois meu pai fez uma porção de negócios que eu não me lembro mais quais são.
P/1 - E essa negociação do café, a senhora lembra como era isso? Ele plantava, ele...
R - Não sei.
P/1 - Me diga uma coisa, quem é que tinha mais autoridade dentro da família, que a senhora nos colocou, da convivência de várias pessoas. Quem era a pessoa que tinha a maior autoridade dentro de casa? Era seu pai, a sua mãe?
R - É uma coisa interessante essa pergunta, porque todos tinham autoridade e ninguém tinha autoridade. Era uma coisa estranha porque a gente tinha o maior respeito, não precisava de ameaça. Eu não me lembro nunca de ter apanhado; castigos leves quando a gente era forte demais, moer mais café, fazer coisas assim, mas eu não me lembro... Sempre tive a sensação duma vida muito harmoniosa na minha família.
P/1 - Nesse período da infância, quais eram as suas brincadeiras preferidas? Quais atividades das crianças a senhora lembra - além, claro, da obrigação em casa de ter uma atividade, obrigação de falar com a família. Quais eram as brincadeiras preferidas que a senhora lembra?
R - Do que eu me lembro, eu desde pequena tive uma grande inclinação para as artes. Ninguém sabia, nem eu sabia, mas eu inventava tudo. Eu inventava teatro, nem sabia que existia teatro. Inventava coisas que as pessoas tinham que fazer. Minha mãe tinha um… Tinha o que ela chamava de "caixa", um móvel enorme e lá, por exemplo, ficavam roupas, boás, as peles, chapéus. Eu vestia a criançada, falava: "Pegue aí o que vocês quiserem." Então inventava histórias, contava histórias, fazia circo. Eu ficava assim mais ou menos como a dirigente da coisa. Elas ficavam esperando eu tomar uma atitude de diretora de cena, porque nem tinha essa emoção. Era uma coisa tão espontânea que brotava e que também era aceita porque tudo fluía bem. Essa era uma das brincadeiras - esses brinquedos de criança, de peteca, jogar bola, essas coisas todas a gente fazia.
P/1 - As atividades eram feitas onde, na rua ou em sua casa? Como...
R - Podia ser na rua ou podia ser na casa. Rua, porque naquele tempo as ruas eram tranquilas; podia deixar uma criança na rua que não tinha o menor perigo. Por exemplo, outros brinquedos, brinquedos que ficavam em lados diferentes - o tal de barra manteiga, tinha que ter um espaço muito grande para a gente correr, não é? Vai lá, volta. Então a gente fazia na rua, mas não tinha nenhum problema de criança na rua.
P/1 - A senhora se lembra de um brinquedo que a senhora ganhou e que marcou muito essa sua fase de infância?
R - Lembro. Embora nós últimas quatro, porque era sempre assim de quatro em quatro... Nós últimas quatro, Diná, Jandira, eu e Nair, nós quatro ganhávamos o mesmo brinquedo. Era uma boneca enorme, japonesa, deste tamanho, de massa, de papelão - sei lá, não me lembro. Só sei que eu fiquei fascinada e cada uma tratava de vestir sua boneca melhor que a outra. A boneca durou muito tempo, por causa disso havia [competição]: “Minha filha está mais bonita”... Os trapos e chapéus. Era uma coisa bem engraçada e ficou bem marcada. Eu me lembro disso.
P/1 - A senhora foi para a escola com quantos anos?
R - Eu fui para o Grupo Escolar Marechal Floriano Peixoto, em Vila Mariana, acho que na época normal de... Mas antes disso, quando a gente morava na Rua São Joaquim, tinha uma escola… Acho que talvez eu fosse mais levada que os outros. Minha mãe quis um pouquinho de descanso: me pôs na escola e era uma espécie já de jardim de infância, porque eu era bem pequena, mas eu não gostei. Eu chorei o tempo todo, tive que voltar para casa, tinha que ficar em casa tentando me comportar melhor e fiquei em casa.
P/1 - Qual foi a lembrança mais marcante que a senhora tem dessa fase inicial da escola, da pré-escola até o primeiro grau?
R - A escola? Essa, do jardim de infância, foi traumática. Fizeram tudo para eu ficar lá. E tinha uma amoreira. Tentaram me seduzir com a amoreira: “Olha lá, está cheia de amoras!” Isso marcou bastante. Uma criança, quando vai para um lugar que ela não gosta, fica marcado.
Além disso, a entrada no Grupo Escolar em Vila Mariana… Foi D. Julia, da Marechal Floriano Peixoto. Lá também, sem querer, eu sempre tive, mantive uma liderança. Então eu ia brincar e os jogos, quando havia, sempre eu era escolhida. Não é que eu me chegasse, me colocasse. No fim, eu dava as ordens. Não é que eu quisesse, eu era solicitada, era quase que levada a tomar aquela atitude de liderança.
P/1 - E como a senhora ia para essa escola na Vila Mariana? A senhora morava na São Joaquim.
R - Nós já morávamos na Vila Clementino, na Rua Napoleão de Barros.
P/1 - Era próxima, a escola?
R - Sim. A gente ia a pé. Não tão próximo, mas a gente ia a pé.
P/1 - Quais as as principais características da educação que a senhora teve? Como a senhora descreveria essa sua educação?
R - A partir de quando?
P/1 - A partir desse primeiro grau. A senhora estudou até que ano?
R - Fiz o primário, depois fiz a Escola de Comércio, que foram quatro ou cinco anos, não sei, e depois estudei a vida inteira por minha conta. Fiz vários cursos de línguas. Sempre fazendo cursos, aqui e acolá, complementando, porque eu achava que estaria falhando...
P/1 - Mudando um pouquinho. A senhora fez essa Escola de Comércio em que local?
R - Na Rua da Liberdade. Não me lembro o nome da escola.
P/1 - Era a Álvares Penteado?
R - Não, não foi na Álvares. Era uma escola muito boa, porque fui muito bem preparada. Professores muito bons, tinha até um professor de inglês que depois foi dar aulas no Colégio São Luiz.
P/1 - Nesse período o que marcou mais a senhora nesse processo, desde o primeiro grau até a Escola de Comércio? Qual foi a característica dessa educação que lhe marcou mais?
R - Toda vida eu estive muito aberta, muito atenta a tudo. E até hoje. Embora, digamos, vamos fazer aí um hiato, porque tem muita coisa que eu não me lembro. Da minha adolescência, a partir de doze, quatorze anos - aí já não estávamos mais na Napoleão de Barros, estávamos na Rua Domingos de Morais - foi uma fase que eu estava desabrochando num outro sentido. Então eram festas, gostava de carnaval, ia para os bailes de carnaval, namoricos, essas coisas da vida de adolescente. Foi uma fase muito boa. Eu só posso dizer para você uma coisa: todas as minhas fases foram muito boas. Eu não tenho lembranças amargas. Vivi numa família ótima, cresci com uma pessoa maravilhosa, não tenho nada que me magoe.
