Capítulo 1 – Velotrol e tocos de madeira
Muitas das minhas lembranças de infância são da escola. Antes disso, lembro de alguns episódios aleatórios, quando era bem criança, antes inclusive da escola e das amizades que duram até hoje. Lembro que na minha rua, era comum haver enchente. E era comum a molecada brincar naquela água, fazendo a festa quando chovia mais forte. Tentando buscar pela memória qual lembrança seria a mais antiga, algumas se perdem no tempo, sem que eu saiba precisar ao certo qual a mais antiga. Mas posso garantir, com certeza, que uma das mais antigas é com relação ao meu “velotrol”, um triciclo de plástico.
Lembro que ganhei-o como presente de Natal, num Natal no final da década de 60 ou início dos anos 70... Véspera de Natal, naquela noite chovia, e o quarto da minha mãe estava inexplicavelmente com a porta fechada, coisa que nunca acontecia. A gente tinha como vizinhos um casal de velhinhos, muito simpáticos; ele era João, ela não consigo me lembrar o nome. (Dona Rosa, me avisa meu irmão). Me pareciam ser alemães, um senhorzão grande, pele alva e cabelos brancos, como imaginava ser todo alemão, na minha infância. Era ele quem fazia as vezes de médico e enfermeiro na vila: tudo ele sabia, todos os remédios era ele quem tinha e fornecia. Curativos na molecada, mercúrio cromo e merthiolate, injeções, era tudo com ele. Nesta noite de Natal, eles estavam conosco. Chegada a meia noite, a mãe me manda ir ao quarto, pois ela havia ouvido um barulho, e pediu pra eu ir ver o que acontecia. Ao abrir a porta, lá estava ele: o velotrol, molhado de chuva, como presente do Papai Noel. Não pude deixar de notar as pegadas do suposto Papai Noel que vinham da janela, displicentemente deixada aberta, pela qual ele entrara e deixara o presente. Já naquela época, eu descobri que foi um outro vizinho, previamente combinado, quem deixara o presente.
Esse foi com certeza um dos objetos mais perigosos que já tive: com...
Continuar leituraCapítulo 1 – Velotrol e tocos de madeira
Muitas das minhas lembranças de infância são da escola. Antes disso, lembro de alguns episódios aleatórios, quando era bem criança, antes inclusive da escola e das amizades que duram até hoje. Lembro que na minha rua, era comum haver enchente. E era comum a molecada brincar naquela água, fazendo a festa quando chovia mais forte. Tentando buscar pela memória qual lembrança seria a mais antiga, algumas se perdem no tempo, sem que eu saiba precisar ao certo qual a mais antiga. Mas posso garantir, com certeza, que uma das mais antigas é com relação ao meu “velotrol”, um triciclo de plástico.
Lembro que ganhei-o como presente de Natal, num Natal no final da década de 60 ou início dos anos 70... Véspera de Natal, naquela noite chovia, e o quarto da minha mãe estava inexplicavelmente com a porta fechada, coisa que nunca acontecia. A gente tinha como vizinhos um casal de velhinhos, muito simpáticos; ele era João, ela não consigo me lembrar o nome. (Dona Rosa, me avisa meu irmão). Me pareciam ser alemães, um senhorzão grande, pele alva e cabelos brancos, como imaginava ser todo alemão, na minha infância. Era ele quem fazia as vezes de médico e enfermeiro na vila: tudo ele sabia, todos os remédios era ele quem tinha e fornecia. Curativos na molecada, mercúrio cromo e merthiolate, injeções, era tudo com ele. Nesta noite de Natal, eles estavam conosco. Chegada a meia noite, a mãe me manda ir ao quarto, pois ela havia ouvido um barulho, e pediu pra eu ir ver o que acontecia. Ao abrir a porta, lá estava ele: o velotrol, molhado de chuva, como presente do Papai Noel. Não pude deixar de notar as pegadas do suposto Papai Noel que vinham da janela, displicentemente deixada aberta, pela qual ele entrara e deixara o presente. Já naquela época, eu descobri que foi um outro vizinho, previamente combinado, quem deixara o presente.
Esse foi com certeza um dos objetos mais perigosos que já tive: com cerca de dez anos de idade, eu descia a rua da Esperança, única asfaltada nas cercanias, já que a Caracaxá, então Santa Tereza da Nascente, era de terra. Numa dessas descidas, voltando com minha mãe da lojinha da dona Marisa, esforçando-me pra segurar a velocidade no pedal, minha mãe me “aconselhou” a soltar o pedal: uma descida considerável, com o asfalto lisinho – uma tentação. Soltei, e após ganhar muita velocidade, e sem pensar nas consequências das leis da física, principalmente a inércia, tentei entrar à direita na Caracaxá. Resultado: rolei muito no asfalto e fui parar só quando cheguei na calçada, com direito a raladas nos joelhos, cotovelos, mãos e braços. Nos joelhos tenho as marcas até hoje.
Mas meu primeiro brinquedo de verdade, desses comprados em loja, foi a Tia Elvira, irmã da minha mãe quem me deu, num Natal em algum ano perto do fim da década de 60. Um caminhãozinho amarelo, de plástico, com caçamba vermelha móvel, que se diferenciava de tudo o que eu já havia tido como brinquedo. Infância pobre (não sofrida, mas pobre), a gente se acostumava a fazer carrinho com lata de sardinha e toco de madeira. Naquela época, tinha uma fabriqueta que trabalhava com injetora de plástico, onde se faziam carrinhos (bem vagabundos, se me lembro). Mas o legal era o lixo dessa fabriquinha: Fazia a alegria da molecada visitar o tambor de restos não aproveitados, ou com defeito de fabricação, que ficava num barril de metal, nos fundos do quintal do barracão. Tinha um milhão de rodinhas com defeito, e a gente passava horas procurando uma menos ruim pra aproveitar em nossos projetos de carrinho com lata de sardinha. Tinha também, nesse quintal, um pé de amora que completava o menu: pegar rodinhas e comer amoras. As amoras, acredite, eram mais difíceis de conseguir, pois a árvore ficava na beira da cerca, e no quintal de baixo tinha um cachorrão com jeito de poucos amigos. O risco valia a pena. As amoras eram gordas e doces. Quando não haviam rodinhas, a gente se virava com tocos de vigas de restos de construção. Duas ripas laterais, presas com prego, uma em cada lado, e na ponta, uma metade de lata de óleo. Vale dizer que naquela época, a gente achava latas de óleo retangulares; era só cotar a metade e tínhamos uma concha de trator ou escavadeira. As ripas laterais, amarradas num barbante, e com duas alavancas atrás, serviam, uma para levantar e baixar a concha, e a outra, para subir e descer o braço da cavadeira. Engenharia infantil básica. Quando dava, a gente colocava rodinhas no treco. Quando não, imaginávamos esteiras.
Lembro também da primeira bicicleta de verdade: uma caloi azul, usada, que meu pai comprou de um cara na rua que a gente morava. Eu e meu irmão estávamos ficando doentes por causa de uma bicicleta, e minha mãe dava uma força, até meu pai ficar de saco cheio e conseguir- imagino hoje com muito custo, coitado - comprar a tal bicicleta. Mas o mais incrível é que a gente nunca tinha tido uma bicicleta, portanto, era lógico imaginar que não saberíamos andar. Errado. Lembro que peguei a bike e já saí andando, de primeira, sem nenhum tombo. Lembro que eu costumava fazer malabarismos com ela: a rua Caracaxá acabara de ser asfaltada, e entre carrinhos de rolimã, eu descia a rua em pé na bike, com um pé no banco, outro no guidão. Hoje só de lembrar, o cabelo fica arrepiado. Dei muito trabalho ao meu anjo da guarda.
Com o tempo, passei a incrementar essa bike: era objeto de desejo de todos os moleques ter um “banco tigrão”. Eu não podia, pois era caríssimo. Mas eu frequentava todos os ferro-velhos do bairro, e achava garfos de Caloi 10, com os quais eu prolongava os garfos da minha bike; entortei o guidão, deixando-o com jeitão de chooper, e com garfo estendido, a bike acabou virando uma roadster. Com essa bike, tempos mais tarde, ia junto com Mané, Chacrinha, Mingão e Edu às Palmas do Tremembé matar aula ou simplesmente “dar um rolê”. Aventura que naquela época parecia inocente, e hoje nem sei se seria possível pra molecada de 13 ou 14 anos, dados os perigos do percurso: Subir a Major Dantas, entrar na Guapira, Depois Av. Tucuruví até o fim, passando pelo Hospital presidente e pegando a Av. Nova Cantareira até chegar lá embaixo no Tremembé... Nem sei se hoje em dia dá pra fazer esse caminho, e certamente não reconheceria o trajeto que tenho na memória de mais de 40 anos atrás.
Falar em Palmas do Tremembé, mais algumas coisas me vêem à mente: Tarcísio, meu irmão mais velho, de vez em quando passava na Casa Aerobrás, no centro da cidade, e me trazia algum Kit de avião para montar. Eu adorava. Passava a semana montando, e nos finais de semana a gente ia pras Palmas, pra fazer o bichinho voar. Aliás, acho que um pouco dessa habilidade que eu tenho de consertar as coisas, devo a ele e seus projetos de aviões. Eram aviões em escala, que, montados corretamente em madeira balsa e um papel especial, com uma camada de laca tornando-o impermeável, voava de verdade, movidos à elástico: um elástico percorria toda a estrutura interna do avião, e era conectado à hélice. Girava-se a hélice um zilhão de vezes no sentido oposto à tração, e quando soltava, a tendência do elástico era desenrolar-se, o que gerava o empuxo suficiente para o avião permanecer alguns minutos no ar. Outra coisa também relacionada às Palmas e meu irmão Tarcísio, é que ele tinha um opala marrom, com o qual me ensinou a dar os primeiros passos na direção de um automóvel. Lembro de pelo menos duas ocasiões em que ele me botou no volante daquela máquina maravilhosa nas Palmas do Tremembé tentando me ensinar a dirigir. Acho que conseguiu, pois nunca me envolvi em nenhum acidente. Então, tanto o professor como o aluno foram aprovados.
Ainda sobre as Palmas: com o tempo e a idade, com carta de motorista e fusquinhas, a gente acabou achando o lugar ideal pra matar aula e namorar nos finais de semana. Mas isso é outro capítulo.
Capítulo 2 – Forte-apache, Matchbox e modelismo
Qualquer menino normal, nos anos 60 e início dos 70, sonhava em ter um “forte-apache”. Havia, naquela época, a Gulliver, uma indústria de brinquedos que rivalizava com a Estrela. Enquanto a Estrela fazia brinquedos mais “elaborados”, a Gulliver fazia os brinquedos mais simples, e o Forte-apache era um deles. Um monte de bonequinhos de plástico, representando índios e cowboys, alguns cavalos e carroças, embalados numa caixa de papelão. Se me lembro, vinha também, no kit, um (como chamar??) tipo uma cerca(?) de madeira, que representava as paredes do forte. Preço estratosférico, já que era febre no momento. Era montar e deixar a imaginação rolar. Bem diferente dos brinquedos que vieram a seguir, movidos à pilha e que só permitiam a gente ficar vendo ele se mover. Mas o forte apache não... Era a gente quem determinava qual índio ia morrer, qual cavalo ia puxar a carroça, qual era o mais bonito, o mais veloz... E Como lembrou o Rafael, meu irmão caçula, o jardim de casa, apesar de pequeno, era nosso far-west, nosso rincão desconhecido, onde a gente vivia as mais incríveis aventuras de cowboys. Porém, nosso forte-apache era diferente. Não era um forte-apache, como os normais. Na verdade, nunca tivemos um. Tínhamos, isso sim, um outro conjunto, também da Gulliver, comprado aos pouquinhos, e que era composto por nativos africanos, diferente do outro, onde os índios eram apaches norte-americanos. Eram representativos de alguma nação africana pré-colonialismo, e contava com vários tipos diferentes de biótipos. Havia uma lojinha que vendia esses itens separadamente, na Av. Guapira, quase esquina com a Av. Tucuruvi. Essa sim era um verdadeiro paraíso. Tudo o que você pudesse imaginar, encontrava nessa loja, que tinha estoque abarrotado de bugigangas até o teto. Literalmente. Desde cadernos escolares até radinhos de pilha, passando por tintas, brinquedos, artigos de costura e o que mais pudesse imaginar. Sempre que dava, a gente aumentava nosso plantel de índios, cavalos e carruagens adquirindo-os nessa lojinha. E, como as peças eram compradas separadamente, haviam também elefantes, girafas, hipopótamos, rinocerontes e mais uma porção de bichos. Como eram todos nativos africanos, nosso jardim era a “savana”, e me lembro que, para fazer as cabanas mais reais, eu pegava alpiste das gaiolas de canários da minha mãe e plantava no jardim, observando o formato circular de mais ou menos uns 15 cms de diâmetro. Alguns dias depois, o alpiste brotava, e quando já tivesse uma altura suficiente, amarrava os tufos na parte de cima, formando uma “oca”, dentro da qual os índiozinhos habitavam. Coisa de gênio, desde pequenininho. Invariavelmente, a gente fazia também buracos no jardim, que serviam de lago para os cavalos beberem água e os hipopótamos nadarem, além de outros, mais fundos, que serviam como caverna, na qual os índios se escondiam dos cowboys. ... o que, óbvio, deixava a mãe um tanto quanto brava...
Nesse jardim também, a gente fazia nosso “circo de abelhas”. Hoje reconheço que era uma judiação, mas naquela época, a gente não se preocupava com isso. Pegávamos abelhas, dessas comuns, com a mão mesmo. Nunca tomei uma ferroada... O segredo (hoje nem me arrisco) era o seguinte: a gente pegava a abelha com as mãos em forma de concha, e uma vez capturada, chacoalhava muito, com a abelha se batendo lá dentro, até que ela soltasse um negócio branco, que a gente julgava ser o ferrão. Não devia ser, mas quem se importava? Depois, arrancávamos as asas da bichinha, e ficávamos brincando com elas o dia inteiro, fazendo-as andar num pedaço de linha esticado em dois palitos, se equilibrar em bolinha de gude, essas coisas...
Tinha também o “circo de formigas”, que era basicamente uma bacia cheia de água, umas pedras no meio, em formato de ilha, alguns gravetos unindo uma ilha à outra, e um monte de formigas pretas, circulando por alí... Qual a graça? Hoje, nenhuma. Mas naquele tempo, essas coisas preenchiam as tardes e aguçavam a imaginação.
O Rafael tinha um amigo cujos pais eram donos de uma loja de materiais de construção, na Júlio Buono e, para nossos padrões da época, poderia ser considerado “rico”... Esse cara tinha uma incrível quantidade de brinquedos, e mais incrível ainda era a quantidade de carrinhos Matchbox, outro sonho de consumo da molecada na época. Sempre que possível, a gente ia na casa dele, brincar com seus carrinhos. Acabei gostando tanto dessas miniaturas, que depois de um tempo e por um curto período, acabei virando colecionador. Tive muitos, dos mais variados tipos. Com a idade, acabei dando-os, alguns, aos meus sobrinhos, outros se perderam com o tempo, e daquela época, restaram-me somente dois, que eu guardo com especial carinho. Depois que conhecemos os Matchbox, a febre deixou de ser os forte-apaches, e passou a ser os tais “carrinhos de ferro”. Todo moleque queria ganhar um, em qualquer ocasião, de presente. Nada de meias, cuecas ou camisetas. O negócio era os Matchbox. Pra quem não conhece, os Matchbox eram miniaturas super fiéis, geralmente importadas, feitas de metal, dos mais variados modelos de automóveis. Hoje a molecada conhece-os como “Hot Weels”. Mas os Matchbox superavam em muito esses últimos, principalmente por serem “diecast metal”, ou seja, eram de metal, diferente dos atuais Hot weels que são de plástico. Na nossa casa tinha uma calçadinha, bem lisa e estreita, que servia como pista de competições, o onde a gente fazia torneios com os Matchbox: qual ia mais rápido, qual ia mais longe, qual ia mais reto... Um dos grandes campeões de todas as modalidades foi um carrinho azul, de polícia: um desses dois que tenho ainda hoje.
Vivi também a febre de modelismo. Como citei anteriormente, meu irmão comprava Kits de aeromodelo na Casa Aero-Bras e trazia pra eu montar. Tempos depois, já mais crescidinho e me virando com a grana, descobri os modelos de plastimodelismo da Revell, que tinha de tudo: aviões, helicópteros, carros, tanques de guerra e até personagens dos quadrinhos americanos da época. Fiquei apaixonado pelos aviões da Segunda guerra, e em pouco tempo consegui uma coleção respeitável: Stukas, Zeros, Hurricanes, todos pendurados no teto do meu quarto, com linha de nylon, além de alguns tanques de guerra americanos e alemães. Bem... eu era muito bom em fazer rolos. Boa parte do meu acervo foi conseguido assim: trocava um disco por um kit, um brinquedo por outro, ou algo que eu havia enjoado por dois outros que eu queria... Um dos últimos rolos que fiz acho que foi aquele que marcou minha passagem da adolescência para a vida pré-adulta: troquei minha tão estimada bike por uma coleção de discos... O fim de uma fase e o início de outra. E isso também é outro capítulo.
Capítulo 3 –A Voz de Ouro, Batman e Elvis Presley
A gente não tinha TV. Lembro que a copa de 70, a molecada assistiu na casa da dona Glória, que minha mãe, e acho que a vizinhança inteira, chamava carinhosamente de “Glorinha”, na Caracaxá, perto de casa. Tinha e ainda tem um quintalzão, que faz divisa com dois sobrados. Lembro que no dia da final, os meninos mais velhos haviam amarrado uma fileira de rojões nessa parede da divisa, aguardando o final do jogo para meter fogo na artilharia. Lembro também que, nesse dia, a rua inteira estava lá, acompanhando o jogo. E quando acabou, foi aquela festa. Engraçado, me lembro muito vagamente do “pós-jogo”, alguma comemoração, mas não lembro dos rojões explodindo. Lembro deles colocados nas paredes, acho até que lembro deles serem acendidos, mas não dos “finalmente”. Talvez algum trauma por causa do barulho tenha apagado essa recordação da minha memória.
Outra coisa que a gente viu em uma tv de vizinho foi aquela coisa da Missão Apolo. Tenho uma lembrança da gente brincando na rua, e a vizinha chamar a molecada pra ver o homem na lua. Sinceramente, não sei se foi a Apolo 11, nem se era ao vivo. Mas lembro do evento em si. O fato de não termos TV em casa nunca se mostrou relevante. A gente tinha coisa mais importante pra fazer: chegar da escola e brincar na rua até a mãe chamar pra tomar banho. Lógico que a gente relutava ao máximo para cumprir essas duas tarefas. Banho quase ninguém gostava. A gente chegava em casa coberto de terra, e ainda questionava se era mesmo preciso tomar banho... E depois da janta, os mais velhos colocavam as cadeiras no quintal e chamavam os vizinhos pra conversar. Lembro uma vez que a gente resolveu fazer um típico churrasco português: Sardinhas na Brasa. O Ciso, meu irmão mais velho, montou a churrasqueira no quintal da frente de casa, e quando começamos a assar as sardinhas, vimos que o vizinho estava com a mesma idéia. Juntamos forças, e foi uma noite muito gostosa, com duas famílias confraternizando. Lembro que comi tanta sardinha na brasa que cheguei a passar mal no dia seguinte. Por esse motivo, peguei algum tipo de trauma, e até hoje não consigo comer nenhum tipo de peixe, frito, assado ou cozido.
Voltando à TV: quando meu pai comprou a nossa, eu já era “grandinho”. Era uma “ABC – A voz de Ouro”. Uma caixa de madeira, com um tubo enorme, e quatro pés, muito “anos 70”, mesmo. Nessa TV, meu pai assistia – lembro – ao Jornal Nacional, quando chegava em casa. Minha mãe assistia às novelas, e eu lembro de algumas por causa da “trilha sonora”. Sempre tive essa coisa de associar uma lembrança com alguma música. A gravadora Som Livre lançava o disco com os temas das novelas, com as músicas que faziam sucesso na época, e eu tenho ainda alguns deles guardados. Nós, crianças, podíamos acompanhar às sessões e seriados americanos: Rin-tin-tin, Terra de Gigantes, Túnel do Tempo e os desenhos mais legais: “Johny Quest” e “Corrida maluca”. Tinha também o Topo Gigio, toda segunda-feira à noite, depois do “Jornal Nacional”. Topo Gigio marcou uma geração: Uma marionete de um ratinho muito bem feita para a época, com um sotaque italiano, que contracenava com o Agildo Ribeiro. Virou febre, e todo mundo tinha um bonequinho do Topo Gigio. Vale lembrar que meu pai tinha problema de audição; ouvia muito mal. Então, o volume da TV era quase no máximo. Quem chegava em casa estranhava. Mas a gente estava acostumado.
Porém o que marcou mesmo minha infância no quesito TV foi o seriado do Batman e Robin, aquele cheio de onomatopeias, estrelado por Adam West e Burt Ward. Meus irmãos mais velhos começaram a trabalhar bem cedo, graças aos cursos do SENAI que meu pai insistia que todos os filhos fizessem. Eles primeiro, depois, aos 17 anos, eu. Trabalhavam durante o dia, e à noite, estudavam – como a maioria dos jovens do bairro – no Ligabue. Não sei por que cargas d´água minha mãe mandava eu e o Rafael levarmos os materiais escolares a eles, pra irem pra escola, e ainda hoje fico pensando por que eles não poderiam levar os próprios materiais... Nunca cheguei a uma conclusão. Pensando melhor, agora, talvez não fosse o material escolar, mas algum lanche. Não tenho certeza, e fico na dúvida, já que a gente era muito pequeno pra carregar uma mochila de materiais. Talvez fosse lanche, mesmo. Bem, eles chegavam com o 107-T, o ônibus “elétrico”, que fazia ponto final no começo da Cruz de Malta com a Major Dantas. Próximo dali, havia uma loja que consertava TV´s, e enquanto esperávamos os irmãos mais velhos, eu e o Rafael ficávamos ali, na calçada, assistindo ao seriado do Batman. O dono da loja devia ser um cara muito legal e paciente, pois isso, até onde me lembro, isso era todo dia. Geralmente dava pra ver um capítulo inteiro. Eles chegavam, a gente dava a eles a mochila com os materiais de escola – ou lanches, já não sei mais - e voltávamos pra casa. Pensando agora, eram realmente outros tempos: era demasiado longe pra mandar dois moleques de 8 ou 10 anos fazer isso, e depois voltar o caminho todo à noite. A gente realmente não tinha problemas de segurança. Essa TV ABC ficou na sala um bom tempo. Lógico que não preciso mencionar que era preto-e-branco. Mas foi, para nós, um marco. Além dos seriados, a gente ficou doido também quando foi lançada a série “Planeta dos Macacos”, se não me falha a memória, na Globo, e que foi um sucesso enorme no Brasil. Tanto que a nova febre entre a molecada eram as máscaras de macaco. Claro que a gente acabou ganhando cada um a sua. Eram de plástico injetado, provavelmente pintadas uma à uma, e presas na cabeça com elástico. E a gente ficava assistindo a série na TV com a máscara no rosto. Como eram frágeis, pois o plástico rachava à toa, duvido que ainda exista alguma em algum lugar do mundo para contar história.
Com o tempo, meu pai acabou comprando outra TV, agora colorida, que ficou na sala, e a ABC foi para o quarto dos moleques. Nela, aos sábados, eu assistia ao programa “Inglês com música”, na TV Cultura. Um programa onde a apresentadora, uma vez por semana, pegava uma música de sucesso, e traduzia a letra, de forma bem didática, explicando as conjugações e tempos verbais. Foi assim também que tomei interesse pelo idioma Inglês e pela forma de aprendizado, tanto que, tempos depois, alguma editora lançou alguns álbuns de discos exatamente com a mesma forma: A gente acompanhava a música pela vitrola e pelo fascículo, que tinha a letra, a tradução e a “aula” de inglês. Tenho ainda guardado em minha coleção de vinis, alguns exemplares super-conservados. No capítulo “interesse pelo idioma”, mais uma história interessante, essa já na época do ginasial. Eu tinha um gravador K7, extremamente “arcaico” hoje, mas super-moderno para a época, que certamente deveria ter sido do meu irmão, e acabou passando pra geração seguinte (no caso, eu). Com ele e um microfone, gravava as músicas dos seriados dos Monkees e dos filmes do Elvis Presley, de quem eu era fã, que passavam na sessão da Tarde: Feitiço Havaiano, Love-me Tender, Carrossel de emoções, entre outros. E naquele ano de 1977, quando Elvis morreu, eu resolvi levar o gravador e as fitas para a escola, sei lá porque. Lembro que as meninas da sala choravam. E a professora de inglês achou tão legal a ideia das músicas que resolveu passar, como tarefa, que a classe inteira traduzisse as letras das músicas. Lógico que quase apanhei dos meninos, que odiavam essa matéria. Mas ganhei uma moral incrível com a professora... Sempre gostei da matéria, e em inglês, tirando o pouco que aprendi na escola, sempre fui autodidata.
Capítulo 4 – Skates, rolimãs e futebol
Lá por volta de 1972 ou 73, não sei precisar o ano, a Rua Caracaxá, onde a gente morava, foi asfaltada. Que eu me lembre, era a única rua do bairro ainda sem asfalto, e quando este chegou, a alegria da molecada foi geral. A primeira coisa que nos veio à mente foi, sem dúvida, carrinhos de rolimã. Correria geral nas oficinas do bairro pra conseguir os rolamentos para os carrinhos. Ainda bem que haviam muitas. Todo mundo fez seu carrinho: alguns em formato tradicional, com bico, uma roda na frente no centro do eixo móvel e duas no eixo fixo traseiro;outros, mais arrojados, com um eixo traseiro mais encorpado (dependia do tamanho do rolamento que a gente achava era preciso usar um caibro como eixo) e quatro rodas, com o eixo dianteiro móvel. Passamos então a infernizar a vida das vizinhas mais velhas, especialmente a dona “Aina”, que a gente chamava de “alemoa”. Ela tinha todo o jeito de alemã, não falava português corretamente, e tinha um sotaque que, agora, percebo ser espanhol; talvez fossem argentinos. Era um casal de velhinhos, cabeça branca, ela encorpada, grandona, forte e explosiva; ele, magrinho e calmo. Acho que nunca ouvi a voz dele. Outra coisa que me marcou é que eles tinham um “Carman-guia” vermelho, coisa mais linda do mundo, que pra ser mais bonito, só se fosse conversível. Mas não era, e mesmo assim, era lindo. Super conservado e sempre encerado e brilhando. Ela era tão grandona que até hoje não sei como entrava naquele carrinho...
Por que lembrei dela? Porque é a que mais reclamava do barulho. Quem conhece carrinhos de rolimã sabe muito bem o barulho infernal que ele faz. Imagine agora 5, 10 ou 15 carrinhos, descendo a rua ao mesmo tempo, apostando corrida. A alemoa morava mais ou menos na metade do quarteirão, e quando a gente passava em frente à casa dela, o carrinho já não ia tão veloz. Alguns até nem chegavam até lá, pois a rua tinha uma descida no começo do quarteirão, e depois ia suavizando, até ficar plana, próximo à casa dela. Ela então aproveitava essa redução de velocidade e mandava baldes d´água na molecada. Algumas vezes, com “cândida”, que era pra estragar as calças jeans dos mais velhos. Nós, menores, nem calça jeans tínhamos. A gente andava de bermuda, mesmo. Naquela época, nem bermudas: eram “Shorts”.
Quanto aos carrinhos, o que os mais “ousados” faziam era descer um pedaço da Major Dantas, pra pegar ainda mais embalo, e entrar à direita na Caracaxá, já com uma boa velocidade. Mas era importante calcular corretamente, pois cansei de ver gente se espatifar na calçada, sem conseguir fazer a curva de entrada. Até onde sei, todos os carrinhos tinham um parafuso central na frente, que era o ponto de apoio do eixo dianteiro. Tinham que ter esse parafuso, e um só, pois era ele que propiciava a rotação do eixo dianteiro e, por conseguinte, a direção do carrinho. Alguns, então, tinham esse parafuso bem saliente, e se você batesse de frente em algum lugar, provavelmente iria deslizar pela tábua, batendo alguma parte do corpo – geralmente o saco – nesse parafuso. Quem descia deitado, rasgava o peito. Com o tempo, aprendemos a “embutir” esse parafuso na tábua, para evitar acidentes. Depois de algum tempo – meses, talvez - a coisa foi perdendo a graça: primeiro porque a vizinhança reclamava demais; depois, porque haviam finalizado a construção da “Avenida Nova”, no Tucuruvi, onde hoje é a linha do metrô. Antes da inauguração, essa avenida ficou lá, prontinha, mas fechada para o trânsito por um bom período de meses. Conclusão: virou “point” dos carrinhos de rolimã, a ponto de ser até organizado campeonato onde ia gente de toda a região. Com a inauguração e consequente liberação do trânsito para os carros, os carrinhos de rolimã perderam seu espaço.
Mas ainda tínhamos o asfalto novo na Caracaxá. Sem os carrinhos de rolimã, a nova onda, pelo menos para mim, era o skate. Lembro que meu primeiro foi comprado na Mesbla, no Jabaquara, ou seja, do outro lado da cidade. Até hoje não sei porque tão longe, nem como descobrimos essa lonjura de loja. Mas lembro que fomos eu, Rafa e o Kazuo, de metrô, até lá para comprar. Era bem tosco, com rodinhas de plástico, e não durou muito tempo. Fui então me atualizando, e conseguia shapes e rodas mais profissionais, e acabei construindo um skate bem legal, com tudo – rodas e rolamentos - mais moderno. Nessa época, conheci o Lincoln, com quem fazia meus rolos e escambos e provavelmente consegui esse meu skate por obra dele: acabei pegando numa troca com alguma coisa. Esse “japonês” acabou se tornando um grande parceiro, tanto nos rolos como nas manobras, e a gente ficava andando de skate na rua até o anoitecer. Posso dizer sem medo de errar que fomos os percussores do skate no bairro. Mas chegou uma época em que andar só na rua não tinha mais graça. Começamos a alçar vôos mais altos. Ibirapuera. Mais especificamente, Marquise do Ibirapuera. Aquele cimento lisinho era ideal para os skates, e passamos a frequentar assiduamente, aos finais de semana. Como sempre, só isso não bastava. A gente gostava de adrenalina. Então, íamos de ônibus até a praça da bandeira, depois pegávamos outro ônibus que fosse pela 23 de maio. Íamos de ônibus até o viaduto da Rua Vergueiro ou Rua Tutóia, não lembro exatamente, mas sei que era quando começava a descida da 23 de Maio. De lá, no meio dos carros, a gente descia de skate até o Ibirapuera. Naquela época, há 45 anos atrás, era bem menos complicado fazer isso, pois o movimento de carros era infinitamente menor, o asfalto infinitamente melhor e a coragem, infinitamente maior.
Na Caracaxá, asfalto novo pedia também futebol de rua! Na parte de baixo da rua, que era plana, em frente à oficina do Ferreirinha, a gente marcava os gols, geralmente com pedaços de tijolo, pedras ou chinelos, e a galera passava o domingo jogando bola. Logo começaram a aparecer os craques da rua, e a se formar um time mais “oficial”. Com isso, os times das outras ruas começaram a aparecer para disputar com o time da Caracaxá. Confesso que nunca fui um bom jogador de futebol. Diria até que medíocre. Desse time “oficial”, nem cheguei a participar. Devido à minha absoluta falta de habilidade com a bola, sempre que ia jogar – ou na maioria das vezes – acabava escalado para jogar no gol. Como goleiro não era ruim (ou não me considerava ruim), e cheguei até a ser goleiro do time da classe no colégio. Até o dia em que, numa semi-final de campeonato, tomei dois frangos e fui substituído. Depois disso, aprendi a lição: futebol definitivamente não era minha praia.
Há uns dois anos, estive novamente na Caracaxá. Prestei muita atenção no estado de conservação daquele asfalto, que fez muita gente feliz e fiquei triste: sofreu muito com o passar dos anos. Cada obra, um buraco. A cada buraco, um remendo. E de remendo em remendo, o asfalto foi perdendo aquela lisura dos áureos tempos. Daquela época, ficou só a lembrança, mesmo.
Capítulo 5 – Pipas, Aquário e um belo tombo
Antes da febre dos rolimãs e skates, haviam as pipas. Uns chamam de pipa, outros chamam de quadrado, maranhão, papagaio, pandorga, peixinho... enfim. Cada um dá um nome diferente. O que não muda é que ainda hoje a gente vê muitos no céu, especialmente na temporada de férias escolares. Também já fui, como muitos que conheço, viciado em empinar pipa. Naquela época, a gente fazia nós mesmos nossos “peixinhos” e “raias”. Maranhão era mais complicado de se fazer, mas a gente fazia também. Era complicado, porque o maranhão de verdade, aquele raiz, tem que ser feito com varetas de bambu, e não havia bambu na região. Acho que tinha um bambuzal no terreno onde morava o Ronaldo, mas não tenho certeza. Eu era craque mesmo em fazer peixinho. Comprávamos o papel de seda e as varetas japonesas na lojinha da dona Marisa, na Rua da Esperança, e fazíamos as mais bonitas raias do mundo. Lembro que eu colocava até barbatanas nelas. A linha era da marca “Corrente”, numero 10, e a gente comprava carretéis com 500 jardas, acho. Nem sei quanto vale uma jarda, mas era linha pra caramba... Arrumávamos uma lata de óleo Maria, daquelas quadradas, ou de Nescau, maiorzinha, encapávamos com jornal, pra não enferrujar, e passávamos a linha do carretel pra lata, lembrando de dar um nó antes de começar a enrolar, porque senão, em algum momento, quando a gente “batizasse” o pipa, ou seja, descarregasse toda a linha da lata, se ela não estivesse amarrada, ia tudo embora... Vale lembrar que, naquela época, não existia, como hoje, a tal “linha Chilena” (que, pra falar a verdade, nem sei como é). Então, fazíamos nós mesmos o tal “cortante”. Era uma busca constante por cacos de vidro, e quem dava sorte achava alguma lâmpada fluorescente queimada. A gente pegava os cacos, moía numa lata, peneirava numa meia de seda e adicionava água e cola de madeira, levava ao fogo pra cola derreter e passava na linha. Na viela tinha um poste, e a gente usava-o como varal pra secar a linha, depois de aplicada a cortante. Desnecessário dizer que eu vivia com as dobras do dedo indicador da mão direita totalmente cortados, de tanto usar o tal cortante na linha. Quando a gente descarregava, e a pipa estava com força, ou na hora de enrolar, o troço cortava mesmo. Impressionante nunca ter infeccionado.
Bem, a rua era uma festa de pipas, principalmente nas férias e finais de semana. Todo mundo empinando ao mesmo tempo. E tinha os fios de energia, que atravessavam a rua e a gente tinha que evitar a todo custo, com o risco de perder a pipa enroscada num fio. Então, enquanto alguém segurava a pipa numa ponta da rua, a gente jogava a lata por cima dos fios, até chegar na outra ponta da rua. Era só esperar um vento, e puxar ou correr pra pipa, lá do outro lado, levantar. Mas eu achava que isso dava muito trabalho. Gostava mesmo de empinar em cima dos telhados, onde geralmente havia vento mais constante, e não precisava ficar correndo nem dando puxão na linha pra pipa subir. Era só descarregar que o vento fazia o serviço. Numa dessas ocasiões, eu estava em cima da laje da casa do Nilton, acho que era o nome do japonês, cujo irmão mais velho se chamava George, na esquina da vilinha onde a gente morava, tentando fazer a pipa subir. Não havia vento, naquele dia, por isso, eu ia puxando a linha e andando para trás. Puxando a linha e andando para trás, até que a laje acabou. Enrosquei o calcanhar na calha e, meio que virando uma semi-cambalhota sem querer, acabei caindo de cabeça num ferro em forma de “T” que segurava o varal da casa, no quintal abaixo. Fiquei pendurado nesse “T” pelas dobras dos joelhos, pingando sangue do topo da cabeça, como se fosse uma peça de carne pendurada no açougue. Quando consegui me desenroscar dos arames dos varais, o Nilton já estava lá embaixo, do meu lado. Corri pra casa segurando o cucuruto com a mão, pois estava sangrando muito. Não podia chorar. Era a regra da minha mãe. Se chorar, apanha. Chegando em casa, com a roupa e o cabelo cobertos de sangue, ela olhou, abriu o ferimento entre os cabelos com a mão e tacou o temido mertiolate, o supra-sumo das torturas infantis da época. Quem conheceu, não esquece. Quem não conheceu, melhor assim, não perdeu nada: Um antisséptico que ardia tanto que era pior que suco de limão. Ai de mim se chorasse. Vontade não faltava. Não pelo rasgo na cabeça, mas pelo tratamento - pior que a ferida. Hospital? Raio X? Nem sabia o que era isso. O tratamento usual era esse: Mertiolate e curativo. Se não morresse, tava bom. Num dos capítulos anteriores, eu havia dito que o vizinho, Sr João, era o médico da vila. Lembro que nesse dia ele fez um curativo na minha cabeça. Lembro dele dando pontos, mas não sei dizer se foi em mim nessa ocasião ou essa é uma outra memória confusa em minha mente. Sei que nos dias seguintes, continuou trocando o curativo até que o machucado “criasse casquinha”. Aí não precisava mais de curativo. E assim foi. A cicatriz tenho até hoje. Quando corto o cabelo muito curto, acho que dá pra ver...
Nessa época, também, o Ciso, meu irmão mais velho cismou de fazer um aquário. Mas a gente não tinha a tecnologia que temos hoje: borracha de silicone, colas especias, nada disso. Lembro que usamos (digo usamos pra não ficar chato – quem fez foi ele) massa de calafetar nas junções dos vidros. Para dar estabilidade e sustentação, já que não era colado, ele fez – ou mandou fazer – uma armação com cantoneiras de alumínio dentro da qual os vidros se encaixavam e conferia estabilidade no negócio todo. Fez também uma “mesa”, um suporte com armação de ferro e tampo de madeira, forte o bastante para aguentar. Lembro inclusive que era pintado de preto. Aquário montado, calafetado, hora de encher. Como lá em casa ninguém era bobo, resolvemos fazer os primeiros testes na varanda, do lado de fora, e não na sala. Areia, pedras, e finalmente, água. Enchemos, e o comportamento foi até que satisfatório. Por alguns minutos. De repente, o troço começou a vazar pela parte de baixo, e virou uma bica. Logo percebemos que aquela massa de calafetação não havia sido a melhor escolha. Lembro também que eu estava tão ansioso para ver o troço pronto, bonito, que quando o aquário começou a vazar, eu chorei. Um choro que era uma mistura de um pouco de raiva, um pouco de decepção. No final, o vizinho da frente, aquele das sardinhas na brasa, acabou nos dando uma pequena aula sobre pressão hidráulica e suas consequências. Meu irmão corrigiu o material usado, trocou o tipo de massa, remontamos a coisa toda e desta vez, funcionou. Deixamos ele lá fora por uns dias, para ter certeza que não teríamos nenhuma surpresa. Passado no teste, foi colocado na sala, num lugar de destaque.
