P/1- Bom dia Sr. Moysés.
R- Bom dia.
P/1- Para iniciar nossa entrevista gostaria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Moysés Isaac Kessel, nascido em 13 de fevereiro de 1930 no Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, então Distrito Federal na época.
P/1- O senhor podia falar um pouco então o nome dos seus pais e o que eles faziam?
R- Meu pai se chamava Chaja Kessel, Isaías era o nome em português, e minha mãe se chamava Sarah. Eles eram poloneses e casaram antes de vir para o Brasil, chegaram no Brasil em 1928. Ele de profissão na Polônia era barbeiro, filho de barbeiro. Mas chegando no Brasil, ele começou a ter problemas de vista e começou a se dedicar ao pequeno comércio, que isso ele fez durante toda a vida. Não estabelecido, parte ambulante, parte representante. Minha mãe nunca fez outra coisa a não ser cuidar da casa.
P/1- E você lembra a cidade que eles vieram?
R- Eles vieram diretamente para o Rio de Janeiro.
P/1- Está, não, a cidade de origem deles.
R- Sei, meu pai era de uma província chamada Volínia, era uma província de fronteira entre a Polônia e a Rússia. Minha mãe é chamada Poléssia , uma região pantanosa, muito pobre, que hoje é Rússia Branca. Mas depois que eles nasceram foi anexada à Polônia as duas. Eles se encontraram quando meu pai fazia serviço militar, entende?
P/1- Daí eles se conheceram...
R- Se conheceram, casaram e vieram logo para o Brasil.
P/1- Mais os filhos nasceram aqui.
R- O filho único, nasci aqui.
P/1- Há, o senhor é filho único.
R- Sou filho único.
P/1- Quando o senhor nasceu, eles moravam em que bairro no Rio?
R- Eles moravam no Rio de Janeiro, quando eu nasci eles moravam no Estácio. Logo depois que eu nasci, ele melhorou um pouco de vida e nós mudamos para Laranjeiras, curiosamente uma rua onde atualmente, depois de residiu meu sogro. E nós usávamos, era uma ruazinha sem saída, perto que é atualmente o túnel Santa...
Continuar leituraP/1- Bom dia Sr. Moysés.
R- Bom dia.
P/1- Para iniciar nossa entrevista gostaria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Moysés Isaac Kessel, nascido em 13 de fevereiro de 1930 no Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, então Distrito Federal na época.
P/1- O senhor podia falar um pouco então o nome dos seus pais e o que eles faziam?
R- Meu pai se chamava Chaja Kessel, Isaías era o nome em português, e minha mãe se chamava Sarah. Eles eram poloneses e casaram antes de vir para o Brasil, chegaram no Brasil em 1928. Ele de profissão na Polônia era barbeiro, filho de barbeiro. Mas chegando no Brasil, ele começou a ter problemas de vista e começou a se dedicar ao pequeno comércio, que isso ele fez durante toda a vida. Não estabelecido, parte ambulante, parte representante. Minha mãe nunca fez outra coisa a não ser cuidar da casa.
P/1- E você lembra a cidade que eles vieram?
R- Eles vieram diretamente para o Rio de Janeiro.
P/1- Está, não, a cidade de origem deles.
R- Sei, meu pai era de uma província chamada Volínia, era uma província de fronteira entre a Polônia e a Rússia. Minha mãe é chamada Poléssia , uma região pantanosa, muito pobre, que hoje é Rússia Branca. Mas depois que eles nasceram foi anexada à Polônia as duas. Eles se encontraram quando meu pai fazia serviço militar, entende?
P/1- Daí eles se conheceram...
R- Se conheceram, casaram e vieram logo para o Brasil.
P/1- Mais os filhos nasceram aqui.
R- O filho único, nasci aqui.
P/1- Há, o senhor é filho único.
R- Sou filho único.
P/1- Quando o senhor nasceu, eles moravam em que bairro no Rio?
R- Eles moravam no Rio de Janeiro, quando eu nasci eles moravam no Estácio. Logo depois que eu nasci, ele melhorou um pouco de vida e nós mudamos para Laranjeiras, curiosamente uma rua onde atualmente, depois de residiu meu sogro. E nós usávamos, era uma ruazinha sem saída, perto que é atualmente o túnel Santa Bárbara. Depois eu mudei para Pereira da Silva, também em Laranjeiras, uma rua ali perto. Depois nós mudamos para o que chamam de Engenho Velho, mas é mais chamado de Praça da Bandeira, e por ali eu fiquei até casar.