P/1 - Nessa fase que a senhora começou a Escola de Comércio a senhora tinha mais ou menos treze, quatorze anos, então a senhora viveu um pouco uma experiência que foi bastante significativa em São Paulo que foi a Revolução Constitucionalista. A senhora se lembra de alguma coisa desse período que tenha influenciado?
R - Em que ano foi?
P/1 - Foi em 32. A senhora tinha treze, quatorze anos.
R - Eu me lembro, foi marcante. Nós estávamos num rinque de patinação.
P/1 - Como começou?
R - Eu descobri o rinque e fui primeiro experimentar. Fui escondida e depois, como ninguém fazia nada escondido, era uma coisa horrorosa. Se a gente tinha permissão, para que esconder? Mas aí já era uma coisa... De repente cai, quebra uma perna. Primeiro eu treinei um pouco, depois treinei a família toda e acabou todo mundo indo para o rinque. Estou contando isso porque estávamos no rinque quando um meu cunhado chegou e disse: “Olhe, aconteceu isso aí.” Aquele medo, aquela situação que a gente não sabia bem, só sabia que tinha acontecido revolução, praticamente isso.
P/1 - Quer dizer que a senhora não sentiu assim na pele, combates, nada disso.
R - 32, não houve revolução propriamente em São Paulo. Houve 24, sim.
P/1 - 32 houve em São Paulo.
R - Mas não afetou em nada.
P/1 - E de 30? A senhora lembra alguma coisa?
R - 30 foi um pouco anterior, não me lembro. Não tenho essa noção. Essa notícia foi dada quando a gente estava lá.
P/1 - Vamos falar um pouquinho dessa arte que você está elaborando, como você se descreveria em criança e depois como adolescente.
R - Como criança e como adolescente, em que sentido?
P/1 - Como você se via como pessoa. Se você fosse se descrever quando criança e como adolescente, como você se via?
R - Bom. É um pouco delicado o que eu vou falar, mas eu vou falar. Eu me considerava uma beleza, então havia um pouquinho de rivalidade entre as irmãs. Minha mãe procurava conciliar. Mas isso nunca me afetou porque eu nunca fui vaidosa, de tomar uma atitude [do tipo]: “Eu sou mais bonita, tenho olhos verdes, vocês não têm”. Ao contrário, elas diziam: “Você tem olho verde, a gente não tem”. Foi uma fase tranquila. Sempre tive um gênio forte, decidia fazer as coisas, fazia mesmo, mas nunca fiz coisas que pudessem prejudicar ou minhas irmãs ou alguém. Sempre procurei viver bem comigo mesma.
P/1 - Você falou que em uma época da adolescência tinha carnaval. Queria que você falasse de diversão, se você tinha muitos amigos. Queria que você descrevesse um pouco essa atividade social da sua fase de adolescência.
R - Minha fase de adolescência, como acho que em todas as fases da minha vida, à exceção de uma ou outra, foi muito boa porque tudo o que fiz na minha vida fiz com entusiasmo ou com muita tristeza ou com muito amor e muita alegria, mas nunca mais ou menos. Então foi aquela fase da adolescência que você começa a ver o mundo de outro modo, em que você já começa a se interessar pelo sexo oposto, já começa a ter os namoradinhos, já começa a ir a festas, para bailes e eu, como sempre, levando. Sem impor, mas o fato é que eu conseguia.
Nesse tempo mocinha não ia sozinha a lugar nenhum. Ir a baile sozinha, de jeito nenhum, então era com mãe, com pai ou com irmãos meus, sempre ali acompanhada. E eu conseguia com que as pessoas fossem com boa vontade. As mães de outras mocinhas também acompanhavam, então faziam companhia para minha mãe; as senhoras ficavam sentadas lá. A minha mãe dizia: "Mas de vez em quando dá uma paradinha aqui". A gente fazia só assim, disfarçando, dando risada.
P/1 - E qual foi o primeiro baile de carnaval que a senhora foi?
R - Lembro muito bem. Foi onde hoje é o MASP. Ali tinha um salão que continuava se chamando Trianon e em cima tinha um espaço onde tinha mesinhas, vendiam guaraná. Nessa ocasião eu morava na Rua Pamplona, que era pertíssimo. Quando nós soubemos que tinha baile lá, eu e minha irmã fomos e tinha umas janelinhas que a gente ficava olhando. O meu primeiro baile foi lá. Foi uma maravilha. E não fui só eu. Foi a minha mãe, foi a sogra do meu irmão com o marido. Família, sempre família.
P/1 - E a senhora foi fantasiada do quê?
R - Nesse baile nós fomos todas iguais, era um vestido. As moças eram de calça, como era mesmo? Era uma calça xadrez, chamada de malandro. Calça xadrez, um coletinho, uma blusinha bufante, um bonezinho. Mais simples e discreta, impossível.
P/1 - A senhora lembra algum desfile de carnaval?
R - Sim. “Alá-lá-ô”, “Chiquita Bacana”...
P/1 - A senhora nos falou também do rinque de patinação. Como a senhora descobriu esse rinque, onde era?
R - Ah, eu não sei, mas sei que quando queria uma coisa, ouvia falar, eu já ficava antenada. Fui descobrir; sei que era na Rua Araújo, na cidade. Fui me segurando, era patim de quatro rodas, pegado na sola do sapato. Primeiro eu treinei, mas eu peguei logo. Eu era ágil, tinha facilidade e só quando estava já segura que contei em casa. Aí minha mãe falou: "Porque você não contou logo?"
P/1 - Nessas suas atividades a senhora já procurava alguma coisa ligada à arte?
R - Toda a vida, desde criança... Isso é um ponto importante, porque quando eu era pequena, devia ter sete ou oito anos, eu não sabia, ninguém tinha falado em arte, nem eu, nem sabia o que estava fazendo. Mas já estava fazendo. Eu juntava coisas que interessavam. Por exemplo, em minha casa vinha uma costureira uma vez por semana, fazia roupa para a turma toda. Tinha uma cesta de retalhos, eu chegava lá, pegava os paninhos, tinha um ferrinho de brasa, passava, juntava. Mas eu não fazia só de paninho: tinha um cantinho no jardim, aí eu punha pedras, pedrinhas, folhinhas coloridas, galhos, fazia as coisas. Todo dia eu fazia um novo. Então, olhando para trás, eu já estava fazendo um quadro. Nem eu dava importância, nem ninguém, porque era um brinquedo, mas aquilo era eu só, não queria que ninguém perturbasse. Não adiantava [dizer]: "ah, vamos brincar não sei do quê, vamos brincar de comadre", que eu não ia mesmo, estava ali concentrada.
P/1 - Depois que a senhora terminou a Escola de Comércio, a senhora foi trabalhar? A senhora teve um emprego?
