Entrevista de Luiz Henrique da Cruz Ribeiro (Ricky Ribeiro)
Entrevistado por Luiza Gallo
Santana de Parnaíba, 26/07/2022
Projeto: Inclusão e Diversidade - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1222
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiro eu quero te agradecer demais por você ter topado estar aqui com a gente e rememorar algumas partes da sua vida, e quero que você comece contando, se apresentando, seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Meu nome é Luiz Henrique da Cruz Ribeiro, eu nasci dia 27 de fevereiro de 1980, na Maternidade São Paulo, em São Paulo, capital.
P/1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento? Você sabe como escolherem seu nome?
R – Sim. Me contaram como foi o dia do meu nascimento algumas vezes, até porque é uma história curiosa. Minha mãe fala que eu não nasci, fui espirrado. Naquela noite meu pai preparava em casa uma palestra para um congresso médico, que apresentaria no dia seguinte. Ao escutar minha mãe, foi até o quarto e ouviu-a dizer que estava com pressentimento de que o bebê iria nascer. Ela, então, pediu pra o meu pai ligar para o médico, o Doutor Paulo Goffi, chefe de obstetrícia na Faculdade de Medicina da USP. Antes de telefonar, porém, meu pai perguntou se ela sentia alguma dor, ao que minha mãe respondeu negativamente. “E como eu vou ligar para o meu professor, por causa de um pressentimento?”, quis saber meu pai. Assim, eles foram dormir e às duas da manhã, como minha mãe não parava de virar de um lado para o outro, meu pai perguntou mais uma vez se ela sentia dor ou se havia perdido água, sinais de trabalho de parto. Como a resposta foi, novamente, de que se tratava apenas de um pressentimento, ele então insistiu pra que ela tentasse dormir, pois precisava acordar cedo pra dar palestra na manhã seguinte, até que, antes das cinco da manhã, diante da inquietação da minha mãe, ele não pôde mais...
Continuar leituraEntrevista de Luiz Henrique da Cruz Ribeiro (Ricky Ribeiro)
Entrevistado por Luiza Gallo
Santana de Parnaíba, 26/07/2022
Projeto: Inclusão e Diversidade - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1222
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiro eu quero te agradecer demais por você ter topado estar aqui com a gente e rememorar algumas partes da sua vida, e quero que você comece contando, se apresentando, seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Meu nome é Luiz Henrique da Cruz Ribeiro, eu nasci dia 27 de fevereiro de 1980, na Maternidade São Paulo, em São Paulo, capital.
P/1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento? Você sabe como escolherem seu nome?
R – Sim. Me contaram como foi o dia do meu nascimento algumas vezes, até porque é uma história curiosa. Minha mãe fala que eu não nasci, fui espirrado. Naquela noite meu pai preparava em casa uma palestra para um congresso médico, que apresentaria no dia seguinte. Ao escutar minha mãe, foi até o quarto e ouviu-a dizer que estava com pressentimento de que o bebê iria nascer. Ela, então, pediu pra o meu pai ligar para o médico, o Doutor Paulo Goffi, chefe de obstetrícia na Faculdade de Medicina da USP. Antes de telefonar, porém, meu pai perguntou se ela sentia alguma dor, ao que minha mãe respondeu negativamente. “E como eu vou ligar para o meu professor, por causa de um pressentimento?”, quis saber meu pai. Assim, eles foram dormir e às duas da manhã, como minha mãe não parava de virar de um lado para o outro, meu pai perguntou mais uma vez se ela sentia dor ou se havia perdido água, sinais de trabalho de parto. Como a resposta foi, novamente, de que se tratava apenas de um pressentimento, ele então insistiu pra que ela tentasse dormir, pois precisava acordar cedo pra dar palestra na manhã seguinte, até que, antes das cinco da manhã, diante da inquietação da minha mãe, ele não pôde mais descansar, resolveu colocar uma luva estéril pra fazer um exame de toque e descobriu que a minha cabeça já estava coroando. Naquela aflição, ligou para o Doutor Goffi, que morava em frente a Maternidade São Paulo, na Rua Frei Caneca. Dessa forma, meus pais saíram de casa às pressas e ao chegarem à maternidade, pouco depois das cinco, minha mãe foi direto pra sala de parto, onde eu nasci, em poucos minutos. No final daquela mesma manhã, como bebê e mãe passavam bem, o médico deu alta para os dois. Minha mãe ficou surpresa, porque nunca tinha visto alguém permanecer menos de seis horas na maternidade, e no fim das contas, ela gostaria de aproveitar pelo menos uma noite no quarto, descansando e recebendo visitas. Enquanto em casa minha irmã aguardava mamãe e seu mais novo irmãozinho.
Meu apelido, Ricky, foi escolhido antes do meu nome, Luiz Henrique. Que eu me lembre, minha mãe gosta tanto do nome Ricky que até teve um cachorro chamado assim. Luiz foi em homenagem ao meu avô paterno, Luiz Sérgio e Henrique para justificar o apelido Ricky. Apesar de achar Luiz Henrique um nome muito bonito, eu preferia me chamar simplesmente Ricky. Quando alguém me chama de Luiz, muitas vezes nem percebo que estão falando comigo, de tão acostumado que estou das pessoas falarem Ricky.
P/1 – E qual o nome dos seus pais? Você sabe como eles se conheceram? Como você os descreveria?
R – Meu pai se chama Márcio e minha mãe Maria Cristina. Assim como eu, minha mãe não gosta de ser chamada pelo primeiro nome, prefere Cristina, ou apenas Cris. Curiosamente, minha avó materna também tem nome composto, Conceição Wilza e só gosta de ser chamada pelo segundo nome. Então, se eu vier a ter filhos, não pretendo dar nome composto.
Meus pais são paulistanos, mas se conheceram em Santos, na Sorveteria Caramba. Ambos tinham família na cidade litorânea e estavam de férias. Minha mãe do colégio e meu pai da Faculdade de Medicina. Os dois são pessoas boas, muito organizadas, simpáticas, sociáveis, mas que também apreciam momentos tranquilos, de introspecção. Eu acredito ter herdado essas características. Apesar da bondade e simpatia, foram muito rigorosos na nossa educação, mas isso ‘rendeu frutos’, pois eu e minha irmã éramos, geralmente, as crianças mais adoradas dos adultos. Eles nos ensinaram a tratar todos com educação e respeito, independente de idade, classe social, ou qualquer outro fator ou característica. Minha mãe, assim como minha vó, sempre foi uma pessoa prática e teve muita energia, do tipo que foca na solução e não no problema. Ela ama ler e aprender, inclusive lia os livros da minha Faculdade de Administração. Essas características fizeram com que tivesse sucesso no mundo empresarial, chegando a ser diretora de empresa, apesar de ter se formado em Letras e iniciado a carreira como professora. Depois que parou de trabalhar se revelou uma talentosa desenhista. Meu pai tem boas habilidades manuais, o que o levou a ser cirurgião cardíaco e um exímio pianista. Fez conservatório e se apresentou sozinho em um recital de músicas clássicas, com apenas treze anos. Tinha uma carreira promissora, mas optou pela medicina. Fora essas duas paixões já vi meu pai usar suas habilidades se aventurando como marceneiro, eletricista, encanador e mais recentemente, cozinheiro, sendo que nunca tinha feito nada antes. Eu tenho muito orgulho dos dois.