Acontece que, naquela época, não era fácil encontrar lojas de peixes ornamentais. Então, minhas compras eram feitas nas Lojas Americanas (acredite – naquela época, vendiam até insumos para aquário) da Rua Direita, no Centro de São Paulo. Lembro que havia um monte de aquários, cada um com um tipo diferente de peixe, logo na entrada, e tudo o que eu precisava, trazia de lá. Pegava um ônibus até o Carandiru, depois o metrô até a estação Sé, e de lá ia vendo as vitrines e aproveitando o passeio. Sempre gostei de andar no centro. Numa dessas viagens, acho que num sábado de manhã, indo buscar mais peixes para aumentar meu plantel, passando em frente a uma loja de discos, também na Rua Direita, eis que ouço uma música vindo de lá de dentro. Acho que era lançamento, sei lá... Mas sei que adorei a música, e acabei usando um pouco da grana dos peixes para comprar meu primeiro disco, um compacto simples com a música How Deep is Your Love, dos Bee Gees. Sem imaginar, começava aí uma nova paixão: música. E toda vez que ouço essa música, lembro desse dia. Posso afirmar que foi a partir daí que comecei a associar músicas com lembranças. Tenho essa coisa: uma determinada música me remete a algum lugar, alguma lembrança. Com relação ao tema ”música”, tenho também uma grande decepção: nunca, apesar de inúmeras tentativas, a mais recente há uns três anos, consegui aprender a tocar um instrumento. E isso, com certeza, será abordado em outro capítulo.
Capítulo 6 –Quatro vielas e compras à granel
Uma coisa legal de se morar no subúrbio é que a gente acabava inventando as brincadeiras. No nosso quarteirão, a Rua Caracaxá tinha, e ainda tem, quatro vielas. A primeira, próxima da esquina da Major, é a que fazia fundos com a fabriquinha de plásticos, onde a gente ia pegar as rodinhas para os carrinhos de lata de sardinha. Na esquina dessa viela, morava a Dona Inês, japonesa, que tinha um armazém na esquina com a Major Dantas. Em frente ao seu armazém, do outro lado da Major Dantas, havia o açougue do Sr. Julio. Descendo a Caracaxá, a segunda viela do lado esquerdo, fazia um “L”, e no final, se comunicava com a quarta viela, que ficava mais no final do quarteirão, e eram separadas por um muro. Na terceira, à direita, era onde a gente morava. Nossa viela fazia fundos com um terrenão que invariavelmente servia de esconderijo nas brincadeiras de esconde-esconde. A gente subia no muro da última casa, e pulava pro lado de lá. Poucas vezes fiz isso, porque o mato geralmente era alto. Logo alguém descobriu o valor do imóvel, e construiu um conjunto de sobrados que acabou com nossa diversão. Depois de vendidos, a primeira coisa que o proprietário fez foi aumentar a altura do muro, e isso tornou a até então difícil tarefa de pular o muro, impossível. A primeira viela era de terra, a segunda era cimentada e a nossa era de terra, e tinha grama na parte mais no final. Era nosso campinho de futebol. Mas a quarta viela era de paralelepípedos. Acho que ainda é, até hoje. E é uma descida bem acentuada. Então, alguém inventou uma nova brincadeira: a gente pegava uma tábua, de preferência uma frente de gaveta que fosse curvada, ou que tivesse a frente curvada, ia no açougue do Seu Júlio, pegava sebo, que ele jogaria fora, passava na parte de baixo da tábua e descia a viela escorregando em alta velocidade. Quando chegava lá embaixo, a tábua “travava” na terra da rua e a gente saía deslizando, rolando e se ralando no chão. Mas ainda assim era muito divertido. Quando a gente não achava uma tábua com a curva na frente, corríamos o risco da tábua reta enroscar em algum paralelepípedo mal encaixado que estivesse mais alto, e a tábua travava do mesmo jeito. A gente vivia com a bunda raspada e era um “short” por dia. Chegava em casa quase todo dia com o short rasgado, e a mãe, lógico, ficava P da vida. Essa brincadeira também não durou muito, porque o sebo que a gente usava nas tábuas deixava as pedras da rua muito escorregadias e a mulherada reclamava, porque era perigoso, já tendo havido inclusive casos de escorregarem e caírem de bunda no chão. Fomos intimados a parar. Essa viela fazia um “L” na parte final, e se comunicava com a outra, do mesmo lado da rua, sendo separadas por um muro. Usávamos essa comunicação entre as duas nas brincadeiras de esconde-esconde, usando como rota de fuga para não sermos encontrados.
Como disse, nossa viela era de terra. No final havia uma parte gramada, que era nosso campo de futebol. A foto que ilustra esse capítulo é de lá, daquela época (inclusive comigo no gol). Apesar de sermos todos os vizinhos amigos e conhecidos, havia, na penúltima casa, a dona Belinha: uma senhorinha já velhinha, que eu me lembre sempre mal humorada, que tinha um milhão de cachorros trancados dentro de casa e que tinha a mania de furar todas as bolas que porventura caíssem no seu quintal. Então, a gente tinha que tomar o maior cuidado ao chutar a bola. Se caísse na casa dela, e desse o azar de ela ver, já era. Uma bola a menos no mundo. Se a gente desse sorte, e ela não estivesse em casa, alguém tinha que pular lá pra pegar a bola. Como ela era uma pessoa muito reservada, a gente nunca sabia se ela estava em casa ou não, daí o medo de pular lá e ser pego no flagra. Um pouquinho mais pra cima da casa da dona Belinha, perto do muro, moravam o Ché e o Bigode, e em frente à casa deles tinha uma parte de terra batida que era nosso campinho de bolinha de gude. A gente passava as tardes jogando, depois de ter feito os buracos do “campo”, cuja distância era medida em palmos. Ainda hoje lembro das regras do jogo e dos nomes das jogadas, como “bólus”, “estecar” e assim por diante. Depois de um tempo, os vizinhos se reuniram e decidiram cimentar a viela. Fizeram um multirão, e cada um comprou uma parte do material que fosse suficiente para cimentar a frente de sua casa. Lembro que a obra foi encabeçada pelo Tico, que era irmão do Ché e do Bigode, e trabalhava com obras. Em um final de semana, conseguiram cimentar a viela e assim nossos campinhos, tanto o de futebol como o de bolinha de gude, desapareceram.
No empório da Dona Inês, a gente achava de tudo um pouco. Haviam aqueles expositores onde ficavam os grãos: milho, feijão, arroz, tudo à granel, que ela pegava com uma concha de alumínio e pesava, colocando num saco de papel, na frente do cliente. Havia também batata, cebola e outros vegetais, vendidos por quilo. Vendia também pão e leite, e era comum a gente ir lá de manhã comprar as “bengalas” de pão. Na parte lateral esquerda do empório, um balcão que servia bebidas. Lembro que, anos mais tarde, quando já não era da Dona Inês, a gente voltando da escola passava lá para tomar tubaína. Naqueles tempos, não haviam, como hoje, supermercados. Lembro que o primeiro a ser inaugurado foi um que ficava na Julio Buono, e lembro também a primeira vez que fomos fazer compras lá. A gente fazia a compra, e o carro do mercado ia, mais tarde, entregar em casa. Pra falar a verdade, aqui, hoje, na cidade onde moro, os supermercados ainda fazem essa “cortesia”. Mas antes dos mercados, as compras para a semana eram feitas na feira. Legumes, vegetais, arroz, feijão, carne, peixe, frango, era tudo comprado na feira. Óleo, me lembro, era comprado a granel. A gente levava o garrafão, e o dono do estabelecimento enchia com um dispositivo que hoje lembra um desses que há em oficinas para colocar óleo no câmbio dos carros. Uma manivela, em cima de um barril ou tambor, que jogava o óleo para um bico embaixo do qual ficava o garrafão. Contando as voltas da manivela, ele sabia quantos litros haviam sido colocados no garrafão. Na feira, além dos víveres básicos, tinha a barraca que eu mais gostava: doces e bolachas. Meu pai, quando estava de bom humor, deixava a gente escolher as bolachas, que eram pagas por quilo. Adorava os pés-de-moleque e doces de leite, e fazia a festa nessa barraca. No final da feira, tinha uns moleques que faziam carretos: Quem não tinha carro (a maioria das pessoas) e não queria carregar as sacolas (de lona, que a gente levava de casa) contratava esses meninos que, com seus carrinhos – geralmente uma caixa grande de madeira com rodinhas de rolimã – levavam as compras pra gente até em casa. Normalmente, a gente ia em três na feira, então, apesar do peso, dava pra trazer as compras na mão. Mas lembro de uma vez em que o Beto, meu outro irmão, trazia uma das sacolas com as compras. Diferentemente de hoje que é comprado em embalagens de 5 quilos, o arroz era comprado à granel, e embalado num saco de papel. E naquele dia, o Beto deixou cair da sacola um saco de arroz, que ao cair no chão, se rasgou espalhando arroz pela rua toda. Tomou uma bronca tão grande do meu pai, ali mesmo, no meio da rua, que naquele domingo não quis almoçar nem jantar, de tão chateado que tinha ficado. Anos mais tarde, passei a frequentar outra feira, a da Tanque Velho às quartas-feiras, pra comprar pastel para almoçar, na época em que eu trabalhava com o André, num estúdio que a gente montou na casa dele. Era na feira que os vizinhos se encontravam e colocavam um pouco da proza em dia. Coisa difícil de se fazer hoje, com essa infinidade de supermercados que existem.
Capítulo 7 –Sinca Chambord e torta de gasolina
Antes de vir para o Brasil, meu pai era frei em Portugal. Por algum motivo que ele nunca revelou, ele largou a ordem, saiu do convento e veio para o Brasil, onde conheceu minha mãe, se casaram, e o tiveram quatro filhos. Pelo fato de ter sido religioso em sua terra natal, a gente meio que foi criado “dentro” da igreja. Fazíamos parte da Paróquia Nossa Senhora da Luz, perto de casa, na Vila Gustavo. Fiz o catecismo, a primeira comunhão, fui crismado e me casei nessa paróquia. A Daniela e a Isabela, minhas duas filhas, foram batizadas lá, apesar de a Isabela ter nascido em Jundiaí, e a gente já estar morando fora de São Paulo. Se me lembro, meus sobrinhos também foram. Meus pais eram membros atuantes na igreja, faziam parte de todo tipo de movimento, e tiveram passagem marcante por lá, tanto que há alguns dias, receberam homenagem póstuma da comunidade. Lembro dos sábados em que eu ia para as aulas de catecismo, da minha catequista, dona Desidéria, que era também a “vocal-leader” das missas matinais do domingo. Tinha uma voz poderosa, e penso que gostava muito de cantar. Depois das aulas, sábado à tarde, a gente passava no barzinho que havia ao lado da igreja, e comprava “amendoins japoneses”, que ficavam num baleiro, daqueles que giram, em cima do balcão. Era vendido por peso, e lembro que um saquinho de papel custava uma moeda. Voltava pra casa comendo amendoim. As quermesses nessa igreja também eram memoráveis: a rua era fechada em toda a extensão do quarteirão, e a galera de vários bairros vizinhos ia lá para participar. Como toda quermesse, havia quentão, vinho quente, doces e comidas típicas da época de festas juninas. Com sempre, meus pais trabalhavam nessas festas também. Fato curioso que me vem à memória com relação à igreja, é que um domingo fui escalado, pela primeira vez, para fazer a leitura na missa da manhã. Dona Desidéria escolhia os leitores na hora, entre os catequizandos e naquele dia, fui escolhido. Apesar de ser frequentador assíduo das missas e já conhecer o ritual, naquele dia fiquei super-hiper-mega-tetra nervoso, pois seria a primeira vez que encararia uma plateia. Subi ao altar, cheguei no ambão e, com as pernas tremendo, comecei a ler. Mas de tão nervoso, chegou uma hora, no meio da leitura, que me deu um branco, um apagão: empaquei na leitura. Me perdi no texto, não conseguia prosseguir, não achava onde havia parado, e a Dona Desidéria, embaixo, soprando as falas para mim. Mas não evolui. Tive que ser substituído, no meio da leitura, pois não consegui seguir adiante. Ainda bem que não fiquei traumatizado: hoje adoro ler, adoro falar em público e sou apaixonado por um microfone...
Devido também ao fato de meu pai ter sido religioso em sua terra natal, seu sonho, assim como o da minha mãe, era que todos os quatro filhos fossem padres. Por isso, todos meus irmãos frequentaram seminários. Uns por mais tempo, outros por menos, mas eu não frequentei nenhum. O máximo que fiz, ao ter dúvidas com relação se era esse meu destino, foi ir morar na casa paroquial, onde pude travar mais contato com as rotinas religiosas. Acho que essa experiência durou uns dois meses, mais ou menos. Foi o que eu consegui aguentar, e não era, definitivamente, para mim. Talvez tenha sido pego numa época pouco favorável, já que eu havia começado a descobrir o mundo, com baladas, bailinhos, namoricos, essas coisas. Provavelmente num capítulo mais à frente eu volte a esse assunto. Mas meus irmãos foram mais firmes: O Ciso estudou um par de anos (acho) num seminário em Pindamonhangaba; o Rafa, acho que três anos em Jundiaí. Hoje são casados e constituíram família. O único que vingou foi o Beto: hoje é Padre e vigário na paróquia Nossa Senhora das Neves, no Tucuruvi. Em sua jornada, ficou um tempo num seminário em Itaipava, perto de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Nessa época, o Ciso tinha um fusca verde. Meu pai nunca dirigiu, e cismou de ir visitar, com a família toda, o Beto, em Itaipava. E não é que fomos? De fusca! Claro que há mais de 50 anos, eram outros tempos, a Via Dutra era outra estrada, certamente não havia tanto trânsito, os carros eram diferentes, então fomos para o Rio de Janeiro de Fusca, mesmo. Mais ou menos 460 km de distância.
Preparação para a viagem, minha mãe fez uma torta de frango, que o Beto gostava, para levar de presente. Geladeira de isopor, não sei se tinha. Mas tinha lanches de pão de forma com presunto e queijo além do recente lançamento: guaraná em lata, da Brahma. E tome estrada. Saímos de manhã, e lembro que fizemos uma parada em Aparecida do Norte. Depois de Aparecida, fizemos ainda uma outra parada, na beira da estrada, para comer e fazer xixi. Não sei ao certo onde exatamente foi essa parada, mas do acostamento da estrada, a gente via o Rio Paraíba do Sul. As fotos que ilustram este capítulo, bem como a capa do livro, são desta viagem. Embarcamos novamente, e tome estrada. Para aqueles que não conheceram o fusca, saibam que o porta-malas ficava na frente, e o motor atrás. Ainda, atrás do banco traseiro havia o famoso “chiqueirinho”, um espaço entre o banco e o compartimento do motor, onde cabiam malas e sacolas, e onde alguns pais botavam também as crianças. Alguns meninos usavam esse compartimento como “caixa de som”, colocando um tampão com alto falantes. Fiz isso nos meus fuscas. Bem, a torta da minha mãe ia no porta-malas, em cima de tudo, para não estragar. Vale lembrar também, que o bocal para abastecimento de gasolina ficava, pelo menos nesse modelo, dentro do porta-malas. Paramos novamente, desta vez para abastecer. E lembro que, após encher o tanque, o frentista, ao retirar a mangueira, sem querer derramou gasolina dentro do porta-malas, bem em cima da torta da minha mãe, que estava coberta apenas com um guardanapo de pano. Pensou-se em jogar fora, pensou-se em deixar como estava pra ver como ficava, e assim foi feito: trocou o pano de cima, e toca viagem.
Não sei como é hoje, pois foi a única vez em que passei por lá, mas a Serra de Petrópolis era uma coisa louca, cheia de curvas, com pista simples de mão dupla. Coisa que não era qualquer motorista que encarava. E, numa dessas curvas, a gente de fusca, devagar, estava sendo ultrapassado por um carrão: não sei dizer se era um Sinca Chambord ou um Impala da Chevrolet. Só lembro do rabo-de-peixe na traseira. Tomamos uma fechada, e meu irmão teve que jogar o fusca todo pra direita, quase saindo da pista. Ainda assim, o carrão, com a fechada, enganchou o para-choques traseiro no para-lamas dianteiro do fusca, rasgando-o. E o cara foi embora. Ficamos com o prejuízo. O Ciso ainda tentou desentortar a lata, voltando-a no lugar e nessa operação, acabou com um corte na mão. Vida e viagem que segue. Apesar dos percalços, chegamos bem ao destino. Na hora do jantar, lembro como se fosse ontem, foi servida uma sopa de abóbora que eu jamais esqueci, de tão saborosa. Foi a primeira vez que experimentei, e ainda hoje, de vez em quando, peço pra Rosângela fazer em casa. Quanto à torta da minha mãe, que fora colocada também na mesa e preparada com tanto carinho, estava com um gosto insuportável de gasolina, e teve que ser jogada fora.
Na manhã seguinte, pegamos o Beto e fomos conhecer o Rio de Janeiro. De fusca, claro. Agora com SEIS pessoas dentro – tudo bem que eram duas crianças – mas estava apertado. Lembro que paramos numa praia, acho que Botafogo, e eu nunca havia ido a uma praia. E nem pude aproveitar, nem entrar na água. Depois, Cristo Redentor e bondinho do Pão de Açúcar, onde meu pai caiu num golpe: Desembarcamos do bondinho, e parou um tipo de carrinho de golfe, sei lá, mandando a gente entrar. Entramos, e o motorista ia dando voltas pelo lugar, dizendo que “aquela praia é tal praia, aquilo é tal coisa”, etc... Quando chegou no final, ele meio que “extorquiu” meu pai, pedindo dinheiro pelo “Tour”. Foi a primeira vez que fui ao Rio de Janeiro. Voltei lá algumas vezes à trabalho, mas nunca mais voltei ao Corcovado e Cristo Redentor.
A volta para casa foi mais tranquila. Digo isso porque não me lembro de nenhum incidente relevante, por isso acho que foi “de boas”. O Ciso dirigindo, meu pai no banco do carona, eu, Rafa e minha mãe no banco traseiro. Da volta, lembro apenas que a gente havia ganhado um monte de gibis, e viemos lendo, eu e o Rafa, a viagem inteira, ao ponto de meu pai ficar bravo com a gente por estar perdendo a paisagem e não aproveitar a viagem.
Do período em que morei na casa paroquial, lembro também de uma viagem que fizemos a Campos do Jordão, para levar uma das seminaristas a um convento, onde ela seria formada Freira. Porque me lembro dessa viagem? Novamente, por causa de uma música, que ia tocando no carro do padre, e marcou mais essa lembrança: Five Hundred Miles - Peter, Paul & Mary. Ah, a música. Sempre a música...
Capítulo 8 – Óculos e férias de Natal
Quase todo ano, nas férias de dezembro, a gente ia para Brotas, onde um tio, irmão da minha mãe, tinha uma fazenda. Íamos os pequenos, eu e o Rafa, junto com a mãe. Algumas vezes, o Beto e o Ciso iam também. O pai, como trabalhava, deixava pra ir mais próximo das festas natalinas. Lembro, inclusive, que uma vez o Kazuo, que era nosso vizinho e primeiro amigo de infância, foi com a gente pra passar as férias lá. Como meu pai não dirigia, e normalmente estava trabalhando no final de ano, a gente ia de trem: Pegava o trem para Panorama, na Estação da Luz, e a viagem demorava talvez quatro horas ou mais, se bem me lembro. Do trem, as lembranças são do cara que passava “picando” os bilhetes, e depois, gritando o nome das próximas estações; do lanche de presunto e queijo que a mãe comprava pra gente comer, junto com uma garrafinha de Guaraná Antártica, que a gente chamava de “caçulinha” e que eu nem sei se ainda existe: uma garrafinha pequena, talvez com 200 ml, que fazia a alegria da molecada que não estava acostumada com esses “privilégios”, pois em casa, refrigerante era raro. Meu pai, como todo bom português, gostava de vinho. Acho que herdei esse gosto dele. Sempre tínhamos vinho em casa e meu pai tomava seu vinhozinho todo dia. Não que ele tomasse tanto vinho assim, mas o ponto positivo nessa história é que, apesar dele gostar de vinho, era muito comedido e nunca bebeu tanto a ponto de ficar embriagado. Lembro que a gente ia buscar vinho em São Roque, com um amigo dele que consertava os eletrodomésticos das casas, especialmente televisões, que na época eram valvuladas. Esse amigo era um dos poucos na época que tinha carro e além disso também apreciava um bom vinho. E com o vinho que eles traziam, a mãe fazia suco pra gente: um pouco de vinho, no qual ela adicionava açúcar e muita água, e virava um Ki-suco sabor uva. Portanto, refrigerante era raro. Hoje em dia, toda vez que tomo guaraná essas recordações do trem me vêm à lembrança.
Quando a gente chegava em Brotas, tinha que pegar um taxi até o sítio, que era relativamente perto da cidade. E os taxis daquela época, em Brotas, ou eram charretes ou Ford Bigodes, modelo T, que além de taxis acho que eram também uma atração turística. A gente mal chegava no sítio e já corria pro pasto, ver as vacas, não sem antes ser avisado pelo tio sobre qual boi era o mais bravo, pra gente tomar cuidado. Atravessando o curral, pulando a cerca, a gente ganhava o pasto, que era um declive. E lá embaixo, no fim do pasto, entre as árvores que o margeavam, o Rio Jacaré que – acho – era a divisa da fazenda. E a gente ficava na beira do rio a tarde inteira. Não dava pra entrar nesse pedaço, pois a correnteza era forte e o rio era cheio de pedras. Hoje em dia, a galera de São Paulo vai lá pra fazer “rafting”. Quando a gente voltava pra casa, geralmente estava cheio de carrapatos. Tinha que fazer uma catança na hora do banho, antes de dormir...
Outras vezes, no final de ano, a gente variava e ia para Americana, na casa de outras tias, também para passar as férias. Diferente de Brotas que era uma fazenda, a casa das tias ficava na cidade. Lembro que ao lado da casa delas, havia um grande galpão, onde funcionava uma tecelagem. E na divisa do terreno, bem ao lado da parede desse galpão, havia uma enorme árvore de fruta-do-conde, onde a gente subia até chegar na altura do telhado do galpão, pra pegar as frutas. Adoro, até hoje, e mais uma vez há a associação de lembranças. Havia em Americana o Luiz, primo nosso que era também o guia. Mas na cidade, não havia muita coisa pra gente fazer. O Luiz tinha uma bike, mas não deixava a gente andar. No máximo, era na garupa. E na garupa, a gente ficava dando rolê no bairro. Lembro da Avenida Cilos e que, uma vez, fomos num circo, numa noite de sábado, e onde tinha um carrinho de pipoca que o pai comprava pra gente, e eu mandava molho de pimenta. Tinha também a igreja São João Bosco, onde a gente passava algum tempo fazendo alguma arte, como capturar pombos ou outra besteira qualquer. Lembro de uma vez em que a gente estava voltando da igreja – inclusive nessa ocasião o Kazuo estava com a gente – e achamos uma placa de trânsito caída na rua. Algum automóvel devia ter batido no poste, que estava quebrado. A gente tentou levantar a placa, colocando-a de pé. Soltamos e ela voltou a cair. Nesse exato momento estava passando um carro de polícia que – lógico – nos deu um “enquadro”. Explicamos o que aconteceu, e acabou não rolando nada demais. Afinal, quatro moleques de oito ou dez anos não podiam representar muito perigo.
Voltando a Brotas: na fazenda tínhamos outro primo que morava lá, o Zé Ricardo. Tinha a nossa idade, e era o nosso guia, era ele quem nos levava aos lugares legais. Lembro de uma vez em que ele montou uma charrete e nos levou a um corregozinho, que deveria ser alguma das nascentes que alimentavam o Rio Jacaré, num lugar que eles chamavam de “invernada”. Bem longe da fazenda, lembro que demorou muito pra chegar. Mas valeu a pena: um lugar lindo, com um riozinho de águas cristalinas e com o fundo de areia branquíssima. Foi nesse riozinho que aprendi a nadar. Lembro também que a gente levava pipas prontas de casa, e chegando lá, como não havia concorrência, ou seja, não haviam outras pipas no ar, a gente descarregava toda a linha da lata, amarrava numa cerca, e a pipa ficava o dia inteiro no ar, sem precisar de ninguém pra tomar conta. As festas de final de ano eram de fartura: os tios matavam um porco, não sem antes chamar a molecada pra ajudar ou só assistir. Moleque naquela época tinha que ser moleque, mesmo. O porco era morto com uma facada fulminante no coração, e ainda hoje lembro do bicho gritando. Depois, penduravam o bicho e recolhiam o sangue para fazer chouriço. Os homens pelavam o porco, com água fervendo, separavam os cortes, e as mulheres cozinhavam para a ceia. A gordura que sobrava, era guardada em latas de 18 litros, juntamente com os miúdos da carne. A gordura endurecia e conservava a carne por longos períodos. Essa gordura era também utilizada para cozinhar, no dia a dia, em fogão de lenha, claro. Lembro muito do cheiro peculiar do fogão à lenha, do cheiro da madeira queimando. Hoje em dia, morando no interior, ainda tenho o privilégio de fazer uma fogueirinha no quintal de vez em quando e acender a lareira nos dias frios, quando então o cheiro de madeira queimando me remete à essa época. Lembro dos almoços de final de ano na fazenda, com muita fartura e todo mundo se empanturrando de comida, e a molecada sentada no terreiro de café tomando guaraná direto da garrafinha, na qual os adultos faziam um furo na tampinha, e a gente chacoalhava a garrafa e espirrava o refrigerante na boca. Lógico que, depois de duas ou três chacoalhadas, o troço já estava completamente sem gás, mas quem se importava? Tudo era festa, principalmente pra gente, que não estava acostumado com refrigerante, e só tomava em ocasiões especiais... Outra lembrança gostosa é do leite tirado na hora: a gente acordava cedo – cedo mesmo, tipo quatro da manhã – pra ir com o tio no curral, onde ele tirava o leite. Levávamos uma canequinha, com um pouco de Nescau ou Toddy (nem sei se já existiam naquela época, mas era um achocolatado desse tipo) e o tio tirava o leite direto na nossa caneca. Leite puro, forte, denso e quentinho, com chocolate. Que vida boa. Hoje, tenho certeza que, se fizer isso, é diarreia na certa.
Minha mãe me disse, certa vez, que foi numa dessas viagens que notaram que eu precisava de óculos. A gente ia de trem, com as janelas abertas, e invariavelmente com a cabeça pra fora, tomando aquele vento gostoso. E segundo a mãe, foi numa dessas que eu peguei um “golpe de ar”. No retorno para casa, ela percebeu que eu estava piscando muito. Eu não lembro, pois tinha na época menos de seis anos. Mas acabou me levando a um médico, que diagnosticou a necessidade não só de óculos, mas de cirurgia, devido a um estrabismo acentuadíssimo. E assim foi. Operei os dois olhos – um de cada vez, lógico – e o pós-operatório requeria o uso de “tampões”, o que me valeu, por um tempo, o apelido de “pirata”. E então, desde os mais tenros seis anos de idade, esse acessório passou a fazer parte do meu visual. Agora, com 60 anos, surgiu a tal da catarata, nos dois olhos. Já operei o olho direito, e a visão foi totalmente restituída, a ponto de enxergar 100% sem óculos. Aguardo a cirurgia para janeiro de 2023 do olho esquerdo, e talvez o acessório seja aposentado de vez.
Graças aos óculos, que me acompanham desde os seis anos, já tive vários apelidos durante a vida. Birolho e quatro olhos foram os mais recorrentes, e o fato de eu sempre ter sido muito magro também promoveu outros apelidos que variavam desde magrelo até “pau-de-virar-tripa”. Quem usa óculos sabe dos transtornos e empecilhos que isso traz. Chuva ou garoa é um tormento. Acho que foi por causa deles que eu nunca gostei de praia, e quem usa-os sabe a que estou me referindo: a maresia constantemente os embaça. Talvez por isso, diferentemente de muita gente que eu conheço, nunca tive interesse em ter uma casa na praia e, querendo sair da cidade grande, optamos pelo mato, ao invés do litoral. As consultas com o oftalmologista – que a gente simplifica chamando de oculista – eram constantes. Lembro que o consultório era na Vila Mariana, e como a gente morava praticamente do outro lado da cidade, eu ia com a minha mãe de ônibus. Naquela época a linha norte-sul do metrô estava em construção, e lembro que o ônibus seguia pela Av. Cruzeiro do Sul sentido centro da cidade. Da janela do ônibus eu via as estruturas centrais, os pilares, onde ficaria suspensa a linha do metrô. Na minha cabeça de criança, à medida em que o ônibus se movia, imaginava um cavalo correndo pelo canteiro central e saltando por sobre as estruturas, como se fossem obstáculos. Chegávamos no oculista, passava na consulta e voltávamos pra casa. Se bem me lembro, isso era uma vez por mês. Nesse processo, meio que acompanhei ao vivo a construção do metrô. E lembro que na semana de inauguração, algum tempo mais tarde, e eu já mais velho, cabulei aula com os amigos pra andar de metrô. Mas isso é outro assunto, e outro capitulo.
Capítulo 9 – Fogo, reformas e fuga
Meu pai tinha mania de reformas. Pelo menos, é como me lembro dele. Estava sempre inventando uma reforma na casa. A primeira lembrança da nossa casa que eu tenho, é que não tinha laje. Era uma forração comum na época, chamada “estuque”. Uma armação de tela, preenchida com reboco. Havia um quintal nos fundos, onde havia também um barracão pra guardar as bagunças. E tinha de tudo, lá... Devo confessar que sou piromaníaco. Adoro mexer com fogo, e desde sempre, andava com uma caixinha de fósforos no bolso – quando havia bolso. E quando era pequeno, não era diferente. Como disse, havia de tudo naquele barracão, inclusive umas cordas e uns guarda-chuvas pendurados. E como eram velhos, tinham muitas linhas soltas, penduradas, pedindo para serem queimadas. Eu colocava fogo nas linhas, e quando elas estavam chegando em cima, perto do guarda-chuva, eu assoprava e apagava. Colocava fogo, assopra e apagava. Até que houve uma que eu não consegui apagar. Conclusão: pegou fogo no guarda-chuvas, e no que estava ao lado dele, depois em outro, e o fogo foi se espalhando pelas tranqueiras... Gritei, e minha mãe logo chegou e apagou o fogo, não sem antes haver feito um estrago razoável na pilha de tranqueiras. Me jurou de surra. Mas eu tinha uma estratégia e ela não conseguia me pegar: pulava no muro da divisa com a casa da vizinha, dona Nair, e subia no telhado de casa. Alí, ela não me alcançava. Mas eu teria que descer, mais cedo ou mais tarde, no máximo quando escurecesse, e meu pai chegaria do trabalho. A mão do meu pai era pesada. Mais que a da minha mãe. Então, antes que a coisa ficasse mais feia, tomei a decisão: desci do telhado, aguardando a surra suave da minha mãe. Mas naquela época não havia “conselho tutelar”, e a surra foi com fio de ferro (fio de força do ferro de passar), que doía mais que chinelo, pois era praticamente um chicote. Talvez tenha apanhado outras vezes, (talvez não – com certeza) mas essa foi a surra da qual mais me recordo. Quando meu pai chegou, apanhei de novo! Duas surras pelo mesmo motivo. Naquela época, era tudo farra. Depois passei a perceber a gravidade do meu ato. Poderia ter colocado fogo na vizinhança inteira. Mas ainda gosto de fogo. A Daniela acho que herdou isso de mim... Por exemplo, quando saímos de São Paulo e nos mudamos para a chácara, ela que morou em apartamento a maior parte da vida, também passou a andar com um isqueiro pelo quintal, colocando fogo em tudo. Uma vez, quase incendiou a casa da vizinha, colocando fogo num mato próximo à cerca, fogo esse que saiu do controle e estava passando para o quintal dela, que era forrado de palha de pinheiro. Uma faísca ali, seria a catástrofe. Felizmente, o caseiro dela estava de prontidão e ajudou a apagar o fogo.
Algum tempo depois daquele episódio do fogo, meu pai resolveu eliminar o barracão de vez, e fez uma grande reforma na casa. O estuque estava feio, a casa estava mal-ajambrada, e ele radicalizou: A primeira grande reforma, além de acrescentar mais um quarto, mudou os cômodos de lugar. E foi colocada laje em toda a casa. Lembro que quem fez a parte elétrica foi meu padrinho de crisma, Nego, que era eletricista e veio de Americana só para fazer isso. E, lógico, fomos escalados para ajudar. Não lembro qual dos irmãos estava lá comigo e o Nego, mas tinha mais um de nós, e passamos os três dias de carnaval embaixo do telhado, refazendo a parte elétrica. Nessa mudança, mudei também de quarto; o quarto novo tinha uma beliche, e eu e o Rafael ficamos nesse quarto. O Beto acho que já estava no seminário, então o Ciso ficou com o outro quarto, onde ele tinha um aparelho de som, e quando ele saía pra trabalhar, eu ficava lá, ouvindo os discos dele. Lembro de Rick Wakeman, Viagem ao Centro da Terra, alguns discos do Pink Floyd e até Benito de Paula.
Por falar em som do Ciso, aquele fusca verde dele ficava na garagem, que foi criada onde antes era a varanda, e tinha um toca-fitas. Ele ia trabalhar de ônibus, e o carro ficava o dia inteiro na garagem. Lembro que eu, com o auxílio de um arame, arrombava a porta do carro para ouvir música. Lembro que ele tinha uma fita dos Beatles, com o disco Yellow Submarine, que era a minha preferida, e foi no carro dele que eu ouvi pela primeira vez “Octopu´s Garden”, desse mesmo disco. Fazia isso sempre, até o dia em que fui pego no flagra: minha mãe me viu arrombando o carro, tomou o arame da minha mão, empurrou tudo pra dentro do vidro semi-aberto e prometeu que contaria ao Ciso, assim que ele chegasse. Se contou, eu não sei, porque ele nunca bronqueou comigo. Ao contrário, acho que ele deve ter dado muita risada – eu daria – disso tudo.
Essa última reforma criou, com a laje, dois cômodos em cima da cozinha e área de serviço: Um quarto e uma cozinha, com um banheiro embaixo da escada. A princípio, quando o Ciso casou, foi morar lá. Ficou um tempo, não sei precisar quanto, e quando comprou sua casa, o quarto ficou vazio. E virou o quarto da bagunça: Tinha uma mesa de ping-pong, minha vitrola, coloquei umas lâmpadas coloridas e lembro que a gente dava até baile nesse quarto. Com o tempo, acabei levando minha cama pra lá, e acabou virando meu quarto. Era legal, porque tinha entrada independente, passando por um corredor lateral, sem precisar passar por dentro da casa. A janela do quarto dava para uma laje sobre o banheiro, e quando eu queria mesmo entrar ou sair escondido, usava a janela: pulava no muro do vizinho, subia no telhado, depois na laje do banheiro e entrava no quarto. Com o tempo, as paredes do quarto ganharam pinturas feitas por mim; era a época do grafite, e como sempre gostei de desenhar, mandei logo uma mão gigante ensanguentada do tamanho da parede do quarto. Acredite, isso me valeu até um emprego na área de comunicação. Uma amiga do meu pai, em visita à nossa casa, subiu no meu quarto, e, ao ver as paredes todas grafitadas, me indicou para uma vaga na gráfica do Cursinho Universitário, onde trabalhei como desenhista e onde começou minha epopeia nas artes gráficas.
Eu tinha acabado de sair do Bradesco, e sem emprego, arrumei uma forma de ganhar dinheiro: fazendo pulseiras de artesanato. Achei um cara, no Jardim Brasil, que terceirizava a montagem de pulseiras e correntes de artesanato. Entrei de cabeça nessa história, e posso dizer até que ganhei algum dinheiro com isso. Cheguei até a comprar uma moto, parcelada. Mas trabalhava noite e dia, dormindo muito pouco, montando as tais correntinhas, que depois levava pro cara, e elas então eram banhadas a ouro. Com a moto, fiquei pouco tempo, pois na hora de sair pra namorar, preferia sair de carro. Usava ela basicamente pra ir trabalhar aos sábados, quando o transporte público era bem ruim. Naquela época, o uso de capacete não era obrigatório, e numa dessas idas ao trabalho, quase morri embaixo de um caminhão, na praça Campos de Bagatelle, em Santana. Nesse dia, resolvi que moto também não era pra mim. Foi numa tarde dessas, enquanto eu trabalhava nas pulseiras no meu “ateliê”, ou seja, meu quarto, que essa amiga do meu pai chegou em casa e me conheceu.
No Banco Bradesco, trabalhei como “operador de Telex”. Quem não conhece, uma rápida descrição: Naquela época, não havia fax, muito menos internet, nada disso. Eu era responsável por transmitir as ordens de pagamento a outras agências, e o telex era basicamente uma máquina de escrever gigante, com um teclado nada ergonômico, que se comunicava com outra máquina igual, na agência de destino, através da linha telefônica. O sistema de telefonia no Brasil naqueles tempos era péssimo. Primeiro, tinha que conseguir uma linha, e chamar a agência de destino. Depois tinha que ter a sorte de achar a máquina na agência de destino desocupada, para conectar e começar a transmissão. Isso tomava tempo; naquela época, o horário de expediente era de 8 horas diárias, e eu sempre tinha que ficar até mais tarde. Com isso, comecei a perder aulas, pois estudava à noite. Dei então uma intimada no gerente, e ele colocou a situação da seguinte forma: Quer, quer. Não quer, sai fora. Pedi demissão. Quem sabe onde estaria hoje, se tivesse ficado no Bradesco?
Capítulo 10 –Senai, marmitas e aparelho de som
Em 1979, por “determinação” do meu pai, comecei a estudar no Senai. Ele tinha dessas coisas: a gente precisava trabalhar. Acho que, para ele, que fora acostumado a trabalhar desde cedo, o estudo não era muito importante. Trabalho era mais. Assim, todos os filhos eram “convidados” a fazerem um curso profissionalizante, para começarem a trabalhar logo. Meus irmãos mais velhos fizeram cursos ligados à área de metalurgia. Eu, como gostava de eletrônica, e sempre fui o encarregado a arrumar principalmente a antena da TV de casa, acabei optando por fazer \\\"radio e TV\\\", um curso de eletrônica, no Senai Roberto Simonsen, no Brás.