P/1- Qual é a primeira lembrança que o senhor tem como pessoa, quando criança?
R- A primeira lembrança que tenho como criança, curiosamente ainda é de Laranjeiras, porque meus pais se mudaram com dois anos para Laranjeiras. É a seguinte lembrança: Eu, houve uma festa no Fluminense para crianças pobres, ou não tão pobres do bairro, e me lembro do meu pai me levando, isso ficou na memória. E as primeiras lembranças também são de Laranjeiras, a Rua Pereira da Silva. Eu morava numa casa que não existe mais, mas que eu voltei lá e vi que construíram um pequeno prédio lá.
P/1- O senhor se lembra de como era essa casa?
R- Essa casa era o seguinte: querendo sair desse meu endereço de Laranjeiras, que eu mencionei, que hoje chama Rua Eugênio Hussak, meu pai e um conhecido dele resolveram fazer o seguinte, resolveram alugar. As casas eram de famílias ricas , Laranjeiras era um bairro inicialmente de famílias ricas, de alta classe média. Mas essas famílias perderam a fortuna, então como as casas eram muito grandes, elas alugavam as partes que eram dos criados, que na verdade maiores que uma casa hoje. Então, nós e este casal, que se tornaram muito amigos meus o resto da vida, os filhos, ele alugou para nós. Nós ficamos com um quarto, dois quartos e eles ficaram com dois quartos. Isso originalmente era uma residência dos criados. E lá eu fiquei até sete anos. Era um lugar agradável. Quer dizer, o que me ficou na memória é eu descendo a Rua Pereira da Silva, vinha andando a Rua das Laranjeiras até o Largo do Machado, hoje. Isso ficou na minha memória hoje, e como meus filhos moram lá, minha mãe mesmo disse: “Puxa, uma vida nossa, nós viemos aqui com dois anos.” E curiosamente umas casas lá ainda continuaram. Ficou-me na memória, porque o calçamento da Rua das Laranjeiras, o calçamento antigo das ruas do Rio de Janeiro, eram pedras grandes, eram canteiros portugueses que faziam, não era cimento nem asfalto, eram pedras e curiosamente eu andando com meus netos e meus filhos eu digo: “Olha, esse calçamento me lembro que andava com a minha mãe, eram pedras, pedras alisadas. Eu me lembro muito bem da igreja, que tem a igreja do Largo do Machado, Nossa Senhora da Glória que está lá ainda, e algumas casas ainda estão lá.
P/1- Seu Moysés, o senhor brincava de que quando criança lá em Laranjeiras?
R- A gente brincava na rua, essas brincadeiras de roda. Eu quero dizer o seguinte, logo nessa idade percebi uma ideia minha que não tinha muito jeito manual. Aquelas brincadeiras, pião, por exemplo, qualquer brincadeira de destreza manual eu não era bom. Agora brincava de bola de gude, de correr, de pegar, de pular corda, essas brincadeiras comuns né.
P/1- Futebol também?
R- Futebol logo na escola eu comecei a jogar, e sempre gostava muito de jogar futebol, apesar do problema que era muito pequeno. Minha mãe era muito pequenininha e eu tive crescimento muito lento, então era menor sempre do que o grupo que eu me associava, eu tinha o problema que era sempre o menor fisicamente.
P/1- Você era o primeiro da fila?
R- Era o primeiro da fila. Isso até o ginásio.
P/1- Bem, já que a gente está falando em escola, o senhor podia contar como foi sua experiência em alfabetização.