P/1 – Ricky, você conta pra gente um pouco sobre suas raízes familiares?
R – Por parte de pai meu avô era mineiro, meu bisavô sergipano e antes dele, quinhentos anos de gerações nascidas no Brasil. Meu tio-avô deu continuidade na árvore genealógica da família e escreveu um livro que mostra que somos descendentes do português João Ramalho com a índia Bartira, filha do cacique Tibiriçá. Minha avó paterna é descendente de espanhóis, que migraram para o Uruguai. Meus bisavós nasceram no Uruguai, mas se mudaram pro Brasil, depois que a primeira filha nasceu. Minha avó foi a última de seis irmãs, todas tinham nome iniciado pela letra O: Olândia, Oneida, Odila, Otília, Olinda e Oraide. Quando fui diagnosticado com ELA, fizemos uma viagem pra visitar a família que mora no Uruguai, do lado da minha mãe. Também tenho ascendência espanhola, por parte da minha avó. Quando eu morava em Barcelona e meus pais foram me visitar, tivemos a oportunidade de conhecer a casa que meu bisavô nasceu, no Centro Histórico de Marbella e aí, por sorte, conhecemos parentes distantes que moravam ao lado. Já a família do meu avô é portuguesa e migrou pra Santos, onde ele nasceu e cresceu, até vir fazer a Faculdade de Engenharia, em São Paulo.
P/1 – E você tem irmãos? Quem são eles?
R – Eu tenho uma única irmã, um ano e treze dias mais velha. Os dois nasceram em fevereiro. O nome dela é Liliana, mas só a chamamos de Lili. Atualmente mora em Portugal, com o marido e minhas duas sobrinhas, Nicole e Nina.
P/1 – E, Ricky, existe alguma história da sua família que você sempre se lembra? Qual é e por que você se lembra sempre dela?
R – Existem muitas, mas vou contar uma com minha irmã. Praticamente todas as lembranças que eu tenho da minha infância são com a Lili e a gente rindo sem parar. Criávamos muitas situações e brincadeiras divertidas e nós dois nos bastávamos. Tanto que algumas vezes mal dávamos atenção para visitas, como a da nossa prima Flávia. Do zero aos quatro anos nossa relação era muito desigual, pois a Lili tinha certeza que eu havia vindo ao mundo para ser seu boneco vivo. Ela me fazia de ‘gato e sapato’ e eu, que era apaixonado pela minha irmã mais velha, aceitei aquela situação durante bastante tempo, até que um dia me rebelei e descontei minha raiva pelos anos de opressão. Esse dia ficou conhecido como o dia que eu sangrei minha irmã, do nariz até a boca, como se a distância entre nariz e boca de uma criança de quatro anos fosse algo gigantesco. Pelo menos era assim que eu descrevia pra todo mundo que encontrava pela frente o episódio que havia tornado nossa relação mais equilibrada. Foi nossa primeira e última briga.
P/1 – Uau! E como era a casa da sua infância?
R – Morávamos em um apartamento na Rua Padre João Manuel, no bairro Cerqueira César, em São Paulo. O apartamento tinha três quartos e uma sala grande. O prédio era muito bom pra passar a infância, com parquinho, quadra e muitas crianças. Estudava no Colégio São Luís, que ficava na Avenida Paulista, a uns dez quarteirões de distância do nosso prédio. Sempre ia e voltava de carro, até descobrir que um colega de sala voltava sozinho, andando pra casa, que ficava perto da minha. Eu fiquei encantado com a ideia e precisei pedir várias vezes à minha mãe, até ela deixar. Eu adorei voltar a pé, achei muito melhor e mais divertido do que voltar de carro. Se minha mãe deixasse, voltaria caminhando todos os dias, mas ela só deixava de vez em quando. Nos dias que ela deixava, ficava feliz e ansioso com a volta pra casa.
P/1 – Ricky, como era o dia-a-dia da sua casa nessa época?
R – Eu estudava no período da manhã. Quando chegava, almoçava e fazia a lição de casa. Só quando eu terminava toda a tarefa, podia brincar ou descer no prédio. Durante alguns anos íamos praticamente todo final de semana para o sítio da família do meu pai, em Juquitiba. As férias de julho passávamos em Aguaí, no sítio que meu tio morava e as férias de verão na casa dos meus avós maternos, em São Sebastião, no litoral paulista.
P/1 – E o que você mais gostava de fazer, quando era criança?
R – Apesar de não ser uma criança tímida, eu geralmente preferia brincar sozinho, ou com minha irmã. O que mais gostava de fazer era brincar com o trenzinho elétrico e montar cidades com Lego, sempre com muitos parques e praças, o que pode ter influenciado meu interesse por mobilidade urbana e urbanismo, no futuro. Eu também adorava jogar futebol de botão e, desde que aprendi a ler, passei a ‘devorar’ o Caderno de Esporte do jornal que meus pais assinavam.
P/1 – E havia algo que você queria ser, quando crescesse? Você pensava nisso nessa época?
R – Quando criança eu não lembro de já ter algo bem definido que eu queria ser.
P/1 – E, Ricky, quais foram as pessoas e histórias mais marcantes na sua vida escolar?
R – As professoras que mais me marcaram foram as duas que tive em Cleveland, nos Estados Unidos: a Miss ____ e a Miss _____, assim como a professora assistente, que também era a primeira-dama do município, esposa do prefeito. Além de serem ótimas professoras, tiveram um papel importante em me integrar com todos e me fazer sentir totalmente à vontade, mesmo estudando em outro país e idioma diferente. Fiquei tão integrado, que no segundo semestre fui eleito representante de classe.
