#DESAFIO5DIAS
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Mil novecentos e oitenta e quatro. Marco temporal importante de minha vida no Recife. O Nordeste, com suas belezas naturais e rico folclore, era uma região marcada por grandes contrastes socioeconômicos, herança colonial de um patriarcado agrário arraigado em seu tecido social. Compadecia-me ver crianças trabalhando pesado nas feiras de rua da cidade. Descobri que não sabiam ler e nunca tinham frequentado uma escola. Decidida a combater o analfabetismo, efeito perverso do descaso de governos e do clientelismo político, comecei a trabalhar numa ONG, o Centro Josué de Castro de Estudos e Pesquisas. Vivíamos nos tempos sombrios da Ditadura Militar em que a vida privada e pública, das pessoas, era fortemente vigiada. A aprovação de projetos educacionais inovadores, por governos autoritários, não era nada fácil. Apesar das dificuldades, logrei executar, com sucesso, vários projetos de intervenção em escolas públicas nas cidades de Olinda e do Recife: alfabetização de crianças, formação de professores alfabetizadores e políticas públicas educacionais. Se na vida profissional, vencia desafios, na vida privada era confrontada por relações familiares patriarcais arcaicas e truculentas. Mulheres, na família, não tinham direito à voz e deviam obediência e subserviência aos maridos, incluindo trabalho doméstico não remunerado e cuidados da prole – um contrato paternalista, acordado entre as partes, em troca de sustento econômico e proteção. A ideologia machista era naturalmente institucionalizada e seus desmandos transmitidos entre gerações. Mulheres insubmissas, como eu, eram exemplarmente punidas: assediadas moralmente, em rede familiar, tinham suas reputações atacadas por calúnias, injúrias e difamações. Curiosamente, e contrariando a realidade política e a de costumes vigentes, o ano de...
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#DESAFIO5DIAS
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Mil novecentos e oitenta e quatro. Marco temporal importante de minha vida no Recife. O Nordeste, com suas belezas naturais e rico folclore, era uma região marcada por grandes contrastes socioeconômicos, herança colonial de um patriarcado agrário arraigado em seu tecido social. Compadecia-me ver crianças trabalhando pesado nas feiras de rua da cidade. Descobri que não sabiam ler e nunca tinham frequentado uma escola. Decidida a combater o analfabetismo, efeito perverso do descaso de governos e do clientelismo político, comecei a trabalhar numa ONG, o Centro Josué de Castro de Estudos e Pesquisas. Vivíamos nos tempos sombrios da Ditadura Militar em que a vida privada e pública, das pessoas, era fortemente vigiada. A aprovação de projetos educacionais inovadores, por governos autoritários, não era nada fácil. Apesar das dificuldades, logrei executar, com sucesso, vários projetos de intervenção em escolas públicas nas cidades de Olinda e do Recife: alfabetização de crianças, formação de professores alfabetizadores e políticas públicas educacionais. Se na vida profissional, vencia desafios, na vida privada era confrontada por relações familiares patriarcais arcaicas e truculentas. Mulheres, na família, não tinham direito à voz e deviam obediência e subserviência aos maridos, incluindo trabalho doméstico não remunerado e cuidados da prole – um contrato paternalista, acordado entre as partes, em troca de sustento econômico e proteção. A ideologia machista era naturalmente institucionalizada e seus desmandos transmitidos entre gerações. Mulheres insubmissas, como eu, eram exemplarmente punidas: assediadas moralmente, em rede familiar, tinham suas reputações atacadas por calúnias, injúrias e difamações. Curiosamente, e contrariando a realidade política e a de costumes vigentes, o ano de 1984 foi marcado por dois acontecimentos históricos que me proporcionaram esperança: as ‘Diretas Já’ – movimento pela retomada de eleições diretas livres, com milhares de adeptos nas principais capitais brasileiras; e o Tratado Internacional sobre os Direitos Humanos das Mulheres e de Igualdade de Gênero – do qual o Governo brasileiro foi signatário. Dois mil e vinte e quatro: 40 anos depois. Sobreviv(ente). Vivi duas grandes conquistas: o retorno ao Estado Democrático de Direito brasileiro (1985) e a promulgação da Lei Maria da Penha (n.11.340/2006) a qual reconhece, tipifica e criminaliza todos os tipos de violência praticados contra as mulheres, incluindo o Assédio Moral Intrafamiliar, com pena de até 2 anos de detenção.
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