R- Certo. Alfabetizei-me antes dos cinco anos praticamente sozinho. Aí minha mãe pegou e disse: “Vamos levar este menino para escola.” No Largo do Machado tem até hoje o prédio chamado Escola Amaro Cavalcante, hoje faculdade. Na verdade naquela época tinha outro nome, escola José de Alencar. É o mesmo prédio, não mudou. Ela me levou lá e naquela época havia poucas formalidades. Então com seis anos incompletos já comecei a frequentar a escola já alfabetizado. Era o menino que a professora dizia: “Olha quer ver como ele lê?” Eu lia alto e desde criança percebi que eu tinha a memória muito boa. Não é de se gabar porque você nasce com isso. Eu lia um texto e depois a professora dizia: “Repete o que você leu.” Eu pegava e repetia. A escola era boa, tradicional, muita ênfase na memorização, não havia mais castigos físicos, tinha sido proibido. Mais havia estes castigos que hoje em dia seriam morais, de você ficar no canto da sala com papel nas costas: mau elemento, bagunceiro. Mas a escola era boa, acontece que fiquei lá só um ano. Meus pais mudaram para a Praça da Bandeira e entrei numa escola que realmente era boa. Não existe mais a escola, mas existe o prédio. Numa rua que curiosamente moravam pessoas muito ricas. Ricas dentro do que achávamos, nós meninos, não vou chamar de pobres, meninos classe media pobre. Que no Rio de Janeiro classe média pobre, quer dizer, nós não nos considerávamos pobres, porque havia um espetáculo da pobreza ao lado que era muito pior. Na verdade era classe média, morava em casa de vila e tal, não passava necessidade básica, de não ter comida, não ter roupa, de precisar pedir esmola, esses eram os pobres. Mas na rua morava gente muito rica. Então nós ficávamos muito impressionados com as casas. Claro que quando eu vim para São Paulo isso me pareceu bobagem. Mas para o Rio de Janeiro, aquelas mansões que nós olhávamos, eram muito ricas para nós. A escola era muito boa por uma razão, a escola era próxima da Tijuca. Tijuca no Rio é um bairro de classe média educada, muitos militares, funcionários públicos, o Colégio Militar era ali. Então o nível dos alunos fazia com que a escola fosse muito boa. Nessa escola, a primeira vez que percebi, o que depois só aprendi o que é a diferença de classe. Era ao lado do morro do Salgueiro. Então as turmas eram metade de alunos da classe média e metade de meninos que vinham do morro do Salgueiro. Essa diferença era imediata, a gente percebia. Quer dizer, naquele tempo começaram as reformas da Educação no Rio de Janeiro com Anísio Teixeira, que agora está sendo comemorado, e ele trouxe dos Estados Unidos a ideia de associação de pais e mestres, uma ideia que hoje em dia é normal mas naquela época era novidade. Está certo, os pais iam lá, mas que pais iam lá? Os nossos pais. Os pais das crianças do morro não apareciam lá. E as crianças ficavam até a terceira série e normalmente iam-se embora. Foi essa a primeira vez que notamos, estou falando coisas que aprendi depois, mas instintivamente a criança percebe. Nós brincávamos de um lado e eles brincavam do outro. Eles tinham dificuldade de acompanhar, as mães eram analfabetas. As professoras me diziam: “ Esse menino até que é inteligente, mais ele não tem ambiente para estudar. Essa diferença apareceu logo, nós começamos a sentir logo.
P/1- Então vocês não interagiam?
R- Não, muito pouco. Jogar futebol que geralmente estes meninos eram muito bons atletas, só. Mas fora disso não tinha nenhuma associação entre nós e eles.. Eles faziam a terceira série, alguns chegavam a quarta. O curso era de cinco anos naquela época no Rio de Janeiro, e eles iam embora , e essa diferença nós logo percebemos. E tinha uma coisa que me deixava curioso, Todos eles tinham o mesmo endereço, que me ficou na memória, Rua Aguiar sem número. Era a subida da favela do morro do Salgueiro, que ainda existe e é um lugar perigoso hoje.
P/1- E seu Moysés como é que era, vamos dizer assim o rito escolar nessa época?