Eu tenho uma história curiosa na escola de Cleveland. Eu saí do Brasil no início da quarta série, mas como o ano letivo é diferente no hemisfério norte, acabei voltando seis meses, para o final da terceira série. Na minha sala tinha uma menina linda, a ________, que me olhava de forma diferente. Todos os dias, no recreio, as amigas dela vinham até mim e falavam: “______ love is you”. Apesar de eu também gostar dela, por vergonha e medo de não conseguir me comunicar direito, eu fazia sinal que não estava entendendo o que elas falavam, embora as estivesse compreendendo perfeitamente. Mais pra frente eu me arrependeria amargamente por isso.
Mesmo sem dominar o idioma, Lili e eu tivemos certa facilidade com as disciplinas, já que estudávamos em um colégio forte em São Paulo. Por isso ficou decidido que pularíamos uma série ao término do ano letivo, finalizada a terceira série e iria direto para a quinta. Voltei das férias muito mais adaptado e à vontade na quinta série, logo conversando com todos da sala e fazendo boas amizades. Também estava decidido a falar com a _____, que não saía dos meus pensamentos. Frequentemente passava em frente da turma da minha antiga sala pra tentar encontrá-la, sem sucesso. Senti uma profunda tristeza quando descobri que _______ havia se mudado e não estudava mais na escola. Frequentemente eu olhava a única foto que tinha dela, junto a todos os alunos da sala e ficava me perguntando por que não tive coragem de falar com ela quando estudávamos juntos.
Já no Brasil, o mais interessante foi ter reencontrado, em adulto, meus dois melhores amigos da escola, depois de ter perdido contato. Eu fiz o maternal e o pré no Colégio Santa Marcelina. Lá meu melhor amigo era o Rob. Como eu mudei de escola, não nos vimos mais, até ter quinze anos quando, por coincidência, eu o vi na frente da minha casa, já que os primos dele moravam perto de mim. Novamente perdemos contato, mas você não vai acreditar: Rob caiu na mesma sala que eu na faculdade. Na primeira série do ensino fundamental me mudei para o Colégio São Luís e fiquei muito amigo da Taís. Lembro bem de passarmos sempre o recreio juntos. Quando nos mudamos pra Cleveland paramos de nos ver e só nos reencontramos uns doze anos depois, ao trabalhar juntos na empresa ICTS.
P/1 – Ricky, o que você gostava de fazer pra se divertir na adolescência?
R – Na adolescência eu já era bem mais sociável que quando criança, mas ainda não tanto quanto iria me tornar a partir dos dezoito anos. Eu gostava muito de jogar futebol, tocar violão e sair, principalmente com meus melhores amigos, como meu primo Tiago e o Igor, que estudava comigo no colégio. Nessa época eu também comecei a me interessar por jogos de computador, mas parei de jogar no cursinho e, a partir de então, só eventualmente. O curioso é que, dos três jogos que eu mais gostava, dois tinham a ver com temas que viria a trabalhar no futuro. Em Tycoon eu era o presidente de uma empresa de transportes que precisava atender diversas demandas de passageiros e cargas por trem, barco, ônibus, caminhão, avião etc. No outro jogo, Simcity, eu era um prefeito e tinha que construir e administrar a cidade, implantando transporte público, abastecimento de água e energia, instituições de ensino e tudo o mais que uma cidade precisa.
P/1 – Uau! E quais são as lembranças mais marcantes da sua adolescência?
R – São muitas. Especialmente as viagens que fazia com meu primo, tocando violão e conhecendo pessoas. Eu também lembro bastante dos verões em São Sebastião, com a turma da praia, praticando esportes, fazendo trilha, andando de bicicleta e saindo à noite. Meus amigos eram mais velhos e, como os meus pais os conheciam há anos, me deixavam sair com eles e voltar de madrugada, desde os treze anos. Eu queria contar três histórias da minha adolescência, que me marcaram. Se vocês acharem muito longas, podem cortar depois. Posso contar?
Primeira história: trabalho voluntário. Quando eu tinha por volta de quinze anos, comecei a fazer trabalho voluntário na ONG Projov, além de passar de casa em casa da vizinhança pedindo contribuições pra campanha do alimento, nós íamos a uma comunidade com carências socioeconômicas em Santana de Parnaíba levar o que havíamos arrecadado e realizar atividades recreativas com as crianças e adolescentes. O convívio com aquelas pessoas e o contato com a realidade delas foi algo que me marcou muito. Jogávamos futebol em um campo de terra e quase todos me chamavam de ‘tio’. Apesar de ter quinze anos, eu já tinha um metro e oitenta e um corpo saudável, enquanto a maioria deles tinha uma estatura muito baixa. O grande choque meu foi descobrir que algumas daquelas crianças que me chamavam de ‘tio’ eram, na verdade, adolescentes mais velhos que eu. Eles não tinham satisfeitas algumas das necessidades básicas dos seres humanos, como comida e abrigo. Pelo menos nossa campanha do alimento contribuía pra minimizar o problema da subnutrição. A sensação de ajudar, mesmo que infimamente, aquelas pessoas, despertou em mim o desejo de trabalhar para o bem comum, desenvolvendo projetos sociais no futuro.
Segunda história: trilha de Mobilete. Uma vez, com dezesseis anos, fui com outros moleques que moravam no bairro fazer trilha de Mobilete na mata que tinha em frente ao nosso condomínio, pegamos algumas estradas de terra, cercada de árvores por todos os lados, quando nos deparamos com um lugar mais descampado, uma pequena plantação e uma casa relativamente humilde. Paramos pra conversar com o homem, vimos sua esposa e os filhos, que ficaram enfileirados do lado de fora da casa, perto da porta. O homem falou que tinha uns quarenta anos e que morava ali desde pequeno. Nisso, passou um outro cara pela estrada, segurando uma vara de pescar, que parou um instante pra conversar com o dono da casa. Eles levavam uma vida de pessoas do campo, ali, tão perto da civilização. Impressionante! Na realidade, eles chegaram naquele lugar bem antes da civilização, quando ainda nem existia o bairro. Com a popularização do automóvel, a especulação imobiliária e a falta de planejamento, a mancha urbana se espalhava rapidamente em torno da cidade de São Paulo, destruindo florestas, campos e estilos de vida, logo aquela mata e aquela família também seriam ‘engolidas’, vítimas da expansão urbana. ‘Cortou meu coração’ quando, poucos anos depois daquele memorável dia da trilha, vi máquinas derrubarem todas as árvores daquela extensa área pra construir avenidas, condomínios e muitos prédios. Até hoje me pergunto que fim levou aquela família, se a empresa que loteou aquela área teve uma atitude digna com eles, se conseguiram se adaptar à nova vida. Fico pensando como seria possível reverter essa lógica expansionista, tão prejudicial à natureza, onde o dinheiro ‘fala mais alto’. É um pensamento de curto prazo, visando um benefício monetário imediato, sem considerar as consequências futuras à saúde do planeta e das pessoas. Não considera valores imensuráveis dos serviços ambientais que a natureza provê gratuitamente, imprescindíveis para a vida na Terra. No final a sociedade sai prejudicada, com a perda da diversidade, mudanças climáticas, aquecimento global e outros problemas ambientais.