R - Eu primeiro procurei um emprego, mas em uma casa que eu não gostei, era uma casa de construção. O que era mesmo? Era um escritório de engenharia, mas não gostei, não me lembro porque. Fiquei pouco tempo e aí tive essa oportunidade de ir para a Anderson Clayton, trabalhar logo no departamento legal, no começo fui recebida… Não queriam mesmo me aceitar porque eu era muito jovem, não tinha a experiência que eles precisavam, uma secretária experiente, mas propus que eu ficasse lá um mês - não precisavam me pagar - para eles verem o que eu poderia fazer. E nesse mês eu consegui o lugar. Trabalhei tanto e tão bem, com tanta dedicação, que eu fiquei.
P/ - Quantos anos a senhora tinha?
R - Eu tinha dezesseis ou dezessete anos, coisa assim.
P/1 - E era comum nessa época mulheres trabalharem fora?
R - Não era muito comum, não. Na minha casa, então, muito menos. Meu pai relutou bastante.
P/1 - Ele não queria que a senhora fosse trabalhar?
P/1 - Não. Ele falou: "Para que?" Eu falei: "Porque eu quero. Quero ter minha vida.” "E está lhe faltando alguma coisa?" Então falei: "Mas eu quero."
P/1 - E a senhora ficou quanto tempo nessa empresa?
R - Parece que eu fui para lá porque era meu destino ir. Fiquei lá [por] três ou quatro anos. Lá eu conheci o que seria o meu marido; ele era de uma firma inglesa que ia fazer peritagem na Anderson Clayton, então ele ia ao departamento legal onde eu trabalhava e eu tinha que atendê-lo. Ele queria ver documentos, falar com o diretor, o advogado da empresa, que era o doutor Afonso Ferreira. Daí começou, a gente perceber que um era feito para o outro. (risos)
P/1 - E a senhora começou a namorar com ele logo em seguida?
R - Sim, porque em verdade eu achei uma pessoa, porque eu vi… Para mim sempre foi fundamental que a pessoa tivesse um certo nível. Eu não fazia questão de que fosse rico, bonito, mas que tivesse um nível cultural. Isso para mim era muito importante. Sempre senti essa... A gente começou a se ver, mas eu não queria compromisso porque eu tinha muitos planos. Então encontrei uma pessoa ideal porque ele nunca me pôs torniquete. Sabia que eu sabia o que estava fazendo, mas eu tinha que viver a minha vida. Eu saía dali e ía para a Aliança Francesa estudar. Estudei na Aliança Francesa [por] cinco anos. Tinha vários cursos - todos os cursos que apareciam, história da arte, eu estava lá.
P/1 - A senhora falou que tinha muitos planos nessa época. Fale um pouquinho desses planos que a senhora tinha.
R - Eu tinha tantos planos que precisava canalizar para alguma coisa. Meu plano principal era não ficar parada. Eu sempre li muito e o dia em que descobri a biblioteca, para mim foi como se eu tivesse achado um palácio. Essa biblioteca era na Praça João Mendes - vocês que são muito jovens nem sabem, a Biblioteca [do Estado] ficava na Praça João Mendes. Quando eu descobri aquela biblioteca, descobri um palácio. Eu ia para lá, estudava, lia, tinha livro lá à vontade, à disposição. A minha ambição era sempre na linha da cultura, de conhecer mais e mais.
P/1 - Que tipos de livros a senhora lia nessa época?
R - Olha, é um pouco difícil, porque eu lia tanto, tanto... Eu nunca fui, por exemplo de [M.] Delly, que era o [tipo de] romance que as mocinhas gostavam muito. Eu me lembro um [livro] que me prendeu muito: “A Filosofia da Vida”, de William Durant. Ela deve conhecer. E eu lia bons livros. Sabe, eu não queria best sellers, nunca me interessou.
P/1 - E a senhora, nessa época, já lia alguma coisa voltada para a questão da arte, da pintura?
R - Tudo me interessava, desde que fosse bom. E eu tinha um feeling que eu percebia logo: “Esse vale a pena ler, esse não vale.” Então, como eu tinha uma biblioteca à minha disposição...
P/1 - A senhora se casou depois de quanto tempo que a senhora conheceu seu marido?
R - Eu me casei em 1941.
P/1 - Fazia dois anos mais ou menos que a senhora o tinha conhecido?
R - Mais ou menos.
P/1 - E a senhora continuou trabalhando depois de casada?
R - Não. Eu deixei a Anderson Clayton e durante algum tempo eu não trabalhei. Depois achei que eu estava meio parada, aí trabalhei mais algum tempo, mas depois veio o primeiro filho, não dava mesmo mais. Quando tive meu filho, sempre me dediquei muito à minha família. Como vivi numa família que era muito unida, muito dedicada, também dei sempre muita importância à família.
P/1 - A senhora se casou muito corajosamente numa época de guerra, 41. Então a senhora passou por fases de São Paulo aqui em que aconteceram coisas interessantes. Tipo blecaute, gasogênio etc. A senhora lembra alguma coisa de sua vida que tenha sido determinada por esses dados, não de guerra, mas com reflexos da guerra?
R - Eu me lembro que morava num apartamento e que meu filho era pequeno. [Quando] Chegava a noite, essa hora do blecaute, a gente tinha que fechar as cortinas e eu achava horrível. E um dia o zelador - porque havia fiscalização para ver se estava tudo fechado - disse assim: "Estão reclamando que tem uma réstia de luz na sua janela", porque a cortina acho que não fechou bem. Ficou muito marcado que a gente tinha que ficar no escuro. Isso é o que eu me lembro dessa época.
P/1 - E o gasogênio, a senhora lembra de alguma coisa? Vocês tinham carro nessa época?
R - Sim o gasogênio era aquele trambolhão que ia atrás do carro. Durou pouco, felizmente.
P/1 - Mas nos seus carros, não teve?
R - Não.
P/1 - A senhora começou a pintar. Quando a senhora iniciou o processo de pintura?
R - Como eu iniciei...
Eu disse que desde pequena estive ligada à estética. Não era uma coisa assim… Era tão automático. Se eu chegasse num lugar e eu visse que uma pessoa estava com uma cor discordante, com um penteado, um chapéu, sei lá, me incomodava. Não falava nada, mas me incomodava. Mas quando eu comecei a pintar, foi depois que eu me casei porque meu marido me estimulou. Ele disse: "É um absurdo, você tem que pintar."
Segundo os critérios da época, a gente tinha que aprender; me foi apresentado um pintor, meu marido começou a ficar interessado que eu aprendesse. [Se chamava] Reynaldo Manzke. O Manzke falou: “Você me traz um desenho para eu ver o que você faz.” Então fiz um desenho - caprichadíssimo, não tinha nada a ver comigo, mas caprichei porque eu tinha que mostrar ao professor. Aí ele falou: “Tá bom, tem jeito.”
Ele começou a me dar aulas, mas esse professor, até hoje eu o admiro bastante porque teve a coragem de dizer para mim: "Você não precisa de professor." Porque a gente ia pintar no Canindé, na Freguesia do Ó e ele percebia que eu chegava lá, eu olhava e: “Oi”, “Tchau.” Não olhava mais.