R- O rito escolar era o seguinte: nós chegávamos a escola, ficávamos no pátio e cantávamos o hino nacional, escola pública. Me ficou na memória, eu repito memória porque eu acho que, como eu era o menorzinho e ficava na frente, eu ficava em frente de dois cartazes, era Getúlio Vargas e atrás uma figura da República. Isso me ficou até hoje na memória. Um dizia o seguinte: “Derrotamos os extremistas da esquerda, esmagamos os extremistas da direita.” Não sei o que é que foi o derrotado e o esmagado. “Ambos se equivalem nos meios e objetivos.” E o outro, lembro porque todo o dia você ficar, durante cinco anos olhando isso, dizia assim: “O Estado Novo corporifica mensagens e ideias que se dispõe a lutar em (não sei se as palavras eram exatamente essas) todos os terrenos, contra todos os inimigos da pátria: Comunismos, extremismos e sabotaços.” Isso me ficou na memória, cinco anos lendo aquilo. Bem, o ensino era muito na base de memorização, quer dizer, que as professoras eram dedicadas, as professoras do Rio de Janeiro naquela época, todas elas saiam do Instituto de Educação. Eram professoras muito valorizadas e prestigiadas, as meninas do Instituto de Educação, que existe até hoje, mais sem o mesmo prestígio. Quer dizer, todas tinham que passar por lá. Isso era uma elite, casar com uma professora, era um emprego seguro e para época era bem pago, pelo menos era uma profissão segura. Eram boas as professoras, quer dizer, para época o Instituto de Educação era muito rigoroso e muito bom. O ensino baseado em memorização, mas começavam a ser introduzidas pelo professor Anísio Teixeira e outros, as técnicas americanas chamadas atividades. Recortar, fazer, desenhar. Não havia programas de esportes organizados, foi introduzido depois quando começou a Educação Física nas escolas. Agora aconteceu uma coisa, Anísio foi afastado por pressão da igreja, é claro que isso eu sei agora, não sabia na época. O prefeito era um padre, logo veio um ensino religioso nas escolas. Mas curioso, ele não tinha caráter de indoutrinação, porque os alunos que não fossem católicos podiam sair da sala, eram poucos. Era eu, dois ou três protestantes, como no Rio o espiritismo é muito forte, quatro espíritas. Nós podíamos sair da sala ou ficar na sala mesmo. Não havia qualquer imposição, as professoras catequistas eram pessoas educadas. Com isso aprendi todos os hinos religiosos de igreja.(Risos) Por memorização, a maioria da população era católica. Porque no Rio de Janeiro naquela época a única concorrência ao catolicismo era o espiritismo, que no Brasil foi muito forte, e no Rio de Janeiro ele era mais forte. E obviamente os cultos africanos, os umbandistas. O umbandismo curiosamente foi a única religião no Brasil que era considerada caso de polícia, ela era perseguida, tinha no morro, mais na verdade o adversário que a Igreja via não era o só protestantismo, era o espiritismo. Os protestantes, que eram pouco e eram de classe média alta tinham suas escolas, que eram muito boas. Era o Batista Brasileiro, o Bennet, porque os cultos protestantes eram vindos dos Estados Unidos, com muita ênfase na educação. Então os protestantes iam para escolas protestantes. O espiritismo a Igreja combatia muito e era forte no Rio de Janeiro, o allankardecismo, o chamado espiritismo branco. Então quero dizer que havia isso, o ensino público era bom. Hoje em dia eu sei que era um ensino para classe média, pegavam professores da classe média ensinando a meninos da classe média. As classes populares não conseguiam acompanhar. Havia uma forte ênfase nos chamados Valores Nacionais no Estado Novo. Muito patriotismo, muito hino e tal. E havia uma coisa muito importante no Rio de Janeiro, o Canto orfeônico, isso tudo foi no tempo do Estado Novo e o governo apoiou muito o Vila Lobos, não é como se diz hoje que ele foi o músico oficial do Estado Novo, não era bem assim. Ele já tentava estimular o canto orfeônico e o Ministro Gustavo Capanema do Ministério da Cultura deu muito apoio. Então nós éramos chamados para todas as cerimônias, para cantar e havia o famoso dia da pátria onde levavam todas as crianças para o estádio do Vasco, Getúlio ia lá fazer um discurso. Nós ficávamos três horas no sol do Rio de Janeiro, isso não era fácil, mesmo no começo de setembro, o calor não era muito forte. Mas levar 30 mil crianças no estádio da Vasco era muito cansativo.
P/1- E ficavam o que, de pé?