Terceira história: saindo escondido. As duas primeiras histórias demonstram que, quando adolescente, aflorou em mim uma sensibilidade social e ambiental, mas nem tudo são ‘flores’ na vida de um adolescente e, para mostrar que eu não era santo e também aprontava de vez em quando, vou contar essa terceira história. Para comemorar o meu aniversário de dezoito anos passaria o carnaval na casa de São Sebastião, com meus amigos, mas alguns dias antes da viagem tive uma discussão severa com a minha mãe e, como punição, ela me deixou de castigo e proibiu a minha ida à praia. No sábado meu primo Tiago foi para a minha casa passar os dias seguintes comigo. Eu havia avisado os meus amigos sobre o castigo e eles arrumaram outros lugares pra viajar, mas meu primo não tinha um ‘plano B’. Então minha mãe consentiu que ele viesse pra minha casa, mas com uma condição: não sairíamos à noite. Entretanto, ‘bolei’ um plano. Depois que meus pais foram se deitar, percebi que a porta do quarto deles estava aberta, então fui perguntar à minha mãe sobre a roupa de cama para o Tiago e na saída aproveitei pra fechar a porta. Esperamos mais uma hora pra que dormissem e com o tênis na mão, descemos a escada de meias, abrimos a porta de casa bem devagar e saímos com todo cuidado. Na garagem colocamos os nossos sapatos e fomos em direção ao carro Logus que ficava na rua, em frente de casa. Eu entrei, sentei no banco do motorista, soltei o freio de mão e meu primo empurrou o carro em direção à descida. Não queríamos fazer barulho perto da janela do quarto dos meus pais. Na rua de baixo Tiago entrou no veículo, eu dei a partida e saímos felizes da vida. Já em São Paulo, passamos por uma blitz policial, fiquei apavorado quando vi o guarda fazer sinal para eu parar, mas logo me tranquilizei, ao perceber que era apenas pra diminuir a velocidade. Passei pelo policial tentando aparentar certa normalidade, mas meu coração estava disparado, afinal eu tinha dezessete anos, não tinha habilitação, estava de castigo e meus pais achavam que nós estávamos dormindo em casa. Não podia nem imaginar o que fariam comigo se descobrissem por um telefonema da polícia o que eu estava aprontando. Passado o susto, fomos ao baile de carnaval do Clube Círculo Militar, voltamos pra casa às cinco da manhã, empurramos o carro até o seu devido lugar, tiramos os tênis e subimos para o quarto, sem fazer barulho. Como o plano tinha dado certo, repetimos a tática no domingo, na segunda-feira e na terça-feira, quando Igor, que tinha voltado de viagem, se juntou a nós na aventura. Só muitos anos mais tarde eu e meu primo contamos aos meus pais o que havia acontecido naquele carnaval.
P/1 – Caramba! Ricky, você fez faculdade? Qual foi?
R – Eu fiz Faculdade de Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas, FGV EAESP. Desde que entrei, na adolescência, lembro de querer fazer Administração e depois da experiência do trabalho voluntário com quinze anos, decidi que queria fazer Administração Pública na GV. Com 24 anos me mudei para Barcelona e comecei dois cursos: mestrado em Sustentabilidade, pela Universidade Politécnica da Catalunha, UPC e MBA Executivo pela Universidade de Barcelona, UB. Por fim, entre 2020 e 2021 fiz o curso Smart City Expert, do iCities.
P/1 – E como foi o processo de criar a Associação Abaporu? Quais foram as suas motivações pra montá-la e os objetivos da associação?
R – A Associação Abaporu foi fundada em janeiro de 2003, por mim e mais dois amigos, também recém graduados em Administração Pública, pela FGV EAESP, Luiz Covo e Eduardo Rossi. O curso de Administração Pública, o contato com a realidade brasileira e a própria necessidade pessoal desses integrantes de colaborarem com o desenvolvimento da sociedade, fez com que vislumbrassem a possiblidade de, juntos, poderem colaborar para o desenvolvimento de projetos socioambientais e criar uma organização sem fins lucrativos, mas a primeira ideia de criar uma associação surgiu da necessidade por parte minha e do Luiz de ter uma organização pra lançar um projeto que havíamos desenvolvido para ser implementado em cooperação com o governo federal. O projeto tinha o formato de uma expedição, com duração de um ano e o objetivo era criar um banco de dados de eventos folclóricos no Brasil. Nisso o Luiz decidiu fazer uma segunda faculdade, Biologia e acabamos desistindo da expedição, mas nesse momento a ideia de criar uma ONG era maior que qualquer projeto e, conversando com outras pessoas com interesses em comum decidimos criar uma entidade sem fins lucrativos pra desenvolver projetos no Brasil. A Associação Abaporu é, nesse sentido, fruto das inquietudes de um grupo de amigos frente às desigualdades sociais existentes no país e da grande credibilidade em uma intervenção socioambiental efetiva, com um forte comprometimento com os resultados.
P/1 - Quando você começou a trabalhar e qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Eu comecei a fazer pequenos trabalhos bem jovem, com uns treze anos. Como meu pai se interessava bastante por informática, desde criança aprendi a mexer no computador. Então quando minha mãe começou a trabalhar em uma empresa de TV a cabo, eu passei a ir lá pra ajudar a elaborando formulários, tabelas e gráficos. Quando eu tinha dezessete anos, morei seis meses no Canadá, na casa do meu tio, e lá eu também trabalhei, além de estudar e treinar diariamente para o time da escola, passei também a atuar em uma escolinha de futebol para crianças, como assistente do Galo, técnico uruguaio e ex-jogador profissional. No início da faculdade também fui monitor do laboratório de informática, depois trabalhei um ano na Associação Atlética Acadêmica Getúlio Vargas e na sequência estagiei um ano e meio na prefeitura de Santana de Parnaíba. Meu primeiro emprego, depois de formado, logo que acabei o curso de Administração Pública, foi na empresa de consultoria ICTS Global, onde fiquei dois anos, até me mudar pra Barcelona.
P/1 – Como e quando você começou a se envolver com a sustentabilidade, mobilidade urbana e acessibilidade? Quais foram suas motivações?