Eu ia fazer errado? Não, ia fazer como eu achava que devia ser. Quer dizer, a figurinha independente que eu sempre fui. Então ele respeitou isso; deixava para ver o que eu fazia. O que ele mais entendeu é que eu tinha uma necessidade de ficar sozinha, aí ele me mandou embora. (risos) Ele falou assim: "Você não precisa de professor, eu acho que você deve seguir o seu caminho." Até hoje eu acho que ele deu um passo muito certo. Uma hora ou outra eu ia desligar, mas assim eu não perdi tempo.
Meu marido é que não concordou muito com isso, falou: "Arranja outro professor." Aí eu procurei a Yolanda Mohalyi, que era uma pessoa que já tinha um nome. Ela falou a mesma coisa: "Traz um trabalho." Eu levei o trabalho e ela falou: "O que você quer aprender você já sabe.” Eu fiquei assustada. Pôs nos meus ombros uma responsabilidade. Eu não sabia nada! Até hoje acho que a gente tem sempre o que aprender. Aí cheguei em casa: "Ah! Ela não quis... [Disse] que eu já sei." "Mas não é possível, procura outro professor!" Fui procurar o [Yoshiya] Takaoka, que é dos melhores - Mohalyi, Takaoka... Levei lá um trabalho. Takaoka também pediu, levei lá, coisas que eu tinha feito sozinha. Takaoka olhou e disse assim, me lembro bem dessa frase, bem de japonês: "Uns fazem tintura, outros fazem pintura. Você faz pintura. Você não precisa de professor." Aí eu falei: “Agora chega!”
Cheguei em casa... "Olha, Takaoka não me aceitou!" "Menina, então você não tem talento?!" Eu falei "Não sei, acho que eu não tenho, mas o fato é que ninguém me quer!" (risos) Aí fui sozinha.
P/1 - E como foi a técnica, o seu princípio de escolha no início de carreira? Como a senhora deu esse start, qual a técnica que a senhora usava?
R - Eu, desde o começo, senti que o meu material era o óleo. Embora eu tenha feito outros - pastel, aquarela, guache, fiz todos - o óleo é o que faço até hoje. O que eu gosto, eu sinto que para mim é o mais importante.
P/1 - A senhora acha que houve mudança na sua técnica de trabalho, seu processo de criação?
R - Olha, esse é um ponto incrível. Eu, já por causa dessa minha inquietação, nunca fiquei na mesma coisa. Você não viu minha exposição no Museu da Casa Brasileira? Ali deu bem para ver as várias fases. Quer dizer, do que eu consegui reunir - foram noventa trabalhos, as várias fases que eu tive.
É assim: eu tenho interesse por um determinado assunto. Acabou? Acabou. Eu não fico... Cada um tem a sua característica; a minha é essa. O [Giorgio] Morandi sempre fez garrafinhas, natureza morta, naqueles tons pastéis maravilhosos. O meu é assim: faço uma coisa, largo, passo para outra. Se você perguntasse três, quatro... Deixa eu ver se me lembro: a série das bonecas. Meu filho me deu um livro Poupées Jumeaux. As bonecas francesas que eram - você deve conhecer também - que eram de um fabricante, as bonecas eram de porcelana e elas todas eram registradas, carimbadas. Tem um livro maravilhoso e as bonecas vestiam roupas de época. Fiquei fascinada com o livro e falei: "Vou fazer uma série de bonecas." Não olhei mais para as bonecas.
Antes tive uma série que estava ligada a acontecimentos históricos, científicos. Quando [Christiaan] Barnard fez o primeiro transplante eu fiz “Início de Uma Nova Era” porque realmente, na ocasião, era uma coisa extraordinária. E vários… Não dá [pra] contar um ou outro assim, salteado. Depois das bonecas fiz “Os Anjos”, anjos à minha moda. E até fiz um painel muito grande que está numa galeria de arte, [um] painel de três metros. Do penúltimo, baseado no livro de George Orwell, “Animal Farm”. Aquele livro, não sei se vocês leram, é um livro político, incrível, atual. Agora você está vendo que, mais do que nunca, esse livro continua atuante e é o que é. É o que o ser humano é: politiqueiro, interesseiro, puxa a brasa para sua sardinha sempre. O que aconteceu nos Estados Unidos agora e depois dessa última - que não será a última!
Estou fazendo “Os Baralhos”, então o Rei, a Dama, o Valete, Coringa... Estive outro dia com um colecionador de baralhos fantástico. Existe uma verdadeira confraria, você vê, quando você faz uma coisa e começa a se interessar. Você descobre, abre o leque. Vai ter um congresso de baralhos - de baralhos não, de colecionadores de baralhos, em Barcelona. Ele me mostrou a coleção dele - uma parte, que é muito grande. Uma maravilha, fantástica.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho. A senhora falou um pouco dessa formação que a senhora teve no início. Que lhe foi colocado que não havia necessidade de uma formação acadêmica e depois a senhora percebeu que não havia essa necessidade. Queria que a senhora falasse com quantos mestres, com que artistas a senhora conviveu no início de sua carreira.
R - Mestre?
P/1 - Com que artistas?
R - Artistas? No início da minha carreira? Ah, sim. Quando eu comecei, eu morava no Paraíso, na Rua Joinville e ali, onde hoje é a Estação Paraíso, tinha um ateliê de pintura de um japonês, [Tikashi] Fukushima. Perto da minha casa morava uma pintora, Marjô [Maria José Calheiros de Mattos], que tinha ligação com esse grupo de japoneses. Eram o [Manabu] Mabe, Fukushima e outros e todos iam fazer moldura no ateliê do Fukushima. Quando ela viu meus trabalhos - ela já era pintora - falou: "Nossa, você precisa fazer parte do Grupo Guanabara." Porque Guanabara? Porque ali se chamava Largo Guanabara, onde hoje é a estação de metrô Paraíso. Ali era o ateliê do Fukushima, tinha uma igrejinha, não sei para onde foi.
Cheguei a fazer duas exposições com o Grupo Guanabara. Uma foi numa galeria na cidade, que aliás era a única galeria boa que tinha... Como se chamava? Domus. Eu expus na Atrium também, com a Emi, mas com o Grupo Guanabara foi na Domus. Depois, na ACM [Associação Cristã de Moços], tivemos palestra do Lourival Gomes Machado, de Sérgio Milliet, falando do Grupo Guanabara.
Participei de exposições, mas não participei da vida deles porque eles iam pintar fora. Nessa ocasião eu tinha já meus filhos pequenos, então eu ficava com meus filhos, pintava em casa. Quando saía - morava ali na Rua Joinville, junto do Ibirapuera - levava o pequenininho, levava o outro. Ia pintar no Ibirapuera, levava os filhos. Esta fase foi a fase praticamente inicial do meu trabalho.
P/1 - Então a sua primeira exposição foi com o Grupo Guanabara, lá na Galeria Domus. Qual foi a sua primeira exposição internacional?
R - Internacional? Deixa eu ver… Qual delas?
P/1 - A sua primeira, que a senhora foi convidada?