R- Não, ficávamos sentados e cantando hinos. Isso era uma cerimônia muito importante, você fazer isso quatro anos. Cantávamos cinco hinos, aliás bonitos. Cantávamos o seguinte: Hino Nacional, Hino da Bandeira, o Hino da República e o Hino da Independência, haja hino. Depois cantávamos uma música muito bonita do Vila Lobos chamada “O canto do Pajé” “Ó manha de sol, Anhangá fugiu...” É uma canção muito bonita que ele compôs.
P-Quero perguntar uma coisa para você: A associação é livre, posso falar como quiser?
R-Claro
R- Porque eu estou saindo um pouco do assunto.
P/1- Não, mas está maravilhoso.
R- O Villa Lobos era muito vaidoso, com razão, dizia que tinha apanhado estes ritmos quando viajara à Amazônia, os adversários dele diziam que quando ele foi na Amazônia e começou a cantar isso, os índios saíram correndo. (Risos). Nós éramos levados ao Instituto de Educação e ele ensaiava conosco. Eu fui regido pelo Villa Lobos
P/1- Há é?
R- É, pessoalmente.
P/1- E como que ele era assim na presença física?
R- Ele era um homem curioso, muito irascível. Ele teve sorte na vida. Ele se separou da mulher, que era professora de música e participava ali, e se casou com a dona Mindinha, uma mulher de um caráter assombroso. Que eu conheci pessoalmente alguns anos depois. Ela apoiou ele em tudo. Depois nos Estados Unidos fez carreira e disseram: “Olha, se houve um homem que a mulher fez era ele.” Porque ele era nervoso, desorganizado, como todos os gênios e não tinha nenhum talento para negócios, que geralmente gênios não têm. Ela organizou tudo, negociava os contratos tudo para ele ter uma velhice tranquila. Era isso o ensino, o ensino preparava muito bem. E eu ainda fiz um ano de admissão porque não tinha idade para entrar no ginásio. Então saí diretamente da escola primária para o Colégio Pedro II. Bem aí acabou o ensino primário
P/1- Tá então vamos falar só mais uma coisinha do ensino primário já que você está com a memória aí tão afiada. Então o que mais despertou a atenção do senhor em termos das disciplinas nessa época?
R- Logo de saída eu vi que eu era um aluno muito bom.
P/1- Então retomando.
R- O ensino era excessivamente formal em gramática e em matemática usava muito o calculo mental, noções de geografia, a história muito em termos patrióticos de grandes vultos, aquelas coisas. Um pouco de ciências, professores muito dedicados e desenho. Eu era bom aluno. Fui o primeiro da terceira série, fui o primeiro terminada a quarta série, e para minha raiva fui o segundo na quinta, pois tinha uma menina muito inteligente que tirava primeiro mesmo. Aí eu descobri uma coisa, eu tinha muita dificuldade manual, trabalhos manuais inclusive não conseguia fazer nada. Desenho era um desastre, não conseguia desenhar, mas quer dizer o ensino dava uma base boa de Português e calculo. Muito exercício. Agora comparando com o ensino não público, os meninos que estavam um pouco melhor de vida iam para as escolas religiosas. Uma delas que era na Tijuca e existe é o Expedito São José dos irmãos maristas, que utilizavam exaustivamente os exercícios. Os alunos tinham diariamente de fazer 30 frações ordinárias e decimais, para fazer de noite e trazer no dia seguinte e nós riamos deles. Então as escolas religiosas que eram as escolas onde iam a classe média, usavam muito o método jesuítico: exercícios muito pesados, a educação muito forte. Mas na escola pública também havia exercícios, havia alunos bons e outros não eram. Então saí da escola sabendo o seguinte: que era péssimo em qualquer coisa com a mão, era muito bom em Português, redigia bem, muito bom em cálculo e com bons conhecimentos de geografia, história e ciências que naquela época havia um pouco.
P/1- Existia já estes autores infantis, autores para crianças?
R- Haviam autores infantis, já se tinha biblioteca na escola. Estou falando de escolas da classe média, nem todas eram assim, na zona rural o ensino estava começando. Vamos dizer assim, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul eram os únicos estados em que a maioria da população infantil era escolarizada, porque eles tinham um sistema idêntico. Depois eu estudei isso, o sistema de ensino do Rio de Janeiro era um pouco inferior do de São Paulo, mas Rio de Janeiro era uma cidade, São Paulo era um estado, mesmo assim se considera que o ensino urbano de São Paulo era superior ao do Rio de Janeiro, com as reformas do Caetano de Campos e tudo. Então, você me perguntou o que mesmo, desculpe.