R – Foi quando trabalhava na ICTS que surgiu meu interesse pelo tema da sustentabilidade, em conversas com meu amigo e sócio na Associação Abaporu, Luiz Covo e por meio da leitura do livro Capital Natural, que um colega da empresa me emprestou. Quando decidi morar em Barcelona por um período, ainda não sabia o que iria estudar lá. Depois de pesquisar diversas opções, o mestrado em Sustentabilidade na UPC foi, disparado, o curso que mais me seduziu. A cidade de Barcelona e o mestrado em Sustentabilidade foram responsáveis por uma profunda transformação na minha forma de ver o mundo e principalmente as cidades. Minha vida mudou radicalmente para melhor, na Europa, muito por causa da disposição urbana da cidade e da grande oferta de mobilidade. No Brasil eu morava afastado de São Paulo, mas fazia faculdade na região da Avenida Paulista. Eu acabava dirigindo, na média, setenta quilômetros por dia. Em Barcelona eu também estudava em outra cidade, mas lá eu ia pedalando até a estação, colocava a bicicleta dentro do trem e continuava pedalando numa região proibida pra carros, com diversos pedestres e uma praça repleta de crianças correndo. Para quem antes passava horas dirigindo, fiquei meses sem entrar em um carro nem uma única vez e não sentia nenhuma falta. Ao contrário, estava mais saudável, com muita disposição e principalmente mais feliz. Eu queria que todos tivessem a oportunidade de vivenciar os mesmos benefícios e estilo de vida que eu tinha experimentado durante dois anos e meio, por isso, quando voltei de Barcelona, sempre que andava pelas ruas do Brasil, fosse em São Paulo, Recife, Rio ou em outra cidade, de bicicleta, ônibus ou a pé, eu ia projetando mentalmente as ciclovias, estruturas para transporte coletivo e é claro, elas, as calçadas.
P/1 – Ricky, como foi começar a trabalhar na Ernst & Young? Como você se sentiu? Como desenrolou a experiência nessa empresa?
R – Depois que voltei de Barcelona fiquei dez meses trabalhando na Associação Abaporu e me mudei para Pernambuco. Como eu havia decidido me mudar para Recife, já que estava há dois anos namorando uma pernambucana que conheci na Espanha, fiz as entrevistas no escritório de São Paulo, mas com a empresa sabendo que eu iria atuar no nordeste. A equipe era ótima e me integrei rapidamente. Eu fiquei me dividindo entre projetos do escritório de Recife e da recém-criada área de Sustentabilidade, já que eu tenho mestrado nesse tema. Depois de alguns meses começaram os primeiros sintomas da doença e também algumas quedas. Eu cheguei até a viajar com o braço quebrado ao Suriname pra fazer uma auditoria de um relatório de sustentabilidade, no final de 2008. Fui diagnosticado com ELA e, pouco tempo depois pedi afastamento da empresa para voltar pra São Paulo e buscar tratamentos. Em todos os momentos, todos da EY deram suporte necessário e me deixaram à vontade para escolher o que fosse melhor pra mim. No total passei mais de seis anos afastado. Nesse período, fiquei os primeiros dois anos dedicados quase exclusivamente a tratamentos. Como teoricamente me restava pouco tempo de vida quis deixar um legado e em 2011 fundei o Mobilize, portal sobre mobilidade urbana sustentável. Com a doença mais estável e superada a expectativa de vida de dois a cinco anos para pacientes de ELA, voltei a trabalhar na EY em 2015, atuando na área interna de Sustentabilidade Corporativa, desenvolvendo ações para os funcionários. Entre outras coisas, desenvolvi um guia de mobilidade corporativa, realizamos uma pesquisa de padrão de viagem com os profissionais da EY e escrevi diversas matérias sobre sustentabilidade e mobilidade urbana. Fiquei dois anos atuando em um projeto de Smart City, em parceria com a ONU e o governo britânico para melhorar o transporte público de Belo Horizonte e agora estou na área de Responsabilidade Corporativa.
P/1 – E quais foram as viagens ou mudanças de casa mais marcantes que você fez ao longo da sua vida? Sejam elas de lazer ou de trabalho. Por que foram marcantes?
R – Eu me mudei diversas vezes de casa, de cidade e de país. Quando eu tinha quatro a cinco anos meu pai foi convidado a trabalhar alguns meses na França e quando eu tinha dez anos, para trabalhar nos Estados Unidos. Ficamos um ano e meio na cidade de Cleveland. De volta ao Brasil ficamos alguns meses no apartamento de São Paulo e nos mudamos para Santana de Parnaíba, na região metropolitana. Aos dezessete anos morei seis meses no Canadá e, depois de formado, passei a viajar direto a trabalho, ficando quatro meses seguidos na cidade de Belo Horizonte. Com 24 anos me mudei para Barcelona e com 27 para Recife. Depois do diagnóstico ainda dividi apartamento com minha irmã em São Paulo, antes de voltar pra casa dos meus pais. Ufa, acabou! Isso que eu não falei das mudanças dentro da mesma cidade. A mais marcante foi a mudança para Barcelona, principalmente por representar uma grande mudança de paradigma que gerou profundas transformações na minha vida, no meu jeito, nos interesses que moldaram minha trajetória pessoal e profissional dali em diante.
P/1 – E teve alguém ou algum encontro muito marcante nesse período da sua vida?
R – Sim. Algumas pessoas e encontros. Fiz grandes amizades em todas essas cidades. No Canadá, por exemplo, fiquei muito amigo do angolano Adnir, que veio me visitar um pouco antes da pandemia. Em Barcelona morei com cinco amigos que tinham estudado comigo na faculdade e lá conheci pessoas que se tornaram muito importantes pra mim.
P/1 - Ah, você já respondeu essa: Você morou em outros países, estados e cidades, como foram essas experiências?
R – Eu já morei em diferentes países: Espanha, Estados Unidos, Canadá e França e acho que morar fora enriquece, abre a mente, dá uma grande ‘bagagem’ cultural, traz conhecimento e muitas outras coisas positivas. Certamente essas experiências que tive me tornaram uma pessoa melhor. Eu moraria em diversos outros países, mas sempre com a perspectiva de voltar ao meu país e aplicar aqui o conhecimento adquirido no exterior. Isso, na verdade, tem sido uma tônica em minha vida: adaptar boas iniciativas de outros países para a realidade brasileira através de projetos sociais foi, desde a sua criação, a vocação da Associação Abaporu, OSCIP que fundei em 2003, com mais dois amigos. Essa inclinação esteve presente até na definição do nome, do logo e dos objetivos iniciais da organização. Também esteve muito presente no MBA Executivo que cursei na Universidade de Barcelona, quando fui contemplado com uma bolsa de estudos da União Europeia pra desenvolver uma tese cujo título era “Aplicação de Técnicas Administrativas e Gestão em ONGS Brasileiras”. Por último, a criação do portal Mobilize Brasil, igualmente, foi fruto da experiência que acumulei morando fora, em Barcelona, e do desejo de ver as cidades brasileiras replicando boas iniciativas de mobilidade urbanas encontradas na Europa.