R - Em Roma, na Piazza Navona, na Embaixada Brasileira.
P/1 - Em que época foi?
R - Eu tenho até o documento. Depois os meus quadros foram para Stuttgart e Munique e eu nunca recebi os catálogos dessas exposições, mas eu tenho o telegrama do Itamaraty me dizendo: “Os seus trabalhos estão indo para Stuttgart e Munique.” Eles nunca me mandaram os catálogos, então é uma comprovação, porque eu gosto de tudo organizado. Meus trabalhos estiveram lá. Depois eu estive em Washington, no Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos. Estive no Museu de Arte de Buenos Aires. Estive em uma exposição que percorreu Caracas, Bogotá, Lima, percorreu a América do Sul, América Central. Aí já não era individual, eu participava como artista convidada.
E onde mais? Barcelona, mas Barcelona também foi participação - foi na Fundació Ynglada-Guillot, participei com desenhos. Como é mesmo aquela cidade na Argentina, que tem um nome em uma cidade igual na Espanha? Córdoba, também. E tem um catálogo belíssimo. Não foi exposição individual, foi participação: um catálogo belíssimo, editado em três idiomas. E mais coisa que não me lembro.
P/1 - A senhora sempre acompanhou essas exposições? A senhora sempre ia para esses locais, quando a exposição estava lá?
R - A Washington fui, inclusive porque foi uma exposição patrocinada pela embaixada brasileira; eu tive transporte, estadia e tudo em Washington. Na Itália e em Buenos Aires também e nas outras eu mandei meus trabalhos, mas não fui.
P/1 - E o que isso refletiu na sua obra, você expor lá fora? Que influência teve isso na sua obra?
R - Nenhuma porque… Evidentemente tudo o que você vê, deixa... Mas eu vi que estava num plano muito bom, que eu era eu mesma, que não tinha, não era… Por exemplo, artistas que dizem assim: “Fulano de tal é o Albee”. Albee é um pintor americano. Quando ele começou a pintar, começaram a aparecer uma porção de Albees por aí. Então eu percebi que eu era eu mesma, continuo sendo, que não tinha nada a ver. Via todos os museus. Vi na Europa, vi nos Estados Unidos museus mais importantes, mas isso não trouxe... O acréscimo é de você conhecer mais coisas, mas não acrescentou nada no meu trabalho.
P/1 - Não teve nenhum artista que influenciou sua obra?
R - Que tivesse influenciado? Não.
P/1 - Qual foi o seu primeiro prêmio?
R - Meu primeiro prêmio? Linda pergunta! Este trabalho está nos arquivos do Itaú Cultural, que aliás eles têm lá... Era uma natureza morta e em Santos eu ganhei uma Menção Honrosa, foi uma coisa que me deu uma alegria imensa. abe? É um quadro que é uma natureza morta, é uma bandeja [e] dentro umas frutas. As pessoas questionavam, mas as pessoas que vêm tudo certinho: "Mas como essas frutas não caem?" Perguntas desse gênero. Porque a bandeja está assim... [faz gesto indicando inclinação]
P/1 - Esse foi o mais gratificante, essa menção honrosa?
R - Todos foram importantes. Eu tive um prêmio em Ouro Preto, o Primeiro Prêmio de Pintura Nacional. [Uma] exposição que fui convidada e o quadro premiado, aliás [o prêmio] foi pelo conjunto de trabalhos. “O Apelo” é um quadro que está na coleção da Editora Abril de Arte nos Séculos, na capa.
Esse quadro eu fiz assim: uma figura de braços para cima, do lado de cá pus uma colagem, a Virgem Maria com o bebezinho e aqui assim eu pus o que você achava do mundo conturbado. Inclusive tem uma colagem de um Cristo partido, representando a quebra da fé, da religião, do apoio espiritual. Esse quadro é muito interessante, muito bonito. Está no Arte nos Séculos e também no site do Itaú Cultural.
P/1 - A senhora não gostaria de falar um pouquinho para a gente sobre “Os Inocentes”, que ilustra...
R - A senhora conhece “Os Inocentes”?
P/1 - Não, eu não conheço “Os Inocentes”. Vi na Internet. Eu vi porque ele ilustra o verbete Ismênia Coaracy no Delta Larousse.
R - Você viu?
P/1 - Vi.
R - Você viu em francês?
P/1 - Não, eu vi só a citação. Ainda não tive tempo de procurar.
R - Porque tem em português também. Primeiro foi em francês. “Os Inocentes”, foi uma pergunta muito interessante. Eu li aquele livro, “A volta do Parafuso”, do Henry James. Esse livro, essa história foi transformada num filme chamado “Os Inocentes”.
Esse filme é interessantíssimo. É a história de duas crianças que são de família muito rica, mas que não têm pai nem mãe. Um tio que era responsável, mas o tio não queria saber de criança coisa nenhuma, então ele põe uma governanta para cuidar das crianças nesse palácio. E as crianças são meio diabólicas. Elas são lindíssimas, maravilhosas, mas você sente… O filme é tão bem-feito, passa essa imagem das crianças meio com poderes. Por exemplo, elas passavam junto de um vaso de rosas, as rosas desfolhavam e elas conversavam, elas se aproximavam de espíritos. O livro é tão extraordinário que no filme você também não sabe se esses espíritos eram espíritos mesmo ou se eram dois empregados do palácio - um era jardineiro e outra era uma governanta -, se eles tinham morrido ou não, porque você vê através de um vidro a imagem fosca dessas duas figuras. As crianças ficavam emocionadas e tinham um comportamento diabólico, mas ao mesmo tempo muito angelical. Então no quadro que você viu tem uma boquinha de criança e em volta tem os monstros que eles viam, que eram essas pessoas que eles viam e que você não sabe se eram vivas, se eram mortas, se eram fantasmas. Ou se era imaginação também da governanta, que era uma pessoa meio neurótica.
P/1 - E nesse quadro aparecem bem nítidos também os olhos, que são característicos.
R - Em todos os meus quadros.
P/1 - Fale alguma coisa para a gente sobre isso.
R - Acho que os olhos são uma coisa tão importante: como você vê, porque através do olho você sente. É a visão, em primeiro lugar, que dá a sensação do que você está vendo, você está passando, você está sentindo, então acho que os olhos têm uma importância fantástica. Mesmo no “Animal Farm”, essa penúltima fase minha, as figuras, quando existe a transformação do bicho em animal, do animal em bicho - porque tem lá um que se veste com roupa de homem, com gravata e o casaco de porco e a cabeça dele é de porco e o corpo é de porco também. Era o porcão, que era o chefe dos animais - chefe a favor e contra. Então eu vejo que através dos seus olhos você vê, você sente. Você percebe, você raciocina.
P/1 - Certo. Voltando um pouquinho antes, você falava um pouco do processo de sua obra, das transformações. Queria que você me falasse alguma coisa, quando foi vendida sua primeira obra.
R - Isso é difícil, eu vendi bastante.