Eu havia Terminado o ginasial no Ligabue em 1977, com um ano de atraso, pois repeti a 6ª série. A maioria dos colegas foi para o Graco, uma outra escola, pois no Ligabue não havia colegial. Outra parte foi para outras escolas, entre elas o Albino César. No ano seguinte, 1978, estudei no período da manhã, e aquela parte da turma do Ligabue que não havia ido para o Albino César estava na mesma classe, no Graco. Soube depois de um tempo, que no período da manhã as aulas eram mais “puxadas”, e acho que por isso acabei estranhando muito o Colegial, principalmente porque as matérias eram bem diferentes daquelas às quais a gente estava acostumado. Eu achava a matemática super complicada. Odiava. Hoje vejo que não era tudo isso, e até gosto de matemática, mais do que naquela época. Acabei aprendendo que tudo no mundo envolve matemática. Química até hoje odeio; peguei trauma, pois tive um professor que simplesmente não se esforçava em explicar a matéria. Colocava tudo na lousa, e a gente que se virasse. Não havia meios de eu entender aquele negócio de números atômicos, que hoje vejo que era coisa mais boba do mundo, mas naquela época, não havia jeito de eu entender. Conclusão: repeti de ano mais uma vez, graças à Química. Acho que aquela música do “Paralamas do Sucesso”, - odeio química – foi feita pra mim.
Com a repetência, veio então a intimada do meu pai: fazer Senai. Porém, o Senai era em período integral, e então eu tive que pedir transferência para o período noturno, no Graco. Eu ainda tinha contato com o Edu, amigo do Ligabue, que também gostava de eletrônica. Então, fizemos nossa inscrição no Senai e começamos o curso juntos. No Senai, eu e o Edu caímos em turmas separadas, o que não foi um problema, pois logo a gente se enturmou e conhecemos novos amigos.
Era uma rotina puxada: acordava super cedo, pegava o ônibus “174-M Museu do Ipiranga”, invariavelmente lotado, e invariavelmente ia pendurado na porta até mais ou menos a estação Santana do metrô, quando o ônibus dava uma esvaziada e eu poderia tentar achar um lugar para sentar. Levava marmita para o almoço e todo material escolar na mochila, já que eu ficava o dia inteiro no Senai, que era em período integral, e à noite tinha que ir para a escola normal, pois o curso do Senai não tinha validade como complemento ao ensino médio. Então, saía do Senai e ia direto pra escola. Como citei, na época, eu estudava no Augusto Graco, no período da noite. Saía do Senai no Brás às 17:30hs e tinha que correr, pra pegar novamente o ônibus lotado de volta pra escola. Descia no Metrô Carandirú, onde pegava outro ônibus, o “Vila Nivi” pra chegar à esquina da Rua Cruz de Malta com a Rua São Marcelo, ponto onde eu descia e onde tinha uma barraca de pastel, e quando eu tinha dinheiro, comprava um como janta e corria pra escola, geralmente em cima da hora.
A rotina do Senai em si também era puxada. Havia, na parte da manhã, aulas com as matérias regulares, que eu havia estudado na escola normal. Até hoje não sei porque isso, já que o curso não era complementar. Sempre achei que poderia ser suprimida essa parte, e o curso passaria então a ser só meio período. Mas, enfim... À tarde, era a parte de oficina, onde a gente aprendia realmente a parte profissionalizante. A cada dois alunos, uma bancada, onde a gente desenvolvia e testava circuitos eletrônicos para conhecer o funcionamento dos componentes. Trabalhávamos em dupla. Cada bancada tinha uma chave geral e lembro que uma vez o Norberto, meu parceiro de bancada, estava montando um circuito, quando o Midena, outro colega, sem perceber, ligou a força na bancada. O Norberto tomou um choque tão grande que o deixou branco. Jurou vingança, que não tardou... Um belo dia, chegamos na oficina e o Norberto havia tirado todas as baterias do armário, colocou-as em cima da bancada, e ligou-as em série. A princípio, com a desculpa de medir a voltagem total do conjunto de baterias. Colocou duas pontas de prova, uma em cada polo e quando o Midena passou, ele grudou as pontas de prova em seu braço. O choque foi tão grande que o Midena caiu deitado no meio do corredor, quase desmaiado. Essa “briga” entre os dois acabou fazendo com que o professor de educação física fosse “incumbido” de passar um corretivo nos brigões: 500 polichinelos. Colocou toda a turma em fila, com os dois brigões na frente, e mandou outros dois contarem os exercícios. Alertou que “não adiantaria roubar”, pois os dois teriam que acabar mais ou menos no mesmo tempo. Assim, se alguém roubasse na contagem e acabasse muito antes do outro, toda a turma teria que cumprir o castigo. Ainda bem que não roubaram, e o restante da turma foi poupado.
A educação física, a gente era obrigado a fazer, independente do tempo lá fora. Como eu havia jogado um pouco de vôlei no Ligabue – cheguei até a fazer parte da seleção da escola, ainda que como reserva – eu meio que implantei o vôlei nas aulas de educação física do Senai, e formamos lá um time, onde o melhor jogador era eu. Explico: ninguém lá já havia alguma vez jogado vôlei. Então, eu me destacava. No basquete, mesma coisa. O pessoal lá era mais da periferia, e o comum era que todo mundo sempre houvesse jogado futebol de rua, e não vôlei e basquete. Então, eu meio que me destacava como um bom jogador. Mas deixo claro, não era. O chato das aulas de educação física é que, além de acontecerem no período entre aulas, no meio da manhã, por exemplo, a gente era obrigado a tomar banho após as aulas. Até aí, todo mundo suado, supernormal. Mas acontece que o banho era gelado! Não haviam chuveiros quentes, e nos dias de frio a gente sofria.
Além da rotina puxada, a disciplina no Senai era muito rígida. Trocávamos de sala a cada aula. O professor ficava na sala, e os alunos é que mudavam de sala, diferente do que eu até então conhecia. Isso gerava um tumulto enorme nos corredores, com os alunos procurando suas salas, e a disciplina era então fundamental. Havia um professor que exigia que qualquer anormalidade nas carteiras de sua sala fosse logo comunicada a ele, sob pena de a gente ser responsabilizado pelo dano. Ou seja, se a gente chegasse na sala dele e a carteira estivesse rabiscada, por exemplo, deveríamos delatar o aluno da turma anterior, sob pena de sermos delatados pelo aluno da turma subsequente.
Quando a gente chegava no Senai, a primeira coisa a fazer era colocar a marmita no marmiteiro para que fosse esquentada para a hora do almoço. Haviam três ou quatro marmiteiros, cada um com uns 5 metros de comprimento: uma banheira gigante de aço inoxidável, cheio de água, onde, em banho-maria, as marmitas ficavam esquentando. Quem dava sorte ou chegava primeiro, pegava as beiradas, que eram os lugares mais disputados do marmiteiro, porque com o peso das marmitas, a parte do meio “cedia”, afundava, e invariavelmente entrava aquela água na marmita. Naquela época não existiam ainda os tais “tuperware”, as marmitas eram de alumínio, não eram totalmente vedadas, e por isso entrava água, se ficasse um pouco submersa. Às vezes, os mais espertinhos mudavam as marmitas de lugar, tirando a nossa da beirada e colocando a deles no lugar, deixando a nossa no meio. Na hora do almoço, a gente fazia fila e tentava achar nossa marmita no meio de centenas de outras. Então, valia tudo para torna-las diferentes. Cada uma tinha um desenho ou pintura chamativa, para que seu dono a localizasse rapidamente para sair também rapidamente da fila, e achar um lugar para sentar. Muitas vezes, ao abrir a marmita, a gente tinha alguma surpresa: ou havia entrado água, ou alguém havia roubado a mistura. Mas isso fazia parte do nosso dia-a-dia, e a gente acabava se acostumando.
Fiquei apenas um ano no Senai; larguei o curso ao terminar o primeiro estágio, que compreendia a parte básica de rádio e TV, pois como o curso não era complementar ao ensino médio, e eu estudava à noite, precisava começar a trabalhar num emprego decente pra ganhar uma grana. Então, graças a uns contatos do meu pai, consegui meu primeiro emprego na COPAS – Companhia Paulista de Fertilizantes, como “office-boy”. Como primeiro emprego, foi até, eu diria, interessante: Conheci e aprendi a andar por São Paulo, já que eu andava pela cidade toda, pois eu trabalhava justamente no departamento de expedição, onde um dos trabalhos era levar o malote do escritório central, na Rua Pedro Américo, na praça da República, até o departamento de Processamento de Dados, na Avenida Angélica, longe pra caramba... O malote de lona era invariavelmente pesado, pois era sempre cheio. Lembro que a primeira viagem, para \\\"aprender o serviço\\\", fiz junto com o Hirô, um japonês baixinho que conheci no escritório e me ensinou que a gente não precisava carregar o malote. Dava pra ir puxando ele, apesar de que dessa forma ele duraria no máximo um mês, pois ia arrastando no chão. Como ele era baixinho, era mais fácil para ele puxar do que carregar. Eu, como sempre fui alto, tinha que carregar, mesmo. Esse japonês acabou virando amigo. Descobri que ele morava no Jardim Brasil e a gente fazia parte do caminho de volta para casa juntos; além disso, estudamos juntos no Graco, e mais que amigo, acabou virando também cupido. Mas é uma outra história. Voltando ao malote: Saía da República, pela Vieira de Carvalho, descia o Largo do Arouche e pegava a Rua Jaguaribe passando pela Santa Casa até chegar na esquina com a Av. Angélica. Chegava lá exausto, pelo peso do malote. Às vezes, pra variar, eu ia pela Rua Marques de Itu, onde tinham algumas lojas de aquários, além da querida e saudosa Casa Aero-Brás, onde passei a comprar parte dos aeromodelos nos quais fiquei viciado, como citei anteriormente. Com o tempo, vieram as promoções na empresa: Da expedição, passei a ser “boy” da presidência, e aí minha vida ficou moleza: o presidente da empresa criava cavalos, e era eu quem ia comprar os remédios, vacinas e coisas para os cavalos dele: nunca mais fiz um caminho à pé: só andava de taxi, ou no máximo, ônibus. Minha vida passou a ser: frequentar o Jóquei Clube e o parque da Água Branca, sempre por causa dos cavalos. Às vezes, ao invés de pegar táxi, eu ia de ônibus, e usava a grana da diferença pra gastar nos fliperamas da Av. São João. Desse pedaço de São Paulo, guardo lembranças gastronômicas incríveis: Quando não levava marmita, eu ia comer lasanha no restaurante \\\"O Gato que Ri\\\", ali mesmo no Largo do Arouche. Não sei se continua a mesma, mas nunca mais achei uma lasanha tão gostosa, servida na cumbuca, com queijo gratinado por cima... Lembro também das coalhadas no \\\"Almanara\\\", na Vieira de Carvalho, que eu enchia de mel até não caber mais no copo. Na verdade, eu gostava mais do mel e a coalhada era só um pretexto. Tinha também o 49, o número do prato que a gente mais pedia num restaurante meio suspeito na Av. São João, o “Salada Record”, que existe até hoje. Ah, o prato 49 era filé de frango à parmegiana com arroz e fritas. Bons tempos, boas lembranças. Depois de mais uma promoção, fui para o departamento de cobrança, onde era responsável, primeiramente pelo arquivo, depois pela emissão de duplicatas de pagamento. Tenho muitas histórias da Copas, pois tinha uma galera legal lá, e fiz muitas amizades. Certamente será um capítulo à parte.
Mas contei esse história toda para chegar aqui: assim que me vi empregado, com registro em carteira e principalmente recebendo um salário, e como gostava imensamente de música, foi minha vez de intimar meu pai: num sábado de manhã, levei-o à Bruno Blois, uma loja de equipamentos eletrônicos na Rua 24 de Maio, no centro de São Paulo, perto de onde eu trabalhava, e comprei um receiver, um toca-discos, um tape deck e um par de caixas acústicas, tudo financiado para pagamento em um milhão de vezes no nome dele, já que eu era “menor de idade”. Foi minha realização como gente. Primeiro emprego, e eu já estava construindo um patrimônio, apesar do enorme carnê amarelo para pagar! Era um som forte, com uma batida poderosa. Havia, naquela época, um programa na rádio Antena Um, onde um apresentador inglês – não lembro mais o nome – trazia as tendências internacionais do mundo da música. Eu ficava de prontidão, e quando ele soltava a música, eu gravava em fita. Assim, eu estava sempre “antenado” com as tendências internacionais. E por isso, além do fato de eu ser um grande consumidor de discos e ter muitos, dos mais variados, acabei virando o D.J. oficial da turma da rua. Todo baile ou festa, eu era chamado para fazer o som. E o melhor: ganhando por isso. Excetuando-se as caixas acústicas, que foram se desmanchando com o passar dos tempos e sendo trocadas por melhores, tenho esse equipamento ainda funcionando até hoje, mesmo depois de mais de 40 anos!
Capítulo 11 –The Persuaders e as latas de marmelada
Como eu citei no começo do primeiro capítulo, a maioria das minhas melhores e mais antigas lembranças são do tempo da escola, mais especificamente da turma do Ligabue. Lembro de nomes e rostos, e posso citar o nome completo da maioria dos colegas que estudaram comigo, ao longo dos anos. Porém, minha primeira escola foi o Franklin Augusto de Moura Campos, na Major Dantas esquina com a Julio Buono. Comecei cedo, com 6 anos, já que completaria 7 em maio. Do Franklin, lembro até – acredite – do primeiro dia de aula, e de como minha mãe me acompanhou até a escola para me mostrar o caminho. Ela me deixou lá e enfatizou que para voltar era só seguir o mesmo caminho em sentido contrário. Não haviam avenidas movimentadas para atravessar, e a escola ficava a uns 5 quarteirões de distância. Então, foi tranquilo. De lá, lembro de alguns amigos e principalmente da minha primeira professora, dona Elisabeth, que todo mundo passou a chamar de gatinha, pois ela frequentemente usava um gorro que tinha a forma das orelhas de um gato. Lembro também da brincadeira que a molecada fazia na hora do recreio, época em que não havia lanche, mas praticamente um almoço. Era servido em pratos de louça onde se viam as iniciais em azul: PMSP – Prefeitura Municipal de São Paulo - e que a molecada lia como “Pobre Mendigo, Sempre Pedindo”. A gente tinha macarrão com salsicha, pão com manteiga, bolachas e leite com Toddy. Mas o que marcou mesmo foi a sopa de Feijão. Adorava, e sempre que a gente podia, repetia o prato. Ainda hoje gosto, com bastante molho de pimenta. Tínhamos na escola até um consultório de dentista, que alguns alunos frequentavam nas emergências. As campanhas de vacinação eram na escola, e a gente tomava vacina “de revólver”. De uma delas, assim como a maioria das pessoas, tenho a marca no braço até hoje. Naquela época, não havia preconceito, e como não canso de citar, eu era o “quatro olhos”, por causa – lógico - dos óculos. Mas tínhamos também o Palito, o Neguinho e o Salsicha, entre outros. Lembro de um amigo cujo nome completo lembro até hoje, o Neville, com o qual, apesar de haver procurado muito nas redes sociais, nunca mais tive contato. E nós dois nos chamávamos de “Persuaders”, por causa da série de TV com Tony Curtis e Roger Moore, que havia há pouco estreado nas tvs brasileiras e à qual eu não assistia, pois TV em casa não lembro se já tinha, nessa época. Mas o Neville era “rico”, eu achava. Até hoje não sei qual dos dois eu era: o Toni Curtis ou o Roger Moore. Provavelmente, por ser mais alto, eu era o Roger Moore.
O Franklin fazia fronteira, na parte de baixo com um córrego, e na parte de trás da escola havia um declive gramado, que a gente costumava descer montado em caixas de papelão, escorregando pela grama. A gente fazia isso inclusive nas férias escolares, quando então levávamos tábuas especificamente preparadas para esse fim. Entrávamos escondidos pelos buracos no alambrado, ou então pulávamos o muro do posto de gasolina vizinho à escola. Outras vezes, quando o mato estava alto, a gente fazia armadilhas no meio da trilha: Amarrávamos duas touceiras de mato, na parte de cima, e ficávamos esperando os moleques que vinham correndo enroscarem o pé nesse emaranhado, tropeçar e descer rolando a ladeira de grama... No córrego da parte de baixo, a gente costumava fazer “expedições”, pulando o muro da escola e percorrendo o percurso desde ali até a Julio Buono, beirando o barranco. Qual o sentido? Nenhum. Nunca achamos nada interessante, nem lixo, nem pneus usados. Os tempos eram outros. A dona Elisabeth foi minha professora no primeiro e no quarto anos, e lembro de uma ocasião em que ela reuniu toda a molecada da 4ª série numa parte da escola em que havia um tipo de “caixa de areia”, pegou três ou quatro moleques, eu entre eles, e mandou cavar pequenos buracos, fazer montinhos de areia, uns separados, outros próximos um do outro, valetas, essas coisas, tudo isso para nos introduzir à Geografia e relevo, numa aula super didática. Tanto que lembro disso até hoje. Naquela época a gente se conhecia e se chamava ou pelo sobrenome ou por algum apelido que “pegasse”. Sou chamado de Doutel pelos amigos da velha guarda até hoje. Fato curioso, havia no Franklin o Jarrão, um amigo que o destino separou mas acabou nos aproximando novamente: Numa bela manhã de sábado, depois de 50 anos, aparece na loja um sujeito com a esposa dizendo que havia mudado para Jarinu e precisava comprar uma antena. Nos apresentamos, ele me disse seu primeiro nome e fechamos negócio numa antena. Parti para outra tarefa, e a Rosângela - minha esposa –ficou fazendo o cadastro dele. Quando ele citou o nome completo, eu, ouvindo o sobrenome, tomei um susto e dei um grito: Jarrão? Ele, mais assustado que eu, arregalou os olhos e disse que havia muito tempo ninguém o chamava por esse apelido. Fizemos as apresentações e demos muita risada relembrando daquela época, e notamos o quanto o mundo é pequeno. Ele disse que não se lembra de mim, na escola. Mas eu lembro dele. Era um dos vilões dos “Persuaders”. Estamos novamente em contato.
Terminada a quarta série fui então para o Ligabue. Posso dizer que dei sorte, pois naquele ano acabara de ser revogado o “exame de admissão”, um tipo de vestibular para poder se matricular no ginasial, e pelo qual eu não precisaria passar, pois de acordo com meus irmãos e amigos mais velhos, a coisa era brava. Escola nova, novos amigos. Esses são um capítulo à parte, e vale dizer que a maioria da turma ainda mantem contato, graças à tecnologia e às redes sociais. No Ligabue cheguei a ter aulas de francês, na quinta série, e aprendi um pouco nessas aulas. Com o tempo e curiosidade, dei uma melhorada no idioma, e acabo me virando um pouco. Tínhamos também aulas de música, onde aprendíamos os conceitos básicos da pauta musical: mínima, semínima, cheia, colcheia, semicolcheia, entre outras nomenclaturas das quais nem me lembro, pois, como disse, uma grande frustração é não ter nunca conseguido aprender a tocar um instrumento. Mas lembro que nas aulas de música, a gente teve, uma vez, que formar uma “banda” musical, onde nós mesmos tínhamos que fazer nossos instrumentos. O mais comum era o pandeiro, que era feito com uma lata de marmelada e tampinhas de refrigerantes cuidadosamente desamassadas uma à uma e com um furo no meio, pelo qual a gente passava um arame e amarrava na lateral previamente cortada da lata de marmelada. Outros faziam tambores com baldes, tendo inclusive o cuidado de inserir alguma mola no interior, para produzir maior vibração. Cheguei a fazer um afoxé, um tipo de chocalho com casca de coco seco rodeado por contas amarradas com arame. No dia da apresentação, ficávamos todos os componentes da banda – eram várias por classe –enfileirados lado a lado no palco, todo mundo sem graça e morrendo de vergonha, executando a música escolhida para uma audiência extremamente exigente: os outros alunos. Se isso era divertido, havia a contrapartida: éramos também obrigados a decorar o Hino Nacional, da Bandeira, da República, do soldado e o que mais houvesse. Tínhamos a temida “chamada oral”, quando a professora botava a gente na frente da classe e mandava recitar algum trecho de algum hino específico. E ai de quem não soubesse. Era zero. Lembro de uma vez em que o Mané, grande amigo, foi chamado numa dessas ocasiões. Ele é Venezuelano, havia chegado há poucos anos no Brasil, e na hora de recitar o hino, não sabendo, justificou dizendo que a pátria dele era a Venezuela, e que se ela quisesse, ele cantaria o hino de lá. A professora deu-lhe a maior reprimenda (na época era reprimenda. Hoje seria “esporro”), e disse que “Pátria é a terra que nos acolhe”. Essa frase ficou gravada em minha memória, e acho que na dele também, pois hoje vejo-o como um grande patriota. Ah, sim... graças a ela, lembro até hoje da maioria dos Hinos Nacionais. Com a mudança de grau, vieram também novas matérias, que hoje nem constam mais do currículo escolar: Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica, por exemplo. Outra da qual me lembro era “técnicas comerciais”, onde a gente aprendia desde o preenchimento de cheques até leis alfandegárias. Matemática para mim era um suplício. Tanto que meus pais chegaram a contratar, no período de provas, uma vizinha para me dar “aulas particulares”, pra que eu não levasse bomba no final do ano. Acho que o suplício foi maior para ela do que para mim... Hoje me dou bem com a matemática. Nessa época e meio sem querer, aprendi uma forma bem legal de estudar: movido talvez pela preguiça de escrever, e como eu tinha um gravador, eu lia a matéria ao microfone para ficar ouvindo depois e assim “decorar” a matéria. Porém, só o fato de estar lendo e tendo que prestar atenção ao que lia, já que estava sendo gravado e não poderia conter erros, permitia que eu assimilasse, sem perceber, o assunto em minha mente, e acontece que eu passei a me dar muito bem nas provas. Claro que não funcionava com as ciências exatas, mas as matérias de humanas e biológicas tirava de letra. Talvez por isso sempre fui muito bem nessas duas áreas. Lembro do professor Élcio, de ciências que, naquela época, já havia feito uma adaptação na sua Variant para rodar com gás de cozinha. Um cara muito além do seu tempo. Mas o que eu gostava mesmo era das aulas de inglês, que na sexta série, substituíram as de francês. Gostava primeiro, porque a professora era muito gata, e todos os moleques eram apaixonados por ela. Talvez por ela ser gata, a gente prestava muita atenção à sua aula. Depois, porque eu gostava de música - mas como eu dizia: de MPB: Música Popular Britânica – e tinha a maior vontade de traduzir as letras. Então, me identifiquei bastante com o idioma. Infelizmente o ensino público não era lá grande coisa, e tempos depois tive que me virar por conta própria, para aprender o pouco que sei.
Capítulo 12 –Mantoux, cigarros e chuva de papel
No ano seguinte, sexta série, a turma era outra: Márcio, Valdir, Maria Luiza, Maria Helena e Tania, que era namorada do Valdir. Tinha também uma outra garota, com a qual ainda tinha algum contato, ainda que distante, pelas redes sociais e que, após publicado este capítulo na internet, me mandou uma mensagem exigindo que seu nome não seja citado. Portanto, este capítulo foi pós-editado. Eu, confesso, era inocente, ingênuo, até bobinho, e essa turma era mais \\\"madura\\\", acho até que eram uns dois anos mais velhos, e tinham bem mais malícia que eu. A gente andava junto, fazíamos trabalhos em grupo juntos e, como eles eram mais maduros e tinham mais \\\"experiência\\\", com eles fui aprendendo tudo o que não presta: a gente cabulava aula pra fumar escondido atrás da quadra e pulava o portão para matar aula. O Valdir é quem trazia os cigarros, e a gente achava legal e moderno fumar. Minha iniciação como fumante data daquela época graças a essa turma. Lembro que ele era bastante desrespeitoso com os mais velhos, principalmente com os funcionários da escola. Eu não estava acostumado com isso, pela educação que tivemos em casa. Desse período e desse pessoal não tenho muitas lembranças, exceto que namorei um tempo com a Marilu, e como ela era bem mais madura que eu, o negócio não deu certo. Acho que ela esperava algo a mais de mim, algo que eu ainda não conhecia, dada a minha inocência (sabem a que estou me referindo...). Lembro também de uma vez em que a gente ia fazer uma das muitas reuniões de trabalho em grupo, desta vez na minha casa, e nessa época minha mãe criava canários. Ela tinha um monte de gaiolas, e algumas delas ficavam na parede da escada que dava acesso ao \\\"quarto das bagunças\\\", na parte de cima da casa. A galera chegou toda junta, e na hora de subir, aquela que eu não posso falar o nome esbarrou com as costas numa gaiola, que não chegou a cair do suporte, mas virou em cima dela e ela acabou tomando um banho de água de passarinho misturado com alpiste e cocô. Minha mãe correu pra acudir, primeiro os passarinhos, depois a moça.
Graças às bagunças e cabuladas de aula, acabei repetindo a sexta série. Acho que boa parte dessa turma também repetiu, mudou de escola ou foi para o período noturno, pois perdemos contato geral. Apenas aquela que eu não posso citar o nome caiu de novo na minha turma no ano seguinte. Nem agora, nas redes sociais, consigo encontrar nenhum deles. Acho que com a repetência, fui meio que “abençoado”. Percebo hoje que, com aquela turma, o negócio ia “dar ruim”. Estava indo muito pro mau caminho. Acredito que foi uma forma do universo me botar de novo no caminho certo. Digo isso porque, no ano seguinte, conheci uma galera especial, com a qual ainda mantenho amizade, mesmo após mais de 40 anos. E é dessa galera que tenho as maiores e mais gostosas lembranças. Especialmente dos dois grandes amigos e companheiros de aventuras, com os quais me iniciei na “vida adulta”: Mané e Chacrinha. A gente andava sempre junto, estudávamos juntos, íamos e voltávamos da escola juntos, saíamos junto, ou seja, fazíamos tudo junto, tanto que meu pai sempre se referia a nós como “três pés de uma tropeça”. Tropeça é um banquinho típico português, com três pés, ao invés dos quatro normais. Portanto, se você tirar um dos pés, o banco cai. Ele nos via assim: inseparáveis. Lembro que o Mané gostava de provocá-lo, fazendo perguntas “indiscretas”, como masturbação ou sexo antes do casamento, e meu pai, muito religioso, tentava explicar as coisas de uma forma bem catequética e dentro da doutrina católica.
Nessa época, o pai do Mané tinha um bar na Rua do Gasômetro, no Brás, e me lembro que de vez em quando, a gente ia lá pra “ajudar”... Eu ajudava tomando guaraná com limão, e lembro até de uma vez em que quebrei o espremedor ao usa-lo. Era divertido ir lá, pois a gente conhecia gente diferente. Ele tinha também uma Variant, que de vez em quando o Mané pegava escondido pra gente dar umas voltas. Mas o legal era o carro do tio dele: um Charger modelo RT, amarelo com capota preta. Coisa mais linda. De vez em quando, ele levava a gente pra dar umas voltas. Numa dessas vezes, o Mané tinha arrumado um dispositivo que fazia um barulhinho, um tipo de um “clec” ao ser pressionado. E dessa vez, ele foi sentado na frente, no banco do carona, mas com o braço e o dispositivo pra fora do carro. Quando o carro começava a andar, ele começava a fazer o barulho, tendo o cuidado de sincronizar os “clecs” com a velocidade do carro. Quanto mais rápido ia o carro, mais “clecs” o Mané fazia. O tio parava o carro, descia pra olhar, e nada. Voltava a sair com o carro, e o Mané voltava com o barulho... Parava, descia, procurava, e nada... E isso durou um tempão, até a gente não aguentar e cair na risada, revelando o trote. O tio ficou tão bravo que quase largou a gente no meio da rua.
Como o Mané ia de vez em quando trabalhar no bar do seu pai, ele conhecia a cidade melhor que a gente, e todo sábado à noite a gente saía pra dar umas voltas no centro de São Paulo, com ele como guia. Geralmente íamos ao cinema, assistir a algum filme proibido. Eu e o Mané temos a mesma idade, separados por alguns dias, e tínhamos naquela época, carteiras de identidade falsificadas, para podermos nos passar por maiores de 18 anos. Geralmente a gente entrava sem ser barrado. Mas o Chacrinha, que era mais velho e maior de idade, porém baixinho, era sempre barrado na entrada. Depois dos 18 anos, esse negócio de filmes proibidos acabou perdendo a graça, pois a gente podia entrar sem aquela adrenalina de ser descobertos... Na volta, já tarde da noite, invariavelmente parávamos no largo do Paissandu, onde tinha uma pastelaria, suja ao extremo, cujo dono era chinês e fazia um pastel muito suspeito – era a época em que saiu o boato do pastel feito de Bonzo – uma ração de cachorro – e ainda assim, a gente comia lá. Na saída, sempre perto da meia noite, antes do metrô fechar, a gente pegava um bolo de guardanapos de papel, e de cima do Viaduto Santa Efigênia, jogava os guardanapos lá embaixo, na praça do correio, fazendo uma chuva de papel. Os garis que faziam a faxina lá embaixo ficavam fulos com a gente, e vinham atrás pra nos pegar. Mas como eles tinham que dar a volta no prédio do correio pra chegar em cima do viaduto, nunca conseguiam. Quando chegavam, a gente já tinha entrado na Estação São Bento pra voltar pra casa.
Nessa época, o Chacrinha já era fumante. Havia aprendido a fumar com seu irmão mais velho, e como ele era dois anos mais velho que eu e o Mané, a gente achava que fumar fosse um troço legal, que nos dava uma aparência de mais velhos e “descolados”. Quando a gente saía, geralmente filávamos os cigarros do Chacrinha. Até que percebemos que isso não era legal, e passamos então a comprar cada um seus cigarros. Triste decisão, pois o que era zoeira passou a ser vício, do qual sou dependente até hoje. A gente voltava pra casa, e como a do Chacrinha era a primeira, a gente parava pra conversar no portão. Ele morava na Major Dantas, em frente ao Largo do Machado, onde tinha uma árvore muito grande. E um belo dia, numa dessas paradas, resolvemos não sei por que, subir na árvore e ficar conversando lá em cima. Devia ser por volta de umas duas ou três da manhã, a gente em cima da árvore, e de repente chega uma viatura de polícia e para embaixo da árvore. Os policiais ficaram alguns minutos dentro da viatura, e quando saíram, acho que pra dar uma esticada nas pernas, ouviram a gente conversando lá em cima, e aí, já viu: tomamos o maior enquadro dos policiais. Explicamos que o Chacrinha morava ali em frente e fomos liberados, não sem antes tomar uma “dura” e mandados cada um pra sua casa. Um tempo antes de começarmos a ir para a cidade, a gente – como já citei num capítulo anterior – saía de bicicleta. Nós matávamos aula, e íamos, cada um com sua bike, jogar bola nas Palmas do Tremembé, que era um bairro meio “descampado”, acho que um loteamento recém-implantado, pois não havia casas, só as ruas asfaltadas e os terrenos. Havia uma praça central que era toda gramada, a chamada “Praça das Macumbas”, onde a gente ficava jogando bola. Eu, Mané, Chacrinha, Mingão e Edu. O Edu tinha um chute forte, e lembro de uma vez, eu no gol, em que ele quase quebrou minha mão, quando defendi um chutaço dele. Outras vezes, saíamos à pé pelas avenidas do bairro, e lembro que a primeira vez em que eu comi um churro recheado com doce de leite, foi o Mané quem pagou, na Avenida Tucuruvi. Ele já conhecia das suas andanças pela cidade, garantiu e insistiu tanto que era gostoso, que acabamos provando. E era bom mesmo. E com ele pagando, ficou melhor ainda.
Mas a vida não se resumia só a isso: havia mais pessoas na turma, e eu adorava passar algumas tardes na casa do Pedrão, ouvindo Beatles. Lembro do Cláudio, um japonês que morava na Major, em cuja casa eu ia pra fazer alguns trabalhos escolares que sempre terminavam com a gente ouvindo música. Lembro que o pai dele tinha um aparelho de som muito legal, e foi a primeira vez que tive contato e conheci um fone de ouvido. Ele me botou aquilo na cabeça e aumentou o volume. Depois, começou a falar comigo. Eu respondia e ele fazia sinal com as mãos, e eu não entendia. Aí, tirei os fones e ele disse que eu estava gritando. Lembrando que a família dele era japonesa, super tradicional, e os gritos pegaram mal pra caramba...
No Ligabue, cheguei a fazer parte do conselho de classe e, como representante de classe, participei uma vez de uma festa junina, trabalhando na barraca de pastel. As festas juninas do Ligabue eram um caso à parte: mobilizavam todo o bairro, e a afluência de público era muito grande. As barracas eram montadas no pátio coberto, o mesmo pátio onde a gente formava fila e cantava o hino nacional antes da entrada. A escola ficava lotada de gente e até a rua da escola ficava parcialmente interditada, tamanho o público e o movimento de pessoas chegando e saindo. E foi numa dessas então, que trabalhei na barraca de pastel, junto com a Dona Arlete, que era Diretora e com a mãe da Bárbara, que era da APM da escola. A memória é uma coisa fantástica, pois lembro que nesse dia eu havia cortado o cabelo, e não sei por que, chegando em casa, dei um talho com gilete num tufo de cabelo, bem no alto da testa. O troço ficou feio, e nesse dia, fiquei o tempo todo fritando pastel de boné pra esconder a cagada. O disfarce serviu direitinho, pois eu dizia que estava usando boné por questões higiênicas. Usei o tal boné higiênico até o cabelo crescer de novo.
Havia também as aulas de educação física, às quais a gente inventava sempre uma desculpa para não frequentar. A mais usada eram “unhas encravadas”. Lembro que eu usei bastante, mas o Mané realmente tinha as unhas do pé muito feias, e geralmente encravadas. Assim, ele quase sempre era liberado. O professor Carlos, de educação física, de quem a gente gostava muito, era mais que um professor: era nosso amigo e conselheiro. Sempre que alguém tinha algum problema, ia falar com ele, e geralmente era bem aconselhado. Ele era tão legal que até cabulava aula com a gente. Um belo dia, ele apareceu no vestiário com dois pares de luvas de boxe. E botou a gente pra lutar. Lembro que lutei contra o Chacrinha, nesse dia. Primeiro e único round, tomei um direto de direita no meio da cara que me deixou tonto. Parti para o revide, com um gancho de direita, do qual ele se esquivou na ida, mas voltei o golpe com braço aberto e o peguei na volta, com as costas da luva. Não sei o nome desse golpe, mas ficamos quites, pois ele também bambeou. Nessa época, o professor Carlos resolveu formar uma equipe de atletismo na escola. E formou os times de salto em distância, salto triplo, corrida, etc. Se não me falha a memória, o Edu fazia parte da equipe de salto triplo, junto com o Chacrinha e o Eder. Foi nessa época, também, a formação das equipes de vôlei e basquete, e foi quando comecei a jogar. Fazia parte do time principal, mais pela altura do que pela habilidade, e lembro que, no torneio municipal intercolegial, nossa escola foi campeã. Mas nunca cheguei a levar o vôlei a sério. Acabou ficando só nisso mesmo, e só por causa dessa pequena experiência no Ligabue que levei o vôlei para o Senai.
Houve também a fase do Clube do Jardim São Paulo – um clube da prefeitura com quadra e piscina que nossa gangue passou a frequentar. Algumas vezes, a gente ia de ônibus, pois era longe. Outras vezes, íamos de bicicleta. Depende da turma que ia. Quando era a turma das palmas, era bicicleta. Quando havia mais gente, íamos de ônibus. Mas para frequentar o clube, era necessário ter o “atestado médico”. O Edu morava na Vila Nivi, bem em frente ao posto de Saúde. Então, a gente ia lá pra pegar os atestados. E, além disso, era preciso ter a temida prova de “Mantoux”, para saber se alguém tinha tuberculose. A gente chamava de vacina, mas era um teste intra-dérmico, aplicado no antebraço, e era feito no próprio clube, toda vez que a gente ia. E como ardia, essa mantoux... Mas a gente tinha que fazer, senão nada de clube. Essa fase do clube não durou muito: era longe, burocrático, e tinha que tomar a “vacina” toda vez que íamos lá... Além do mais, tínhamos nossos passatempos no próprio bairro, e já nos bastava.
Capítulo 13 – Um fusca meio suspeito, uma despedida e algumas explosões
Num belo dia de 1976, eis que aparece o Luiz Cesar, um dos colegas de classe, com um fusca! Todo faceiro, disse que o fusca era dele, que havia comprado. Que maravilha! Passamos a cabular aula para andar de fusca. Juntávamos umas moedas, pois a gasolina naquela época era barata, e íamos, prá variar, pras Palmas ou para o Horto Florestal. Acho que ele nem tinha carta de motorista: éramos todos moleques e ele era só um pouquinho mais velho que a gente. Enfim, o que valia era a farra. E o Luiz César ficou com esse fusca um bom tempo, e aproveitamos bastante. Mas lembro de uma ocasião em que ele ficou doente, e ficou uns dias sem aparecer na escola. E depois de uns dias, achamos o carro dele aberto, estacionado numa vilinha, travessa da Tanque Velho, perto da igreja São Camilo. Preocupados, achando que houvesse sido roubado ou coisa parecida, fomos então à casa dele saber o que houve e avisar que o carro estava aberto. Chegamos lá e ele não estava, então falamos com a mãe dele que, surpresa, perguntou com um grito: “Que carro?”... Foi aquela saia justa... Ela não sabia de nenhum carro. E ficamos enrolando, tentando contornar a situação, para tentar “livrar a barra” dele... Ele deve ter feito algum rolo com aquele carro, e provavelmente nem era dele, já que a própria mãe não sabia de sua existência. Quem, com menos de 18 anos, compra um carro sem a mãe saber? E pior: quem compra um carro e deixa ele aberto, estacionado à várias quadras de casa? Até hoje não descobri a verdadeira história do fusca.
Outra história relacionada a carros diz respeito à uma das professoras da oitava série, que por algum motivo do qual não me recordo, estava indo embora da escola. Ela era muito querida, e resolvemos fazer uma surpresa de despedida: No seu último dia de aula, arrumamos uma caixa de giz, e com giz molhado, para não danificar a pintura, cada um escreveu uma dedicatória NO CARRO da professora, que ficava estacionado em frente à escola, na rua. Cobrimos inteiramente o carro dela de giz, cada um escrevendo algo. Então, enquanto ela estava na sala de aula, na última aula dela na escola, que era exatamente na nossa classe, o Luiz Cesar entrou esbaforido – grande ator – dizendo que havia acontecido uma tragédia, e que ela deveria ir lá fora verificar o estado do carro... Ela então saiu correndo da sala, com toda a galera atrás. Quando ela chegou no carro e viu aquilo, não se conteve e começou a chorar de emoção. Todo mundo então correu para abraça-la. Esse episódio foi muito emocionante e ela disse que se lembraria da nossa turma para sempre. Depois da emoção, o próprio Luiz César se dispôs a levar o carro dela no posto para lavar. E levou.