.
P/1 – E nesse período você teve alguma relação amorosa? Se sim, como vocês se conheceram?
R – Tive sim. Minhas duas últimas namoradas antes do diagnóstico eu conheci quando estava morando em outra cidade e minha primeira namorada pós-diagnóstico foi em uma viagem a lazer. Na época em que fiquei trabalhando em Belo Horizonte conheci uma mineira no hotel e alguns meses depois começamos a namorar. Já em Barcelona, um primo me apresentou uma amiga pernambucana que acabou dividindo apartamento comigo e, em pouco tempo, ‘engatamos’ um relacionamento. Por causa dela me mudei pra Recife e entrei na EY.
P/1 – E, Ricky, você se lembra quando e como foi, pra você, perceber os primeiros sintomas?
R – Eu me lembro bem. Hoje sei que são sintomas claros de uma doença neurológica degenerativa, mas na época eu não fiquei muito preocupado, talvez por desconhecimento. Eu achava que seria algo passageiro, que teria tratamento, mesmo diante de tantos sinais. A primeira vez que percebi que havia algo errado com meu corpo foi um dia na academia, em Recife, quando observei que não conseguia dobrar minha perna pra trás normalmente, em um exercício. Pouco tempo depois passei a não conseguir correr a distância que estava habituado e comecei a mancar. Também cheguei a cair da esteira na academia e depois na calçada.
P/1 – E como foi pra você e pra sua família esse processo de ir atrás e receber o diagnóstico? Como você se sentiu?
R – Eu morava em Recife, meus pais em São Paulo e minha irmã na Europa. Acabei indo para São Paulo em um velório da família e meu pai ficou preocupado ao me ver mancar e pediu que eu ficasse na cidade uns dias para fazer exames. Foram mais de seis meses entre os primeiros sintomas e o diagnóstico. Inúmeros exames, sempre todos normais. O diagnóstico foi por exclusão, em setembro de 2008. Tenho a sorte de ter pai médico, que desde o início me levou em um excelente neurologista. Ele, certamente, foi quem estava mais preocupado por saber que poderia ser algo grave. Um fator que me ajudou muito a enfrentar os dias seguintes ao diagnóstico foi a presença constante dos meus pais e amigos. Sempre cercado de pessoas queridas, pensava menos na doença. Durante duas semanas o Igor passou em casa todos os dias, depois do trabalho. Luiz foi outro amigo muito presente, assim como minha prima Flávia e os amigos da GV. Por causa do diagnóstico, minha irmã, que estava morando na Hungria, decidiu que voltaria ao Brasil, de mudança, no final do ano. Quando ela chegou, planejamos e fizemos uma viagem de carro pelo litoral brasileiro por dois meses e depois dividimos um apartamento durante quase um ano. Nessa época, um primo do Uruguai passou três meses em casa para ajudar nos meus cuidados e conviver mais comigo. Quando fiquei com muita dificuldade para andar minha mãe deixou um ótimo emprego pra ajudar a cuidar de mim. Desde então, encarando essa batalha como se fosse dela.
P/1 – Como foi começar o seu tratamento?
R – Teoricamente a ELA é uma doença com causa desconhecida, sem cura e sem nenhum tratamento, mas mesmo assim nós tentamos de tudo. Fomos atrás de acupuntura, medicina ortomolecular, transplante de células-tronco, tratamento espiritual, medicina alemã e outros tratamentos alternativos, além de fisioterapia, fono, terapia ocupacional etc. Com isso, sempre mantínhamos uma esperança.
P/1 – E a partir do diagnóstico, quais foram as principais mudanças?
R – Antes da doença eu era uma pessoa bastante ativa. Dormia pouco e fazia meu dia render. Uma frase que eu sempre falava faz parecer que meu subconsciente previa o que aconteceria comigo. Eu dizia: “Prefiro viver vinte anos a cem por hora, que cem anos a vinte por hora”. Era fascinado por viajar e morei em diferentes cidades, como Recife, Belo Horizonte, Barcelona e Toronto. Também gostava muito de praticar esportes. Quando eu recebi o diagnóstico, em setembro de 2008, já não conseguia correr há aproximadamente cinco meses e andava mancando um pouco. De início me mudei de cidade, voltando pra São Paulo, me afastei do trabalho e comecei diferentes tratamentos. Em julho de 2009 senti a necessidade de um andador, pois as quedas estavam constantes. No início de 2010 passou a ser visível que minha fala saía com dificuldade e no final daquele ano não conseguia andar mais, nem com o andador. Em julho de 2011 passei a usar um leitor óptico para mexer no computador. Em novembro fiz uma gastrotomia pra me alimentar. O evento mais marcante e traumático da evolução da doença aconteceu em junho de 2012. Depois de alguns dias com bastante dificuldade para respirar, precisei ser internado para fazer uma traqueostomia. Isso mudou sensivelmente a minha situação. Apesar de ter me proporcionado importante conforto respiratório, perdi totalmente a voz, parei de conseguir engolir e praticamente inviabilizou minhas saídas de casa. Só voltei a circular pelas ruas cinco anos mais tarde, quando meus amigos fizeram uma campanha pra adquirir uma cadeira de rodas motorizada.
P/1 – Como foi o início da sua experiência com as limitações de mobilidade e hoje, como você encara essa novidade?
R – Diferente de quem sofre trauma em um acidente, fui perdendo os movimentos gradativamente e tive tempo de me adaptar a cada nova limitação, mas enfrentei diversos obstáculos e sofri muitas quedas. Eu caí várias vezes na calçada, no restaurante, na balada, no parque e até mesmo quando estava na cadeira de rodas. Uma vez, andando na região da Avenida Faria Lima, uma das mais nobres de São Paulo, a cadeira de rodas empacou em um buraco e eu voei pra frente, caindo no chão. Atualmente eu uso uma cadeira de rodas motorizada que pesa duzentos quilos. Com isso, qualquer degrau ou calçada sem rampa pode ser um impeditivo pra mim. São raríssimos os lugares que eu posso circular pela calçada sem precisar andar na rua. Antes de ir a qualquer local preciso que alguém filme o acesso com antecedência pra verificar se eu posso ir, mas não posso reclamar, já que fiquei cinco anos sem poder sair de casa.