P/1 - Mas a sua primeira obra? Quando você vendeu o primeiro quadro, o que você sentiu e quando foi?
R - Deixe eu ver se me lembro. Vendi muito, muito, muito. Sabe, eu não sei quando.
P/1 - O que você acha, pelo que você falou agora, que é mais marcante em sua obra?
R - O que é marcante? É o tema, porque mesmo quando eu faço flores, as minhas flores não são assim umas florzinhas. Elas têm uma energia, uma força. Eu acabei de vender um quadro de flores, depois até me arrependi porque ele tinha uma tal força, tinha a força que eu procuro. Não é que eu faça com aquele objetivo, mas sai. A energia da natureza, a força, beleza de uma flor, entende? Não é só que ela é bonita, que ela enfeita, que ela perfuma. Não, vai além. Você percebe que de uma sementinha às vezes nasce uma árvore, então eu vou ao princípio da vida.
P/1 - Quais transformações ocorreram, as transformações mais importantes nesse seu processo de criação?
R - Mais importante? Como eu estou sempre em transformação, acho que todas foram importantes. Porque desde que você mude o tema, como agora, que estou fazendo as cartas de baralho, e que você já abriu uma porta para mim, porque eu vim a conhecer um colecionador… Eu nunca pensei que existissem baralhos - a gente pensa que é só o Rei, a Dama; de fato, [há] o Rei, a Dama, mas como isso é visto, como isso é interpretado, como isso é feito. Inclusive eu ganhei um baralho; ele me deu, tirou da coleção dele, feito por um artista, uma coisa maravilhosa. E a gente está acostumado: o Rei, a cabeça aqui e aqui! Não! Precisa ver a figura, tem baralhos que é uma Dama vestida ricamente, ela segura o naipe assim na mão! Coisas incríveis, você não pode imaginar.
Tem baralhos eróticos. Eu fiz agora um trabalho com os baralhos eróticos, uma coisa fantástica. Não sei se vocês ouviram falar - eu nunca tinha ouvido falar, nem tinha visto. Então cada fase minha, nova, era uma nova emoção, um novo interesse.
P/1 - Você acha que as suas transformações enquanto pessoa, da sua vida, da sua relação com sua família, também influenciaram sua obra?
R - Não, não mesmo. Eu sou assim, enquanto estou vivendo uma coisa, eu vivo plenamente. Passou, evidentemente que tudo deixa seus laços, mas eu não fico apegada, entende, a viver do passado, não é comigo. Tenho o maior respeito pelo passado, valorizo tudo que eu vivi de bom e de ruim, porque a vida não é sempre igual. Você tem momentos bons, tem momentos mais ou menos, péssimos e então eu, de certo modo, valorizo todos os momentos de minha vida, mas sem apego.
P/1 - Você acha o fato de você ter se casado numa época… Com filhos pequenos, eles de alguma forma foram uma dificuldade no seu processo de criação ou no fato de você se tornar artista?
R - Não, porque eles eram pequenos e eu saía com os dois, levava os dois comigo para pintar no campo. Eu levava cavalete, caixa de pintura, levava lanchinho para eles, levava brinquedo. Ia de bonde pintar no Canindé, tomava o bonde ali no Largo de São Bento. Eles iam comigo. Desde pequenos eles se acostumaram a saber que a mãe tinha um trabalho. Cuidava deles cem por cento, mas eu tinha o meu trabalho e sempre foi muito respeitado.
P/1 - Explique porque você escolheu Canindé, Freguesia do Ó, o que tinha de diferente nesses lugares?
R - Naquela época tinha muita. Outro dia eu passei pelo Canindé e falei: não é possível, isso aqui é o Canindé? Não é possível, como era tranquilo, era limpo. No Canindé tinha um rio, um riozinho, um riacho, tinha árvores, tinha pinheiros, maravilha. [A] Freguesia do Ó tinha uma igreja maravilhosa, tinha uma rua que parecia um trecho das cidades mineiras de São João del Rei e tinha umas casas antigas. Não existe mais. E os pintores gostavam de ir para lá.
Mas eu fui muito pouco. Porque fui pouco? Porque percebi que não tinha que ficar olhando. Meu processo de criação não era ficar olhando. Era eu imaginar e desenvolver isso dentro de mim.
P/1 - Você tem, dentro de sua teoria de pintura… Você acha que tem uma diferença entre aquilo que agrada os olhos do público e aquilo que agrada à artista? Existe alguma diferença na sua obra ou não?
R - Não. Nunca dei importância a isso. Goste ou não goste, é o que eu faço. Eu tive oportunidade de ver artistas que entravam nessa. Nesse ponto as galerias têm muita responsabilidade. Por exemplo, se o artista vende uma determinada linha, então é assim... Principalmente se ele tem um contrato, um compromisso com a galeria, ele tem que ficar fazendo aquilo. Não vou citar nomes, mas vi artistas que ficaram perdidos porque tinham que atender um mercado. Eu nunca tive essa preocupação. Vendeu, vendeu; não vendeu, não quero saber. Agora, depois de minha exposição, essa galeria que foi na minha exposição teve interesse em pegar uns quadros meus. Eu concordei porque é uma galeria boa, mas não faço concessões nessa área. Nunca fiz, não é agora que vou fazer.
P/1 - E como era a sua relação numa coisa que eu acho que é importante: é quando um artista é convidado a expor numa galeria. Ele faz um contrato, esse contrato é durante uma exposição. Você pode não trabalhar com contrato? Como é esse processo?
R - Expus muito pouco em galeria aqui no Brasil. Pouquíssimo. E quando eu expus não queria nenhum vínculo com a galeria. Justamente por isso, para não ficar depois tendo que fazer quadros assim ou assado. [O] Decorador, ele vai, quer fazer um acordo com o que o cliente quer, lógico, é natural. É geralmente o que acontece: o quadro, para muitas pessoas, é mais uma coisa que tem que ficar na casa, como uma cortina, um tapete, entende? Então o gosto é duvidoso, um gosto que... Quer uma coisa bem decorativa. Às vezes até pagam um absurdo porque as galerias já colocam um preço alto e não estão nem sabendo o que estão comprando.
R - Desde que combine.
P/ - Combine. E eu nunca entrei nessa.
P/ - E as galerias lá fora. A senhora expôs lá?
R - Eu expus, a convite, nesses lugares que eu lhe falei: em Washington, mandei trabalhos para Washington. Na Embaixada Brasileira, que vi a reportagem, na Embaixada em Roma, na Argentina. Aqui no Brasil, no MAM, Museu de Arte Moderna. Participei de Bienais, tem prêmio na Bienal de São Paulo, Prêmio de Aquisição.
P/1- Quando foi?
R - Foi na nona Bienal. No meu currículo está tudo - dados que vocês queiram conferir, datas.
P/1 - O marido da senhora sempre trabalhou como perito?
R - Ele era um alto funcionário numa empresa americana, tanto que nós fomos várias vezes para lá, porque quando tinham os meetings era em Nova York. Ele era da parte de finanças da empresa.