Eu já mencionei minha frustração por não saber tocar nenhum instrumento. Mas não foi por falta de tentativa. Havia o Josué, um cara extremamente paciente, que também estudou comigo e um belo dia resolveu que iria me ensinar a tocar violão. Ele morava na atual Rua Camateí, quase na esquina da Major e eu estava sempre na casa dele, geralmente aprontando alguma travessura. Um dia cheguei lá, e ele estava tocando piano. Fiquei impressionado, e comentando com ele, ele se dispôs a me ensinar violão. Ele aprendera sozinho; disse que como havia tomado aulas de piano, o violão veio fácil. E assim decidimos. Começou a tentar me ensinar, mas não havia jeito de eu aprender. Até hoje tenho essa dificuldade. Mas naquela ocasião, o motivo era que a gente sempre terminava nossas aulas fazendo alguma arte ou alguma coisa que explodisse. Lembro que chegamos a fazer um negócio que a gente chamava de “nitroglicerina” – lógico, não deveria ser. Jogávamos glicerina e permanganato de potássio numa latinha de pomada, fechávamos a latinha e depois de um tempo a latinha explodia. Adorava essas experiências. Outra vez, conseguimos um pouco de carbureto. Achei que seria fácil fazer algum tipo de maçarico, só pra ver a chama saindo do bico. Para isso, tinha que usar o que estivesse à mão. Então, não tendo outro material, tive a brilhante ideia de usar um vidro pequeno – um vidro! - de palmito como recipiente, tampado com um daqueles cones de papelão, que antigamente era usado como base para rolo de barbante. Esse cone tinha um furo, e eu achei que daria certo: o carbureto produziria gás, que sairia pelo furo com pressão suficiente para formar um jato. Feito. Coloquei as pedras de carbureto no vidro e pré-preparei o cone com fita adesiva, deixando pronto para colar no vidro assim que colocasse água. Adicionamos água e na sequencia fechamos com o cone e a fita adesiva. Logo em seguida, acendi o bico do cone. Ainda bem que eu uso óculos, porque o troço explodiu. Do vidro, não sobrou nada. O cone subiu uns tantos metros – muitos - de altura, e caiu do meu lado. Minha cara ficou toda furada, com os cacos de vidro, e as pedras de carbureto desapareceram. Assim que as pernas pararam de tremer, tomamos ciência da besteira que fizemos. Graças a Deus nada de pior aconteceu, mas poderíamos ter ficados cegos, com os cacos de vidro no olho. E a gente gostava dessas coisas “perigosas”.
Numa outra vez, descobrimos como fazer pólvora: bastava misturar salitre, enxofre e carvão. Nunca soube se essa é mesmo a composição da pólvora, nem se chega a ser explosiva, pois nunca tivemos coragem de comprimir a mistura, mas o fato é que o negócio pegava fogo mesmo. Aproveitando esse expertise, certa vez, para participar de uma feira de ciências da escola fiz um vulcão. Usei uma base de madeira na qual eu modelei, em papel machê, uma montanha, tendo o cuidado de deixar um furo no centro, onde eu embuti uma lata de extrato de tomate elefante, muito comum na época. Arrumei também um pouco de cimento, e com a modelagem ainda molhada, pulverizei cimento em pó sobre a escultura, o que lhe conferiu uma resistência além do esperado. Pintei como se fosse uma cobertura de mata nativa, com vários tons de verde e marrom. Naquela época eu já manjava um pouco de desenho, então a pintura foi a parte mais fácil. Tudo pronto, levei para a escola, pois antes da feira a diretora fazia questão de pré-aprovar o projeto, e queria ver o negócio funcionando. Com o cimento, o troço, que não era pequeno, havia ficado bem pesado. Deu trabalho pra levar pra escola. No Ligabue, na entrada “de cima”, após subir as escadas, a porta ficava à direita, e na frente dela havia um tipo de um jardim gramado que era mais ou menos um metro mais alto que a calçada. Com uma bela plateia reunida, coloquei ali o vulcão, enchi de pólvora e taquei fogo. Para ser sincero e modéstia à parte, foi bem bonito: como a mistura não estava na proporção certa, um dos elementos, acho que era o enxofre, começou a derreter e a escorrer pelas laterais do vulcão enquanto o centro pegava fogo e soltava fumaça. Ficou igualzinho lava. Além disso, houve muita fumaça, que invadiu toda a parte de cima da escola. Resultado: aprovado, e pude participar com meu projeto da feira de ciências, na qual ganhei um 10 com louvor. A feira acontecia no páteo coberto, na parte de baixo da escola, e lembro que tive que fazer um cronograma com os horários das erupções, que diga-se de passagem, mobilizava muito público. E a cada erupção, enchia a escola de fumaça. Lindo! E o vulcão ficou bem resistente mesmo, pois aguentou toda a feira. Ainda, depois de terminado o evento, levei-o para casa, e não tendo onde nem porque guarda-lo, tive que destruí-lo. Coisa que não foi fácil. Tive que usar até um martelo para poder quebra-lo antes de jogar fora. Do Josué, lembro também das vezes em que havia alguma briga na escola. Geralmente, as turmas se “juravam” na saída das aulas, e era aquele rebuliço na rua. Uma turma esperando outra pra brigar. Mas o Josué não era de briga. Um cara muito certinho pra ser brigão. Em compensação, corria pra caramba... e geralmente quando alguém arrumava as tretas e ele estava envolvido, na hora do vamos ver era o primeiro a correr e era o que corria mais rápido... É outro do qual não tive mais notícia, apesar das tentativas de contato.
Capítulo 14 –Zezinho e os escorregadores
Depois que o nosso vizinho Sr João, aquele que era o ”médico” da vila se mudou, a casa foi vendida, e mudou-se para lá uma nova família, um casal com um casal de filhos. Sempre tivemos a desconfiança de que o Sr. João, por ser alemão, era algum tipo de médico do regime nazista que estava escondido no Brasil, mais especificamente na casa do lado da minha. Ele era manco de uma perna, usava bengala, e dizia que aquilo era ”ferimento de guerra”. Isso já levantava suspeitas, mas a gente nem ligava, pois até onde me lembro, ele era muito bonzinho e amável com todos. Quando ele morreu, meu pai acabou descobrindo que o nome dele não era João. Só que nenhum de nós nos lembramos mais do nome verdadeiro. Isso faz muito tempo, e acabou não tendo nenhuma importância, se ele era ou não era foragido ou escondido. A única coisa que ficou foi essa incógnita.
Por outro lado, a família nova que mudou-se para a casa ao lado era bem diferente, e logo fizemos amizade com o Ricardo, que passou também a fazer parte da gang. Como nossas casas eram coladas, separadas por um muro baixo, esse muro virou local de acesso entre as casa, e quando a gente não passava de uma pra outra, ficávamos em cima dos muros conversando e brincando. Na entrada da porta da frente da casa do Ricardo havia uma escada, com uns cinco ou seis degraus, e eram ladeados por duas guarnições, uma de cada lado, como se fossem corrimãos, só que bem baixos, e eram cobertos por ladrilhos. Agente fazia aquilo de escorregador. E por falar em escorregador, na nossa casa, com a última reforma, foi criada a varanda da frente que também era coberta por piso de cerâmica. E lateralmente na casa, do lado direito de quem entra, um corredor também com piso de cacos de cerâmica, muito comum nos anos 70, corredor esse que dava acesso à parte de trás da casa e à escada para o quarto de bagunças. Quando chovia ou a mãe estava lavando esse pedaço, a gente jogava sabão nesse corredor e na varanda e eles viravam um escorregador: a gente ia lá no fundo perto da escada, pegava embalo e vinha escorregando até o portão da frente, geralmente de joelhos. Entre a varanda e o corredor, havia um portão, e embaixo desse portão havia um degrauzinho, coisa de 2 centímetros, que a gente devia evitar ao escorregar, principalmente se fazíamos isso de joelhos, correndo o perigo de arrancar as tampelas, pois o degrau tinha um ângulo vivo, e o pedreiro não havia desbastado o canto, então aquilo meio que virou uma faca. Mas a gente sempre conseguia pular. Vinha escorregando, e chegando perto, dava um impulso pra cima, de modo que os joelhos não pegassem no fatídico degrau. Até o dia em que o Ricardo, vindo escorregando de pé, acho que se esqueceu do degrau, deu uma topada e caiu de boca no chão, na varanda. Quebrou os dois dentes da frente nessa brincadeira, além de rachar também o queixo.
No quesito acidentes, outro que lembro foi com o Rafa, meu irmão. Na casa do Kazuo tinha uma mesinha na varanda, com alguns pneus em cima. O quintal era cimentado, e a gente costumava jogar bola ali. Numa dessas partidas, a bola caiu dentro dessa pilha de pneus. O Rafa então foi pegar a bola, e ao tentar subir na mesinha, acabou escorregando com o pé, e a coxa acabou “deslizando” pela beirada da mesa, onde havia um prego. Resultado: um rasgo considerável na parte interna da coxa, feito pela cabeça do prego. Aquilo sangrava horrores, e como a gente morria de medo da surra da mãe, eu lembro que corri em casa, peguei um rolo de esparadrapo e meio que “remendei” a perna dele. Lógico que quando ele entrou, a mãe viu o ocorrido, mas como já havia sido “tratado”, acho que só fez um curativo. Além, é claro, do tratamento com o fatídico “mertiolate”, o terror de todas as crianças. Fato é que, até onde me lembro, ele ainda tem a cicatriz na perna para confirmar a história.
O pai do Ricardo, sr. Flávio, tinha um Volksvagen TL, no qual eventualmente levava a gente pra passear aos sábados. Geralmente íamos eu, o Rafa, o Kazuo e Ricardo no Horto Florestal, onde a gente passava a tarde. Lembro de um episódio bobinho, mas que ficou na lembrança – apenas para mencionar como a memória da gente é impressionante: Num desses passeios, lembro que vínhamos de carro numa descida numa rua do bairro, e à frente do carro haviam duas meninas andando no meio da rua, meio distraídas. O sr. Flávio deixou o carro, que estava em “ponto morto”, chegar bem pertinho das duas e em vez de buzinar, botou a cabeça pra fora e deu um baita assovio. Ele disse depois que não havia buzinado pra não assustar as meninas, mas acho que o susto foi maior com o assovio. Elas deram um pulo direto pra calçada, e a gente, incluindo ele, riu muito. Outro vizinho que tinha carro, isso antes do Ricardo haver mudado pra vila, era o sr. Domingos. Ele morava na casa do outro lado da nossa e tinha um fusca vermelho. Lembro que, quando a gente estava jogando bolinha de gude ou brincando com os Matchbox em frente de casa - e a gente jogava e brincava até escurecer - ele chegava com o carro e deixava-o na rua com os faróis acesos pra iluminar nosso campo de jogo ou nossa pista de corridas. Até uma vez em que fez isso e deve ter esquecido os faróis acesos por muito tempo e o carro ficou sem bateria. Depois disso, acabou a iluminação artificial no nosso estádio.
Outra de quem me lembro era a Dona Maria, cujo marido, Sr. Osvaldo devia trabalhar com vendas, e moravam na última casa da viela. E por ser a última casa, fazia divisa com o terreno dos sobrados, na rua de cima, com um muro que a gente pulava pra acessar o terreno. Das vendas do Sr. Osvaldo, só lembro que ele vendia chaveiros, ou era representante comercial de alguma fábrica de brindes, que naquela época eram em forma de chaveiros. Se vendesse outra coisa, eu desconhecia. Eu gostava mesmo era dos chaveiros. E quando a gente ia na casa deles -e a gente sempre ia, pois a minha mãe era amiga da dona Maria, ficávamos encantados com a quantidade e a variedade de chaveiros que ele tinha. Às vezes ele dava alguns com defeito de fabricação pra gente, e como não estávamos acostumados com brinquedos industrializados, era uma alegria. Lembro também que a dona Maria só me chamava de “Zezinho”, e até hoje não descobri o motivo. Acho que ele nunca aprendeu meu nome ou talvez pela idade, não se lembrasse dele. E todo problema que ela tinha, vejam só, desde aquela época, com a televisão e a antena por exemplo, ela chamava o “Zezinho” aqui pra arrumar. Eu devia ter uns dez anos, acho. Lembro de várias vezes em que fui na casa dela arrumar a antena, que na época era presa num cano altíssimo, e a gente tinha que ficar virando para achar a melhor recepção. A dona Maria e o Sr. Osvaldo tinham três netos, com os quais a gente também brincava e que, pelo período em que moraram lá, também fizeram parte da gang. Mudaram-se, e nunca mais tivemos contato.
Capítulo 15 – Vaca na estrada e um quase naufrágio
Um belo dia, lá pelo início dos anos 80, eu voltava do trabalho para casa, numa sexta-feira. Havia passado na Breno Rossi, na Rua 24 de maio, onde comprei o LP com os “Greatest Hits” dos Monkees, e não via a hora de chegar em casa para ouvir o disco. Naquela época eu já era aficcionado por música, e sempre que possível, no dia do pagamento, comprava um ou dois discos para ampliar minha discoteca. Esse, especificamente, não era lançamento, visto que o conjunto nem existia mais. Porém, eu me lembrava dos episódios da TV, e gostava das músicas deles. Esse LP dos Monkees, tenho até hoje. Mas naquela tarde, quase chegando em casa, passando em frente à casa do Zé Roberto, que era no mesmo quarteirão da minha, vi que havia ali um agito diferente. Ele, seu irmão João, seu primo Téio e o Toninho, amigo do João, estavam se preparando para ir acampar em Boiçucanga. Me convidaram de supetão pra ir também, e eu topei. Corri pra casa, guardei com cuidado o disco, peguei uma muda de roupa, botei numa mochila e voltei lá. Joguei a mochila dentro da Brasília do Toninho, que nessa altura já estava com o porta-malas e a tampa traseira cheia de bagagem e mantimentos para o acampamento, incluindo as barracas. Acrescentamos, então, mais a minha mochila, e fomos embora. Já havia escurecido quando saímos, e nem lembro qual caminho foi feito, mas a certa altura, depois de mais de uma hora de viagem, estrada deserta e o Toninho dirigindo devagar, pois acho que não enxergava direito à noite, eis que de repente o farol da Brasília ilumina um grande vulto no meio da estrada, e de repente uma vaca aparece na frente do carro. Ainda bem que estávamos devagar, pois não dando tempo de frear completamente, a vaca acabou sendo atropelada e foi parar em cima do porta-malas da Brasília. Felizmente, foi só um susto mesmo: ela caiu em cima do carro, e depois levantou e saiu andando como se nada tivesse acontecido. O susto maior foi pra gente. Lembro que em cima de toda a bagagem que estava na tampa traseira, havia uma caixa de ovos que, com a freada e a batida, caiu em cima do Téio, que assim levou algumas ovadas na cabeça. Passado o susto, sem maiores traumas tanto pra nós como pra vaca, tocamos viagem. Estávamos tão devagar que o carro nem chegou a amassar.
No caminho, antes de chegar ao destino, e não sei por que cargas d’água, tivemos que pegar uma balsa para atravessar alguma coisa. Nunca fui fã de praia, e quem usa óculos sabe o motivo: a maresia deixa-os constantemente embaçados. Por isso, nunca me familiarizei com o caminho para as praias, e fico meio perdido quando o assunto é algum caminho em direção ao litoral. Não posso nem imaginar qual caminho foi feito naquele dia que exigia uma balsa. Mas o fato é que embarcamos na tal balsa pra chegar até Boiçucanga. Lembro que fomos uns dos primeiros a embarcar, e por isso a Brasília estava na frente da balsa; por conseguinte, seriamos uns dos primeiros a desembarcar. Do lado direito, uma Toyota Bandeirante, quase um trator, e do esquerdo um carro de passeio, talvez um opala, não lembro ao certo. Quando chegamos ao destino, a balsa deu uma primeira “encostada” no píer, e antes da amarração, o Opala ao lado deu uma arrancada e saiu. O motorista já deveria estar acostumado, pois fez isso de forma fácil e quase natural. O Toninho, no embalo, arrancou também, porém como estava atrás do Opala, teve que esperar a vez. E nessa demora, quando já estava com as duas rodas da frente no píer, a balsa que ainda não havia sido amarrada bateu no píer e voltou. Na hora, achei que a gente fosse cair no mar, pois ficamos com duas rodas na balsa e duas no píer. Para complicar, com o movimento lateral da balsa, a Toyota do lado estava chegando cada vez mais perto da lateral do nosso carro. Então, gritamos pro Toninho: ou ele ia pra frente ou pra trás porque com a balsa se afastando do píer, a gente ia cair no mar. Só não podia ficar ali parado. Ele resolveu ir em frente, e felizmente nessa hora a balsa já havia voltado um pouco, então conseguimos “pular” pro píer sem sofrer nenhum acidente. O Anjo da guarda, nesse dia, estava de plantão. Primeiro a vaca, depois a balsa.
Conseguimos, finalmente, chegar à praia, montamos acampamento no escuro, perto de uma cachoeira e um riozinho, que nos servia para tomarmos banho de água doce. Desse acampamento, lembro de uma tentativa infrutífera de fazer macarrão. Eu jamais havia sequer chegado perto de uma panela, exceto pra fazer pipoca e uma cocada com leite condensado cuja receita me lembro até hoje, e naquela ocasião fui “escalado” para fazer o almoço. Resumindo: desperdício de massa e molho. O troço ficou horrível, e tivemos que jogar tudo fora. Passamos a ovo frito – aqueles que não se quebraram no episódio da vaca. No dia seguinte o Toninho resolveu ir com a Brasília até a prainha do riozinho que desaguava no mar. Entrou na faixa de areia, que até certo ponto estava compacta. Mas chegando mais perto da foz do rio, o carro começou a afundar na areia, que estava muito fofa, pois havia muita água. Afundou até quase a metade das rodas, e tivemos que fazer uma operação de emergência para tira-la de lá, cavando a frente das rodas, criando uma espécie de rampa em frente a cada pneu para que o carro pudesse sair. Conseguimos, não sem muito esforço. Recentemente, o Zé Roberto achou algumas fotos dessa viagem e me mandou. Fiquei impressionado com o tanto que a gente era magro. Lembro que na época eu devia pesar por volta de 60 quilos, mais ou menos. Hoje, com o tempo e a experiência acumulada, meu peso quase que dobrou.
E foi nessa época que eu, incomodado com o excesso de magreza, resolvi fazer fisiculturismo. Havia uma academia no começo da Major Dantas e resolvi me inscrever. Mas as academias, naquela época, eram bem diferentes. Não havia treinadores ou instrutores como hoje. Instrutor era só no primeiro dia, que nos mostrava como funcionavam os instrumentos, e depois, boa sorte... A gente chegava na academia, botava os pesos nos aparelhos e começava a fazer exercícios, sem nenhum tipo de orientação. Em pouco tempo, comecei a criar bíceps, cheguei mesmo a ficar com um bração grande e musculoso. Finalmente estava começando a gostar de me olhar no espelho. Fazia também exercícios para as pernas. Ia aumentando a carga a cada sessão, até que num dia, exagerei na carga e devo ter sofrido algum tipo de lesão na coluna ou no nervo ciático, o que me fez afastar definitivamente das academias e ainda hoje, de vez em quando, me dá sinais para recordar disso, pois volta a doer.
Como eu disse no início, no dia do pagamento eu, viciado em música, sempre dava um jeitinho de comprar um disco. Naquela época, a gente recebia o \\\"envelope de pagamento\\\". Literalmente, um envelope que a gente assinava e vinha com todo o dinheiro do pagamento do mês trabalhado dentro. Não tínhamos conta bancária, muito menos cartões. Assim, o salário era em dinheiro. Dinheiro esse que eu levava para casa e religiosamente entregava na mão do meu pai. E quando eu ia sair, tinha que pedir MEU dinheiro a ele. Após o primeiro ano de registro em carteira, peguei minhas primeiras férias. Não conhecia o sistema trabalhista. Sei que peguei a grana das férias junto com o salário do mês, e não sabia que no mês seguinte não receberia salário, já que estaria gozando férias. Nem sei o que imaginei na ocasião, só sei que quando vi aquele bolo de dinheiro, achei que era muito e eu podia gastar à vontade, já que tinha muito. Peguei boa parte do salário das férias e comprei vários discos dos Beatles. Acho que dá pra imaginar qual foi a reação do meu pai quando cheguei em casa...
Com relação ao Zé Roberto, outra do destino e da vida, que junta, separa, depois junta de novo: Depois de mais de 40 anos, retomamos o contato, nos falamos constantemente e ele e a família vêm sempre em casa para os churrascos. Numa dessas vezes, relembramos dessa história do acampamento e demos muitas risadas.
Nota: como sou colecionador, esses discos todos citados nos meus textos ainda estão comigo, em perfeitas condições: eu evitava ouvi-los. Para preserva-los, eu tinha uma tática: botava o disco para tocar e gravava uma fita K7, que então passaria a usar no lugar do disco. Assim, a maioria dos meus discos adquiridos depois dessa invenção, só foi tocada uma única vez. Espero que quando eu morrer minhas filhas não os vendam a preço de banana.
Capítulo 16 – Um fusca, o Marino e o primeiro porre
Em 1979, recém saído do Senai, e já tendo sido transferido para o período noturno, no Graco, comecei a trabalhar na Copas – Companhia Paulista de Fertilizantes, como já citei num capitulo anterior. Foi realmente um grande aprendizado, tanto por aprender a andar nas ruas, como no tratamento com pessoas. O primeiro ano foi, eu diria, chato. Trabalhar de office boy, carregando malote pela cidade não é o que se pode dizer que seja o trabalho ideal. Mas eu gostava, pois não ficava preso no escritório e nem à rotina maçante. Eu saía, andava pela cidade, respirava, via gente e tinha contato com pessoas das mais variadas classes sociais, desde o presidente da empresa até o segurança do nosso andar, Sr. Marcelino, um baiano tamanho gigante que ainda lembro, meia hora antes do almoço passava recolhendo as marmitas, que ele chamava de “bandejitas”, e as levava ao refeitório para serem aquecidas. Fiquei como office boy por um ano, mais ou menos, e depois fui promovido para o departamento de cobrança, onde o chefe dizia ser o reformatório da Copas – iam para lá todos aqueles que não tinham mais jeito. Havia no departamento de cobrança duas “sessões”: de um lado ficavam as meninas, que passavam o dia preenchendo duplicatas e outros documentos; do outro, os meninos, que como eu, somavam, arquivavam, franqueavam e despachavam as duplicatas. Trabalho chato e monótono. Mas com o tempo, acabamos formando um grupo bem unido, e acabei ficando muito amigo do Marino, que trabalhava comigo na mesma sessão. Era coisa de amizade mesmo, tipo de frequentar a casa um do outro. Ele morava na Pompéia, e eu achava legal ir na casa dele, pois o pai dele, italiano, sempre tinha algumas histórias da guerra para contar. Havia sido combatente na Itália, e suas histórias me encantavam.
Um belo dia, o Ciso apareceu em casa com um fusca branco, motor 1.300, e deu a chave na minha mão. Eu já havia tirado a carta de motorista, e ele quis ir dar uma volta comigo para ver como eu estava de volante. Demos uma volta pelo bairro, e acho que fui aprovado pelo examinador. Ele então me deu a chave do carro. Como eu disse anteriormente, nessa época meu salário ia integralmente para as mãos do meu pai. Então, passei a considerar isso como um pagamento, e me apropriei do fusca. É claro que era da família, mas quem usava, lavava, encerava, abastecia, era eu. Com o fusca, então, criei asas: Dava altos rolês e andava pela cidade toda, pois os amigos moravam um em cada bairro da cidade: o Marino morava na Pompéia, o Bira e o Verei moravam na Zona Leste e o Mauro e o Mitchum - apelido do Remigio - no Belém. Assim, sábado à noite, após passar a tarde dando um trato no fusca, o agito era na Toco, uma danceteria na Zona Leste, próxima à casa do Bira. Eu não gostava de danceteria: meu negócio era mais pra linha do rock, e amava Beatles. A gente ficava só ali nas proximidades, aproveitando e contemplando o movimento. Poucas vezes cheguei a entrar na danceteria. Quando saia da Toco, ou ia pra casa do Bira ou ia para a casa do Marino, na Pompéia. Naquela época, a marginal Tiete não tinha radares. Então, quando a gente voltava pra casa do Marino, íamos tirando racha de madrugada de fusca na marginal. Passava o domingo na casa dele, ouvindo Alan Parsons Project, e a música “Time” dessa banda marcou essa fase. Acho que era tema de alguma novela da época, mas não tenho certeza.
Foi com essa turma que tive a primeira e única experiência de ficar realmente embriagado. Os pais do Marino tinham uma chácara em Bragança Paulista, numa época em que os tempos eram outros. Lembro que eu havia acabado de pegar um outro fusca, agora um com motor 1.500, um pouquinho mais forte, que havia sido do Beto, e acabou passando para mim. O outro fusca foi vendido, para mais uma vez, nova reforma na casa. Esse novo fusca não tinha som, e eu, viciado em música, tinha que dar um jeito de botar um som no bichinho. Aproximava-se um feriado prolongado, quando a gente combinou de ir, a turma toda do departamento de cobrança, prá chácara do Marino, em Bragança. Mas meu carro estava sem som. O Bira também iria pegar um carro, e já tinha até comprado o toca fitas, que estava só esperando pegar o carro para instalar. Então resolvemos que ele me “daria” aquele toca fitas para eu colocar no meu carro pra gente ir viajar, e depois quando ele pegasse o carro, eu compraria um novo para ele. E assim fizemos. Levei o carro num cara na avenida Julio Buono, para instalar o toca fitas – um TKR famoso “cara preta”, objeto de desejo de 10 entre 10 jovens da época além de um jogo de alto-falantes. Meu carro passava a noite na rua, não havia espaço na garagem para dois carros. Na verdade, havia. Mas dava muito trabalho, a garagem era apertada e tinha que fazer muita manobra pra entrar e sair. Um carro só era de boa. Mas dois eram complicados. Como a gente ia sair de manhã logo cedo, resolvi deixar o carro na rua, em frente de casa. Como antes de ir para casa eu passei pela rua com o som ligado, a galera ficou toda antenada, sabendo que eu estava com som no carro. Fui então pra casa dormir. E durante essa noite, um dos que me viram passar com o toca-fitas no carro resolveu tomar posse do objeto. Arrombou o carro, não sem antes desligar a buzina do fusca, pois eu havia espalhado que tinha colocado alarme, e levou o toca-fitas que eu ainda nem havia pago. Conclusão: fomos viajar sem som, tive que comprar outro para o Bira e acabei ficando um tempão sem som, pois a grana era curta. O cara que roubou o som do meu carro nem imagina: eu nunca comentei com ninguém, mas eu sei quem ele é.
Fomos na manhã seguinte, então, para Bragança. Éramos em cinco no meu carro, mais cinco no carro do Verei. Saímos pelo Jaçanã e acessamos a Fernão Dias, sentido Belo Horizonte. Viagem simples, de mais ou menos uma hora, ou uma hora e pouco. Naquela época, a Fernão Dias não era duplicada. Era pista simples, de mão dupla. Mas uma rodovia dentro da normalidade. Depois do túnel da mata fria, na descida antes de Mairiporã, ia com o fuscão a uns 80 ou 90 por hora, quando o pneu traseiro do nada resolveu se aposentar. Simplesmente decapou - perdeu a cobertura da banda de rodagem - e explodiu. Carro cheio, pesado, a 80 por hora, não foi fácil controlar o bichinho. Mas meu anjo da guarda, me conhecendo, sempre andava atento e graças aos céus não houve uma tragédia. Consegui levar o carro para o acostamento, onde percebi que ao perder a banda de rodagem, a borracha levou junto toda a fiação das lanternas traseiras, que ficavam por baixo do para-lamas traseiro. Mais uma despesa. Trocamos o pneu, e seguimos viagem.
Chegamos em Bragança sem maiores surpresas. Nos acomodamos na chácara, trancamos os carros e o cadeado do poço, entregamos as chaves ao Marino, que era o único que não iria beber, e orientamo-lo a não dar a chave a ninguém, sob nenhum pretexto. E começamos a beber. Como eu disse, foi a primeira – e última – vez em que tomei um porre. Eu tinha curiosidade de saber como era, e ali, longe de casa, no meio de um bando de moleques, me pareceu a oportunidade certa para isso. Começamos um vira-vira primeiro com Velho Barreiro, depois vinho, depois cerveja. Sei que foi uma misturada e até suco de laranja acabamos tomando. Eu fumava cachimbo na época. Quando já estava bem mais pra lá do que pra cá, super zonzo, peguei meu cachimbo, deitei numa rede no quintal, e na primeira balançada, botei tudo pra fora. Vomitei até as tripas, e apaguei. Não me lembro de nada do que aconteceu naqueles três dias. Os caras diziam que a vizinha vinha me trazer sopa, mas sinceramente, sofri um apagão na quinta-feira de manhã e só fui acordar e me recuperar no domingo à tarde, praticamente na hora de voltar. Não aproveitei nada do passeio. Os outros, ao contrário, disseram que à noite me largaram na casa e foram para a cidade se divertir. Tenho certeza, apesar de não ter tido nenhum diagnóstico, que tive um tipo de coma alcoólico, e poderia ter morrido, não fossem as sopas da vizinha. Graças à essa experiência, ainda hoje não sou fã de bebidas alcoólicas. Principalmente cerveja, que eu acho extremamente ruim. De vez em quando, consigo tomar um whisky. E tendo vindo morar numa região famosa pela produção de uvas e vinhos, tomei gosto pelo vinho tinto da região. Mas sempre sem exageros.
Com o tempo, consegui equipar o fusca. Coloquei outro toca-fitas TKR, conjugado com um amplificador e equalizador Tojo, que também era o sonho de consumo da época, mas desta vez com “gaveta”: um dispositivo que tinha uma parte fixa, em baixo do painel do carro, e outra, que era fixado no corpo do toca fitas. Assim, ao sair do carro, a gente destravava a gaveta, puxava ela e tirava o som inteiro, levando-o conosco. Coloquei também um tampão no chiqueirinho, com dois falantes bem pesados. O chiqueirinho dava uma acústica perfeita ao som, reverberando os graves muito bem. Coloquei também um outro tampão, esse diferente dos demais, embaixo do painel do fusca, com mais dois falantes e dois tweeters, o que, além dos falantes das portas, transformou meu fusca numa máquina do som. Como eu manjava um pouco de eletrônica, graças ao Senai, foi fácil fazer a instalação, e virei meio que um “instalador oficial de som de carro” da turma. Lembro que montei também na parte de baixo do toca-fitas um dispositivo com led´s vermelhos que se acendiam sequencialmente de acordo com a música. Ficou bem legal, parecendo uma discoteca. Hoje, de gosto duvidoso. Mas naquela época, com a idade que eu tinha, ficou legal.
Com essa amizade com o Marino, me acostumei a quase todo final de semana, ir para a casa dele no bairro da Pompéia ou na chácara em Bragança, com a família. Era uma casa simples, sem luxo nenhum e eu me sentia bem acolhido pela família dele. A mãe dele era um amor, tinha muita paciência com a gente. A irmã também era muito boazinha. Lembro que na época, a gente tinha cada um sua espingarda de pressão e vivíamos dando uma de caçador pelo mato nas vizinhanças. Numa saída dessas, vi uma coruja no fio da rede elétrica e atirei nela. Acertei o pé, cortando-lhe um dedo. Acho que pelo susto ou pela dor, ela caiu ao chão, e não tendo morrido, prendemo-la numa gaiola e levamos ela para casa. Colocamos a gaiolona em cima de uma mesa, na varanda, e a bicha não parava de olhar para mim. Eu me movia ao redor da gaiola, e ela permanecia de olhos fixos em mim de uma tal maneira que cheguei a ficar impressionado. Falei então pra gente soltar ela, pois aquilo ia dar algum tipo de azar, sei lá... Prender uma coruja? Levamos a gaiola perto de onde a tínhamos pegado, coloquei no chão e abri a porta. Com três pulos, ela se enfiou num buraco no barranco. Depois, olhando com mais calma, vimos que havia um monte de filhotes lá dentro. Na hora bateu o maior remorso do mundo; voltei à casa, peguei um monte de carne moída, linguiças, o que tinha na frente, e levei jogando tudo no buraco pra alimenta-la e assim tentar redimir minha culpa. Depois disso, nunca mais atirei em nenhum outro animal. Com o advento das namoradas, e tendo saído da Copas, nosso contato foi ficando cada vez menos freqüente, até que acabamos por perder completamente o contato. Acho que a última vez que o vi, foi no dia do meu casamento, ao qual ele compareceu. Antes de encerrar esse capítulo, gostaria de salientar que o prato preferido do Marino, naquele restaurante suspeito na Av. São João e que a gente pedia pelo número era o 39 – Filé de frango à milanesa, arroz e fritas. Há uns dois anos, movido pela saudade e por algumas dessas lembranças, e com vontade de revê-lo, tentei achá-lo procurando nas redes sociais, sem sucesso. Procurei então pelo seu sobrenome, e achei um monte. Mande várias mensagens a várias pessoas, procurando saber se havia parentesco entre elas, até que encontrei um sobrinho dele, que disse ser seu tio e me indicou a irmã, com a qual entrei em contato. Ela então me deu a triste notícia que o meu amigo Marino havia falecido há três anos, vítima de um ataque cardíaco. Ficou apenas a lembrança daquele tempo gostoso cuja maior preocupação era saber se ia chover no final de semana, pra gente poder ir pra chácara.
Dedico este capítulo a Ele. Esteja em paz, amigo.
Capítulo 17 – Beatles, Led Zeppelin e uma mulher que caiu do céu
Trabalhando durante o dia, eu tinha que terminar os estudos, e fazia o colegial no Graco no período da noite. Com a mudança de horários, e tendo começado então a trabalhar, a turma do Ligabue foi ficando cada vez mais distante. Acho que o tempo faz isso: separa alguns, mas em compensação, coloca novas pessoas em nossas vidas. Nova escola, nova turma, novas amizades. Já disse que o Hirô trabalhava comigo na Copas. E num ano desses ele caiu na minha classe. Então, além de trabalharmos na mesma empresa (não mais no mesmo departamento, pois eu havia sido promovido) também estudávamos junto. Na nova turma, conheci o Charles, uma grande figura que se transformou também num grande amigo. Ele tinha um jeito meigo de lidar com as pessoas, falava manso e acabava cativando a todos à sua volta. Acabou virando parceiro de aventuras. E como ambos tínhamos em comum a paixão pela música, nossas aventuras eram aventuras musicais. O Charles era aficcionado por música, e me parece ainda ser, pelo que percebo pelas redes sociais. Tem até um programa semanal na internet, onde é DJ e produtor. Assim como o Hirô, ambos tinham grandes equipamentos de som, e lembro que a primeira vez que fui na casa do Hirô ele botou um “Earth, Wind and Fire” no volume máximo pra eu ouvir e atestar a qualidade do som dele. Fiquei impressionado por dois motivos: primeiro, pela qualidade do som, e lembro que o movimento dos alto-falantes das caixas, deslocando grandes volumes de ar e produzindo um som grave poderoso me deixou estupefato. Minhas caixas de som eram boas, tinham potência, mas não tanto quanto aquelas. Segundo, porque foi o primeiro japonês que eu conheci que gostava de “funk music”, pois ouvia “Earth, Wind & Fire” e outros grupos, basicamente Black music. Mas eu estava nessa época, na minha fase “Beatles”. Tudo o que eu ouvia e gostava eram as músicas dos “Fantastic Four”, e independente da qualidade e quantidade de som do aparelho do Hirô, ele não conseguiu me converter. Hoje, lógico, após tanto tempo, sou bem mais aberto a novas experiências musicais, e tendo duas filhas, acabo ouvindo um pouco de tudo, algumas vezes até por influência delas. Assim, posso dizer que sou “eclético”. Comecei a freqüentar a casa do Charles, que tinha também um sonzaço. Lembro que ele fazia de tudo pra me converter, me mostrava os sucessos da época, basicamente “disco music”, Bee Gees, Dona Summer e outros sucessos do momento, mas não tinha jeito. O Charles era praticamente um DJ, e lembro que eu enchia o saco dele pra ele gravar umas fitas com alguma mixagem pra mim. Mas eu levava os discos – dos Beatles – e fazia ele fazer as mixagens. Invariavelmente saía da casa dele com uma fita nova, que eu ouvia no tape deck de casa ou no toca-fitas do carro até gastar. Recentemente, achei-o através das redes sociais, e a gente tem trocado mensagens pelo celular.
O Hirô teve um papel fundamental na minha vida. Não por termos trabalhado juntos, mas porque como citei num capítulo anterior, ele foi o cupido que botou a Dona Rosângela na minha vida. Como disse, estudávamos juntos, e nos intervalos, ficávamos de bobeira pela escola. Eu era de uma turma diferente, e o Hirô era o amigo em comum com a outra turma, da qual a Rô fazia parte. Como eles moravam no mesmo bairro e já se conheciam, de vez em quando ele dava carona na volta para casa a ela e mais duas amigas dela, que também moravam no Jardim Brasil. Nessa fase, eu, apesar de gostar ainda de Beatles, fazia o estilo roqueiro: enquanto todo mundo na escola usava as roupas da moda e tênis de marca, eu andava de coturno, roupas escuras, sempre de boina preta e completava o traje com um sobretudo de gabardine muito surrado que eu acho que havia sido do meu pai. Eu tinha um estilo próprio e me sentia bem assim. Acho que eu queria ser diferente. Mas o pessoal da escola achava que eu tinha um parafuso a menos, sei lá: sem me conhecer me achavam doido, talvez pelo jeito como me vestia que, cá entre nós, devia assustar mesmo. Uma bela noite, estando na escadaria da escola, provavelmente matando aula junto com o Hirô, eis que a Rô passou e o cumprimentou. Logo pedi a ele que me apresentasse, o que ele não fez. Disse que ela era amiga dele e ela não era pra mim. Lógico, fiquei bravo com ele, pela sacanagem. No dia seguinte, encontrei-o na empresa e enchi tanto o saco dele que ele acabou nos apresentando na seqüencia. Mas nosso primeiro contato foi uma coisa meio furtiva, ela ficou muito encabulada, até por causa dos meus trajes e da fama de doido que eu tinha na escola, e a coisa ficou só nisso. Não conversamos, nem nada. O Hirô só nos apresentou e ela foi embora, com as amigas. Anos mais tarde ela me confidenciou que por causa da minha fama de doido tinha medo de mim.