P/1 – Como foi se adaptar a uma nova forma de se comunicar?
R – Foi relativamente fácil me adaptar. O que ajudou muito foi termos comprado o leitor óptico, enquanto ainda conseguia usar o computador sem ele, embora com dificuldade eu tinha o movimento do dedo indicador direito, que me permitia mexer no mouse e escrever utilizando um teclado virtual, pois não podia mais teclar com todos os dedos. Então, no início eu ficava intercalando as duas formas de usar o computador, até o momento que percebi que estava bem mais rápido com o leitor óptico do que me esforçando com o dedo. Além dele, uso duas tabelas de comunicação que eu criei para quando estou fora do computador. A primeira contém as letras do alfabeto e a segunda possui palavras que uso bastante.
P/1 – E Ricky, como surgiu a ideia de montar o Mobilize Brasil? Como funciona e como foi o processo de desenvolvê-lo?
R – Na virada do ano de 2010 para 2011 parei pra refletir e me questionar sobre o que desejava fazer com a minha vida. Estava há mais de dois anos me dedicando a diversos tratamentos pra tentar curar ou ao menos deter o avanço da doença. Eu queria fazer algo que me fizesse sentido, queria me sentir útil para a sociedade novamente. Quem sabe deixar um legado? Passei a pesquisar bastante sobre mobilidade urbana, tema que me fascinava há alguns anos pela experiência que tive morando em Barcelona. Com dificuldade motora nas mãos fazia um esforço enorme pra buscar conteúdo espalhado pela internet. Ao me deparar com muitas informações dispersas, me veio a ideia de criar um portal pra agregar, produzir e disseminar conteúdo relacionado à mobilidade urbana sustentável. Na hora também tive a ideia do nome, seria Mobilize, palavra que juntava mobilidade e mobilização, dois conceitos muito importantes na minha proposta.
P/1 – E pensando na sua vasta experiência profissional, teve algum trabalho que, de alguma forma, foi mais marcante pra você? Se sim, por quê?
R – Foram muitos trabalhos marcantes, cada um da sua forma e em seu tempo. Vou falar brevemente de alguns. Fui da Atlética da faculdade e organizei um campeonato interno de futsal que me marcou, pois consegui integrar pessoas de diferentes classes sociais, entre alunos e funcionários, como seguranças, gente da lanchonete e da limpeza. Quando era estagiário da Secretaria de Cultura e Turismo de Santana de Parnaíba fiquei responsável pela criação de um banco de dados que gerava relatórios administrativos e financeiros dos eventos culturais da cidade e das informações turísticas. Eu também criei um manual, treinamentos e apresentei na Câmara Municipal. Anos depois eu visitei a prefeitura e o banco de dados continuava sendo alimentado e utilizado para melhorar a gestão das políticas públicas. Já o primeiro emprego, depois de formado, na Consultoria ICTS, também foi importante para o meu desenvolvimento profissional, pois com 22 a 23 anos eu já estava viajando por diferentes cidades do Brasil, fazendo reunião com pessoas de cargos altos e treinando muita gente. A criação e a estruturação da Associação Abaporu, assim como do Mobilize, anos depois, foram momentos muito significativos. Na EY eu lembro bastante de um projeto que participei de sustentabilidade, no Suriname, pois tive que viajar com o braço engessado devido a uma queda no dia anterior à viagem, eram os primeiros sinais da doença. No meu retorno à EY, depois de ficar seis anos afastado, foi gratificante elaborar o guia de mobilidade corporativa e perceber que eu poderia ser útil à empresa que havia me apoiado o tempo todo. Por fim, o último trabalho marcante e muito desafiador foi driblar as limitações físicas para me tornar professor, preparando apostilas e aulas com a contribuição essencial da equipe do Mobilize.
P/1 – E como você percebe/percebia que os PcD’s são/eram representados nas mídias?
R – Geralmente pessoas com algum tipo de deficiência costumam ser tratadas pela mídia e pela sociedade como coitadinhas ou como super-heróis, mas nos últimos anos eu acredito que vem acontecendo uma evolução na forma como são representadas, tendendo mais a normalidade.
P/1 – E você já sofreu algum tipo de preconceito?
R – Sim, mas nada significativo. É muito difícil eu falar por pessoas que têm uma realidade muito diferente da minha, que sofreram preconceito desde pequeno, que tiveram direitos negados e portas fechadas por causa de raça, gênero, situação social, opção sexual, ou outra condição. Eu nunca sofri com isso e por isso considero os preconceitos que sofri como cadeirante ou como estrangeiro, morando fora, leves e sem qualquer implicância na minha vida. Até por isso e por ter uma elevada autoestima, nunca me deixei abalar nessas situações. Ao contrário, muitas vezes encarei com bom humor, como uma vez na Espanha, perto do nosso apartamento, em Barcelona, tinha uma loja de conveniência que íamos com certa frequência, por sermos os únicos estrangeiros em um bairro bem catalão o segurança da loja achava que tínhamos cara suspeita e sempre nos seguia, meio que disfarçando. Ele só tinha esse comportamento conosco. Um dia combinamos de fazer algo diferente: entramos no mercado e o segurança, como de costume, passou a nos seguir quando, de repente, nos dividimos, cada um entrou em um corredor, o deixando perdido, sem graça. Depois desse dia nunca mais fomos seguidos.
P/1 – Ricky, o que você acha que ainda pode ser feito pra melhorar a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho?
R – De maneira geral a evolução da sociedade como um todo, com maior aceitação e tolerância e menor discriminação ajuda a melhorar a inserção de PcDs em todos os âmbitos, inclusive no mercado de trabalho. De forma específica, o governo e as empresas têm um papel fundamental. O governo, em suas três esferas, tem a obrigação de, constantemente, aperfeiçoar a legislação, assim como facilitar a acessibilidade e promover a inserção de pessoas com deficiência em instituições de ensino, órgãos públicos, hospitais e outros lugares. Já as empresas precisam genuinamente se planejar para buscar, contratar, integrar e dar boas condições de trabalho para os PcDs.
P/1 – E como foi o processo de escrever seu livro “Movido pela Mente”? Como surgiu a ideia?