P/1- Dos autores infantis
R- Autores é o seguinte, nós tínhamos na biblioteca da escola, por isso que disse, nós tínhamos o direito de ir meia hora por dia sairmos e ir na biblioteca ficar folheando. E tinha o Tesouro da Juventude e a coleção Monteiro Lobato. O que aconteceu: Monteiro Lobato entra em conflito com o Governo, foi preso. Mandaram recolher todas as suas obras, as professoras ficaram muito irritadas. Foi aí que eu peguei o prazer da leitura, ainda me lembro do livro dele Reinações de Narizinho. Eu fiquei encantado, aí comecei a ler todos. Depois recolheram todos.
Eu quero dizer uma coisa curiosa da escola por ser no Rio de Janeiro: para todas as atividades cívicas as crianças da escola eram levadas, mas não eram todas as escolas, não levavam o pessoal da favela. Levavam o pessoal das escolas de classe média, e numa ocasião que me ficou na memória, as crianças não entendendo o que estava acontecendo, quando, no começo do Estado Novo fizeram uma cerimônia e queimaram todas as bandeiras estaduais, só ficando uma bandeira, a nacional. Nos levaram na praia do Russel no Flamengo, onde tem uma estátua de São Sebastião e nós assistimos aquilo. As professoras ficaram muito irritadas: “Para que isso, que coisa, não sei que e tal.” Mas depois soube o que houve, mas desses episódios todos, eu passei a não acreditar em doutrinação nas escolas. Porque para criança essas coisas não têm a menor importância. Vê isso, participar do dia da pátria, ouvir Getúlio falar, olhar cinco anos ele na minha frente, não doutrinou nada, para criança parece uma coisa a mais que ela não entende. É um fato mais do Rio de Janeiro, eu me lembro de uma coisa curiosa, quando eu morava em Laranjeiras, um dia, eu estava na primeira série, era menininho de seis, mandaram a gente para casa e andava a pé do Largo da Machado até a Pereira da Silva, que é um percurso pequeno. Curioso, hoje parece pequeno, quando menino parecia muito longo, eu disse uma vez para minha esposa Fany, as distâncias pareciam tão grandes, mais agora eu vejo que é perto. Mandaram para casa, perguntei o que houve? Olha o terceiro regimento se levantou, foi a famosa Intentona Comunista. Ali pelo Largo do Machado passavam os caminhões com os soldados e as crianças ali olhando... Quer dizer, essas coisas me ficaram na memória porque criança fica meio impressionada...
P/1- E o senhor via que caminhões passavam...
R- Caminhões passando com soldados dirigidos para a Praia Vermelha , naquela manhã, mandaram as crianças para casa.
P/1- Então seu Moysés o senhor estava falando que esse foi o primário e chegou o admissão.
R- O admissão. Naquele tempo havia a seguinte situação: o Ensino Médio era pago, só havia a seguinte possibilidade se você não conseguia pagar, o colégio Pedro II, que era o colégio padrão e as escolas da Prefeitura que eram profissionais. Havia uma lei muito cruel que veio ainda da primeira república: se você fazia uma escola profissional ou uma academia de comércio, você não tinha acesso a Universidade. Porque separavam o ensino para formar os universitários, as elites, e o ensino para quem ia trabalhar. Isso era o tipo da mentalidade da época. Então o menino que queria aprender mais do que o ensino primário, você fazia uma escola de comércio que você poderia ser guarda-livros ou uma escola da Prefeitura que eram as escolas profissionais. Algumas eram de moças, aprendiam a cozinhar, cozer, a costurar e meninos aprendiam algumas coisas mecânicas. E havia o Pedro II que era a única escola realmente que era um ginásio público, isso no começo dos anos 40 depois se modificou. Bem o problema é que o exame de admissão era duríssimo e as moças podiam fazer o Instituto de Educação para ser professoras. Aí fiz um ano de admissão porque não tinha idade, numa escola, uma espécie de cursinho , e fiz o Pedro II, fui o primeiro colocado.
P/1- Que beleza.
R- Fiquei sete anos de Pedro II, quer dizer, fiz ginasial e colegial lá.