Algumas vezes, eu ia pra escola de carro. Saía do trabalho para casa, chegava em casa, tomava um banho rápido, comia alguma coisa, pegava o carro e ia pra escola. E quando não estava a fim de assistir aula, eu ficava com o carro parado do lado do muro da escola, ouvindo música e batendo papo com a turma. Foi numa dessas ocasiões em que eu recebi esse presente dos céus. Estava encostado no muro, quando de repente, cai de cima do muro nada mais nada menos que a dona Rosângela. Ela estava cabulando aula, e o Paulão praticamente a jogou pra fora da escola dando um impulso nela por cima do muro, que não era baixo. E para sorte dela, eu estava do outro lado, e aparei a queda. Hoje costumo dizer que essa mulher “caiu do céu”. Quem não conhece essa história acha que é figura de linguagem. Mas é literal. Como já havíamos sido apresentados pelo Hirô, não ficou aquele clima sem graça, e algum tempo depois, a gente acabou se enturmando, as duas turmas - a dela e a minha - acabaram se juntando, e passamos a fazer tudo junto, sempre em turma. Logo descobri através do Hirô que a Rô gostava da música “Stairway to Heaven”, do grupo Led Zeppelin. Eu que não era nada bobo, corri para falar com o Kata, o roqueiro da rua, que me emprestou alguns discos de rock, os quais tratei logo de gravar uma K7 para impressionar a garota. A partir daí, comecei realmente a mudar meu perfil musical, ampliei meus horizontes musicais e realmente comecei a gostar de outros estilos além de Beatles e rock clássico: Led Zeppelin, Rolling Stones, Black Sabbath, Van Hallen, Iron Maiden, entre outros. Abri também espaço para os hits do momento, e lembrando do Charles, as “disco music”. Até nisso essa mulher mexeu comigo.
O Hirô também tinha um fusca, azul, e quando a gente cabulava, enchíamos os dois carros com a turma e íamos pras Palmas. Mas houve uma ocasião em que, tendo combinado de irmos todos pras Palmas, na hora de sair, de repente todo mundo foi pro carro do Hirô, que ficou socado de gente, e “estranhamente” só a Rô ficou pra ir comigo, no meu carro. Eu era meio inocente, mas esse sinal foi demais para ser ignorado. Botei logo a fita de rock no TKR cara preta, aumentei o som com “Stairway to Heaven” e a moça se derreteu. Começamos a namorar nesse dia, há mais de 40 anos. Desde então, Stairway to Heaven passou a ser “nossa música”.
Como a Rô é mais nova que eu, eu estava mais adiantado na escola, e estávamos em turmas diferentes. Assim, quando minhas aulas acabavam, eu sempre esperava ela pra leva-la pra casa, e assim ela não precisar ir de ônibus. Algumas vezes, íamos à pé: a gente matava as duas ultimas aulas e eu a acompanhava até o Jardim Brasil. Mas eu andava tão apaixonado que acabei dando um jeito de repetir de ano, só para, no ano seguinte, cair na classe dela. E assim foi feito. No ano seguinte, caímos na mesma turma. Lembro que a gente tinha uma professora de biologia que, sabendo do nosso namoro, confidenciou à Rosângela que “eu não daria futuro”. Bem, futuro posso não ter dado. Não tenho esse poder, já que, como diz o dito popular, o futuro a Deus pertence. Mas são mais de 40 anos de convívio. E acho, isso não é pra qualquer um.
Capítulo 18 – Uma Lettera 32 e o receptor galena.
Ainda na 6ª série, foi lançado, no Ligabue, um concurso para participação de todos os alunos. Consistia em pesquisar e discorrer sobre um tema previamente selecionado, e apresentar um trabalho com toda a pesquisa. Eu havia acabado de fazer o curso de datilografia, no Alexandre de Gusmão, numa saleta em cima do açougue, na esquina da Guapira com a Maestro Vila Lobos. Naquela época, final dos anos 70 e início dos 80, era praticamente mandatário que se fizesse esse curso de datilografia, se se quisesse arrumar “um bom emprego” num escritório. Por isso, lá em casa, não foi diferente. Acho que todos os irmãos fizeram. Assim que terminei o curso, apareceu essa oportunidade de participar desse concurso da escola, e meu pai resolveu então que eu deveria participar, e fomos ao Mappin, na praça Ramos de Azevedo, comprar uma máquina de escrever. Uma Lettera 32, pequenininha e portátil. Tenho certeza que ele tinha segundas intenções, já que a datilografia era tema importante na conquista de um emprego. Como eu tinha acabado de fazer o curso, estava uma fera no teclado, super afiado e muito disposto a por em prática minha mais recém-adquirida habilidade: datilografia. Comecei então a trabalhar nesse projeto. Muita pesquisa em biblioteca, que na época era a Mário de Andrade, no centro de São Paulo, onde eu ia fazer as pesquisas e, não tendo dinheiro para as “fotocópias”, que na época eram caras, pois não existiam as copiadoras como hoje em qualquer esquina, tinha que copiar tudo à mão. Lembro que fui algumas vezes à biblioteca para pesquisa do assunto tema do meu trabalho – O Correio Aéreo Nacional – além de copiar tudo para depois “passar a limpo”. Com todo o material o que eu havia pesquisado em mãos, toca pra lojinha da dona Marisa, comprar papel para a máquina de escrever. Lembro que para relatar um painel completo do tema, a história começava desde os tempos de Santos Dumont e chegava até as Forças Armadas, na Aeronáutica. Montei um pequeno centro de trabalho no meu quarto, com uma pequena mesinha perto da janela, onde ficava a lettera 32, juntamente com as anotações e as folhas em branco. Devo ter ficado uns quinze dias praticamente trancado no quarto, datilografando. Coisa boa é que, à medida que avançava, ia ficando cada vez melhor no teclado da maquininha. Não me recordo ao certo, mas o trabalho deve ter ficado com bem mais de cem folhas, todas datilografadas com tabulação corretíssima, e chegando perto do final do trabalho, eu estava um exímio datilógrafo. Fiz então uma capa super caprichada – eu tinha jeito pra desenho desde sempre – e ao terminar o trabalho, apresentei ao Professor Simão, que era o diretor da escola na época. Ele olhou para o fruto de mais de quinze dias de trabalho exaustivo, fez uma careta, e me devolveu o pacote. Não aceitou. A maquininha veio com um defeito de fábrica que não tínhamos percebido. A letra “R” aparecia como se fosse “rebatida”, nas palavras dele. Era um tipo de falha que passou-me desapercebida e que, segundo ele, comprometia todo o trabalho. Por isso, ele não poderia aceitar para a inscrição. Ou eu refazia tudo, ou nada feito. Para refazer, eu talvez não tivesse tempo hábil. Além disso, teria que arrumar outra máquina de escrever. Então, como dizem, enfiei a viola no saco, baixei a cabeça e tive que engolir. Um fato positivo é que durante muitos anos eu sabia praticamente tudo sobre o Correio Aéreo Nacional.
Outro fato positivo é que tudo isso não foi em vão; depois de um ter saído do meu primeiro emprego, na Copas, e graças a uns contatos com um vizinho da Caracaxá, que era gerente numa agência do Bradesco, consegui uma entrevista de emprego, desta vez numa agência da Rua Paula Souza, no Brás, em São Paulo, pertinho do mercadão central. E naquela entrevista foi-me aplicado também um teste de datilografia. Eu pude usar então todo meu expertise em datilografia. Foi a primeira vez que fiz algum teste desse tipo, e como não havia tempo determinado para finalizar o teste, procurei caprichar ao máximo: Tabulação, espaçamento e margens; contava os espaços para deixar o texto justificado certinho, e voilá: aprovado! Soube depois de um tempo que esse foi o melhor teste já feito naquela agência. Fui então trabalhar como operador de Telex, como descrevi num dos capítulos anteriores. E a maquininha ficou em casa, quase sem uso. Eventualmente, meu pai sentava-se comigo e me pedia para datilografar alguma carta, que ele mandava a seus parentes em Portugal.
Lembro que nessa época, também inventamos, eu e o Mané, um meio de comunicação pouco usual. A gente morava a talvez um quarteirão de distância, talvez um pouco mais. Linha telefônica era artigo de luxo, e poucas pessoas tinham. Lembro que a nossa foi comprada como investimento, quase no preço de um automóvel. Então, conseguimos um par de rádios walkie-talkie, que, sinceramente, não sei de onde vieram. Talvez o Mané se lembre, mas eu não. Fato é que ficava um com ele, em sua casa, e o outro ficava comigo, no meu quarto. Lembro que no meu aparelho, para melhorar a recepção, coloquei uma “extensão” de antena: um arame, enrolado na antena do aparelho, que saía pela janela do quarto e subia até acima do telhado , pois ficaria assim virado para a casa do Mané. E a coisa funcionava. Mas como eram movidos à pilha, e naquela época não haviam ainda (nem imaginavam) as baterias recarregáveis, era complicado deixar os rádios constantemente ligados. A gente combinava um horário para ligar, e quase sempre acabávamos esquecendo. Aí acabamos desistindo do projeto, depois de um tempo.
Nessa época, também, havia nas bancas de jornais uma publicação que era voltada para o público fã de eletrônica. Trazia pequenos projetos eletrônicos fáceis de fazer, e eu gostava de acompanhar. De vez em quando, montava alguma coisa. Certa vez, numa dessas revistas, foi apresentado o projeto de um “rádio Galena”, um dispositivo que funcionava sem baterias, continuamente, e trabalhava na frequência AM. Basicamente, um fone de 300 ohms, um capacitor variável, uma cápsula de cristal e uma antena que mais parecia um varal. Resolvi que iria fazer um – e fiz. Porém, como a gente morava na periferia, a recepção das rádios que, naquela época, ficavam todas no centro da cidade era muito ruim, e eu tive que colocar uma antena externa. Arrumei um rolo de arame de cobre e amarrei a ponta dele numa ponta do telhado e a outra na outra ponta, no final do telhado de casa. Então a recepção melhorou muito. Eu deixava a cápsula – que funcionava como alto falante - embaixo do travesseiro, e assim dormia ouvindo música todo dia. Lembro que eu sintonizava a Excelsior, uma rádio que só tocava música, geralmente os lançamentos da época, e quase não haviam intervalos comerciais. Fiquei com esse dispositivo por um tempo, até que meu pai deve ter ouvido algum comentário de algum vizinho e cismou que aquele monte de fios em cima do telhado poderia atrair raios. Resumindo: me fez desmontar tudo. Mais um gênio incompreendido...
Capítulo 19 – Cursinho, Canetas nanquim e a Jurema.
Após um longo período, eis que volto a escrever. Em Janeiro deste ano (2023), passei por nova cirurgia de catarata (ah, a idade...) na qual houve complicações, e fiquei por um tempo quase cego de um olho, o que me tirou a disposição de escrever. Volto a escrever agora, começo de abril.
Depois de haver trabalhado na Copas por 4 anos e após a experiência com a fabricação de pulseiras, como comentei em capítulos anteriores, acabei indo trabalhar na gráfica do Cursinho Universitário. Não vou contar toda a história de novo, uma vez que já comentei em outro capítulo. Mas teve a ver com os grafites na parede do meu quarto. A gráfica do cursinho ficava na Bela vista, no centro do Bixiga, bem em frente à quadra da Escola de Samba Vai-vai, num prédio anexo ao prédio principal do Cursinho Universitário, um dos maiores da época. Era uma época onde a concorrência para faculdades Federais era grande, e o mercado de cursinhos pré-vestibulares fervilhava. O Universitário era um dos maiores. E a gráfica do cursinho era realmente uma gráfica, com impressoras, encadernadoras, sala de gravação de chapas e fotolitos, enfim, todo o material necessário para que se fizessem as apostilas do cursinho, era feito lá. E havia também o departamento de arte, onde fui trabalhar como desenhista. Naquela época, muito antes do computador e da computação gráfica, era tudo feito à mão. A gente pegava as “laudas”, que eram folhas de papel com texto impresso por uma “super moderna Composer”, uma máquina de escrever metida a importante, e usando cola de benzina, aplicávamos esses textos numa prancha, processo que a gente chamava de Past-up. Essa prancha montada era então enviada à outra área, para que se gravasse o fotolito, e depois a chapa para impressão. Eventualmente, havia a necessidade de alguma ilustração nas apostilas, e aí entrava meu dom de desenhista. Na época, eu era viciado nas revistas Mad, e nos quadrinhos de Sergio Aragonés e Don Martin, e acabei meio que pegando um pouco do estilo deles. Mas o interessante dessa história toda vem a seguir: Apesar de desenhar relativamente bem, eu nunca havia trabalhado como desenhista antes. Não conhecia os materiais empregados na arte, como por exemplo os gabaritos, escalímetros, régua de composição e as canetas nanquim. Então, meu primeiro dia na gráfica foi muito complicado. Tive que enrolar o dia inteiro, inventando alguma coisa pra fazer, já que eu só conhecia a parte artística, e nada da parte técnica.
Nessa época, a minha conexão com a turma da Caracaxá já havia mudado. Através do Ché, nosso vizinho, conheci o Nando, e através dele, seu irmão, Nico. O Nico era um grande artista. Um cara talentoso, grande desenhista, pintor e companheiro de altos papos das madrugadas no Jonas Esfirras, na Júlio Buono. Foi um mestre em me ensinar a arte de explorar coisas novas, como por exemplo, a resina de poliéster. Lembro que a gente comprava resina numa loja na rua Cubatão, na Vila Mariana, e com essa resina ficávamos inventando coisas. Uma das coisas inventadas nessa época foi minha criação de aranhas caranguejeiras. Fiz uma caixa grande de madeira, e na parede frontal, ao invés da madeira, colei um vidro traseiro de uma Kombi, que era plano, e ficou um terrário muito legal. Adicionei uma decoração com terra, areia, uns pedaços de pau, e consegui uma aranha caranguejeira fêmea. Sempre gostei dessas coisas que todo mundo acha esquisito. Peguei a Jurema (esse era o nome dela) numa bananeira na casa do Ronaldo e levei-a para sua nova morada. Cuidava dela com muito carinho, até caçava umas baratas, moscas e grilos pra ela se alimentar. A caixa ficava em cima da laje, próxima à janela do meu quarto, e era bem fechada, com tampas de madeira articuladas com dobradiças. Assim, a Jurema não tinha como sair. Ficou um bom tempo comigo. Então, passados alguns meses, ela aparece com uma bola branca às costas, parecendo um chumaço de algodão. E eu na época não fazia idéia do que seria aquilo. Era uma bola de ovos, uma ovoteca. Talvez milhares de ovos, envoltos em teia, que ela não soltava por nada no mundo. Com o tempo, esses ovos eclodiram, e um milhão de aranhinhas saíram da bolinha e escaparam da caixa que, apesar de tampada, não havia sido projetada para as micro-aranhas recém-nascidas, que fugiram pelas frestas. Desnecessário mencionar que infestei a vizinhança de aranhas, e mais uma vez, tomei um ultimado do meu pai, para me livrar do meu passatempo. Aí então é que entra a resina de poliéster. Com muita dó, tive que sacrificar a Jurema. Mas para homenageá-la, uma aranhona quase do tamanho da minha mão, nada mais honroso que preserva-la em resina. E assim fiz. Ela ficou comigo, como “peso de papel” por um bom período de tempo – anos, acompanhando-me inclusive na minha mesa de trabalho, onde quer que eu fosse. Depois, com a experiência e fuçando as novidades da loja da Rua Cubatão, achei material para fabricar moldes de silicone, e comecei a fazer cópias de esculturas, peças de xadrez, essas coisas, tudo em resina. Mas sempre como passatempo, nunca comercialmente. Hoje vejo na internet pessoas fazendo agora o que eu já fazia em 1985.
Essa foi também a época em que entrei no mundo do “rádio do cidadão” - o tal PX, um equipamento de rádio amador com o qual a gente falava, teoricamente, com o mundo todo. Eu tinha um equipamento simplesinho, de curtíssimo alcance, mas que me divertia. Esses equipamentos obrigatoriamente deveriam ser homologados pela Anatel, coisa que quase ninguém fazia. Então, a imensa maioria dos operadores era “pirata”. E como não éramos homologados, a gente escolhia aleatoriamente os prefixos com o qual operava. Eu tinha, colada na parede do meu quarto, uma placa de carro americana que provavelmente tinha vindo de algum rolo com o Lincoln onde se lia: FOX 1045 – Xerife. Esse virou meu prefixo: PX2 Fox 1045 , QRA de Xerife. Com o PX, os horizontes mais uma vez se expandiram, e conheci outra turma. Meu rádio tinha o mecanismo de gaveta, assim, eu usava-o tanto no fusca, onde coloquei uma imensa antena “maria-mole” no para-choques, quanto no meu quarto, onde eu tinha uma estação fixa, com uma fonte estabilizadora e uma antena gigantesca no telhado. Aliás, essa antena deu também o que falar. Fixei-a em um cano galvanizado de uns quatro metros, na ponta do qual coloquei a antena plano terra do PX. Pra deixar a coisa mais bonita ainda, coloquei uma lâmpada vermelha na ponta, com uma “pastilha’, um dispositivo que a fazia ficar piscando quando ligada. Dava pra ver a bichinha de longe, à noite. Mas, apesar de haver tomado todos os cuidados com relação à fixação e aos tirantes, um belo dia a danada simplesmente cansou. O cano entortou, vindo a cair em cima do telhado da casa. Reformei-a diminuindo a altura antes de tomar mais um enquadro do meu pai. Eu saia do serviço, ia pra escola, e na volta, chegava em casa, tomava um banho, ia para o quarto e ficava modulando até de madrugada. Invariavelmente pegava no sono, e era acordado com os gritos do pessoal no outro lado da linha, buscando me acordar. Quando estava no fusca, o rádio fazia sucesso, e por vezes usava-o como “desculpa” para conquistar as meninas.
Voltando ao Nico, foi ele quem me ajudou quando comecei na gráfica. Saindo do trabalho, após o primeiro dia, passei na casa dele procurando ajuda para me ensinar a desmontar e limpar uma caneta nanquim, que eu só conhecia de vista. Eis então que ele me deu uma verdadeira aula, inclusive me ensinando a não só desmontar, limpar e carregar, mas também a manusear as várias canetas de várias medidas. No dia seguinte, fui trabalhar todo “pimpão”, pois as canetas nanquim já não eram mais segredo. Na gráfica, como comentei, havia de tudo. E como havia de tudo, havia gente de todo tipo: operadores de máquinas, impressores, encadernadoras, montadoras, desenhistas, revisoras, enfim, tudo o que fosse necessário para o negócio andar. E como andava. Anexo ao páteo de trabalho, havia o depósito de papel. E chegavam as resmas em grande quantidade, a tal ponto de se formarem pilhas com três ou quatro metros de altura. E os funcionários mais antigos, já velhacos, empilhavam as resmas de papel de forma a deixar um vazio no meio, que servia como esconderijo para uma soneca ou para algum jogo proibido. Ninguém jamais iria procurar alguém dentro da pilha de papéis. Com o tempo, fui aprendendo pouco a pouco todas as tarefas da área de impressão, o que me valeu muito conhecimento tanto técnico como prático profissionalmente.
Nessa época eu ainda tinha a moto, que eu usava basicamente para ir trabalhar aos sábados – trabalhava até as 13hs – quando o transporte público dava uma diminuída na quantidade, e a gente demorava mais pra chegar. Morava na Vila Gustavo, e a gráfica ficava no Bixiga, região central. Eu tinha que pegar um ônibus até o Carandiru, depois o metrô até a Praça da Bandeira, e de lá pegar mais um ônibus para a Bela Vista. Aos sábados, isso demorava pra caramba. Então, mesmo sem ter carta de motorista, eu ia trabalhar de moto. Naquela época, o uso de capacete ainda não era obrigatório. E eu andava sem. E foi num sábado desses, indo trabalhar, quando na praça Campos de Bagatelle, em Santana, tentando erroneamente ultrapassar um caminhão pela direita, tomei uma fechada e só o que consegui ver foram os ganchos da caçamba passando rente ao meu pescoço. Acabei desistindo da moto na mesma semana. Uma das vantagens de trabalhar no Cursinho foi a possibilidade de fazer o cursinho gratuitamente. Essa era uma tática da direção para pagar pouco aos funcionários - geralmente uma galera que havia terminado o ensino médio e queria entrar numa faculdade. Então, eles ofereciam um emprego, com salário baixo, mas com a possibilidade de fazer o cursinho “grátis”. Como todos os outros, comecei a trabalhar primeiramente em meio período, na parte da manhã, e na parte da tarde, comecei também a fazer o cursinho, para quem sabe, tentar entrar numa faculdade. Mas para ser sincero, o ensino público era tão mal, ou talvez eu tenha ido tão mal no ensino médio, que não conseguia acompanhar as aulas do cursinho. Me sentia completamente perdido, um peixe fora d´água. Fiz alguns meses – acho que dois - e acabei desistindo. Aproveitei então para fazer um dos outros cursos oferecidos – Linguagem de Arquitetura – que também me foi bastante útil no decorrer da vida profissional. Apesar de nunca ter trabalhado com arquitetura, usei o aprendizado nas maquetes e projetos de Stand que viria a fazer mais tarde. Depois de haver desistido do cursinho, solicitei ao meu chefe que me transferisse para período integral, de forma que eu passasse a ganhar mais, trabalhando o dia todo. E assim fizemos. Como comecei a trabalhar em período integral e estava terminando o último ano do ensino médio, a volta pra casa tinha que ser, ainda, rápida. Lembro que, do Bixiga, na Bela Vista, eu atravessava a Nove de Julho, subindo pela Rua Paim até a Rua Augusta, onde pegava o “elétrico”, o trólebus 107-T de volta para casa, aquele mesmo que meus irmãos usavam quando eu os esperava com os materiais de escola, no ponto final. Praticamente uma caldeira no verão, motivo de desespero de quem, como eu, tinha hipoglicemia, e não aguentava o calor. Invariavelmente cheio, ia dependurado na porta boa parte do caminho. E levando choque! Chegava no ponto final, na Cruz de Malta, e corria pra escola. Terminado o ano letivo, e concluído o ensino médio, alguns dos amigos trataram de se virar com relação à qual faculdade fazer. Eu continuava focado no trabalho, que eu adorava. Continuei por quatro anos no cursinho, nos quais passamos por várias mudanças, desde a terceirização da parte de impressão até a mudança física do departamento de arte. Com o tempo e a evolução dos métodos de ensino, essa coisa de cursinho pré vestibular acabou caindo em desuso, acho. Pelo menos, não há mais nada do tamanho que aquilo era.
Capítulo 20 – Os Salgadinhos do Seu Emílio
Uma das lembranças mais gostosas que eu tenho do meu pai é em relação às partidas de xadrez que a gente disputava. Não tenho certeza, mas provavelmente foi ele quem me ensinou a jogar. E, com 12, 13 anos, eu ficava esperando ele chegar do trabalho, tomar seu banho, e após o jantar, quando ele ia começar a assistir à TV, eu pegava uma mesinha de centro, colocava na frente dele e armava o tabuleiro. Não tinha desculpa nem escapatória. Era pelo menos uma partida por noite, durante muito tempo, até onde a lembrança alcança. Achava engraçado que ele fazia uma jogada, e ao ver que tinha errado, voltava a peça no lugar; fazia tanto isso que a gente teve que inventar uma regra proibindo isso, ou adotar a regra do “peça tocada, peça jogada. Fui ficando bom, e passei a vencê-lo com frequência, até que – acho - ele acabou perdendo a graça, pois só perdia. O tabuleiro com as peças, tenho até hoje. Atualmente, fica em casa, em cima de um móvel. E cada vez que eu olho pra ele, lembro do velho e das partidas noturnas.
Como bom português, ele era devoto de Nossa Senhora de Fátima. E aqui no Brasil, encontrou a igreja com o nome dessa padroeira no bairro do Sumaré, em São Paulo. Talvez fruto de alguma promessa, todo dia 13 a gente ia lá, assistia a uma missa e voltava pra casa. Ele fazia isso mesmo não tendo carro; lembro de tê-lo acompanhado algumas vezes de ônibus. Ele nunca dirigiu, nunca tirou carteira de motorista, mas quando nós, os filhos, começamos a dirigir, passamos então a ir de carro, religiosamente todo dia 13, fosse qual fosse o dia da semana. Lembro que durante o mês de maio, nas comemorações oficiais da padroeira, havia festa portuguesa naquela igreja, com as comidas e doces típicos de Portugal, que ele adorava e comprava pra levar pra casa: pastéis de Belém, fio de ovos, pastéis de Santa Clara, entre outros, faziam a nossa alegria. Havia ocasiões em que, hoje como pai e chefe de família percebo, ele talvez não tivesse dinheiro para gastar, então ficava mais “pão-duro” e não comprava os doces. A gente ficava na vontade, sem perceber, na época, que dinheiro não dava em árvores, como ele dizia. Mas graças a essas idas mensais à Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no Sumaré, fiquei apaixonado pela culinária portuguesa e adoro esses doces, tão difíceis de encontrar bem feitos aqui na minha região.
Era do tipo que não conseguia ficar parado. No Brasil, desde que chegou, sempre trabalhou com cozinha, na Ford, na Walita, entre outras empresas, onde era o chefe das cozinhas industriais. E era um grande cozinheiro. Fazia um bacalhau sem igual. Fazia também receitas portuguesas como os filhós, no final do ano, e o folar, um pão salgado recheado de especiarias, carne e linguiça, na época da Páscoa. Nunca mais comi nada igual! Quando eles e aposentou, como não conseguia ficar parado, resolveu que iria começar a fazer salgadinhos para festas. Fez um “curso intensivo” com a Tia Walkiria, que já fazia também salgados e morava na Zona leste e começou a empreitada. E o negócio deu tão certo, que ele não parou mais. Coxinhas, empadinhas e rissoles começaram a fazer parte de nossos finais de semana. Eventualmente, algum bolo para festa. Lembro dele sentado na escada, descascando alho para os temperos. A cada encomenda, a quantidade aumentava, a ponto dele ter que ficar vários dias fazendo salgadinho para cumprir o prazo. Com isso, a demanda por matéria-prima também era alta. A gente ia comprar farinha, frango, palmito e azeitona, entre outras coisas, no mercado municipal. Ele era exigente, e só comprava farinha de trigo de uma determinada marca, pois, segundo dizia, as outras “não davam liga”. Nessa época, meu fusca tinha rodas de liga leve, mais largas e de aro menor que o original. Como eram mais largas, as rodas ficavam um pouco pra fora do para-lamas. Lembro que o carro voltava tão cheio e pesado que, ao passar por algum desnível, os pneus raspavam no para-lamas. Com essa fabricação em massa, a gente foi se acostumando a almoçar e jantar salgadinho, nos finais de semana, até enjoar e chegar ao ponto de não suportar nem sentir mais o cheiro dos ditos cujos. Como ele sempre fazia uma quantidade a mais e não gostava de ficar parado, um belo dia resolveu sair vendendo pela rua. Arrumou uma geladeira de isopor, forrou com “papel alumínio”, colocou uma alça e saiu pela vizinhança anunciando seu produto, com aquele sotaque português: Salgadiiiiinho! As vendas foram melhorando, a freguesia aumentando, e com o tempo eu passei a ir “visitar” os clientes com ele, de fusca. E como tinha cliente esse homem... Depois de entregar as encomendas, a gente carregava o fusca com a geladeira e rodava a tarde toda de sábado, indo nas casas das freguesas. Invariavelmente, a geladeira voltava vazia. Diabético, a doença foi derrotando-o; causou uma gangrena no pé que teve que ser amputado. Então, sem outra saída, finalmente resolveu se aposentar. Pouco tempo depois, foi embora. Mas algumas das suas receitas foram passadas para a Rosângela, que por exemplo, no final do ano, na época do Natal, faz os filhós em casa. O bacalhau que ela faz fica igualzinho. O Folar, nunca mais comi. Muitos anos após sua morte, andei procurando uma empadinha como a dele. Soube de um lugar, que tinha “a melhor empadinha” de São Paulo, na Av. Sena Madureira. Fomos lá experimentar, e confesso: não chegou nem perto da famosa empadinha do Sr. Emílio português. Saudades gastronômicas. Alguém sabe o que é isso?
Capítulo 21 – Carros, motos e esfihas
Com a mudança de colégio, a mudança de período e a consequente mudança de turma, novas amizades foram surgindo. O Nico e o Nando viraram meio que parceiros de aventuras. Mas a gente já estava mais velho, então as aventuras juvenis agora envolviam carros e motos. O Nando tinha uma irmã, que namorava o Zé. Esse passou a fazer parte da nova gangue, com sua Honda XL 250, a tal xizelona, uma moto gigante que todo mundo adorava. Tinha também o Salgado, que tinha uma Honda ML, a qual ele incrementou com carenagem, escapamento especial, e ficou interessante. O Nando tinha um CG, em “sociedade” comigo. Compramos a moto zero, na época das correntinhas, e a gente tinha um acordo: Um final de semana de cada um, para usar a moto. Mas eu era doido por uma Turuna, a esportiva da época. Achei uma à venda. Fiz a proposta pro vendedor, pra gente fazer um rolo (eu era especialista em rolos) no meu som. O cara topou, estava em Santo Amaro. Num sábado à tarde, reuni a galera pra ir junto comigo ver a moto, mas quando eu estava saindo de casa, meu pai, que nunca foi muito com a idéia de eu ter moto, não deixou. Disse que o som não sairia de casa. Viola no saco, fiquei com a cegezinha, dividindo com o Nando. Com o tempo, alguém apareceu com uma Yamaha cinquentinha que era de corrida, com um motor envenenado. Dei-lhe o nome de Total. E eu adotei a motinho como minha; dei um talento nela, e apesar de desproporcional – ela pequenininha e eu grandão – usava-a pra sair nas baladas com a turma. A gente ia quase todos os sábados à noite para o Ibirapuera, nas cercanias do shopping, “azarar” as meninas. Nunca conseguimos nada, mas a bagunça valia apena. A Total, por ser de pista, andava muito, tinha o escapamento aberto, e fazia um barulho infernal. Lembro que numa saída dessas, como a gente não usava capacete (não era obrigatório, na época) certa vez entrou uma mosca no meu olho, em plena 23 de Maio, a sei lá quantos quilômetros por hora. Na hora, achei que fosse uma pedra, e até conseguir parar, andei uns bons metros às cegas. A gente voltava para o bairro de madrugada, e hoje, como pai, imagino como ficava o coração das nossas mães, com um bando de moleques na rua, de moto, sem dar notícias. Não sei que fim levou a motinho. Provavelmente o Nando tenha feito algum rolo com ela. Quando comecei a namorar com a dona Rosângela, a gente achava melhor sair de carro, pois era muito mais confortável – apesar de ser um fusca – e a moto ficava na garagem, mesmo sendo o “meu” final de semana de usá-la. Eventualmente, quando chegava em casa, o Nando tinha ido lá e pegado a moto na minha vez. Ele fazia muito isso, e eu não me importava. Até o dia em que, tentando ensinar a namorada a pilotar, ela entrou com a moto numa casa, derrubando o portão e amassando o garfo e a roda dianteira. Somado à experiência dos ganchos do caminhão, quando quase morri, acabei desistindo de motos e desfizemos a “sociedade”. Ele assumiu os custos do conserto e o restante da dívida da moto.
Ainda na fase das motos, um belo dia o Salgado inventou de ir à praia de moto. Ele pilotando, e eu na garupa. Ele tinha um primo no litoral, e a gente ia na casa desse primo dele. Acho que era em São Vicente, se não me falha a memória. Na época, ele tinha um walkman que, além da saída para fones de ouvido, tinha também entrada para microfones. Lembro que fiz um dispositivo embutindo os fones de ouvido nos forros dos capacetes, de modo que a gente pudesse ir conversando durante a viagem. Depois, ele passou a usar o dispositivo quando saía com a namorada. No dia programado para a viagem, um sábado de manhã, chovia muito. Pegamos chuva no caminho todo, e quando chegamos no litoral minha jaqueta – de lã – estava ensopada. Antes de irmos à casa do primo, resolvemos dar uma volta pela praia, e acabamos conhecendo uma galera no litoral que também era aficionada por motos. Acabamos ganhando um almoço grátis de um cara dessa turma. O primo dele tinha uma CB 400, um ícone na época, e uma das mais esportivas acessíveis no Brasil daqueles tempos de importações proibidas. Lembro que o primo deixou a gente dar uma volta e a sensação foi incrível: estávamos acostumados com motinhos pequenas, e pilotar uma CB foi instigar o desejo de ter uma moto mais potente. O Salgado morava na Julio Buono, num sobrado de esquina, e lembro que na parte de baixo tinha uma oficina, uma pequena indústria, com prensas e outras máquinas. Acho que faziam dobradiças, lá. Mas nesta época, estava desativada. E a gente usava esse espaço para fazer nossos “reparos” nas motos. Certa vez, o Katá apareceu com uma mobilete, falhando muito. Resolvemos, numa noite de sábado para domingo, desmontar o motorzinho dela para limpeza. Ficamos a noite toda nisso, e no domingo de manhã, após montado, ele saiu com a motinho na rua. Devia ser umas 6 da manhã, a motinho estava sem escapamento, soltava fumaça até pelo guidão, e ele indo pra casa acordando toda a vizinhança com o barulho.
Aos finais de semana, quando a gente não ia para o Ibirapuera ou outro lugar inventado na hora, a balada era no Jonas Esfihas, na Julio Buono. Juntava a galera das motos e eventualmente a dos PX para comer duas esfihas de queijo, que eu particularmente achava sensacional, e o pessoal tirava sarro, porque eu comia com garfo e faca. Sempre fui chique... Comia só duas, porque era o que o dinheiro dava, principalmente no final do mês. Esses encontros foram ficando cada vez menos frequentes, pois eu já estava namorando a dona Rosângela. O pai dela exigia que ela estivesse em casa antes da meia noite. Então, a gente saía pra namorar e perto do horário, eu a levava pra casa. Na volta, parava no Jonas, encontrava a galera e emendava a noite até o dia seguinte na bagunça. Lembro que a “bagunça”, naquela época, era diferente da bagunça de hoje. Atualmente vejo jovens que não conseguem se divertir sem bebida alcoólica ou mesmo uso de drogas. Naquele tempo, a gente se divertia com coca-cola e, no máximo, cigarros. O que importava era quem estava com a gente.
Capítulo 22 – Autorama e trem elétrico
Voltando à época de infância e pré-adolescência, ou seja, muito antes disso tudo, lembro que através de mais um ”escambo” com o Lincoln, caiu em minhas mãos um autorama, da Estrela. Talvez numa troca com um skate, realmente não lembro. Sei que era também um dos sonhos de consumo da molecada da época. Lembro que o kit tinha uma pista bem grande, que era montada “por partes” encaixadas uma na outra, e haviam muitas delas. Como era velho, às vezes os contatos metálicos dos trilhos não deixavam “passar corrente”, ou seja, apresentavam mal contato, e a gente tinha que ficar consertando. Lembro também que, por ser grande, a gente montava ele na cozinha de casa, fazendo inclusive umas curvas elevadas usando as cadeiras da cozinha e passava o dia brincando. Mas os carrinhos originais não eram tão legais. Então, apareceu uma nova mania: montar carrinhos de autorama mais “legais”. Certamente nessa época eu já estava trabalhando, pois descobri uma loja de modelismo na Rua do Seminário, pertinho do viaduto Santa Efigênia, no centro de São Paulo, onde deixava considerável quantia de dinheiro. Tinha de tudo, lá: peças, chassis, rodas, carcaças, aceleradores e até os famosos motores Mabushi, na época, o top dos automodelos. Fiquei freguês, e comecei a montar meus carros. Lembro que o meu preferido era um opala marrom metálico, escala reduzida daquele no qual aprendi a dirigir. Desde sempre tive essa fixação nos opalas. Montei também um fusca, e os dois passaram a ser meus carros oficiais, com motores e chassis iguais. Naquela época havia, no Ibirapuera, uma pista de automodelismo e a gente ia lá, aos finais de semana, com nossos carros para brincar. Era uma pista gigante, e a gente pagava o aluguel “por hora”. Levávamos os carros e os aceleradores, e usávamos a pista até enjoar – ou até onde a grana dava.
Depois de muito tempo, já casado, lembrei que essa loja na Rua do Seminário não era somente voltada ao automodelismo. Haviam também lá, os trens elétricos, e meu vício passou então a ser os trens elétricos. Sempre que possível, quando a grana dava e quando tinha tempo de ir lá, comprava separadamente algumas unidades de trilhos longos e curtos, curvas, desvios, engates, além dos vagões e locomotivas. Acabei adotando a escala HO, mais comum e fácil de achar complementos, inclusive adquirindo sempre os itens da Frateschi. Não sei se a fábrica ainda existe, mas ainda tenho meu conjunto guardado, com mais de 20 metros de trilhos, desvios automáticos, transformador, uma locomotiva da RFFSA e vários vagões, tanto de carga como de passageiros. Tudo comprado nessa loja, num processo que levou alguns anos. Ainda pretendo, algum dia, achar um espaço para fazer uma maquete e deixar o conjunto montado definitivamente. Enquanto isso, ele aguarda, guardadinho em caixas de sapato, na área de serviço de casa.
Capítulo 23 – Canudinhos de papel e espingarda de chumbinho
Quando foi implantado no Brasil, e até há bem pouco tempo, o sinal das transmissões de TV era analógico. Funcionava em VHF, e as antenas externas de TV eram as famosas “espinha de peixe”, porque tinham, literalmente, esse formato. Vários caninhos de alumínio interligados captavam o sinal – geralmente ruim – e enviavam para a TV. Esse tipo de antena tinha que ficar apontada para a torre que transmitia o sinal. Assim, Globo, Cultura e Band, ficavam numa posição; TV Tupi, Manchete e Gazeta, em outra. Quando a gente mudava a posição da antena, geralmente melhorava um canal e piorava outro. Em casa isso não era problema. Lembro que haviam duas antenas no mesmo cano, dispostas em forma de cruz. Assim, não havia a necessidade de ficar virando a antena, pois na parede próxima à TV, havia uma chave de gaxeta, a qual a gente mudava quando a imagem não estava muito boa. Alterando a posição da chave, a gente ligava uma ou outra antena, dependendo do canal sintonizado. Essa deficiência na transmissão (o sinal VHF era muito fraco) fazia com que as pessoas, principalmente as que moravam nas “baixadas” dos bairros mais distantes do centro, fixassem as antenas em canos muuuito altos, para ter uma recepção melhor. Bom, como eram comuns essas antenas, era fácil também achar “restos” delas no lixo ou jogadas num canto. A molecada fazia a festa com as varetas, os caninhos, que eram longos, leves – pois eram de alumínio - e ocos. Foi a fase do “canudinho”. Talvez já tenham ouvido falar em “zarabatana”, uma arma primitiva que lançava setas com a força do sopro do atirador. Essa brincadeira teve também sua época, com a molecada da Caracaxá. A gente pegava um cano de antena, fazia um canudinho de papel com o formato de um longo cone, geralmente usando tiras de jornal, colava com “guspe”, como a gente chamava a saliva, enfiava no cano, media, cortava e Voilá... Estava pronta a nossa arma para as maiores guerras entre a molecada. Alguns, como eu, davam um jeito de colocar dois canos juntos, separados por um bloquinho de madeira e atados com fita isolante ou durex, e a gente tinha uma arma com dois tiros sequenciais. Outros mais elaborados tinham até mira, feita também com pedaços de cano. A gente passava a tarde tentando acertar passarinhos. Quando os pardais fugiam, a gente competia vendo quem mandava o canudinho ou quem acertava algum alvo mais longe.