R – Desde que fundei o Mobilize inúmeras pessoas falaram que eu deveria escrever um livro sobre minha vida e a forma como encaro a doença. Durante muitos anos eu rejeitei a ideia dizendo que me sinto mais útil trabalhando com mobilidade urbana sustentável no Mobilize. Além disso, sempre tive dúvidas se minha história daria um livro, afinal não sou nenhum artista famoso, jogador ou cientista. Em 2015 uma pessoa me procurou, pois estava fazendo uma pós em Jornalismo Literário e queria escrever meu perfil pro trabalho semestral do curso, ela falou que gostaria muito de escrever minha biografia e conversamos diversas vezes sobre isso, mas não demos sequência no projeto. Não pensei mais sobre isso, a não ser um dia que estava lendo o livro Homem Livre, sobre o Danilo Perrotti, que deu a volta ao mundo de bicicleta. O livro foi escrito por sua esposa, Gisele, e eu adorei a forma como ela escreveu. Eu conheci o casal, surgiu o assunto sobre o livro e mantive contato com a Gisele. Com o tempo fomos amadurecendo a ideia e pedi a opinião de amigos. Eu tinha dois grandes desejos para que fosse realizado o livro: gerar receita para o Mobilize e conscientizar os leitores para temas como mobilidade urbana e sustentabilidade. Gisele topou. A renda obtida com a venda dos livros é destinada ao Mobilize Brasil.
P/1 – E atualmente, quais são os seus trabalhos?
R – O principal é o trabalho na EY. Estou agora na área de Responsabilidade Corporativa, depois de passar mais de dois anos em um projeto de consultoria. O Mobilize já caminha sozinho, pois os jornalistas Marcos de Souza e Regina Rocha estão desde o início e a arquiteta e urbanista Marília Hildebrand, que entrou depois, já era nossa voluntária. Eu acompanho tudo de perto e atuo um pouco na captação de recursos. Além da EY e do Mobilize, ano passado virei professor no curso Smart City Expert, do iCities, mas esse trabalho acontece um mês por ano, quando chega o módulo de mobilidade urbana sustentável. Fora isso, desde 2018 faço palestras em empresas, eventos e ONGs. De 2017 a 2020 eu tive um boletim semanal sobre mobilidade urbana na Rádio Trânsito de São Paulo.
P/1 – Ricky, você tem sonhos? Quais?
R – Sim, sou um sonhador. Na vida pessoal sonho em casar e ter filhos, ou seja, constituir uma família. Eu adoraria que o seguro-saúde permitisse que eu voltasse a viajar, tanto de van, como de avião, mas como sonhar grande não custa nada, o que eu mais queria era ter um trailer com estrutura de uma semi UTI pra fazer uma expedição avaliando acessibilidade de diferentes cidades. Profissionalmente pretendo ficar muitos anos na EY e evoluir dentro da empresa. Eu também sonho em ver o Mobilize crescer, se tornar uma ONG sustentável financeiramente e com maior capacidade de atuação. E no mundo, sonho em ver um planeta mais sustentável e com menos desigualdades.
P/1 – E tem alguém que te inspira?
R – O astrofísico britânico Stephen Hawking, desde que tive o diagnóstico sempre foi uma referência e fonte de inspiração, me mostrou que é possível realizar grandes feitos, mesmo com as limitações impostas pela doença e viver muito tempo. Hawking atribuía a longevidade à sua teimosia. Nesse sentido, sou igualmente teimoso e gosto de contrariar as estatísticas e expectativas de evolução da doença. Além disso, ele abriu caminho para outros portadores de ELA, como eu, já que muitas tecnologias disponíveis hoje foram desenvolvidas pensando no caso dele.
P/1 – E você gostaria de acrescentar algo mais? Contar alguma história que não tenha contado…
R – Eu achei que está bem completo. Respondi perguntas do meu nascimento até os dias atuais, além de falar da EY, do Mobilize, do livro Movido pela Mente e outros temas importantes.
P/1 – O que você gostaria de ver como seu legado pras próximas gerações?
R – Eu gostaria de ver o trabalho do Mobilize e de outras organizações que lutam para melhoria da mobilidade urbana e da qualidade de vida nas cidades gerar profundas transformações no ambiente urbano. Isso significa tornar nossas cidades mais humanas e democráticas, com transporte público de qualidade, mais estrutura cicloviária e calçadas acessíveis, gerando menos acidentes e um ar mais limpo.
P/1 – E como foi recordar e poder contar um pouco a sua história pra gente, hoje?
R – Foi um gostoso exercício de autoconhecimento, assim como um resgate de boas lembranças do passado. Falei brincando para os meus pais que nunca imaginei que eu iria virar peça de museu.
P/1 – E aqui tem vários prêmios. Tem algum prêmio que tenha sido muito impactante pra você, seja muito importante? Mas só se você quiser falar.
R – Todos os prêmios foram importantes, mas o mais emocionante foi o prêmio Trip Transformadores, pela importância e repercussão. Eu já vi muitos dos meus ídolos serem homenageados pelo trabalho que realizam por uma sociedade mais justa e humana, com menos desigualdades e preconceitos. No final, mais de mil pessoas aplaudiram de pé a minha história, no Auditório do Ibirapuera.
P/1 – Ricky, você estava contando que por um tempo você ficou sem fazer saídas de casa, queria saber como foi retornar e como foi essa experiência, para você, de voltar a circular nas ruas.
R – Pouco tempo depois que a cadeira de rodas motorizada chegou me perguntaram onde eu gostaria de ir em meu primeiro passeio. Sem titubear, respondi que seria na Avenida Paulista num domingo. Afinal, a Paulista aberta à população, aos pedestres, bicicletas e livre dos carros havia sido uma luta minha e do Mobilize, ao lado de tantas outras organizações em prol da mobilidade urbana sustentável. Mas antes de ir na avenida surgiram passeios para um parque, uma festa e a Arena Corinthians. Quando chegou a vez, me marcou bastante. A avenida tinha virado, realmente, o paraíso da mobilidade ativa. Milhares de pessoas a pé, de bicicleta, skate, patins e até cadeira de rodas, assim como eu, aproveitavam seu domingo sem pressa. De fato, a acessibilidade se revelava um dos pontos mais altos da avenida, com seu piso regular, calçadas largas, bem conservadas e com rampas para cadeiras de rodas. Uma pena o resto da cidade ainda não ser assim, mas pisar naquele chão, naquele dia, me fez perceber que, por menor que fosse aquela ação perante o governo de um país tão caótico, o Mobilize havia dado o seu primeiro grande passo em direção ao futuro. Eu senti uma realização indescritível ao circular com a minha cadeira motorizada na ciclovia que se tornou um símbolo de São Paulo e fiquei feliz da vida ao ver minha sobrinha Nicole, então com quatro anos, explorar tudo quanto é lugar com sua pequena bicicleta. Andamos lentamente, curtindo o momento, por mais de três horas até o final da avenida. Havia sido uma tarde magnífica, voltei radiante pra casa.
P/1 – Que demais! Acho que é isso, Ricky, quero te agradecer muito.
Recolher