P/1- Então vamos falar um pouquinho do Pedro II.
R- O Pedro II, com esse nome bonito, era uma escola-padrão. Tinha mais de 100 anos, e o ensino parecia que tinha mais de 100 anos. Nenhum programa de Educação Física, para o ensino de Ciência, tinha um laboratório super montado, mas raramente a gente entrava lá. Cada classe tinha um bedel, que normalmente era um velho, era um estilo de ensino de 100 anos atrás e não modificou. Quer dizer, o que antes poderia ser bom; todas as escolas eram assim, muito baseadas na repressão, no castigo, suspensão, privação, expulsão. Os bedéis ameaçando a gente decaíram, não ficou ruim, ficou velho. Bem, os professores eram catedráticos iguais a universitários, muito bem pagos, com concurso muito difícil. Quer dizer, o nível do ensino era bom, mas pedagogicamente muito antiquado porque não existiam as faculdades de Filosofia quer vieram depois. Depois mudou porque vieram os professores da Filosofia. Então era assim: os professores de matemática eram todos engenheiros, os professores de Português eram geralmente advogados fracassados, as professoras de francês eram alunas dos colégios de freiras francesas, os professores de Ciências eram médicos fracassados (Risos). Era um ensino que então dependia de sorte. Havia alguns ótimos, mas didaticamente eram fracos porque não havia métodos pedagógicos. Você chegava à pedra e falava... Agora dentro das matérias chamadas tradicionais o ensino era bom porque havia professores eram muito bons. Fui aluno do José Oiticica um homem extraordinário, um dos pais do anarquismo no Brasil . Fui aluno do Antenor Nascentes, esses eram grandes filólogos; já os peguei velhos. O José Oiticica chegou a ser preso, me contaram dentro da sala de aula, eram homens extraordinários.
P/1- Teve algum professor que marcou assim muito o Senhor?
R- Teve, tiveram vários. Teve o José Oiticica, mas pelo que se ouvia falar dele. Eu não sei se você sabe, o José de Oiticica foi um dos fundadores do anarquismo no Brasil. Ele veio das oligarquias nordestinas, converteu-se ao anarquismo no Rio de Janeiro. Num livro, “Anarquistas e comunistas do Brasil” do John Dulles, se descreve que ele saía do Pedro II e ia alfabetizar os operários do cais do porto. E aconteceu que ele foi considerado elemento suspeito. Então tudo o que acontecia prendiam ele, mesmo não tendo nada a ver com a história. Diz que quando houve o levante comunista ele foi preso na sala de aula. Então dizem, pelas ligações de família, ele foi levado pessoalmente a presença do Filinto Muller, chefe de polícia muito temido, e esse o olharam e disseram “Então o senhor é comunista?” Ele respondeu: “Não, pior, sou anarquista.” (Risos). Nascentes era um negro retinto, era um grande professor. Homem agradabilíssimo, ele venceu os preconceitos para chegar a catedrático do Pedro II; ele é o autor do primeiro Dicionário Etimológico Brasileiro, e a aula dele era muito agradável. Marcou o Oiticica, o Nascentes, um outro, Quintino do Vale que também era filólogo.
Na Matemática, Euclides Roxo, que foi diretor do Pedro II, era um professor extraordinário. O livro dele de Geometria ainda se dava nos cursinhos quando meu cunhado estudou. A aula dele era um prazer. Inglês não me impressionou muito. O que eu aprendi em inglês vai contar em outra história. Francês as professoras vinham do colégio de freiras e eram muito boas. Os colégios de freiras exigiam muito das moças e eu logo tive interesse pela Literatura Francesa; o livro de texto era da Maria Junqueira Schmidt, que era professora do Sion. Eu pela primeira vez comecei a ler versos franceses, fiquei apaixonado por Vitor Hugo, que eu tenho uma edição completa da Plêiade que eu leio sempre. Agora em Matemática eu tive bons professores, e um deles, é curioso, era especialista em fundações de concreto. Criou uma firma e construiu grandes prédios no Rio de Janeiro. Ele não precisava lecionar, era duríssimo, nos deu gosto pela Matemática quando já estava estudando a noite. Ciências fui aluno de um que era um grande médico Valdemir Potsch, tradicional no ensino mas nos deu amor pela Ciência.