Na Caracaxá, próximo à esquina da Major, havia, como eu já comentei num capítulo anterior, a casa da Dona Inês, a japonesa dona do empório na esquina. E na casa dela, pertinho do muro, havia um pé de cacto de alguma espécie que eu realmente não sei o nome. Era uma planta bem grande e alta, na qual haviam espinhos também grandes, com perto de uns cinco centímetros de comprimento. Época de muros baixos, e alguém, algum dia, teve a brilhante idéia de colocar um desses espinhos na ponta dos canudinhos de papel. A gente arrancava o espinho e ele saía com uma certa facilidade, inclusive trazendo uma bolinha no final, que era ideal para o travamento dentro do canudinho. Iniciava-se, assim, uma nova fase entre a molecada. E quem sofria eram os gatos da região, constantemente alvejados por esses dardos. Eu andava com minha “arma” sempre municiada, aguardando uma oportunidade para meus disparos. Mas os gatos e cachorros vadios da rua estavam “velhacos”, não apareciam à toa, e não dava pra “desperdiçar” esses elaborados dardos. Lembro que numa ocasião dessas, toda a molecada à toa na rua, alguém me irritou tanto, xingando e provocando que eu, num ato impensado, dei um tiro na direção desse cara. Acontece que, depois do disparo, bem no momento seguinte, lembrei que o dardo era um daqueles preparados com espinho, e acertei-lhe a bunda. Hoje lembrando, acho até engraçado o dardo espetado na bunda do sujeito, pendurado por fora do calção... Como toda fase, essa também acabou passando, foram surgindo outros passatempos e brincadeiras que davam menos trabalho que fazer os canudinhos.
Tive também, perto dessa época, uma espingarda de chumbinho. Uma Rossi, modelo Urko, que sinceramente, não lembro onde arrumei. Provavelmente fruto de mais algum rolo com alguém. Creio ter sido com um dos irmãos mais velhos do Jair, que morava próximo. Enfim, adorava essa espingarda. Mas de que adiantava ter uma espingarda se não havia grana para comprar os chumbinhos? Do outro lado da rua, em frente à entrada da viela, na calçada entre as casas da “alemoa”, dona Aina, e da tia Elvira, havia uma árvore que não dava flores, apenas umas frutinhas em formato de bolinha. Acontece que essas “bolinhas” tinham uma sementinha dentro que era a medida exata do calibre da carabina. Quando descobri isso, meus problemas de municiamento haviam terminado. O tiro não era preciso, mas dava pra se divertir. Quando havia chumbinho, eu era o terror dos passarinhos. Já naquela época, eu era um bom atirador, tanto que a vizinha da frente pediu insistentemente que a gente não disparasse em nenhum passarinho que estivesse na árvore em sua casa. Certa vez, acertei num pardal que com o tiro, ao morrer, travou os dedos das patas e ficou pendurado num dos fios mais altos da rede. Ficou alí por um bom tempo, pendurado no fio, quase na entrada da viela. E cada vez que eu passava por ali e via o passarinho pendurado, me remoía de remorsos. Um arrependimento profundo. Prometi nunca mais atirar em nada que se mova ou tenha vida. Certo dia, sentado no portão de casa, entediado, procurava um alvo e sem achar nada, resolvi testar minha pontaria atirando nos fios da rede elétrica. Havia um cabo elétrico que alimentava a viela, saía da rede principal da rua e alimentava toda a viela, chegando até a última casa. Era um cabo torcido, onde haviam três fios: duas fases e um neutro. Então, entediado, resolvi treinar pontaria nesse cabo. Não sei se por sorte ou perícia mesmo, o fato é que acertei bem no meio dos fios, entre as duas fases, provocando um curto circuito. Faíscas, barulhos e consequentemente a queda do disjuntor no transformador da rua, deixando o quarteirão inteiro sem luz. Mais que depressa, corri guardar o perigoso brinquedo, antes que alguém descobrisse o autor da traquinagem. Usei tanto a espingarda que a coronha, que era de madeira, acabou quebrando. Lembro que a consertei usando duas placas de alumínio, aparafusadas uma de cada lado, e preenchi o vão entre as placas e a madeira restante da coronha com durepoxi. Não ficou bonita, mas ainda funcional. Com uma pintura de preto, ficou um pouquinho “menos pior”. Agora, puxando pela memória e tentando lembrar que fim levou o artefato, não faço a menor ideia. Talvez tenha tido parte em mais algum rolo.
Capítulo 24 – Fogueiras, batatas assadas, chuva de ovos e adeus à infância
Como eu dizia no início, a gente ficava na rua até escurecer. Voltava da escola, comia alguma coisa e já saía pra encontrar os amigos, ou ia pra casa de alguém fazer algum trabalho escolar. Lembro dos mapas de geografia, que a gente era obrigado a fazer, e eu como sempre gostei e levava jeito para desenho, caprichava ao máximo. Para fazer os trabalhos a gente tinha que ir antes à lojinha da dona Marisa, na rua da Esperança, pra comprar o papel almaço e as sulfites, e quando não fazíamos o trabalho no meu quarto das bagunças, eu ia na casa do Mané. As irmãs dele, mais velhas, sempre acabavam ajudando a gente. Lembro particularmente de uma dessas vezes, onde a gente tinha que fazer um mapa do Brasil detalhando os estados e capitais, cada um com uma cor. Apesar de na época existirem gabaritos com o contorno do mapa, desta vez resolvi inventar: para não ter que detalhar TODO o litoral, cheio de curvas e reentrâncias, inventei uma técnica que deixou o mapa muito mais bonito: decidi “esfumaçar” toda a linha de fronteira, inclusive o litoral, usando lápis de cor. Ficou realmente muito bonito, e parecia que o mapa havia sido recortado e colado sobre outro papel, como se fosse em relevo. Apesar de bonito, tomei pau, pois o objetivo do trabalho era DETALHAR o mapa, e com essa minha técnica eu havia perdido todos os detalhes. A professora não levou em consideração o trabalho artístico demandado, mas avaliou somente a parte técnica...
Terminados os trabalhos ou tarefas escolares, a gente ia pra rua. Jogar bola, taco, empinar pipa, valia qualquer coisa pra não ficar em casa. Só nos lembrávamos de voltar quando a mãe chamava. E por questão de educação, não precisava chamar duas vezes. Muitas vezes, a gente jantava e voltava pra rua. Era comum, na turma da Caracaxá, a gente fazer fogueira à noite, geralmente perto da oficina do Ferreirinha. Saíamos pela vizinhança catando tudo que pudesse ser queimado. E junto a essas fogueiras, a gente ficava agachado batendo papo até a hora de ir dormir. Lembro uma vez que o Katá resolveu roubar umas batatas no armazém da dona Inês pra gente assar na fogueira. Todo mundo duvidou, e ficamos imaginando como ele iria fazer isso. Na época ele tinha um cabelão estilo “blackpower”. Foi até o armazém, e numa distração da dona, pegou duas ou três batatas, colocou no alto da cabeça, no meio do cabelão e saiu tranquilamente, sem mexer a cabeça. Voltou no grupo de mãos vazias, fazendo cena com cara de triste, e todo mundo começou a zombar dele. De repente, ele abaixou a cabeça e as batatas caíram no chão... Risada geral. No fim, acabamos realmente comendo batatas assadas na fogueira. A Caracaxá era multicultural. Havia a Alemoa, o Mané e seus irmãos, Dani e Virgílio, que a gente chamava de “Rilo”, venezuelanos, muitos descendentes de japoneses, e até ingleses. Em frente ao Ferreirinha, havia a família do André e do Anton, dois ingleses. André tocava violão, e lembro dele na beira da fogueira tocando violão e imitando Bob Dylan. Eles tinham uma mesa de pingue-pongue na garagem, e algumas vezes, por falta de coisa melhor a fazer, a gente passava a noite de sábado jogando pingue-pongue. Na época, eu tinha mais contato com o Anton, que era mais novo. Mas o André, depois de um tempo, acabou tornando-se colega de trabalho e até um meio que sócio, num estúdio que a gente montou na casa dele, quando as coisas começaram a ficar pretas no sentido profissional. Foi na época do Plano Collor, e a empresa na qual havíamos trabalhado fechou. André havia saído antes, e já estava em carreira solo. Quando a empresa fechou, eu fiquei meio “desnorteado”, fiz alguns contatos, e consegui alguns trabalhos para fazer em casa, onde eu montei meu pequeno estúdio. Pegava alguns free lancers, mas não era suficiente. Como ele já estava há mais tempo nessa pegada e tinha mais e melhores clientes, ele meio que me “acolheu”, e passamos algum tempo trabalhando juntos nesse estúdio – um quartinho na casa dele. Esse assunto provavelmente será abordado mais adiante, pois há muitas histórias a serem contadas desse período em que trabalhamos juntos nessa empresa.
Moravam também na Caracaxá, ao lado da casa da minha Tia Elvira, duas senhoras cujos nomes não consigo lembrar. Talvez pelo fato delas serem muito chatas e não terem contato com ninguém. Deviam ser duas irmãs solteiras, já com idade avançada, e muito, mas muito rabugentas. Eram também umas das que mais reclamavam dos carrinhos de rolimã, junto com a Dona Aina, quando estes viraram febre na rua. A molecada adorava futebol, e invariavelmente o campo, que era bastante grande, do tamanho da rua, inevitavelmente ficava uma parte em frente à casa delas. Mas a gente precisava sempre tomar muito cuidado com os chutes. Assim como a dona Belinha, elas tinham a péssima mania de rasgar todas as bolas que caíssem no seu quintal. E uma vez, aconteceu isso com nossa bola “Dente de leite” recém-comprada na lojinha da dona Marisa. Apesar de ser de plástico, era uma das melhores bolas no mercado e novinha, foi rasgada pelas irmãs. Planejamos nossa vingança. Eu e o Mané arrumamos uma caixa de ovos, e no cair da noite desse dia, fizemos chover ovos na casa das irmãs, acertando a fachada, a porta, a varanda, o quintal, enfim, praticamente toda a frente da casa. Depois da chuva de ovos, tratamos de correr pra casa. Estávamos os dois ainda sob efeito da adrenalina, rindo, quando alguém bate palmas no portão. Meu pai foi atender, e eram dois policiais. As velhas haviam dado queixa, e os policiais foram em casa pra tirar satisfação. Meu pai, que nunca havia sido sequer parado na rua por um policial, ficou putíssimo conosco. Lembro que o policial, ao fazê-lo assinar o Boletim de Ocorrência – porque nós éramos menores de idade - o aconselhou, dizendo pra “não matar os moleques na porrada”, que isso era coisa normal da idade, etc. e tal. Eu, que já estava preparado para a surra, não acreditei quando meu pai voltou pra casa, senão rindo, menos puto do que estava quando saiu. A preocupação dele nessa hora, além de ter seu nome na polícia, era onde a gente havia arrumado os ovos... Fato é que, se eu não apanhei dessa vez em que merecia, houve outra em que quase apanhei sem merecer: Estávamos eu e o Rafa jogando bola no quintal, no corredor lateral de casa. Nesse dia, a casa estava passando por algum tipo de reforma ou pintura, de modo que alguns móveis estavam na varanda da frente. Meu pai tinha um xodó: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima que ele trouxera de Portugal, e que ficava em seu quarto, dentro de um oratório de madeira com a frente e as laterais de vidro, em cima de uma cômoda/gaveteiro. Não era pequena, devia ter bem uns 90 centímetros de altura. O oratório era maior, pois comportava a imagem que tinha uma espécie de resplendor com luzinhas que acendiam quando ligadas na tomada. Mais a cúpula em formato de abóboda, calculo hoje que tinha perto de um metro e vinte de altura, se não mais. Com a reforma, o oratório com a Santa estavam na varanda, enquanto se pintava o quarto dele. E, jogando bola, certa hora o Rafa deu um chutão na bola que foi, caprichosamente, quebrar o vidro frontal do oratório. Só lembro do meu pai saindo bufando de dentro de casa. Eu estava tranquilo, pois não tive culpa nenhuma. O Rafa ficou vermelho na hora. Sem perguntar nada, meu pai pegou aquele que estava mais perto - no caso, eu – e com sua mão pesada, tentava me bater. Me segurou pelo braço com uma mão, e com a outra, dava os tapas. Mas à medida em que ele ia dar o tapa, eu, com a mão livre, segurava a mão dele. Fez isso algumas vezes, e não conseguiu me acertar nenhuma vez. Por fim, após algumas tentativas frustradas, acho que acabou percebendo que a gente já não era mais criança, já não era possível bater na gente, porque nós havíamos crescido e ficado mais fortes que ele. Posso dizer com certeza que esse foi o episódio que marcou o final da minha infância.
Capítulo 25 – Um Ogro no marketing hoteleiro
Em 1987, eu ainda estava trabalhando no cursinho. Estive lá por uns bons 4 anos. Tanto tempo, que já estava me tornando um daqueles “velhacos’ que dormiam no meio das pilhas de papel, para não ser encontrado. Nesse período, a gente já estava com o casamento marcado. Resolvemos a data na casa da Heloisa, uma daquelas amigas da Rô que iam de carona com o Hirô para casa. Eis que um belo dia o André me fez uma indicação de um amigo que trabalhava numa agência de propaganda e estava precisando muito de um cara pra trabalhar lá com ele. Até então eu era apenas um desenhista trabalhando numa gráfica; eu gostava, era legal, mas o meu sonho era entrar oficialmente na área de propaganda. Então fui lá falar com o Martins. Ele era o responsável pela área de comunicação da MKT, uma agência de propaganda na Avenida Pacaembu que funcionava numa casona bonita bem próxima ao estádio do mesmo nome, e que atendia exclusivamente o setor de hotelaria. Tinham vários clientes, hotéis espalhados pelo estado de São Paulo. Acredito que tenha gostado de mim. E eu vi ali a tão aguardada oportunidade de entrar no segmento que eu sempre havia sonhado: o das agências de propaganda – acredito que o sonho de todo desenhista/publicitário. Apesar de tanto tempo, lembro da nossa primeira conversa. Ele me mostrou a agência, me mostrou como as coisas funcionariam, salário, horários, e tal. Nessa conversa, lembro que minha maior preocupação era que eu e a Rô já estávamos com a data de casamento marcada, e que eu não poderia sair do cursinho, onde era o supervisor, pra “entrar numa furada”. Martins me disse então que não poderia garantir nada, mas que se dependesse dele, eu ficaria lá por um bom tempo. Movido então pela minha vontade de entrar na área, pedi demissão do cursinho e comecei a trabalhar na MKT. O Martins era um sujeito legal, grande profissional, carismático e sempre de bem com a vida. Formávamos um time, e começamos a nos dar bem, tocando nós dois o departamento de arte da agência. Como funcionava numa casa, havia lá uma cozinha, e a gente fazia vaquinha entre todos da agência pra fazer uma comprinha, e a dona Márcia, a copeira, fazia o almoço da gente. Almoçávamos todos juntos na mesa da sala de reuniões. Quando não rolava o almoço, havia ali perto, bem juntinho da entrada do estádio, uma barraca que fazia um cachorro-quente fantástico, e super-barato. Era ali que almoçávamos. Outras vezes, a gente arriscava numa padaria, também ali perto, na rua Alagoas, onde havia uma infinidade de doces portugueses e uma outra enormidade de salgados. Lembro de uma ocasião em que fomos, eu e o Martins, visitar um cliente usando o carro do chefe. Era um opala muito bonito, e naquele dia, talvez para impressionar, foi até mandado lavar. Chegamos no cliente, paramos o carro numa rua transversal, pois não havia lugar para estacionar nas proximidades. Fizemos nossa apresentação e fechamos contrato. Na hora de voltar, todo contente, o Martins foi dar a partida, e nada do bichão pegar. Tenta daqui, tenta dali, e nada. Motor de arranque havia decidido que era hora de parar. Como quem não quer nada, eu meio que caçoando, disse que eu faria o carro pegar, se ele tivesse uma chave de fenda. Eu havia feito, na época do colegial, um curso básico de mecânica automotiva, numa parceria da escola com o SENAI. Nada grande coisa. Naquela ocasião, a turma havia desmontado o motor de uma Kombi, e o curso era basicamente isso: ao desmontar o motor, a gente aprenderia a função de cada componente. Meu irmão também já havia tido um Opala, e eu sabia que dava prá dar a partida no motor de arranque provocando um curto-circuito ou ligação direta nos terminais. Contava com isso pra ligar o opalão da agência, mas precisava de uma chave de fenda pra dar o curto-circuito. Achamos uma no porta-malas, e o Martins, não acreditando, me disse que se eu fizesse o carro pegar, ele me pagaria um milk-shake. Pedi pra ele sentar ao volante e que desse a partida. Incorporando o espirito do McGuiver, aquele cara das séries de TV que fazia um explosivo com um chiclete e um palito de fósforo, provoquei o curto, e o carro pegou. Tocamos viagem. Achando que estávamos voltando pra agência, fiquei curioso quando percebi que o caminho estava errado. Ele estava me levando no Joaquin´s, uma lanchonete na Joaquim Floriano pra pagar a aposta, da qual eu nem lembrava mais. Um Milk-Shake fantástico, tão bom que ainda hoje lembro. Virei fã por um tempo, especialmente quando, alguns anos mais tarde, passei a trabalhar nas cercanias da Vila Nova Conceição. O Martins era um cara “de lua”. Tinha suas fases. E numa conversa sem grandes pretensões, um dia, eu citei aquela loja na Rua do Seminário, que vendia miniaturas. Ele cismou de ir lá conhecer, e fomos. Acabou ficando aficionado em trens elétricos, e no mesmo dia, comprou um kit completo com trilhos, locomotiva e vagões, numa escala reduzida, menor que a HO da qual eu já era fã. Ele disse que tinha que ser bem pequeno, pois montaria o trem na estante da sala dele. Tempos depois, na única vez em que fui à sua casa, para o aniversário de uma das suas filhas, o trem estava realmente lá, na estante. Também era cinófilo. Viciado em cinema. Na época, não eram todos que já tinham vídeo-cassete em casa. Eu mesmo, não tinha, e era louco pra ter um Panasonic G21. Mas como as importações eram proibidas, teria que arrumar alguém para trazer ou ir eu mesmo buscar um no Paraguai, como contrabando. Demorei muito pra ter meu primeiro vídeo cassete. Mas o Martins já tinha um, inclusive com controle remoto “de fio”. Assim, toda sexta-feira, a gente ia na Blockbuster, na mesma Av. Pacaembu, pertinho da agência, onde ele alugava pelo menos dois filmes para o final de semana. No cinema, toda estreia lá estava o Martins na primeira sessão. E como a gente dispunha de tempo livre, pois éramos nós que fazíamos nosso horário, invariavelmente, comecei a ir com ele nas estreias, geralmente na Av. Paulista, no Center 3 ou em um dos Cine Gazeta, Gazetinha ou Gazetão. Graças a ele tornei-me também, além de cinéfilo, viciado em cinema, e por um bom tempo, mais tarde, virei frequentador assíduo dos cinemas daquela região, indo pelo menos uma vez por semana assistir a algum filme. Lembro inclusive de quando o filme “Je Vous Salue, Marie” de Jean Luc Godard estava para estrear em São Paulo, mas na época teve sua exibição proibida na cidade. O filme estava gerando tanta polêmica, que o Martins precisava assistir. Sem pestanejar, fomos assistir à estreia do filme na cidade de Santos, fazendo um bate-e-volta só pra poder ver se a polêmica era válida. Sinceramente, nem lembro mais do roteiro, nem se valeu a pena tamanho sacrifício para assistir.
O Martins tinha um Fiat 147, azul, e quando não achava lugar para estacionar no quintal da agência, tinha que deixar o carro na rua, numa das travessas da Pacaembu. Eu não tinha esse problema, pois raramente ia trabalhar de carro. Geralmente, por causa do problema das vagas, ia trabalhar de ônibus. Pegava o “177C - Clínicas”, na Júlio Buono e descia na porta da agência. Quanto aos carros, as vagas para estacionar eram disputadas, pois o estacionamento era proibido na Av. Pacaembu, e o pessoal dos outros escritórios da região estacionavam nas travessas e cercanias da agência. Fato curioso que ao lembrar me deixa até hoje impressionado, é que para evitar ficar manobrando na vaga, geralmente apertada, ele simplesmente embicava o carro na vaga, puxava o freio de mão, descia, ia até a traseira do carro e levantava a traseira do carro pelo para-choques, levando-o até perto da calçada e colocando então corretamente na vaga. Comecei a chama-lo de “ogro” por causa disso.
Como a gente atendia exclusivamente a área hoteleira, acabei conhecendo muitos donos de hotéis, e um deles, ao saber que meu casamento estava próximo, ofereceu a hospedagem de lua-de-mel como presente de casamento. Era um hotel 5 estrelas em Ilhabela, e lógico que aceitei. Dona Rosângela também gostou da ideia, e ficamos felizes em termos conseguido – de graça - um lugar legal para passar nossa lua-de-mel. Casaríamos no sábado, 16 de maio, e dia 17 iriamos com meu fusca para Ilhabela. No dia 15, sexta-feira à tarde, fui até a loja buscar o terno que eu havia alugado para a cerimônia. Na verdade, não um terno, mas um “summer” branco, modinha entre os noivos na época. Era pra ser rapidinho, ir até a Av. Rebouças e voltar pra Av. Pacaembu. Mas, como digo, alegria de pobre dura pouco, e o fusca resolveu quebrar no meio do caminho na volta pra agência. Teve que ir pra casa de guincho, direto pra oficina e, sem carro, nossa lua-de-mel em um hotel 5 estrelas em Ilhabela foi pro saco... Acabamos indo para São Vicente, de carona, para um apartamento de uma amiga de trabalho da Rosângela.
Passados alguns meses, a MKT decretou falência. Era comandada por dois irmãos, o Silvio, na parte administrativa, e o Beto, na parte financeira. A gente já vinha estranhando a falta de vaquinhas para os almoços, a falta de cafezinho e o sumiço da copeira e da faxineira. Com a falência, nossos salários, que já estavam atrasados, também sumiram. E fomos então chamados à sala do Beto, para uma tentativa de acerto. Ele começou expondo as dificuldades financeiras, e coisa e tal, mas não falava nada de nos pagar. E a casa frase, a cada embromação, o Martins ia ficando cada vez mais vermelho, a veia no pescoço engrossando e pulsando, até que, num ímpeto de raiva, ele simplesmente pegou a mesa do Beto pela beirada e a jogou para o alto. Nada difícil, para quem levantava um Fiat 147. Passou a um palmo do meu nariz. Mesa grande, pesada, de madeira, acabou voando pelos ares e indo cair num canto da sala, com tudo que tinha em cima – papéis, telefone, agenda, porta-canetas e tudo o mais – se espalhando pela sala. Ato contínuo, voltou-se para a porta, e foi destruindo tudo que havia no caminho. Primeiro, dentro da sala do Beto: armários, vasos, decoração... depois continuou até chegar à recepção. Lembro que era uma casa térrea, com as paredes e portas de madeira e vidro, e tudo o que havia no caminho e pudesse ser quebrado, literalmente, foi. E eu correndo atrás, tentando segura-lo. Mas quem consegue segurar um ogro em fúria? E assim foi até a recepção, onde havia uma porta de vidro temperado que ele atravessou sem abrir. Chegamos na parte de fora, e por sorte o carro do Silvo não estava lá, senão teria sido destruído, também. Mas lembro que ele chegou ainda nervoso junto ao pobre fiatizinho, bufando, e num último acesso de raiva, desferiu um soco no teto do carro que afundou, deixando a marca do punho fechado no teto do carrinho. Tratei de tira-lo dali, levando-o pra barraca de cachorro quente a fim de acalmar-nos – mais ele do que a mim mesmo. E assim encerrou-se minha passagem pelo ramo hoteleiro. Os salários atrasados, bem como direitos trabalhistas, férias, décimo terceiro, até hoje não recebi. Nem nunca mais soube dos dois irmãos trapalhões que conseguiram afundar uma agência cheia de bons profissionais e que tinha tudo para dar certo. Com relação ao Martins, tempos depois voltamos a trabalhar juntos em outra empresa, assunto que certamente será descrito num novo capítulo. Mas apesar de minhas muitas tentativas frustradas de localiza-lo, após esse segundo período, nunca mais tive notícias. Cheguei a enviar várias mensagens para todas as pessoas que achei nas redes sociais que tivessem o mesmo nome e sobrenome das filhas dele tentando encontra-lo, mas em vão. Talvez o Ogro tenha voltado para a caverna e não saiu mais.
Capítulo 26 – Histórias de pescador
Quando moleque, o Ciso, meu irmão mais velho, levava a molecada pra ir pescar. Lembro que a gente ia pra Mairiporã, na represa. Ninguém era um expert em pescaria, mas a gente se divertia pescando tilápias e às vezes algum lambari. Apesar de hoje achar bem perto da capital, naquela época tinha algo de aventura. Quando a gente é criança, tudo parece maior. Inclusive o trajeto de casa até a represa. Não sei dizer nomes dos lugares, mas a gente passava uma tarde gostosa. Quando não dava peixe, a gente entrava na água pra se refrescar. Lembro que havia um riozinho, que — acho — alimentava a represa. Lembro também que sobre esse riozinho havia uma ponte, da qual a gente pulava. Foge-me à lembrança e não sei precisar se era nessas pescarias junto com meu irmão ou alguns anos mais tarde, quando passei a ir por conta própria. O fato é que essas pescarias me encorajaram, anos mais tarde, já casado, a investir num equipamento melhor. Depois que casamos, os pais da Rô mudaram-se para o interior, a mais de 400 km de S. Paulo, e a gente ia pra lá pelo menos duas vezes por ano, em junho e dezembro, quando eu tirava 15 dias de férias do trabalho. O Sr. Elias, meu sogro, era um pescador fanático. E assim, graças a ele, nessas viagens de férias, peguei mais gosto pela coisa, e acabei adquirindo um equipamento melhorzinho. A gente chegava na casa dele, e ele já ia logo arrumando as tralhas pra gente ir pescar. Mal dava tempo de chegar, e eu e ele já saíamos pra algum corregozinho, num dos lugares que só ele conhecia. Outras vezes, a gente ia pescar no Rio Paranapanema, que era próximo da cidade e fazia divisa com o Paraná. Os tios da Rô tinham um “estaleiro”, um lugar preparado no “panema”, como chamavam o riozão, e a gente costumava pescar lá. Falar a verdade, nunca peguei um peixão do qual pudesse me orgulhar nesse lugar. Mas houve uma vez em que estávamos eu e o Tio Neco nesse estaleiro, tentando a sorte. O rio estava ruim de peixe, fim de tarde, e chateado resolvi dar uma volta pra esticar as pernas pelo lugar. Lancei a linha com a isca no rio, encaixei a vara numa fresta de madeira do estaleiro e saí pra dar uma volta. Justamente nessa hora algum peixão resolveu morder a isca, e como a vara não estava amarrada, levou tudo embora: vara e carretilha foram parar no fundo do Panema. Eu havia gasto uma grana razoável nessa vara de fibra de carbono e na carretilha importada, então não iria deixar barato. Até a linha que eu usava era cara, verde fluorescente, então não seria difícil identifica-la. Mas como já começava a escurecer, resolvemos vir embora e deixar tudo pra lá. Chegando em casa, foi aquela zoeira: o cara da cidade que não sabia pescar, o peixe levou a melhor, essas coisas. No dia seguinte, determinado a recuperar meu investimento e lavar minha honra, logo de manhazinha arrumei um pedaço de ferro de construção e fiz um tipo de gancho com três pontas, como uma âncora, com uns 15 cms de comprimento, uma corda de nylon, dessas de varal, e voltei ao rio. De cima do estaleiro, comecei a jogar várias vezes o gancho em várias direções, até que, finalmente numa recolhida, a linha verde fluorescente veio junto. Animado, comecei a puxar, e parece que estava enroscado em algo na beira do barranco. Dei alguns trancos, a linha afrouxou e para minha surpresa, após puxar, veio a vara e a carretilha, com toda a linha descarregada. Tudo cheio de areia, a carretilha mal rodava, e eu lavei o máximo que pude no próprio rio, e consegui faze-la voltar a funcionar. Peguei a vara e comecei a enrolar a linha que estava dentro do rio, na esperança de que o tal peixão viesse junto. Quando consegui recolher, vi que na ponta, não havia nem sinal do anzol e do peixe que a carregou. Não peguei o peixe, mas feliz da vida, voltei pra casa todo pimpão com meu equipamento recuperado e ninguém acreditou que eu tinha conseguido.
Pescar com o sogro sempre rendeu muitas histórias. Ele conhecia cada regato, cada represa da região, e a gente sempre ia nos lugares mais inacessíveis, pois segundo ele, ali deveria haver mais peixes, já que ninguém pescava lá. Nessas andanças, geralmente nas férias de final de ano, a gente tinha que atravessar por algum milharal. Nessa época eu tinha uma Brasília, e na volta da pescaria, invariavelmente a gente parava na beira de alguma plantação e enchia a bichinha de milho verde, pegando as espigas na beira da estrada mesmo, sem nem muito esforço pra entrar no milharal. Chegávamos em casa e era aquela festa. As tias se reuniam no barracão da casa de uma delas pra fazer pamonha, curau e bolo de milho. Montava-se uma operação de guerra: uns descascavam, outros ralavam, outras coavam e outras cozinhavam. E no final, era a festa do milho verde, com todo mundo comendo e se deliciando com as delícias da roça. Tudo muito gostoso, e deixou saudade.
Numa outra ocasião, saímos para uma pescaria noturna. Mas esta não haveria de ser uma pescaria comum: a gente iria pegar tuvira, um peixe comprido e quase sem escamas, parente do peixe elétrico. Iríamos usa-los como isca no dia seguinte para tentar pegar dourados, no rio Paranapanema. Eu não conhecia, então era tudo festa. O que eu não sabia é que a tal tuvira vive em locais inundados, embaixo da vegetação flutuante. E para pega-la, a gente tem que entrar na água, passar um tal de xibiu, uma peneira enorme, por baixo dos aguapés pra poder pegar os tais bichinhos. Comecei a ficar preocupado… Como a operação era complicada, o Sr. Elias chamou uma galera considerável, e sendo muita gente, fomos de caminhão, todo mundo na carroceria. Chegamos na beira de um dos córregos que só ele conhecia, no meio do mato, sem luz nenhuma, na maior escuridão. Cada um com sua lanterninha, alguns tiraram as roupas e, só de cuecas, entraram na água com a peneira na mão. Outros ficavam fora, com um tambor já com água pela metade, para colocar as tuviras pescadas. Eu, cara da cidade, ficava do lado de fora, só observando. Era uma noite de verão no final do ano, fazia calor, e vendo que o negócio era divertido e não apresentava perigo, pois a água era baixa, na altura do umbigo, resolvi entrar também e participar da brincadeira. Peguei uma beira da peneira e fomos passando por baixo dos aguapés. A cada passada, um tanto de tuviras, junto com alguns caranguejos e outros insetos. Até a hora em que, numa dessas passadas, junto das tuviras vem na peneira uma cobra imensa que, sem ninguém pestanejar, foi jogada longe antes que pudesse nos fazer alguma coisa. Nem sei que cobra era, mas era grande e gorda. Talvez uma jiboia. Então, dado o susto, achamos que já havíamos pegado tuviras suficientes, e voltamos pra casa. No dia seguinte, eu, o Sr. Elias e seu amigo Torquato partimos rumo ao Panema para pescar dourado. Eles tinham um bote em sociedade, que estaria ancorado em alguma beira do rio, num lugar que só eles sabiam. Fomos de Brasília até uma beira de mato, até onde o carro conseguiu chegar. Dali pra frente, só à pé. Embrenhamo-nos no mato, e após uma curta caminhada, chegamos no tal lugar onde o barco deveria estar. A princípio, não vi barco algum. Mas eles me mostraram o barco amarrado numa corda, afundado, a uns três metros da beira do rio. Um frio me percorreu a espinha: a gente ia pescar nisso? Se vazio ele já havia afundado, imagina com três caras dentro? Mas como eu não queria passar por covarde, fiquei quieto, esperando ver a solução que eles dariam. O Torquato tirou a roupa, ficando só de cuecas, entrou na água e foi buscar o barco, que estava cheio de barro. Ali mesmo, com a própria água do rio lavou tudo. Tombando o barco várias vezes, para um lado e para o outro, tirou toda água de dentro, e até que o bichinho ficou limpinho. Embarcamos, o Torquato pegou um dos remos, o Sr. Elias o outro e começamos a subir o rio. Eu, com um baldinho na mão, esperava a qualquer momento o negócio começar a fazer água e afundar, mas por incrível que pareça, não entrou uma gota d’água e o botinho aguentou o dia todo. Depois vim a saber que eles deixavam o bote afundado de propósito, para que a madeira não ressecasse, e estando encharcada, dilatava e vedava todas as possíveis infiltrações de água. Subimos um bom pedaço do rio, revezando no remo, até chegar num ponto em que julgaram ideal. Paramos no meio do rio, correnteza razoável, e lançamos ancora. Torquato na frente, Sr. Elias no meio e eu na parte de trás, cada um montou suas tralhas e começamos nossa pescaria. Ficamos um bom tempo ali, sem nem ao menos uma beliscada nas iscas. Até que o Torquato acabou enjoando, se ajeitou meio que deitado na ponta do bote e resolveu tirar um cochilo. Depois de um tempo, o cochilo virou sono pesado, e o cara começou a roncar. Olhei para o Sr. Elias, ele olhou pra mim, e sem dizer nada, resolvemos pregar uma peça no dorminhoco. Com um movimento brusco combinado, acabamos balançando bem forte o barco e o Torquato, que estava apoiado na beirada, acabou acordando dentro d’água. Ficou P* com a gente, mas acabou rindo também, no final.
Realmente não dá pra enumerar nem narrar todas as histórias de pescaria com o Sr. Elias. Foram muitas, uma mais engraçada que a outra. Algumas histórias muito engraçadas tiveram como protagonistas pessoas da família as quais não gostaria de citar aqui, por isso deixo de publica-las, guardando-as apenas em minha memória. Com a morte do Sr. Elias, minhas aventuras pesqueiras foram perdendo a graça e diminuíram drasticamente, já que eu não tinha mais meu companheiro de aventuras, e acabaram restringindo-se tão somente aos pesque-e-pague aqui da minha cidade, onde ia eventualmente com a Isabela, minha filha caçula. A bem da verdade, já faz alguns anos que fomos pela última vez. O equipamento de pesca continua guardado, numa prateleira na área de serviço de casa. Quem sabe qualquer hora dessas a gente se anima novamente pra uma nova pescaria?
Capítulo 27 — A Sage, Free-lancers e fotografias
Saindo da MKT, a coisa começou a ficar “preta”. De repente, com a Rosângela grávida, me vi desempregado. Ela ainda estava trabalhando numa associação da Petrobrás, mas a gente já havia decidido que, assim que a Daniela nascesse, ela sairia do emprego para dedicação total ao nenê. Eu tinha ainda minha velha prancheta que, apesar de guardada há algum tempo, estava plenamente funcional. Tratei de arrumar um cantinho no nosso cafofo para monta-la, e lembro que ela ficava realmente num canto do nosso quarto. Vale aqui um parêntesis: Quando casamos, meu pai ofereceu pra gente morar no antigo “quarto das bagunças”, o mesmo que havia sido meu quarto. Nada mal, e na minha cabeça, ficaríamos lá por um curto espaço de tempo, até que a gente conseguisse uma grana pra comprar nossa casa. Ele por conta própria deu uma reformada no quarto; contratou mão de obra para dar um talento no lugar, com massa corrida e pintura novas, o que acabou apagando minhas obras de arte nas paredes e as estrelas fluorescentes do teto. Era um quarto e uma cozinha, com o banheiro embaixo da escada. Começamos literalmente do zero; compramos uma geladeira no Macro da Marginal Tietê, e o Rui, que tinha uma Kombi, foi comigo buscar. Compramos também um fogão em suaves montes de prestações, além de uma mesa de madeira com cadeiras da TokStok, modinha na época. A cozinha era tão pequena que a mesa era dobrável, pra poder caber. Mais uma cama e um guarda-roupas, uma estantezinha e uma TV que o Ciso tirou na fábrica (ele trabalhava na Walita – Phillips) a um precinho bem abaixo do mercado. Era essa nossa casinha. Ficamos lá por um ano, mais ou menos, até o nascimento da Daniela, quando o lugar ficou muito pequeno para comportar também um berço, e então alugamos um apartamento na Av. Maestro Vila Lobos, no Tucuruvi.
Durante esse “um ano” em que moramos lá, antes da Daniela nascer e recém saído da MKT, eu ainda tinha contato com o Martins, e com nossa saída da empresa, fizemos, por um tempo, muitos free-lancers juntos: Ele tinha uma cliente numa empresa de eletrônicos que constantemente precisava de desenhos técnicos de componentes eletrônicos, nos quais eu era muito bom. Ele me passava esses trabalhos e com eles, além de outros freelas que eu pegava por conta em algumas agências de comunicação, como anúncios de jornal e coisas afins, a gente conseguia se virar e até comer uma carninha de vez em quando.
Um belo dia o André, aquele meu vizinho inglês da Caracaxá, me convidou a conhecer a Sage, empresa na qual ele trabalhava e que constantemente precisava de free-lancers. Fui conhecer, e logo me arrumaram uma tarefa lá: era um trampo extremamente chato de paste-up de um catálogo da Volswagen, no qual o Urias estava trabalhando e – acho – que não tinha a paciência necessária. Paciência com montagem de paste-up sempre tive, pois durante bom par de anos fiz isso no Cursinho Universitário. Terminei o tal catálogo e parece que fui aprovado, entrando, assim, no “fim da fila” dos freelancers da Sage. Haviam seis ou sete na minha frente, e eu só era chamado quando havia trabalho para todos os que estavam à minha frente. Ainda assim, graças aos céus, o serviço nunca faltava. O Martins sempre se referia a mim como “o rei do estilete”, devido à minha extrema habilidade com a ferramenta. “- Ele consegue cortar uma folha de papel de arroz sem cortar a folha de baixo”, dizia ele. E com a demanda de trabalho sempre aumentando, na Sage fui ficando. A cada trabalho realizado, era preciso emitir uma nota fiscal de serviços, que eu não tinha. Então, não só eu, mas muitos outros, tínhamos que “comprar” uma nota fiscal de alguém, geralmente pagando 10% do valor ao emitente, a título de impostos, para poder receber. Nessa época, e por esse motivo, abri minha primeira empresa: a Dot´Spray. O nome fazia analogia ao meu sobrenome e a um dos meus passatempos favoritos na época: o grafite. Daí, o spray. Nesse período entre agências e entre free-lancers, comecei a fazer grafites pelas ruas da Vila Gustavo. Não confundir com pichação. Da época do cursinho eu tinha guardadas várias folhas de acetato, aquelas que eram usadas como base para montar os fotolitos para gravação de chapas para impressão e depois seriam jogadas fora. Com eles, eu fazia as máscaras para os grafites, dos mais variados temas: personagens diversos, palavras de ordem, símbolos... Alguns ficavam tão bons que os amigos pediam para grafitar os vidros dos carros ou as paredes de suas casas.. De fato, ainda tenho algumas máscaras guardadas no porão de casa, dentro de uma pasta de papelão, junto do meu estojo de tintas Ecoline Tallens, réguas, escalímetros e canetas nanquim.