P/1 - Ele foi sempre o principal incentivador para que a senhora começasse a pintar e durante toda sua vida ele continuou?
R - Sempre, sempre.
P/1 - Com quem a senhora mora atualmente?
R - Eu moro sozinha. Eu não quis me casar novamente. Não me interessei. Acho que estou muito bem assim. Meu filho Afonso Carlos Coaracy, que é cineasta, mora comigo. Ele casou, separou, agora está comigo.
P/1 - E a senhora tem mais um filho.
R - Tive, infelizmente perdi.
P/1 - Voltando um pouquinho aos seus trabalhos, eu li alguma coisa que além de pintar a senhora fez um filme.
R - Sim. “O Princípio e o Fim de Uma Obra de Arte”.
P/1 - De duas barras de gelo, durante o dia todo. Conta um pouquinho para a gente sobre isso.
R - Eu trabalhei com Super 8. Foi uma pergunta oportuna porque o Itaú Cultural convidou artistas que trabalham em Super 8 a participar de um evento que o Itaú está organizando e pediram filmes meus, inclusive esse: “O Princípio e o Fim de Uma Obra de Arte”. Infelizmente a emulsão desses filmes não era muito boa e eles me pediram os que eu pudesse mandar. Mandei quatro filmes. Infelizmente só um foi aproveitado porque não perdeu. Esse, “O Princípio e o Fim de Uma Obra de Arte” estava todo branco. Eu fiz com um isopor, coloquei duas pedras de gelo desse tamanho, cruzadas assim, enfiei um papel colorido e esse gelo foi derretendo. Eu coloquei a máquina num tripé e durante um dia fui deixando derreter, o dia inteiro, mais até. Chegou uma hora, vi que não ia dar tempo, até forcei um pouco e então ele foi tomando formas diferentes, esse gelo. Maravilhoso, pareciam catedrais. [Era] Nesse filme que eles estavam muito interessado, mas a emulsão não era boa. No princípio era assim mesmo, o Super 8. Perdeu, ficou azul, ficou verde, era rosa... O que vai ser exibido é o desenrolar de um filme. Se vocês tiverem interesse, vejo a data, vai ser lá no Itaú Cultural.
P/1 - E abordava o que?
R - Esse eu não posso contar, esse é o segundo. (risos)
P/1 - Voltando um pouquinho. A senhora teve dois filhos que nasceram logo depois do seu casamento. E a senhora falou que um é separado e infelizmente um faleceu.
R - Esse faleceu em 1992.
P/1 - Ele já era casado?
R - Não. Também era assim como hoje em dia, casava, descasava, sabe como é hoje em dia.
P/1 - É verdade. A senhora tem netos?
R - Tenho quatro netos: dois netos e duas netas.
P/1 - Todos desse filho?
R - Desse filho que está comigo.
P/1 - A senhora acha que teve alguma influência nessa formação artística do seu filho?
R - Nenhuma. Ele teve ambiente em casa. Desde pequeno eu tinha livros. Eles tinham interesse cultural, levava para assistir concertos, levava a exposições, a museus, quer dizer, levava e fazia parte da educação. Mas nunca influenciei de jeito nenhum, mesmo porque ele é uma pessoa super independente, ninguém força ninguém a fazer nada. Cada um é cada um.
P/1 - Ele está fazendo um filme sobre seus cinquenta anos.
R - A minha exposição foi inteiramente filmada e vai ser vídeo, vai poder passar em filme. Faltam alguns detalhes, música, sei lá o que, mas está filmado.
P/1 - Ele é que está fazendo este filme?
R - Na ocasião ele estava fazendo uma campanha política no interior. Foram outras pessoas que fizeram. Mas já está filmada a exposição.
P/1 - Essa exposição foi uma comemoração dos seus cinquenta anos?
R - Cinquenta anos de pintura.
P/1 - E foi feita onde?
R - No Museu da Casa Brasileira. Aliás, aí tem um catálogo para vocês.
P/1 - E de sua obra, qual a obra que a senhora mais gosta?
R - Todas. (risos) Parece incrível. Nas diversas fases, por exemplo, de tal fase eu gosto mais desta, não é que eu goste mais. Sei lá, teve mais envolvimentos, principalmente quando tem um tema. Tem, na fase em que eu escolhia bem os temas, por exemplo, “O Leiloeiro”.
É um quadro… Um leiloeiro meio grotesco está com uma coisa que parece um martelo. Porque eu fiz este quadro? Sempre tem um motivo. Na ocasião tinha muitos leilões, era uma coisa social. A pessoa ia lá, queria ser vista e eram bebidinhas, comidinhas, e aí quando um quadro era vendido, todo mundo: “Oh, quem comprou?” Sabe aquela coisa da vaidade? É lógico, é humano, não critico, mas eu achava até certo ponto engraçado. Eu vejo o lado do humor da coisa também. Então eu fiz esse leiloeiro; eu ia fazer uma série justamente pintando esse ambiente. A mocinha entregando: "Faz favor de assinar aqui", porque precisa ficar comprovado, já tinha que dar um sinal.
Nunca participei, eu ia para ver, mas meu marido ficou doente, eu fiz esse leiloeiro e o leiloeiro ficou sozinho, ficou sem os compradores.
P/1 - Agora me diga uma coisa: em relação ao tema que a senhora aborda, a senhora prefere a técnica daquela pincelada sem definições precisas, meio vagas ou o desenho que tem um contorno bem preciso? Isto depende do tema?
R - É, até um certo ponto, sim. Varia, por exemplo: há quadros que são mais liberados. Mesmo esse do leiloeiro, embora seja todo muito bem pintado, não é uma coisa… Não tem nenhum quadro meu jogado, de qualquer jeito. Mesmo aqueles em que aparentemente existe uma liberdade, às vezes são os quadros mais trabalhados, porque eu volto… Quero que tenha aquela impressão de que fiz uma coisa bem espontânea, mas ele é super voltado.
P/1 - É mais difícil fazer com pinceladas só?
R - Tem um quadro, por exemplo, que é muito bem trabalhado, Chama-se “O Espelho”. São duas mulheres, uma voltada para a outra. Porque que eu fiz? Porque a gente se vê de um jeito, acho que todo mundo sabe... "Não estou muito bem" e dá uma ajeitada. Na verdade, do outro lado está como ela se sente, se vê. Mas na verdade ela é uma outra pessoa. Ela não é tão jovem, tão bonita como esta imagem. Então está uma olhando para a outra. Uma é como a pessoa se vê, outra como realmente ela é, ou seria. Esse é um trabalho que é mais detalhado, mais pincelado. Depende também muito do tema, para eu usar este tipo de ...
P/1 - A cor também é muito predominante no seu trabalho. Mais do que a forma.
R - A forma vem em consequência da cor. Por exemplo, eu tenho um quadro, um pé de romãs no jardim. Tem muita romã. Fiz um quadro de romãs desse tamanho, lindíssimo, que deu muito trabalho. Desses que, como você observou muito bem há pouco, aparentemente é pincelado, foi muito voltado para chegar a esse resultado.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho para a questão pessoal, familiar. A senhora disse que quando a senhora estava pintando “O Leiloeiro” seu marido ficou doente, Isso foi em que época?