A Sage era uma das maiores produtoras do mercado. Lá, a gente fazia de tudo. E como free-lancers, cada um tinha seu material próprio. E eu adorava visitar as papelarias da Rua da Consolação, como a Michelangelo, onde comprava-se tudo o que havia de melhor para essa área. Foi lá que adquiri a maior parte do meu material de trabalho, e lembro que, mesmo anos mais tarde, já morando na Vila Mariana, quando precisava de algum material que não tinha disponível, eu saía de casa e ia até lá de bicicleta, pela Domingos de Morais, Av. Paulista e descia a Consolação até a loja para comprar alguma coisa, só pra não usar o carro.
A Sage foi também uma grande escola para mim. Nos tempos do cursinho, eu era desenhista. Saindo de lá, e indo para a MKT, fui promovido a “diretor de arte”. Vale lembrar que na Sage, éramos todos considerados diretores de arte, que pra mim, na época, não fazia diferença alguma, já que a gente fazia tudo o que aparecesse pela frente. Ilustrações, maquetes e todo tipo de projeto que por ventura aparecesse. Uma coisa que particularmente ficou gravada na memória é a colorização de slides: A gente usava ecoline para colorizar slides e transparências preto-e-branco que seriam usados nas apresentações. Quando tinha que ser uma cor sólida, usávamos películas autoadesivas coloridas, um trabalho que realmente exigia além de paciência, olhos muito bons, pois era tudo minúsculo. Lembro até de fazer um projeto elétrico (que eu conhecia graças ao SENAI) para uma vitrine da Avon que seria usada como expositora numa feira. A ideia era uma base, onde ficariam os produtos encimadas por um céu estrelado, ou seja, pontilhado de pontos luminosos que eu, engenhosamente, consegui fazer usando micro-leds. Na época, não havia ainda a fibra ótica, o que teria tido um resultado infinitamente melhor. Mas fiz então com os micro-leds, todos ligados em conjunto e colados por trás do painel devidamente pintado de um azul escuro quase preto e perfurado. Para deixar a coisa mais realista, com o brilho das luzinhas oscilando, liguei o conjunto na saída de áudio de um rádio portátil que eu tinha, e com a variação do som do rádio, o efeito das luzinhas ficou bem legal. Era a tecnologia que tinha disponível na época. Como disse, lá a gente fazia de tudo. Cada um dos profissionais tinha um expertise em determinada área. E quando entrava um projeto, a gente meio que “dividia” as tarefas, designando cada parte àquele que melhor se encaixaria. Como era uma grande produtora, haviam várias equipes, em vários departamentos, desde fotógrafos, cenógrafos, câmeras até o pessoal da produção, propriamente dita, que montava as apresentações em slides, sincronizava com a narração – novidade na época – usando já algo parecido com um computador... Tinha também o pessoal da marcenaria parceira, Wilson e Waldir, dois irmãos que montavam junto com sua equipe os Stands que a gente projetava.
Depois que entrei na Sage, o André ficou lá por volta de um ano ou pouco mais, até que numa discussão com uma das diretoras, acabou saindo. E para seu lugar, foi chamado o Martins, para o cargo de produtor gráfico. Ficou responsável por agenciar e intermediar os trabalhos junto às gráficas. Voltamos a trabalhar juntos, novamente.
Ganhávamos todos muito bem. Mas a gente também trabalhava pra caramba. Era comum virar noites, sábados, domingos e feriados para cumprir algum prazo impossível. E a gente sempre dava um jeito de conseguir. Naqueles anos, a maioria das corridas dominicais de Fórmula 1 eu assisti lá. Quando a gente conseguia sair um pouco mais cedo, reunía-mos para a happy hour no “Bife Brasil”, um bar/restaurante na Alameda Campinas, bem ao lado do prédio. Virou nosso ponto de encontro, e mesmo depois de ter saído da Sage, o André sempre aparecia por lá pra matar a saudade.
Foi nessa fase que comecei a gostar de fotografia, e comprei uma Pentax Spotmatic, uma máquina fotográfica muito boa, para os padrões da época. Lembrando que não existia ainda a fotografia digital, e eu gastava verdadeiras fortunas com filmes, revelações e ampliações. Depois de um tempo, ganhei de um dos fotógrafos da Sage uma teleobjetiva usada e comprei uma lente para macro-fotografia, outra das minhas paixões. Mas essa paixão era cara... A gente tinha que fotografar, enviar o filme para revelação e só saberia o resultado na melhor das hipóteses, no dia seguinte, dependendo do laboratório. Arrumei uma maletinha, que comportava a câmera, as lentes, filtros, flash e cabos, e vivia com essa câmera sempre a tiracolo, pra cima e pra baixo. Eu costumava ir trabalhar de metrô, e mesmo assim, carregava a bolsa com as traquitanas. Nossa sala era no décimo andar de um prédio que fazia frente para a Paulista e a lateral do prédio da Gazeta. Fiz muitas boas fotos noturnas daí. Saía muitas vezes tarde da noite, e eventualmente queria pegar um taxi pra voltar pra casa, e muitas vezes os taxis não paravam, desconfiados do conteúdo da maleta... A Daniela deve ter sido a criança mais fotografada da história, pois com essa minha mania de fotografia, a maior vítima era ela. Da última vez que tentei organizar as fotos não consegui, dado o grande volume. Tentei colocar tudo em álbuns, e também não deu. Estão guardadas em casa, dentro de sacolas, naqueles pequenos álbuns que eram fornecidos pelo laboratório que ampliava as fotos. Ela era minha modelo e minha “cobaia”, participando de todos os meus experimentos, como os de múltipla exposição, por exemplo. Ainda guardo a maleta com a Pentax, os filtros, flash e as lentes, se bem que estas estão imprestáveis, cheias de fungos.
Nessa época, meu consumismo por discos foi às alturas. Comprava todos os lançamentos, além daqueles que eu achava que estavam faltando para completar alguma coletânea em minha discoteca. Com a chegada da Daniela, virei habituéé de uma lojinha que havia numa galeria da Av. Paulista, que tinha muito brinquedo importado da China. Como eu nunca tive muitos brinquedos, acabei me realizando através dela. Não haviam, na época, as lojas de brinquedos como hoje em dia, e achar algo legal era difícil. Mas nessa lojinha chinesa não. Lá tinha de tudo, e lembro que lá comprei várias caixinhas de música, outra mania adquirida. Hoje, reflito que, se eu tivesse tido talvez um pouco mais de bom senso, teria guardado todo esse dinheiro e não teria passado os perrengues que a gente passou quando, depois do malfadado Plano Collor, a Sage bateu as botas. Clientes suspenderam os trabalhos e consequentemente os pagamentos, e a gente meio que tentou levar adiante sem a diretoria, que havia se mandado pra Miami. Abnegados e persistentes, tentamos até onde nos foi possível, mas depois de um tempo sem job´s e sem dinheiro, acabou indo cada um pro seu lado, cuidar da vida. Primeiramente o Martins, que já tinha alguns clientes engatilhados e duas filhas pra criar, foi cuidar do seu lado. Outro tomou seu lugar, numa tentativa de coordenar os escassos trabalhos que apareciam. Mesmo assim, sem trabalho a realizar, a turma continuava a ir para a Sage, e até hoje não consigo imaginar por que. Talvez numa vã esperança de retomar a rotina. Até que um dia, decidi que não dava mais pra viver essa ilusão, e resolvi que chegara então minha vez de ir “me virar”. Comecei a ir atrás de conhecidos e retomei a rotina de free-lancer. Mas as coisas não estavam indo como eu esperava. Ainda com os efeitos do plano Collor, o mercado estava recessivo, ninguém tinha dinheiro pra fazer nada, e a coisa apertou. Eu fiquei meio “desnorteado”, aquele monte de dinheiro que a gente ganhava na Sage começou a fazer falta, já que eu não havia guardado nada. Com os contatos, consegui alguns trabalhos pequenos para fazer em casa. Pegava alguns free lancers, mas não era suficiente. Foi então que o André me estendeu a mão: como ele havia saído bem antes da Sage, ele já estava numa carreira solo mais consolidada. Tinha mais e melhores clientes, meio que me “acolheu” e passamos algum tempo trabalhando juntos num quartinho na casa dele, que transformamos em estúdio. Atendíamos clientes legais, como Johnson&Johnson e Unibanco, além de algumas agência que tercerizavam pra nós os trabalhos. Nessa fase, pegamos o hábito de jogar xadrez: todo dia, ao final do expediente, tirávamos uma partidinha. Até quem vinha de fora, como amigos em comum e um primo da esposa dele acabavam ficando viciados, e chegávamos até a fazer campeonatos. Então, depois de um tempo, o André acabou arrumando um emprego fixo tipo CLT numa multinacional, e como tinha mulher e três filhos pra sustentar, resolveu abraçar. Fiquei então com esses clientes todos por mais algum tempo, o que talvez narre em um próximo capítulo. Com relação ao pessoal da Sage, ainda tenho algum contato com a maioria, ainda que seja mínimo, através das redes sociais. Durante um tempo fiz algumas tentativas de reunir a galera, sendo a última em junho deste 2023. Mas a aceitação à ideia foi muito baixa, quase zero, eu diria. Sei que o tempo passa, pessoas vão e vem, e talvez a galera não esteja mais nessa “vibe” de reencontros, ou talvez a polarização política das últimas eleições para presidente tenha dividido o grupo. Por isso concluo que, à exceção do André, éramos apenas colegas de trabalho e não amigos, como eu imaginava.
Capítulo 28 — Acampamentos, cavernas e uma noite fria.
Lembro de uma ocasião, há muito tempo, devia ter uns 10 ou 11 anos, quando fui acampar com o Ciso e Cristina. Naquela época, meados dos anos 70, os jovens pós adolescentes, portanto alguns anos mais velhos que eu, também já gostavam de aventuras. De vez em quando aparecia alguma ideia diferente, e a turma do Ciso resolvia aderir. Camping foi uma delas... Lembro que o Ciso arrumou uma barraca Capri, para 5 pessoas. Barracona grande, emprestada de alguém, talvez, se não me falha a memória, do Yassuo, irmão do Kazuo, que moravam em frente à nossa casa. Esse japonês era outro cara que tinha dessas coisas. Certa vez, colocou a família inteira na Veraneio que ele tinha e foram para o Mato Grosso, passear, dormindo dentro do carro, que ele havia transformado num tipo de motorhome, com umas redes improvisadas entre os bancos, presas às colunas laterais da peruona. Por isso acho que a barraca era dele. Sei que fomos para alguma praia do litoral paulista, mas não sei precisar qual. Provavelmente Guarujá, que era o lugar pra onde passamos a ir, tempos mais tarde, para “farofar”, nos finais de semana, ou alguma outra próxima. Desse acampamento especificamente lembro muito pouco: apenas da grande barraca azul claro com dois quartos e varanda, que tinha também uma mesinha dobrável e lampião à gás, para a luz noturna.
Essa lembrança me remete a outra, muito tempo mais tarde, quando uma nova oportunidade de acampamento surgiu: o Nico estava na fase meio hippie, e ele e o irmão estavam juntando a galera para acampar em São Tomé das Letras, uma cidade já naquela época conhecida como centro de esoterismo, com histórias das mais diversas, inclusive de discos voadores e contatos com E.T´s. Mas o Nando estava particularmente interessado nas cavernas da região, que ele e sua turma estavam decididos a explorar. E eu e a Rosângela, que nessa época já estávamos noivos, decidimos nos aventurar. Eu estava de férias da empresa, a Rô também, e com a autorização dos pais dela, decidimos participar, já que agora havia mais gente envolvida na empreitada, inclusive com os rapazes levando suas namoradas, e as meninas do grupo ficariam assim mais à vontade. Providenciamos lanternas dos mais variados tipos, disponibilizamos tudo o que havia à mão em matéria de objeto luminoso. Lembrando que naquela época, esses itens eram escassos e uma boa lanterna custava caro. Eu, por minha vez, como conhecia um pouco de eletrônica, tratei de inventar uma super lanterna, usando um pac de pilhas e restos de uma outra que eu havia desmontado especialmente para isso. Ficou com o pac de baterias separado, que seria levado à tiracolo, e a parte da lâmpada e refletor numa ponta de uma mangueira flexível, à mão. Partimos então para São Tomé das Letras. Uma galera havia ido de carro, no dia anterior, e eu e a Rosângela saímos de ônibus, no dia seguinte, rumo a Três Corações, onde havíamos combinado da galera de carro pegar a gente para levar a São Tomé quando o ônibus lá chegasse. E assim, no dia seguinte, quase anoitecendo, chegamos a São Tomé das Letras. Era final de Junho, um frio quase insuportável. Quando chegamos no local, uma parte plana de uma encosta de morro, já era noite. Achei um lugarzinho pra montar minha barraca próxima às dos demais. Não lembro nem se jantamos, mas fazia muito frio e nos retiramos para dormir. Naquela noite, quase morremos de frio. Literalmente. Fazia tanto frio que, mesmo usando todas as roupas e cobertas que havíamos levado, não havia jeito de nos esquentarmos. Um vento gelado subia o morro e entrava pelas frestas da barraca, levando a temperatura próximo dos zero graus. Passamos, eu e a Rô, uma das piores noites de nossas vidas. Na manhã seguinte, vivos graças a Deus, a primeira providência foi arrumar algo para tapar os vãos da barraca. Era pequena, um modelo “lobinho”, tinha aberturas laterais para ventilação, e por essas aberturas entrava aquele vento gelado. Forrei toda a lateral da barraca com capim, que cortei no mato próximo. A bem da verdade, acabei quase que cobrindo toda a barraca com capim. Nessa saída para achar capim, percebi que, durante a noite, quando chegamos, não tínhamos visto, mas montei a barraca a menos de cinco metros de um penhasco com bem uns trinta metros de altura. Se eu tivesse saído no escuro para fazer xixi, teria certamente caído lá.
O pessoal estava animado para as cavernas. Tínhamos ouvido muito falar de uma tal de “carimbado”, ou “gruta do Carimbado”, que, segundo a lenda, era tão longa que se comunicava com Machu Pichu, no Peru. Muito pouco provável, mas estávamos numa cidade onde as histórias de disco voador eram comuns. Partimos então rumo à nossa expedição. Carimbado não era uma caverna, dessas nas encostas dos morros, mas um buraco no chão. Provavelmente algum canal subterrâneo por onde as águas escoariam em direção ao lençol freático. Mesmo assim, todos, inclusive as garotas, resolvemos entrar. Com muita dificuldade, descemos naquele buraco que depois ficou mais horizontalizado e, ao nos aprofundarmos, a luz foi ficando mais fraca, até ser necessário o uso das lanternas. Ao acender a primeira, eis que uma revoada de morcegos começou a sair do fundo da caverna, assustando a todos, inclusive e principalmente as meninas que bateram em retirada. Quando acabou de sair morcego da caverna, os rapazes retomaram a expedição, enquanto as meninas passaram a esperar do lado de fora. Adentramos por volta de quarenta ou cinquenta metros, quando à nossa frente aparece um degrau no caminho, com mais ou menos uns dois metros de altura. Lá embaixo, o chão estava coberto com uma água barrenta, provavelmente resultado da última chuva, e assim, como ninguém podia precisar a profundidade da poça, resolvemos bater em retirada e estudar uma melhor tática para vencer esse obstáculo.
Eu, pra falar a verdade, acabei desistindo da nova incursão. Não havia nada de atrativo, apenas paredes estreitas e lamacentas pelas quais a gente devia se desdobrar para passar. O grupo do Nando, pelo contrário, passou o dia preparando cordas, estacas e escadas de cordas para vencer a barreira. No dia seguinte, o grupo com seis ou sete caras voltou melhor equipado para a caverna. Como eu não iria, emprestei minha super lanterna para eles, e lá foram. Quase não voltaram.
Segundo relato posterior, eles adentraram na caverna junto com mais um grupo de outra cidade que também havia ido lá para isso; venceram o degrau e a poça d´água não tinha nem 15 cms de profundidade. Assim, continuaram caminhando, sem olhar para trás. Acontece que a caverna era também um labirinto, e ao direcionarem os olhos somente para a frente, não viam que atrás de si se abriam outras vertentes que desaguavam nesse “canal” principal. Assim quando voltassem, haveriam muitos caminhos diferente a seguir. O Nando disse que estavam tão embalados para ir adiante que se esqueceram da volta. Em determinado ponto, as pilhas das lanternas, tanto deles como do outro grupo, começaram a acabar. Começaram então a voltar, mas as luzes foram ficando cada vez mais fracas, até quase chegar a zero. Combinado com a falta de direção, por causa das várias vertentes da caverna, a situação estava ficando perigosa. Guiavam-se pelos rastros deixados na viagem de ida, mas a escuridão estava começando a ficar grande. Até que em determinado momento, o Nando levou a mão ao peito e esta bateu na mangueira da lanterna que eu havia construído. Tinha se esquecido dela, pendurada no pescoço. Foi a salvação! Acendeu-a, e a noite se tornou dia. Conseguiram, assim, seguindo os rastros, voltar para a saída, pondo fim nessa arriscada aventura.
Eu, por minha vez, enquanto todos estavam dentro da caverna, prevendo mais uma noite fria, tratei de arrumar muita lenha para fazer uma fogueira em frente à barraca. Me lembro que essa era a época em que havia passado a frequentar a academia de ginástica do bairro, então eu achava legal carregar troncos enormes de madeira para a fogueira. E nessa busca por lenha para a fogueira acabamos achando mais uma caverna: No fundo daquele penhasco onde montei a barraca havia um buraco enorme no paredão de pedra, coisa de mais de 5 metros de diâmetro. Era de uma rocha calcárea, e deve ter sido resultado de algum desmoronamento, que abriu um grande salão embaixo do morro. Paramos na frente do buraco, e fixando os olhos na escuridão, a gente via duas luzinhas vermelhas, lá no fundo, acendendo e apagando. Fiquei extremamente curioso, e convoquei o Nico para entrarmos. Pegamos uma lanterna cada um e nos enfiamos no meio das pedras, chegando no fundo da caverna. Lá, sentados no escuro, dois caras fumavam maconha. -“Tão a fim?”, perguntaram... e a gente achando que iria encontrar algum ET. Graças ao mato em volta da barraca e à lenha recolhida, pudemos agora aproveitar o passeio, e ficamos alguns dias acampados ali. A gente ia tomar banho numa pensão, cuja dona cobrava algo que seria hoje equivalente a R$ 10 por pessoa. As meninas tomavam banho lá. Os rapazes, no rio.
Outra aventura relativa a acampamento foi quando, mais ou menos um ano depois de São Tomé, decidimos novamente nos aventurar, junto com o Nico e sua namorada, numa expedição à cachoeira do Maromba, no parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro. Novamente estávamos de férias, eu e a Rô, e novamente com a autorização dos pais dela, ficamos uma semana acampados na beira do Rio das Velhas, que divide os estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais, em Visconde de Mauá. A viagem em si já foi uma aventura: munidos de mochilas com todo o equipamento necessário para uma semana no meio do nada, incluindo panelas, fogão portátil e o respectivo botijão, roupas e cobertores, além das duas barracas, fomos de ônibus, saindo do terminal Tietê até Resende. De Resende até Visconde de Mauá, pegamos outro ônibus, numa linha que tinha apenas uma viagem diária. Lembro que chegamos na rodoviária de Resende e tivemos que esperar um tempão até a saída desse outro ônibus. De visconde de Mauá até a cachoeira, era uma caminhada de uns oito quilômetros, que fizemos à pé, embaixo de um sol escaldante, por uma estradinha cercada das casas simples do pessoal que morava ali, mais próximo do vilarejo. Não sei como é hoje, mas na época, Visconde de Mauá era realmente um vilarejo, com poucas casas e quase nenhum comércio. Tanto que nem linha de ônibus regular possuía. Imagino que hoje, com o advento do turismo de aventura e quarenta anos depois, a coisa esteja bem diferente. Nessa caminhada, à medida em que a gente passava em frente às casas, um bando de moleques vinha até nós pedir esmola. Apesar de haver terreno suficiente em suas casas para que seus pais plantassem verduras e legumes, as mães ficavam nas janelas, enquanto a molecada vinha nos assediar. Isso ficou na minha memória, e anos mais tarde, baseado nessa experiência, quando concorri à candidatura para vereador na minha atual cidade, uma das minhas propostas foi a criação de “hortas comunitárias” onde as famílias poderiam cultivar seus legumes e verduras para consumo próprio ou para venda posterior, numa feira ou num entreposto agrícola, cuja criação também fazia parte dessa minha proposta. Enfim, a caminhada foi árdua, pois estávamos carregados com todo o equipamento, e apesar de eu e o Nico carregarmos as mochilas mais pesadas, as meninas sofreram. Achamos então um lugar para montar acampamento, numa baixada plana e com mato baixo, quase que um gramado, bem na beira do rio. Montamos nossas barracas e logo tratamos de tomar uma ducha no rio. Na sequencia, fomos explorar a região, e acabamos conhecendo um cara que tinha um boteco mais pra cima, perto da cachoeira, e que logo nos avisou que estávamos correndo sério risco: Quando chovia forte na cabeceira do rio, este aumentava de volume, e devido à quantidade de pedras e turbulência da água, era muito provável acontecer a formação do que eles chamam de “cabeça d´água”: um tipo de uma bolha, formada pela própria água que, passando pelas rochas, vai ficando represada e aumentando de tamanho, até que essa “bolha” se rompe e libera toda a água represada de uma só vez, causando uma grande enxurrada. Ficamos de cabelo em pé e, aconselhados pelo dono do boteco e com sua permissão, passamos aquela noite na varanda do seu “estabelecimento”, com medo do rio encher de madrugada e nos pegar de surpresa. No dia seguinte, logo de manhã e mais que depressa, mudamos nosso acampamento de lugar. Fomos mais para rio acima, mais perto da cachoeira e do boteco desse cara.
Foi uma semana intensa, de passeios e escorregas na cachoeira que leva esse nome, Escorrega, que era basicamente uma pedra enorme, muito lisa, que a gente descia escorregando até cair num lago mais abaixo. Lembro que na época havia uma propaganda na TV das “Duchas Corona” que havia sido gravada lá. Num dos dias seguintes, a Rosângela e a Zana, namorada do Nico, resolveram ir à vila para comprar alguma coisa que nos estava faltando. Realmente não lembro o que era. Fato é que, com a caminhada de ida e volta, quase 16 quilômetros à pé, no sol, a Rosângela voltou absurdamente vermelha e acabou pegando uma insolação, o que requereu mais um ou dois dias de cuidados. Terminado nosso prazo, era hora de voltar. A grana era curta, e já estávamos com as passagens de Resende para São Paulo compradas. Havíamos comprado-as na ida, por via das dúvidas. Não tínhamos celular, nem nenhum tipo de dispositivo que sequer se parecesse com um despertador, e mesmo assim, teríamos que acordar bem cedo para desmontar o acampamento, juntar as tralhas, caminhar oito quilômetros até Visconde de Mauá para pegar o ônibus que saía cedo para Resende, e voltar para São Paulo. Pra variar e complicar as coisas, acordamos atrasados. A Rosângela nos alertou, dizendo que nessa noite havia sonhado que perderíamos o ônibus. Desmontamos tudo da maneira mais rápida possível, pois estávamos atrasados, deixando para trás no lixo do boteco tudo o que não fosse valioso e pudesse ser descartado e pé na estrada. Tentamos caminhar rapidamente, mas as meninas não conseguiam acompanhar nosso ritmo. Finalmente, chegamos em Visconde de Mauá, e esbaforidos, quando viramos a última esquina para chegar à pequena rodoviária logo à frente, vimos ao longe nosso ônibus partindo... por uma questão de segundos, perde-mo-lo. Era domingo de manhã, estávamos com o dinheiro contadinho e com as passagens já compradas para a volta. Além disso, na segunda feira, fim das férias, voltaríamos ao trabalho. Por isso não poderíamos nos dar ao luxo de ficar mais um dia por ali. Tratamos então de arrumar algum tipo de carona para Resende, e conseguimos que o dono de uma caminhonete que fazia entrega de leite na região nos levasse na caçamba, os quatro, por uma parte do caminho, até um lugar um pouco mais habitado. Nesse lugar havia uma certa dificuldade em arrumar carona para quatro pessoas, – era mais fácil arrumar lugar num carro para duas que para quatro pessoas - então decidimos nos separar. Assim, eu e a Rosângela conseguimos uma carona com um casal que nos levou em seu carro até Resende, onde, em cima da hora, conseguimos embarcar no ônibus com destino a São Paulo. O Nico e a Zana não embarcaram. De fato, estávamos achando que eles não conseguiram chegar. Mas após a saída do ônibus, e logo que este ganhou a Via Dutra, parou no acostamento, e, para nossa surpresa, embarcam os dois. Finalmente estávamos todos à caminho de casa. Porém, estranhamente, eles estavam diferentes. Mal nos falamos. Ele por algum motivo que até hoje não descobri, nem ele falou, ficou bravo comigo. Após esse episódio, nosso relacionamento mudou. Os bate-papos foram ficando mais escassos e os encontros menos frequentes, a ponto de perdermos, com o tempo, completamente o contato. Como sou teimoso e prezo pelas amizades, anos depois procurei encontra-lo, consegui seu contato e fui até sua casa, então na Av. Santo Amaro. Retomamos um pouco o relacionamento, inclusive pelas redes sociais. Nada como nos velhos tempos onde virávamos a noite jogando conversa fora à beira de uma fogueira ou no Jonas Esfirras. Depois, mais uma vez, com o passar do tempo e tendo posicionamentos políticos totalmente diferentes e radicalmente divergentes, acabamos novamente nos afastando. Coisas da vida, que junta e separa depois junta de novo...
Capítulo 29 — O primeiro computador a gente nunca esquece
Passado o terremoto inicial, com o fechamento da Sage e me virando sozinho com freelancers, já que meu “partner” havia seguido carreira em uma empresa privada, acabei tendo que me desdobrar. Passei a ser contato, idealizador, executor e vendedor de todo o trabalho que eu desenvolvia. Naquela época, vale ressaltar, não havia ainda o telefone celular. Telefone fixo era ainda um luxo para poucos, e eu não tinha. Havia me inscrito no “plano de expansão” da TELESP, a empresa que na época administrava a implantação de novas linhas telefônicas. Mas esse telefone nunca foi instalado. Então me vi obrigado a estabelecer uma rotina: logo de manhã, do orelhão da esquina da Maestro com a Av. Guapira, ligava para algum contato nas empresas, e perguntava se precisavam de algo. Quando a resposta era positiva, saía de casa, ia até a agência, pegava o briefing, voltava para meu estúdio em casa, montava as artes – e muitas vezes a Rô me ajudava – e levava de volta, no final da tarde, para aprovação do cliente. Isso me tomava o dia todo, e eu passava mais tempo em trânsito do que trabalhando. Mas teve o lado bom. Eu, que nunca me achara vendedor, descobri que era muito bom nisso. Tive que aprender na marra a faze-lo quando o assunto era trabalhar por conta própria. Quando casamos, aquele fusca branco que era da família mas eu considerava como meu – dadas as circunstâncias citadas em capítulos anteriores - ficou com o Rafa, que havia deixado o seminário e voltara a morar com meus pais. Eu acabei comprando uma Brasília azul, cheia de ferrugem que eu acabei eu mesmo reformando com massa plástica. Mas por questão de economia, nesse período de idas constantes às agências em busca de trabalho, eu ia mais de ônibus que de carro. Lembro de uma agência cujo dono, Carlos, me deu uma grande força na época. Por causa do Plano Collor ele, agora dono, na época teve que se virar: a empresa onde trabalhava acabou fechando, e montou então essa agência, que trabalhava com classificados. Esse cara em particular sempre me requisitava para layoutar os anúncios, que eram depois produzidos internamente, usando meu layout como base. Foi um dos primeiros clientes a me tratar como gente. Chamava-me e apresentava-me aos seus clientes sempre como “nosso diretor de arte”. Procurei-os nesses novos tempos de redes sociais, mas não o achei mais. Essa coisa de classificados para jornais durou um certo tempo, e acho que o progresso e a tecnologia acabaram matando meu ganha pão. Mais uma vez, tive que me reinventar para o mercado de trabalho. Mas não estava fácil. Enviar currículos se tornou hábito constante; mas já naquela época – acho – o mercado de trabalho estava voltado para a galera mais jovem, com salário mais baixo. A coisa foi apertando, e tendo que pagar aluguel, acabei vendendo o carro para ajudar no pagamento das contas e comida. Ainda assim não teve jeito: novamente ficou tão difícil que a gente teve que se mudar, mais uma vez. Naquela época, a casa dos pais da Rô, no Jardim Brasil, também tinha um cômodo nos fundos, separado da casa: um quarto na parte de cima e a cozinha e banheiro embaixo. Acabamos nos mudando para lá, devido às dificuldades. Minha prancheta - estação de trabalho - voltou para a casa dos meus pais, no quartinho onde havíamos morado que estava vazio desde a nossa saída, e acabei fazendo lá meu escritório. Ponto positivo é que lá tinha telefone fixo, e eu podia fazer os contatos mais frequentes. Assim, morando agora no Jardim Brasil, ia à pé até o escritório praticamente todo dia.
Eis que numa ocasião, lembrei-me dos dois irmãos que montavam os Stands que a gente criava na Sage – Valdir e Wilson – e acabei entrando em contato com eles. Passaram então a me enviar os projetos de criação dos Stands que eles montavam para feiras e eventos. Dessa época, um projeto que ficou marcado foi um stand para a Biolab, que eu criei - acho que em parceria com o Osmar, outro que fazia seus freelancers - em forma de castelo, e que demandou muita mão de obra, pois as pedras que formariam as muralhas foram pintadas uma a uma, à mão. Passei um bom tempo com eles, na oficina, trabalhando nesse projeto. Lembro que o tema era Hallowen, e lembro também de ter ido ao CEASA para comprar duas abóboras – tinham que ser perfeitas - para colocar na entrada do “castelo”, com lâmpada dentro. Como se fora ontem, lembro do pai deles tirando o miolo das abóboras, e lembro que depois fez, com esse recheio, uma panelada de doce de abóbora. Passei então a trabalhar mais frequentemente com os irmãos da marcenaria, ao ponto do Wilson me propor uma grana adiantada para eu comprar um carro. Pagar-lhe-ia com trabalho. E assim fizemos. Não lembro do montante, mas sei que, com o dinheiro, comprei uma Brasília Vermelha, ano 1977. Foi uma das pessoas que, talvez inconscientemente, mais me ajudou nesse período de dificuldade.
Um belo dia, minha rotina de enviar currículo para todo tipo de anúncio deu resultado: fui chamado para uma entrevista na Souza Rocha, uma agência na Avenida Faria Lima, simplesmente do outro lado da cidade. Era até famosa: o dono, Arthur era bastante conhecido no meio publicitário, e eles trabalhavam também com anúncios classificados. Porém para mim, tinha agora um grande diferencial: os anúncios eram todos feitos na própria agência, que já, nessa época, tinha um computador Macintosh. Lembrando que naquela época, as importações eram proibidas. Por isso o dono estava de viagem marcada para Miami, onde buscaria mais dois, clandestinamente. Eu nunca tinha sequer visto um de perto. Fui sincero com o dono da agência, que ainda assim, acabou me contratando. Eu sentava junto com o operador, e ia falando a ele como eu queria o anúncio, o que deveria ser feito, tipo de letra, essas coisas. Mas era difícil. Tão difícil que eu decidi que iria aprender a mexer naquele troço, custasse o que custasse. E assim fiz. Durante os meses em que lá trabalhei, após o expediente, quando todos iam embora, eu ficava fuçando no computador. O Ricardo, operador, havia me alertado que eu poderia fazer o que quisesse na máquina, desde que não salvasse nada. Assim, ir embora às oito, nove da noite, atravessar a cidade pra voltar pra casa e voltar pra agência de manhazinha no dia seguinte virou rotina. Algumas vezes, absorto no aprendizado, perdia a hora e como levaria três horas pra voltar pra casa, resolvia passar a noite na agência, dormindo no sofá da recepção, o que causava espanto na faxineira que vinha abrir a agência de manhã. E eu estava tão empolgado com o computador que mesmo nos finais de semana eu ia pra agência, mexer na máquina. Acabei aprendendo sozinho a operar alguns softwares gráficos, o que foi muito útil nas etapas seguintes do campo profissional. Dessa época fica na lembrança também o Shopping Iguatemi, que a gente frequentava para almoçar de vez em quando, nas vezes em que a gente resolvia não comer o cachorro quente da esquina da agência, e onde havia também um cinema, que eu, ainda viciado pelo Martins, eventualmente frequentava.
Depois de um tempo, comecei a achar esquisita a minha presença na agência: comecei a achar que estava lá mais pra alimentar o ego do Arthur – que era vaidoso – do que efetivamente para trabalhar. Pior é que ele me pediu ainda que montasse uma equipe de trabalho, um departamento de arte, e eu chamei alguns conhecidos que também acabaram ficando à toa pela agência. É bem verdade que o salário nunca atrasou, mas a gente acabou se sentindo incomodado de ficar o dia inteiro praticamente sem fazer nada, perambulando pela agência. O que mais incomodava, na verdade, é que no final do expediente, nos dias em que eu queria ir pra casa, lembrando que eu tinha uma viagem de umas três horas pra atravessar a cidade, ele me chamava na sala dele para reuniões totalmente sem sentido. Ao invés de falar de trabalho, ele queria ficar batendo papo, jogando conversa fora. Devo ter sido um bom ouvinte, pois ele acabou gostando disso. Acho que não tinha amigos, e queria mesmo era conversar com alguém. Mas o que importava, para mim, era que eu estava desvendando os segredos daquela máquina, para mim até então, surreal. Tão surreal que, tempos depois, e já tendo saído da Souza Rocha, tive uma entrevista publicada no caderno de informática do Estadão, com o título: “Por incrível que pareça, ele não morde” e subtitulada “Decifra-me ou devoro-te”, narrando meu auto-aprendizado e peripécias no campo da informática. Devo ter esse recorte de jornal guardado em alguma pasta em casa, ainda hoje... Com essa impressão de estar ali por vaidade, e incomodado em não desenvolver nada novo, retomei minha rotina de enviar currículos. Mas agora eram currículos mais bem elaborados, feitos no computador, diagramados no Corel Draw! Assim, fui chamado para conhecer a JGA, uma agência que trabalhava, entre outros clientes, com a Sadia, poderosa indústria do setor alimentício. Meus olhos brilharam diante da oportunidade de trabalhar efetivamente com marketing e, após três ou quatro meses que pareceram três anos, e contra a vontade do Artur que até me ofereceu um aumento do salário, deixei a Souza Rocha e fui para a JGA. Depois disso, nunca mais ouvi falar do famoso Artur, que nas rodas de amigos apostava com todos para ver quem tinha mais dinheiro na carteira.
Capítulo 30 — Perus de Natal e uma Brasília vermelha.
Nunca fui desses caras que cismam de trocar de carro todo ano. Pra mim, o carro andando, está bom. Compro um carro e praticamente caso com ele. Fica comigo por oito, dez anos, até aparecer uma oferta realmente imperdível. Caso contrário, pra mim, carro novo é status do qual eu não preciso, por isso não me incomodo de ter um carro de dez ou quinze anos. Acho até mais vantajoso, pois o seguro e o IPVA são menores. Além disso, carro velho a gente conhece todos os defeitos e todas as manias. Desde que a gente faça a manutenção certinha, realmente não vejo problema, não me incomodo. Houve até uma ocasião em que uma vizinha da gente nos disse que “nosso carro era o mais velho na garagem do prédio, era preciso trocar”, se referindo à brasília vermelha. Ao que eu respondi: “Onde você vai com o seu, eu vou com o meu. Posso demorar um pouco mais pra chegar, mas chego”. E carrego essa filosofia até hoje. Com a brasília vermelha foi assim. Um “casamento” que durou perto de sete anos. Como comentei no capítulo anterior, compramo-la na época em que eu estava em transição entre empregos e trabalhando com free lancers. A gente havia se mudado para o Jardim Brasil, num quarto e cozinha nos fundos da casa da sogra, que morava na frente. E a bichinha dava conta do recado. Basicamente, levar a Daniela pra escola, fazer comprinhas no supermercado e feira no domingo, passeios pelo bairro, visitas aos amigos e parentes, essas coisas para as quais os carros foram feitos. Nessa época então saí da Souza Rocha e comecei a trabalhar na JGA. Era, como disse, uma agência que trabalhava com a Sadia, e ficava numa casa enorme na Chácara Inglesa, numa rua paralela à Luiz Góes e a três quadras da Domingos de Moraes. Uma mão na roda para mim, que usava então o metrô para ir trabalhar, e deixava o carro em casa. Foi assim por alguns meses, talvez perto de um ano, mas quis o destino que, depois desse tempo meus sogros resolvem se mudar de mala e cuia para o interior, terra natal deles, e colocaram então a casa à venda. Hora de mudar de novo. O raciocínio lógico me dizia que, se eu tivesse que pagar aluguel naquele bairro e continuar pegando duas ou três conduções para ir trabalhar, seria melhor arrumar uma casa mais perto do trabalho, e assim não teria que pegar condução. Se vamos pagar aluguel, que diferença faz o lugar? Que seja mais perto do trabalho, então. E assim fizemos. Mudamo-nos para um apartamento na Rua Jaci, a duas quadras do trabalho e quase no meio da muvuca da Vila Mariana, que passamos a adorar. Tinha tudo perto: mercado, sacolão, padaria, shopping e até o metrô que eu não usava, pois como disse, ficava à duas quadras do trabalho. Nessa época, comprei uma bicicleta, e eventualmente a usava para ir trabalhar. Minha sala na empresa ficava nos fundos da casa, com uma entrada separada. Ideal pra entrar com a bike e deixa-la guardadinha até a hora de ir embora. Mas na maioria das vezes, como era bem perto, eu ia mesmo à pé. Com o tempo, acabei fazendo amizade com os jovens do prédio, com quem eu jogava basquete e começamos então a sair de bicicleta nos finais de semana com destino ao Ibirapuera. Passou a ser rotina: todo sábado de manhã, pegava a bike e mais um tanto de moleques e íamos de bicicleta de casa até o Ibirapuera, onde ficávamos até a hora do almoço, quando então voltávamos pra casa. Com a mudança dos sogros para o interior, as visitas a eles passaram a ser constantes. Eu tinha dois períodos de férias na empresa, de 15 dias cada, um no meio e outro no final do ano. Não tínhamos nenhum animal de estimação, então a gente ia pelo menos duas vezes por ano pra casa deles, onde passávamos as “férias”. E íamos com a Brasília, que nunca nos deixou na mão. É fato que a viagem demorava, a ximbica não andava rápido e o barulho do motor era quase insuportável, problema que eu consegui amenizar colocando algumas folhas de papelão intercaladas com isopor sobre a tampa traseira do motor, o que reduziu em muito o barulho. Quanto a demora, quem se importava? A gente queria mesmo era passear... Tinha um rack traseiro onde colocava a minha bicicleta e a da Daniela, enchia a ximbica de malas e a gente ia feliz...