R - Ele morreu... Foi em 84, mais ou menos.
P/1 - Ele veio a falecer? Era muito mais velho que a senhora?
R - Ele era cinco ou seis anos mais velho do que eu.
P/1 - E ele morreu de que?
R - Câncer. Morreu de câncer.
P/1 - Essa fase de sua vida, no processo da doença dele, também veio a influenciar na sua obra de alguma forma?
R - Não. Eu fiquei parada porque não tinha… Evidentemente. Foi um período muito longo, muito sofrido, para ele e para mim, então eu parei. Fiquei parada, não tinha nem vontade nem necessidade de pintar. Me dediquei exclusivamente a ele.
P/1 - A senhora como vive hoje? Disse que vive com seu filho. Qual o seu maior desejo em termos dessa vida? O que a senhora mais espera, mais deseja da vida?
R - Continuar sendo a pessoa que seu sempre fui, encarando as coisas da melhor forma possível, procurando resolver os problemas da melhor maneira possível, não exagerando em qualquer setor. Há pessoas que ficam demasiadamente tristes, demasiadamente eufóricas. Manter o equilíbrio que eu sempre tive.
P/1 - Qual o maior sonho? A senhora tem um sonho hoje?
R - Eu acho que os meus sonhos vão aparecendo. Não é muita coisa, amanhã eu quero ser isso, amanhã eu quero fazer aquilo. Eles aparecem, geralmente eu [os] realizo. No momento o meu sonho é continuar vivendo bem, trabalhando, pintando, com inúmeros amigos como eu tenho. É isso.
P/1 - Uma perguntinha paralela: a senhora como artista tem uma sensibilidade diferente, vamos dizer assim. E se liga em outras formas de arte, que não só as artes plásticas - pintura - como a senhora mexe com música, que é uma outra forma de expressão artística. A senhora gosta de música, curte muito música?
R - Muito, muito.
P/1 - Vivencia bastante música?
R - Bastante.
P/1 - E que tipo de música a senhora gosta mais?
R - Não gosto, detesto essa música desses bandos que surgiram por aí. Acho que isso até é um reflexo da sociedade, da cultura, ou não cultura. Enfim, é uma coisa que tem o seu valor, porque ela representa uma época. É isso que está aí, o mundo é assim. Mas não é música mais, é barulho. É exibição, sei lá, é ao mesmo tempo a moda que mostra a nudez que aparece. Tá cantando, tá pelado e porque isso? Isso é o reflexo de uma época que a gente está vivendo.
Isso eu não gosto, não tem nada a ver comigo, mas entendo até, é necessário que haja isso. É uma válvula de escape para essa violência toda que está aí. Mas que no fim das contas não está fazendo nada, porque eles ficam nesses programas e o tempo vai passando. Eles não estão estudando, não estão trabalhando, não estão fazendo nada, estão só nos estúdios, cantando e dançando. Problema deles, é claro. Mas a gente vê com uma certa tristeza.
P/1 - O que a senhora gosta de música, que tipo de música?
R - Gosto de música clássica, mas gosto muito do jazz dos anos 30. Continua sendo… Você ouve, você vê realmente a música. Músicos que conheciam, que eram realmente muito bons.
P/1 - Ben Goodman...
R - É, todos eles.
P/1 - E livros? A senhora disse que sempre leu muito, desde pequena. Continua lendo?
R - Continuo lendo.
P/1 - Que tipo de literatura a senhora gosta mais hoje em dia?
R - É tão difícil falar porque...
P/1 - A perguntinha que aparece sempre na Veja: o que a senhora está lendo agora? (risos)
R - Gabriel García Márquez, Vargas Llosa também; ele agora, voltou, o Italo Calvino, que eu já li há muitos anos, o “Cavaleiro partido [ao meio]”. Você conhece, você leu? Eu comprei esse livro há não sei quanto tempo, agora estou numa reedição dele.
P/1 - “Os Amores Difíceis”... Do Saramago a senhora gosta?
R - Não gosto, não sei. Não é que eu não goste. Eu preciso ter interesse. Não tenho. Eu acho que a única coisa que eu li dele foi o primeiro livro, que era dos meninos da praia. Depois não sei, não é meu gênero.
P/1 - A senhora falou hoje que convive muito com amigos. Quais as atividades que a senhora tem com seus amigos, que costuma fazer hoje em termos de lazer?
R - De lazer? Olha, eu vou a exposições, é claro, apareço na Julio Prestes Cultural [Sala São Paulo], completou dois anos. O teatro, recebi convite, fui lá. Gosto dos concertos que tem lá. Vou a teatro, o Teatro do SESI sempre tem peças boas, interessantes. Acabei de ver uma, “O Motoboy”, não sei se vocês viram? Você viu?
P/1 - Não.
R - Interessante, não é nenhuma coisa espetacular, mas é... Não chega a ser um teatro amador nem um teatro profissional. É uma coisa que você vai, se diverte. Vou muito às exposições da FIESP, do SESC, inclusive fiz uma exposição no SESI que a FIESP arrumou o espaço quando foi inaugurado. Que mais? É tanta coisa. Não chega ainda? (risos)
P/1 - Queria que a senhora falasse um pouquinho… Como a senhora descreveria sua vida hoje?
R - Hoje? Em que sentido?
P/1 - Como é sua vida hoje e viver sozinha.
R - Mas não vivo sozinha, não.
P/1 - Sozinha, quero dizer, a senhora hoje tem a companhia de seu filho. Mas o que mudou de estar consigo quando jovem e hoje?
R - Olha, [pra] falar a verdade, eu sempre estive comigo mesma. Sempre, em qualquer idade. E quando você aprende isso, você não fica desesperada.
Eu tenho amigas que ficam desesperadas ou não tem alguma coisa para fazer, saem para o shopping, vai aqui, vai ali. Você precisa estar com você mesmo porque você tem que acarinhar seu corpinho, você tem que viver sua vida. Ninguém pode viver isso por você. Então quando você aprende a viver com você, não tem: “Que coisa chata, estou sozinha”, não tem isso. Tem interesses, você tem seu trabalho, tem seus amigos, sua casa, você tem que fazer sua comidinha. Tem um monte de coisas que você pode fazer e que preenchem sua vida. Não tem nada de angustiante, não tem nada disso. A gente é que faz a vida da gente.
P/1 - Queria fazer uma última pergunta. Eu queria saber o que a senhora achou de dar este depoimento.
R - Achei tranquilo, gostei. Tive oportunidade de falar, embora por cima, porque 50 anos de pintura é uma vida. A gente resumir em meia hora, uma hora, duas horas é muito e ao mesmo tempo você tem um panoramal. Eu espero ter dado para vocês.
P/1 - Agradeço sua presença, seu depoimento. Obrigada.
R - Eu que agradeço.
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