Na JGA, trabalhando com a Sadia, tive a oportunidade de realmente entrar no mercado de marketing, do qual sempre gostei. Recém chegado na nova agência, eles ainda estavam na idade da pedra, ou seja, do paste-up. Para montagem das artes das embalagens, a gente recorria à Takano, uma empresa de editoração eletrônica que mandava o texto impresso com as fontes e no formato solicitado. Ainda tínhamos que recortar as laudas e montar as embalagens em pranchas, com overlays com marcação de cor, essas coisas que hoje em dia já desapareceram há tempos. Eu estava mal acostumado com o computador da Souza Rocha, e fiz uma proposta aos donos da JGA de informatizar o departamento de arte e criação com computadores munidos com softwares gráficos para agilizar os trabalhos. Eles compraram a ideia e me incumbiram de executar. Fui então atrás disso e compramos dois computadores PC com o – na época “poderoso” - Corel Draw 3 instalado e uma impressora laser, tudo conectado em uma rede interna. O trabalho ficou realmente mais dinâmico: o que antes tinha que ser medido, diagramado, layoutado e mandado para a Takano, agora era feito internamente, num processo muito mais rápido e barato. A gente começou a fazer coisas mais elaboradas e criativas. Ponto pra mim e pra agência, que ganhou ainda mais credibilidade junto aos clientes. Com o tempo, outros departamentos acabaram também sendo informatizados, e a agência entrou na era digital.
Um dos projetos que marcaram minha passagem foi a criação da bandeja de frango congelado, aquela bandejinha amarela de isopor que tem uma “janela” de plástico transparente, pela qual se vê o produto, ainda hoje comum nos supermercados e que foi logo depois copiada por toda a concorrência. Saibam que aquilo é criação minha. O legal de criar as coisas para a Sadia era que os diretores faziam questão que a gente conhecesse todo o processo produtivo, antes de embarcar na criação. Assim, minha primeira viagem de avião foi por causa de um desses projetos, quando fui para Concórdia, em Santa Catarina, numa unidade da Sadia conhecer a linha de produção do produto. Depois, rodei todo o Sul do país, nas cidades onde haviam fábricas da Sadia para idealizar a linha de embalagens de derivados suínos “defumados”. Extremamente gratificante ver esses produtos, tempos depois, nas prateleiras dos supermercados e saber que foi você quem os criou. Foi assim também com o Peru Sadia, o famoso “lequetreque”. Apesar desse personagem não ter sido criação minha, fiquei craque, naquele época, em desenha-lo para usar em cartazes de pontos de vendas e ações publicitárias. Época de final de ano significava principalmente Peru, que a gente ganhava do cliente. Eventualmente esse e outros produtos eram enviados pra gente para produção fotográfica e não podiam ser devolvidos, por uma norma da própria empresa. Eram, então, distribuídos entre os funcionários, e todo mundo ficava feliz. Com relação às viagens, houve uma que me marcou pelo inusitado. Por exigência de um dos diretores de produto da Sadia, fui enviado à Bahia para acompanhar, numa gráfica da cidade de Salvador, a produção de uma embalagem de um produto. Não sei por que o trabalho foi mandado para uma gráfica tão longe, mas enfim... era coisa de bate-e-volta, chegar lá, conferir, aprovar o trabalho e voltar. Dois dias no máximo. A agência de viagens me colocou num hotel espetacular, quatro estrelas na beira da praia de Ondina e eu, desacostumado com essas mordomias e imaginando que uma oportunidade de viagem dessas demoraria pra se repetir, dei um jeito de prolongar minha estada por mais alguns dias por ali, quando então tive a oportunidade de conhecer a cidade de Salvador, suas praias, o Pelourinho, Elevador Lacerda, mercado modelo e principalmente comer um verdadeiro acarajé baiano na famosa barraca da Dinha, distante uns cinco quilômetros do hotel, e para onde fui numa noite à pé, pela orla da praia.
Haviam, claro, outros clientes na agência. Entre eles, um que me remete a mais um “causo”. Estava trabalhando numa embalagem para o palmito Gini, na época um produto gourmet exclusivo, destinado ao público AA. Numa ocasião, o dono da empresa, após uma reunião na agência, resolveu que deveríamos todos ir almoçar juntos. E fomos. Eu achava que a gente iria acabar indo numa das várias churrascarias que haviam ali na Ricardo Jafet, ou, na pior das hipóteses, no McDonald´s. Mas o danado do cliente acabou levando a gente num restaurante japonês, do qual ele era fã. Já que até então nunca tivera interesse em conhecer a culinária japonesa, achei interessante e resolvi encarar. Sentamo-nos à mesa, pediram os pratos e começamos a comer. Eu juro que tentei comer um sushi, mas o negócio não descia. Ficou entalado na garganta, tentava engolir e o bicho não descia, e tive que pedir licença pra sair da mesa e jogar o troço fora. Nesse dia, meu almoço ficou só na saladinha de pepino doce servida como acompanhamento. Ainda hoje não vejo graça nesse tipo de comida, apesar de anos mais tarde, ter sido frequentemente levado a um restaurante japonês nas imediações do CEASA por outro chefe que àquela época tentava fazer uma previsão e cravava que em, no máximo, um ano, eu estaria comendo sushi. Errou redondamente.
Capítulo 31 — Frango frito, o mercado agrícola e a Nautical Magazine
A JGA estava sendo também uma grande escola. Desenvolvíamos praticamente toda a linha de embalagens da Sadia, e eu adorava. Mas nunca fui muito de “fazer carreira”, ficar no mesmo lugar por muito tempo. Além disso, havia chegado no departamento de arte uma figura extremamente insuportável, que se achava a última bolacha do pacote. Queria sempre ser o centro das atenções, extremamente puxa-saco, fofoqueira e desagregadora e eu cada dia a suportava menos. Isso foi tirando meu “tesão” de trabalhar ali, depois de quatro anos. Foi então que tive a oportunidade de conhecer a Work Comunicação, na Vila Nova conceição, numa ruazinha pertinho do Hospital São Luiz, voltada para clientes do mercado agrícola. Nunca soube ao certo, mas parece que o departamento de arte e criação estava passando por uma reformulação, pois junto comigo, foi contratado também o Maurício e nós, junto com o Zé, formávamos o trio criativo da agência. Embarquei, agora, no mercado agrícola, que me despertou uma nova paixão com as criações de campanhas de incentivo, que a gente desenvolvia para lançamentos de produtos para esses clientes do mercado agrícola.
O Maurício era o cara da informática, meio “nerd”, ligado na parte da tecnologia. O Zé era o cara da arte, sempre antenado nas últimas tendências, era quem dava a cara para as campanhas promocionais ou de incentivo de vendas que a gente criava junto com o Edu, contato e com a Silvana, redatora.
Quis o destino que essa agência ficasse, como disse, numa ruazinha bem no meio da Vila Nova Conceição, perto da João Cachoeira e Joaquim Floriano, onde havia a já citada lanchonete Joaquin´s que tinha, na minha opinião, o melhor hambúrguer e milk shake de São Paulo e da qual virei “habituè”. Tinha também, nas cercanias da Juscelino uma grande loja da KFC, com aquele maravilhoso frango frito. E no mesmo quarteirão, na esquina do Hospital São Luiz, uma loja de doces e chocolates.
Nessa época, eu estava determinado a parar de fumar. Não era permitido fumar nas dependências da agência, e eu tinha que sair pra rua pra poder fumar. Motivado, consegui ficar um tempo longe do cigarro. Por volta de um ano, eu diria. Como citei anteriormente, andava de bicicleta frequentemente, e deixando de fumar, minha performance aumentaria, pensei. As ladeiras da Vila Mariana que me aguardassem. Mas na agência, à tarde, o pessoal costumava dar uma escapada, um break - uns para tomar um café e comer alguma coisa na lanchonete, outros para fumar. Eu, por minha vez, comprava balas, doces e chocolates. Ou seja, troquei o cigarro por doces e por causa disso, acabei ganhando muito peso, chegando aos 125 kg. O incentivo para parar de fumar tornou-se um problema, pois o tão esperado fôlego não veio – ao contrário – sentia mais dificuldade, devido ao excesso de peso. Ainda nesse período, numa ocasião, a Rosangela foi com a irmã para o interior, visitar a mãe. A gente sempre fazia isso, 15 dias de férias no meio do ano para ir para o interior. Mas desta vez, na nova agência, não conseguia tirar as esperadas férias, e ela foi então com a irmã numa viagem de uma semana. Fiquei sozinho em casa, e depois de alguns dias, achei um maço de cigarros dela numa gaveta e açoitado pela tentação, voltei a fumar. Foi o suficiente para, logo, recuperar meu peso normal. Mas o fôlego nunca foi o mesmo.
Na JGA, a gente tinha um negócio que era mais ou menos como uma participação dos lucros. Um décimo quarto salário no final do ano, com o rateio de parte dos lucros da agência entre os funcionários. E quando fui para a Work, defini como condição para minha ida esse benefício – que, diga-se de passagem, na Work, nunca recebi. Certa feita, no final do primeiro ano, fui ter com o dono sobre isso, e ele disse “não se lembrar” desse nosso acordo. Isso, entre outras coisas, acabou me deixando cada vez mais desmotivado. Enquanto isso, minha carreira de free-lancer seguia paralelamente: a Silvana me havia apresentado um projeto que ela já tinha, de um jornal bimestral para um cliente da área de equipamentos para ceramistas. Desenvolvemos então esse jornal, ela apresentou ao cliente que achou a idéia fantástica. Aprovou, e tocamos juntos esse projeto que durou bastante tempo. Depois de um par de anos, acabou se transformando numa revista, à qual dei toda a identidade visual. Fazíamo-la em dupla: ela me passava os textos e as fotos, eu diagramava (já tinha um computador em casa), mandava um layout para o cliente e, uma vez aprovado, fechava o arquivo para a gráfica. Era extremamente gratificante. Nesse período também consegui um outro cliente, esse do ramo automotivo, uma distribuidora de auto-peças, e para quem vendi também a idéia de uma revista mensal com todo o catálogo. Para essa revista, eu fazia absolutamente tudo: desde as fotos dos produtos (eu arrumei uma das primeiras máquinas fotográficas digitais do mercado – uma Sony, que gravava as imagens num disquete de 5”1/4 polegadas), passando pela criação do logotipo, incluindo a renovação do logo da empresa, diagramação, editoração e formatação, inclusive de anúncios de parceiros da empresa – o que bancava em parte os custos – até o fechamento do arquivo para gráfica. Esses dois clientes me permitiam uma renda extra muito boa, mas me tomavam todo o tempo livre. Coincidentemente, depois de dois anos, fui chamado à sala do chefe, na Work, que comunicou a redução do quadro de funcionários, bla bla bla, e acabei saindo de lá. Não me lembro ao certo, mas parece que a Silvana saiu também nessa leva. Se não junto comigo, um tempinho depois. Anos mais tarde, conversando e pensando nesse assunto, chegamos à conclusão que nossa saída não foi “acidental”, mas estrategicamente articulada por uma pessoa que a gente considerava amiga na agência, mas que naquela época, temia a concorrência. Vida que segue.
Com mais tempo disponível, resolvi embarcar numa outra empreitada: nos tempos da JGA, havia conhecido um cara que prestava serviços de assistência técnica de informática na agência. Era ex-cunhado daquela criatura insuportável que eu detestava, e havia inclusive sido indicado por ela. Reencontrando-o por acaso, eis que esse cidadão me apresentou uma idéia de criação de uma revista de anúncios classificados para o setor náutico. Eu adorava pesca e barcos, e decidimos tocar o projeto. Naquela época, se você quisesse vender um molinete ou uma vara de pesca de R$ 10 por exemplo, teria que pagar um valor muitas vezes maior para anunciar. Vimos aí uma grande sacada: anúncios gratuitos para pessoas físicas. Criamos então a revista, e batizamo-la de “Nautical Shopping Magazine”, uma revista de anúncios classificados gratuitos, de distribuição também gratuita, que seria distribuída nas lojas voltadas ao mercado de pesca e náutica. Eu ficaria incumbido da parte artística – criação, diagramação, impressão, etc – e ele ficaria com a parte comercial – basicamente, vender espaços publicitários para empresas que bancariam a revista. Arrumei um amigo que fez a página na internet pra gente, na faixa. Mas lembrando que naquela época, não haviam ainda os telefones celulares. Então, os anúncios teriam que ser enviados por fax, e-mail ou através da própria página da revista. A internet estava engatinhando, o que se tornou um fator de dificuldade, porque poucos tinham e-mail ou sequer acesso à rede. Eu já tinha uma linha telefônica fixa, em casa, mas não era de muita ajuda. Ainda assim, resolvemos seguir. Como eu estava com uma grana, referente à rescisão com a Work, fizemos o número UM da revista, pegando anúncios de jornais e outras revistas, apenas para colocar a nossa em circulação. Banquei a impressão, e lembro que a primeira leva fomos distribuir na “Feipesca”, evento voltado ao mercado náutico que acontecia no Anhembi. Distribuímos lá, em dois dias, cinco mil exemplares, que eram muito bem recebidos pelo público, e eu já sonhava com o sucesso. Outros cinco mil foram distribuídos nas marinas do litoral de São Paulo, onde a gente ia com minha Parati velha de guerra, que eu havia recém trocado pela Brasília. Animados, partimos para o número DOIS. Como havíamos definido que a parte comercial e captação de anúncios seria a cargo dele e das duas vendedoras que ele arrumou, eu tinha muito tempo ainda para tocar os outros projetos, as duas revistas que, elas sim, estavam me sustentando. Como não existiam ainda celulares, nosso meio de comunicação eram os pagers, aparelhinhos que enviavam mensagens instantâneas através de linha telefônica. E o meu não parava de apitar... Ele ficava na casa dele, transformada em escritório de vendas, com as vendedoras, e eu era sempre chamado para reuniões sem sentido. Acabei descobrindo que ele estava “irritado” por eu estar me dedicando também a outros projetos, e queria me manter “ocupado” na revista. Ainda assim, mesmo tocando outros dois projetos paralelos, eu tinha um tempo para ir atrás de clientes anunciantes para minha revista, e a maioria decidia fechar o anúncio quando a edição já estivesse fechada, ou seja, quando já tivesse vendido todos os espaços. Como isso não aconteceu, pois o departamento de vendas era extremamente ineficiente, ainda assim resolvi bancar do meu bolso a edição de número dois - esta já com alguns anúncios “verídicos” e outros fantasmas, copiados de jornais classificados, um jeito que a gente arrumou apenas para fechar a edição. Mas deixei claro que a metade do custo caberia a ele. Assim como eu estava colocando dinheiro do meu bolso, nada mais justo que ele colocasse a outra parte do dele. Ele vivia duro, não tinha dinheiro, e empenhou sua palavra que, se fosse preciso, venderia seu único bem — sua moto — para pagar sua parte dos custos, o que na época era algo em torno de mil dólares. Ficou de me pagar com os lucros das novas edições. Lançamos então a número dois, que foi novamente sucesso de distribuição nas lojas do mercado de náutica e pesca em São Paulo e nas marinas do litoral. Partimos então para o número três, mas desta vez, deixei claro que a edição só sairia “se” e “quando” todos os espaços estivessem vendidos, ou seja, eu iria parar de colocar meu dinheiro. A revista deveria começar a se pagar sozinha, e não era certo a gente (na verdade – eu) ficar colocando dinheiro indefinidamente nisso. Ao invés disso, ele que fizesse sua parte, já que até agora, não havia vendido um anúncio sequer – os anúncios publicados foram conseguidos por mim. Ele, claro, não conseguiu, e bravo, desfez a sociedade. Para não me pagar, disse que eu poderia ficar com a parte dele, que ele iria fazer a própria revista, coisa que eu duvidei. Resumo da história: o número três nunca saiu, pois eu estava por demais envolvido nos outros projetos, e achei que não conseguiria tocar integralmente a Nautical. Assim, os arquivos originais do número três devem estar em algum HD largado em alguma gaveta do meu estúdio. A parte que ficou me devendo também nunca vi. E nem verei. Há alguns anos, descobri que o dito cujo faleceu num acidente com um ultraleve. Única lembrança boa dessa figura é que ele tinha muitos relógios. Havia, na casa dele, uma parede forrada de relógios de todos os tipos e épocas. Fiquei fascinado, e nasceu aí minha paixão por essas fantásticas máquinas de precisão. Hoje sou colecionador de relógios de parede. Cheguei a ter dezenas, e as paredes de casa se tornaram insuficientes para tantos relógios. Quando nos mudamos para o interior, a Rosangela fez com que eu desse fim em parte deles, pois eram muitos. Então fiquei só com os mais antigos e mais bonitos. Ainda assim, tenho muitos.
Corria o ano de 1999, e eu ainda envolvido com a revista de autopeças. Lá no começo, havíamos feito um acordo, de que eu estaria incumbido de treinar um funcionário da casa para que, ao final do contrato, ele tocasse sozinho a revista, sem minha ajuda. E eis que chegou esse dia. Se não me falha a memória, a última edição que eu fiz foi em junho de 1999. Transferi toda a tecnologia e todos os arquivos para esse cara, e finalizamos nosso acordo. Foi um período muito bom. Apesar de estar fazendo a revista inteira, eu ainda tinha muito tempo disponível. Não me lembro se a revista de cerâmicas ainda rolava, mas sei que a Silvana virou muito amiga – mais da Rosangela do que minha. De fato, está sempre lá em casa. Acabou virando madrinha de Crisma da Isabela e ainda por cima acabou influenciando-a na profissão escolhida – jornalista.
Capítulo 32 — Cães, gatos e balões de gás,
Tinha uns nove ou dez anos, e me lembro que, de vez em quando, meu pai me levava, aos sábados, para passar o dia com ele, na Walita, onde ele trabalhava na cozinha. Realmente não havia nada para eu fazer lá, a não ser ficar andando sozinho pelo lugar, já que meu pai estaria lá dentro, trabalhando, e não haviam outras crianças por ali. Lembro que na saída do refeitório, na parte de trás, no meio do grande pátio cimentado, havia um lago artificial com peixes ornamentais. Havia também uma ponte estilo oriental atravessando o lago, e eu passava então ali a maior parte do tempo. Às vezes, lembro, pegava algum carrinho desses conhecidos como “transpallets” e ficava dando voltas pelo lugar, como se fosse um patinete. Numa dessas ocasiões, estava eu sozinho andando pelo enorme pátio, quando vejo ao longe um dos cachorros que faziam a guarda noturna do lugar escapar e vir direto pra minha direção. Não sei por que, na hora me deu um branco: eu já tinha visto em algum lugar que não se deve correr numa situação dessas. Não sei se foi por isso ou se travei de medo, o caso é que permaneci estático mesmo quando o enorme pastor alemão chegou correndo perto de mim e, mesmo tendo pulado no meu peito, continuei imóvel. O cuidador do cachorro apareceu logo em seguida e, segurando o cão pela guia, me elogiou, dizendo que fui muito corajoso e sangue frio por não ter corrido. Mal sabe ele que quase me borrei. Naquela época, eu sempre pedia ao meu pai que ele deixasse a barba crescer. Não sei por que, mas queria muito vê-lo de barba comprida. Ele dizia que nas férias deixaria. Mas, como chefe de cozinha, por motivos óbvios, nunca deixou. Quando fiquei maiorzinho, e os primeiros pêlos começaram a aparecer no rosto, jurei que teria barba comprida. Mas quis o destino que eu sofresse da “maldição da barba rala”. Nunca pude realizar meu desejo. Em compensação, desde meados dos anos 1980 passei a cultivar meu bigode, e cheguei a inclusive a ser conhecido no prédio onde morava e pela molecada que jogava basquete comigo como “Bigode”. Ainda hoje cultivo meu moustache. É certo que já está começando a ficar branco; de vez em quando corto, mas logo em seguida, deixo crescer novamente. E por enquanto ele vai ficando.
Outra coisa que lembro é das festas de final de ano, quando os funcionários da Walita levavam a família toda para a festa de confraternização da empresa. A gente ia todo ano, e eu gostava, pois tinha bolo, doces, salgadinhos e o principal: brinquedos de presente de Natal. Essas festas eram feitas sempre num lugar fechado, tipo uma quadra ou salão coberto, e uma das nossas diversões era tentar fisgar os balões de gás que escapavam e subiam para o teto. Se brinquedos pra gente eram raros, imaginem então balões de gás. A gente arrumava algum chiclete ou alguma fita tipo durex, colocava em cima do nosso balão e tentava grudar nos outros que estavam soltos, de modo a puxá-los de volta. Lembro que em casa, com esses balões, eu fazia uma cestinha com algum copinho e quatro barbantes, e tinha então um balão em miniatura. Na cestinha, geralmente colocava algum boneco que achasse dando bobeira por ali. Lembrando que naquela época os balões eram muito mais resistentes e tinham mais força, mais empuxo. Certeza que deveriam usar outro tipo de gás, diferente dos de hoje, de hélio, que são bem fraquinhos e tem pouca duração. Aqueles de antigamente duravam dias! E Graças a essa longa duração, a gente passava também dias se divertindo com os balões. Numa dessa ocasiões, resolvi sair pra rua com meu balão equipado com a cestinha e dois bonecos dentro. Uma vacilada e uma rajada de vento foram suficientes para enviar os dois bonecos para uma viajem sem volta pelos ares da Vila Gustavo.
Desde sempre tivemos cachorros em casa. Lembro de alguns deles, especialmente um casal de vira-latas, talvez os primeiros que tivemos, a Suzi e o Sultão. O Sultão era terrível, e conseguia pular o portão para fugir pra rua. Naquela época, havia as “carrocinhas”, uma perua ou caminhãozinho da prefeitura que passava pelos bairros recolhendo os cães de rua para sacrificar. Haviam os laçadores, os caras que, com uma incrível habilidade, laçavam os cachorros e os jogavam dentro do automóvel, para leva-los para a secretaria de zoonoses, em Santana. Era um Deus-nos-acuda quando alguém gritava, na ponta da rua : “Carrocinha!!!” e todo mundo saia correndo pegar seu cachorro na rua pra que ele não fosse levado. Certa vez, levaram o Sultão, que havia pulado mais uma vez o portão. Lembro de termos ido à zoonose buscá-lo e para retirar e a mãe teve que pagar uma taxa, ou multa, sei lá. Não sei se é implicância minha, mas naquela época os cachorros eram mais cachorros. Não tinha essa coisa de ração gourmet, com baixo teor de sódio, enriquecidas com vitaminas e o escambau. Cachorro sempre comeu sobras de comida. Adoravam ossos, coisa proibida hoje em dia para essa geração de cachorros mimizentos. Viviam muito tempo, morriam naturalmente de velhice, aos dez ou doze anos e dificilmente ficavam doentes. Coisa rara era levar um cachorro no veterinário. Depois dos dois vira-latas, tivemos muitos outros, geralmente da raça pequinês, que era febre na época. Anos mais tarde, tivemos também um gato, chamado Farrusco. Um gatão grande e cinza, que meu pai trouxe de ônibus, desde Americana, onde na época trabalhava, e me deu como presente de aniversário. Como trabalhava em Americana, ele passava a semana lá, e às sextas-feiras, vinha pra casa para passar o final de semana. O Ciso, como tinha carro, ia toda sexta-feira à noite buscar o pai na rodoviária, geralmente com a Cristina, na época sua namorada. Nesse dia eu estava junto e o pai me fez a surpresa do gato de presente. Contou que, durante a viagem, durante um cochilo, o gato, que vinha fechado dentro de uma sacola, escapou e ficou perambulando pelo ônibus. Quando o velho acordou, bateu a mão na sacola e não achou o gato. Teve que caçá-lo no ônibus, durante a viagem, envolvendo todo mundo nessa “caça”. O Farrusco tinha esse nome porque tinha sido o nome de um gato que meu pai teve, em Portugal, quando criança. E fez questão de batiza-lo assim. Curioso que sou, fui procurar o significado no dicionário: adjetivo 1.manchado de carvão, de fuligem; encarvoado, enfarruscado. E era isso mesmo: um gatão completamente cinza, que se tornou o terror dos passarinhos e ratos da região. Era comum vê-lo de tocaia na boca de algum bueiro da rua; de repente, pulava lá dentro e saía com um ratão na boca que, invariavelmente, ia comer no meu quarto, sujando os tapetes de sangue. Outra peculiaridade dele era que, quando a gente queria chama-lo, bastava “afiar” uma faca em algum lugar, que ele, ouvindo o som, logo aparecia. Ficou com a gente bastante tempo, e a cada dia estava mais gordo, sem, no entanto, perder a agilidade típica dos felinos. Uma bela tarde, quando voltava do trabalho, eis que o encontro caído numa calçada, morto. Algum vizinho com o coração de pedra o envenenou. Enterrei-o, chorando, num terreno baldio que havia perto de casa.
Desde então, minha existência nesse planeta é ligado a algum pet. Às vezes, mais que um. Excetuando-se o período em que a gente morou no apartamento do Tucuruvi, sempre tivemos algum cachorro ou gato. Quando nos mudamos para a Vila Mariana, resolvemos dar um gato de presente pra Daniela. Achei uma mulher que tinha um gatil num apartamento, na Domingos de Morais. Conseguem imaginar, um gatil num apartamento? Ela tinha vários gatos, todos em gaiolas, e devia viver às custas de vender suas crias. Ofereceu-nos uma gata já adulta, que devia ter sido matriz de seu gatil, e estava se desfazendo dela. Fomos lá buscar a Candie. Uma gatona persa enorme e peluda, com cara de poucos amigos, mas linda. Morávamos no sexto andar, e levamos a tal Candie pra casa. A gente não tinha experiência com gatos, e na primeira noite em casa, ela passou a maior parte do tempo miando. Não sabíamos, mas lógico que ela além de estar estranhando o lugar, devia estar no cio, por isso miava tanto. Acordei de madrugada e, ao abrir os olhos, dou de cara com aquele cabeção me olhando a um palmo de distância. Tomei um baita susto. Temendo reclamações dos vizinhos, devolvi a gata no dia seguinte. Achamos então outra pessoa no bairro que estava doando gatos vira-latas. Pegamos uma gatinha filhote, que chamamos de Laila e virou a companheira da Daniela. A partir daí, sempre tivemos bichos de estimação. A vida sempre fica melhor com eles do nosso lado.
Capítulo 33 — Jouney to the center of the Earth – A vinda para o interior
Findo o contrato com a revista de autopeças, que havia me sustentado por bons dois anos, e tendo retomado a prática de enviar currículos, fui chamado para um entrevista na Link. A pessoa que fez o contato comigo deu um endereço em Campo Limpo. À princípio, achei que fosse o bairro na cidade de São Paulo, mas não: era Campo Limpo Paulista, interior de São Paulo, próximo a Jundiaí.
Não haviam, naquela época, aplicativos de geolocalização como Waze, Google Maps ou GPS. Para ir à tal entrevista, tive que ir a uma banca de jornais e comprar um mapa com as rodovias do estado a fim de descobrir como chegar. Na época, minha Parati não andava muito bem de saúde. Bastava qualquer forçadinha e a bichinha fervia. Fato que me levou a instalar um botão “liga-desliga” diretamente na ventoinha do radiador, para evitar superaquecimento. A cada saída, tinha que completar a água do radiador, que andava baixando mais que o normal. Ainda assim, sem outra alternativa e com o mapa na mão, no início de Setembro de 1999, parti para a entrevista usando a Parati e rezando para que ela aguentasse a viagem de 78 quilômetros até a agência. Decidi seguir pela Via Bandeirantes, melhor pavimentada e com mais recursos, caso fosse necessário alguma ajuda.
Acontece que o mapa mostrava um acesso para Campo Limpo na altura de Cajamar que eu pretendia usar, e que percebi, lá chegando, que esse acesso só existia no papel. Assim, tive que ir até Jundiaí para voltar “por dentro”, ou seja, passando por Várzea Paulista para chegar a campola. Mas haviam dois detalhes: número um, eu não conhecia a região – é verdade que tinha ido muito a Jundiaí, na época em que o Rafa estava no seminário, mas isso a trinta anos atrás – e número dois, não haviam waze, google maps ou GPS. Então, tive que ir parando pelo caminho procurando orientações. Por fim, consegui chegar no endereço, até um pouco adiantado no horário, diga-se de passagem.
Parei a parati em frente à agência e esperei sua abertura. Fui recepcionado pela Rute, que me ofereceu um café, enquanto esperava a chegada da patroa para a entrevista. Esse café nunca tomei. Fiquei sabendo tempos depois que, naquele dia, não havia pó para o preparo, e ela me oferecera sem saber disso. No horário combinado, chegou a Rosangela, patroa, encarregada de me entrevistar. Disse ter gostado do meu currículo e queria que eu começasse logo a trabalhar. Nesse meio tempo, havia um feriadão de 7 de Setembro, e nossa conversa ficou muito por alto, não formalizamos nada. Eu não sabia então precisar se fui ou não contratado, e passamos esse feriado na maior angústia. No dia 8, liguei para a agência, para saber como ficara a situação. A Rosangela disse que estavam me esperando. Assim, dia 9 de Setembro de 1999, ou 9/9/99 – uma data cabalística, por isso facilmente decorada - iniciei na USW Link, em Campo Limpo Paulista. Eu morava, na época, no Jardim da Saúde, entre a Ricardo Jafet e a Av. do Cursino, e para ir trabalhar, fazia literalmente uma viagem todos os dias. Tinha que pegar a Ricardo Jafet até a avenida do Estado, depois marginal Tietê e depois a Anhanguera, e na altura de Cajamar pegar ainda mais dezenove quilômetros numa outra rodovia para chegar na cidade. De carro, com trânsito normal, levava mais de uma hora. Ao final da primeira semana, mais habituado com o lugar, decidi ir trabalhar de trem. Saí de casa de madrugada, ônibus, metrô até a Luz, e o trem, com destino a Jundiaí. Duas horas e meia depois, cheguei na agência. Fiz isso somente para me certificar que dessa forma meu deslocamento seria inviável, e portanto, teria que ser mesmo de carro. Lembro que neste dia era aniversário da dona da agência, e o pessoal foi convidado para a comemoração depois do expediente numa churrascaria da cidade. Eu, sem carro, tive que voltar para casa de trem. Fiquei na comemoração o máximo que pude, até umas 21hs, se não me falha a memória, e sei que cheguei em casa bem depois da meia-noite.
A Parati já dava sinais de aposentadoria. É bem verdade que, sendo a álcool, com 20 reais eu enchia o tanque – lembro que o litro do álcool custava naquela época 50 centavos. Assim não ficava caro o deslocamento. Eu chegava no posto da esquina de casa e já completava o tanque, para o dia seguinte. Mas o problema é que todos os dias, ao chegar em casa, eu tinha que completar a água do radiador, deixando o carro preparado para a viagem do dia seguinte. Chegava na agência, mesma coisa: enchia o radiador para a volta. Isso não era vida. Então, meio que fui obrigado a providenciar um carrinho melhor. Fomos num final de semana dar uma olhada nas agências de carro do bairro, e achei um Golf bonitinho, três anos de idade, baixa quilometragem e com preço acessível, e decidimos compra-lo, financiado. A partir daí, as viagens melhoraram muito. Já não me estressava pensando que o carro pudesse dar algum problema e me deixar na mão. Afinal, esse tinha seguro total, e eu andava mais tranquilo. A Rô acordava de manhã e enquanto eu me aprontava para sair, ela preparava um “lanchinho”, para eu ir comendo no caminho. Virou hábito. Quando saía da Anhanguera e pegava outra rodovia, mais tranquila, eu, mesmo dirigindo, abria o lanchinho e vinha comendo. Chegava alimentado no serviço. Tudo ia às mil maravilhas, e apesar do cansaço diário, eu até que gostava do trajeto.
Mas quis o destino que, numa bela sexta-feira, depois de uma viagem matutina infernal, graças ao trânsito incomum naquele dia, cheguei atrasado para uma reunião com um cliente importante. Logo eu, que sempre procurei ser o mais pontual possível. Foi um daqueles dias em que tudo dá errado. Fiquei realmente muito estressado, e acabei passando mal na agência. Tão mal que eu não conseguia ficar em pé. Deitei no sofá da recepção esperando o desconforto passar. Não passou. Acabaram me levando a um hospital em Jundiaí, onde fiquei internado na sexta, sábado e domingo. O coração velho de guerra começou a ratear, com suspeita de princípio de infarto. Apesar de ter plano de saúde, este não quis cobrir os custos da internação, alegando que era válido somente na cidade de São Paulo. Briguei muito com eles, pois havia no contrato uma cláusula de remoção aérea, e deveriam tê-la providenciado para um hospital de São Paulo, coisa que não fizeram. Acabei brigando tanto, num processo tão desgastante que desisti da briga e do plano. Então, tive que arcar também com esse custo – que não foi pouco. No domingo, a Rô foi a Jundiaí me buscar – meu carro ainda estava no estacionamento da agência. Fomos para lá, pegamos o carro e, na volta para casa, ela me intimou: não dava pra continuar desse jeito. Cedo ou tarde, o coração apitaria de novo. Então, que eu tomasse uma decisão: ou eu saía da agência, ou a gente saía de São Paulo.
Desde que casamos, nosso sonho foi morar numa chácara. À princípio, pensamos em comprar algo na Serra da Cantareira, e tinha até planos de ter um jeep com tração nas quatro rodas para encarar a serra. Mas nunca tivemos a possibilidade de realizar esse sonho. Até agora: há em Campo Limpo Paulista um bairro cuja característica é ser constituído somente por chácaras. Resolvemos então nos mudar para Campo Limpo, visando esse bairro. Aos finais de semana, a gente vinha para campola procurar imóvel para alugar – eu ainda não tinha condições de comprar nada. Achamos uma chácara disponível para alugar, e resolvemos ir ver, junto com o corretor. Parei o carro em frente ao portão e parece que aquela chácara que eu sempre imaginara estava em à nossa frente. Um gramadão em aclive, com a casa lá no alto. Entrada para carro, churrasqueira e garagem, além de um barracão para ferramentas onde eu me realizaria. Área total de 6.000 m². Susto mesmo foi quando o corretor nos informou o preço do aluguel: Trezentos Reais por mês. Eu achei que ele havia se confundido, ou estava tentando me enganar, pois em São Paulo a gente pagava oitocentos de aluguel num apartamento de 68 m² e, somando o condomínio, a conta ficava em mais de mil reais. Fechamos naquele mesmo sábado. Fomos para a imobiliária e assinamos os papéis. Voltamos no final de semana seguinte para dar uma geral na casa, providenciar a limpeza, conserto de pequenos problemas e descarte de algumas coisas velhas deixadas lá, principalmente revistas e jornais antigos. Numa quarta-feira, juntamos nossos trecos e partimos para o interior. Havia chovido muito naquela semana, e chovia ainda no dia da mudança. E com a chuva, algo que eu não estava acostumado: barro. As estradas de terra ficavam intransitáveis, e o caminhão com a mudança não conseguia chegar em casa. Depois de boas três horas de espera, saí à procura dele, e achei-o no asfalto, tentando informações de um caminho alternativo. Caminho esse que eu já conhecia. Assim, conseguimos chegar em casa. Acomodamo-nos, montamos e instalamos os móveis e passamos então a viver outra vida. Durante essa primeira semana, a gente mal conseguiu dormir: estávamos acostumados ao barulho e às luzes da cidade grande. Nosso apartamento ficava voltado para a Ricardo Jafet, um corredor de trânsito que dá acesso à Rodovia dos Imigrantes. Trânsito intenso, já naquela época, dia e noite. Mas no meio do mato, à noite, é uma escuridão e um silêncio total. Estranhamos muito isso, e qualquer piado de coruja nos mantinha ainda mais acordados. Passada essa fase inicial, fomos descobrindo as “maravilhas” de se morar em chácara: manutenção interminável. Tinha 3.000m² do gramado da frente para cortar, e mais 3.000 m² de mato no fundo para roçar. O proprietário havia deixado as ferramentas no barracão. Cortador de grama, rastelo, machado, enxada, além de um milhão de chaves de bocas de todos os tipos. Assim, eu não precisei comprar nada. Mas acostumado na cidade, tive que aprender a usa-las, coisa que fiz muito bem. A cada 15 dias, a tarefa era cortar grama. Eu cortava, a Daniela fazia os recortes em torno das árvores e a Rô rastelava. A gente levava uns dias para cumprir essa tarefa. Com o passar do tempo, comecei a perceber o porquê do aluguel tão barato: não éramos inquilinos, mas praticamente caseiros, já que passávamos a maior parte dos finais de semana cuidando da chácara. Ainda assim, eu adorava o lugar.
Passaram-se dois anos, e tivemos então a chance de comprar nosso terreno, agora em Jarinu. Outra cidade, mas eu costumava dizer que era só outro morro. Literalmente: a gente morava num morro; no morro da frente, já era Jarinu: havia um córrego entre eles que fazia a divisa do município. Ainda não havia conseguido guardar nenhum dinheiro. Mas um belo dia a Rô me ligou na agência dizendo ter sido contactada por uma imobiliária oferecendo um terreno ali perto. Na hora e sem pestanejar, perguntei se ela havia ficado louca: como ela imaginava pagar, já que a gente não tinha nada guardado? Ao que ela responde que iria ver o terreno de qualquer forma, comigo ou sem mim. Marquei então com ela e a corretora num lugar perto de casa onde eu passaria para pega-las , saí da agência e fomos ver o tal terreno. Ficava realmente do outro lado do morro, num loteamento só de chácaras. Chegamos no local, e mal dava pra ver o terreno na sua totalidade. Haviam, na frente, algumas árvores que teriam sido cercas-vivas, mas, mal cuidadas que foram, acabaram crescendo muito, e estavam altas. Dali, olhando-se para baixo, mal se viam as divisas, tamanho era o mato no terreno. E bananeiras. Muitas bananeiras. Havia também, na parte lateral uma árvore caída para o lado de dentro. Foi subindo nesse tronco caído que consegui ter uma visão melhor do terreno. Mas a vista, no horizonte, era fantástica, com muito verde e montanhas ao longe. Resolvemos de comum acordo que seria este. Na época, eu andava com uma correntinha de ouro e a medalha de São José, de quem sou devoto, no peito. Peguei então a medalhinha, apontei para o terreno e pedi: “-São José, é esse aqui. Dá seu jeito”. Apesar de não ter dinheiro algum guardado, na semana seguinte estava no cartório assinando a escritura do terreno, que paguei à vista. Milagre de São José.
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