Aconteceu o seguinte, quando já estava chegando no final da quarta série, a gente fazia ginasial quatro anos e colegial de três, começaram a vir os alunos da Filosofia e o ensino mudou completamente. Eram modernos, usavam laboratórios e tudo o mais, não ficavam só falando. Geografia não me lembro de nenhum professor ter me impressionado. História teve um que depois foi juiz, Nei Peixoto do Vale e era uma pessoa muito agradável. Só que o ensino de História, pelo que eu sei agora, era muito tradicional, muita Grécia, Roma, muitos grandes vultos, era um ensino mais de memorização. Toda história brasileira a base de datas e nomes.
Agora o ensino só melhorou quando mudou o diretor da escola, Raja Gabaglia, de uma família de professores, mas não era um administrador. Um dia ele se aposentou e veio outro Diretor, Gildásio Amado, que era professor de Química, aí ele pôs ordem naquilo. Então fiz uma escola tradicional cheio de prestígio, pompa e ensino completamente desatualizado, que demorou para se atualizar. Nenhum programa de educação física... Trouxeram uma pessoa da polícia especial lá para nós fazermos ginástica, mas a escola não tinha nem um lugar para praticar esportes. Depois havia outro problema, a escola era no centro da cidade, porque a vida no Rio era no centro. A escola foi fundada em 1837, foi o primeiro Ginásio. Então o que era antes um lugar nobre, degradou. Isso a gente via quando saia de noite, não havia tanta criminalidade nas ruas, mas degradou, tinha bêbados, prostitutas, salões de bilhar, cines baratos. Eu me lembrei disso quando fui à antiga rodoviária que tem o Colégio Coração de Maria perto; parecia o Pedro II, quer dizer, era uma área nobre lá no centro e decaiu. Então o ambiente era desagradável já, ele está lá até hoje. Mas fundaram filiais na zona sul e na zona norte do Rio.
P/1- O senhor conta que a partir de um determinado período foi estudar a noite.
R- É, quando estava na quarta série, tive que trabalhar. Eu vou falar isso na parte da vida familiar e profissional. Então eu pedi para ser transferido para o turno da noite. Então desde a quarta série do ginasial e as mais três séries do colegial eu passei a estudar a noite.
P/1- E seu Moysés, o senhor disse que começou a ter então um gosto grande pela literatura.
R- Sim, pela literatura. Agora o seguinte, eu sei hoje que o meu grande amor pela leitura, lia compulsivamente, era uma fuga. Naquele tempo não sabia disso, era apenas um bom menino que gostava de ler, que era considerado qualidade. Mas isso elevado a excesso, na verdade era uma fuga, você se refugia do ambiente externo que eu via como hostil, o que vou falar depois e uma coisa que você deve ter percebido é a boa memória, eu lia e memorizava.
P/1- E quem eram os primeiros autores?
R- Os primeiros autores é curioso. Havia, não no Rio de Janeiro, a editora Globo de Porto Alegre que já fechou. Ela comprou uma coleção americana e inglesa, chamada Coleção Terra Mar e Ar, de aventuras marítimas. Essa era literatura do século XIX quando começou a colonização, de aventuras em lugares exóticos, mais eram muito bem escritos e agradáveis. Os romances de Tarzan, Sabatini, Salgari e outros autores populares. Isso ‘lia compulsivamente; depois apareceram as histórias em quadrinhos.
Histórias em quadrinhos começaram com Adolfo Aizen, ele trabalhava num jornal foi o primeiro a trazer os quadrinhos americanos para o Brasil, como suplemento. Depois o Roberto Marinho comprou outros para O Globo, e então as crianças viviam lendo aventuras de faroeste, da Tocha Humana, e de outros que não me lembro.
P/1- Flash Gordon.
R- Flash Gordon, o Homem submarino e uma que até hoje é considerada um modelo de arte, o Príncipe Valente. Alex Raymond, ele era um artista, levantava os detalhes medievais todos. Hoje em dia essas lojas de gibi vendem como arte. Isso nós líamos compulsivamente, um menino emprestava para o outro. Então os autores da Terra Mar e Ar, de aventuras marítimas, eu gostava muito sabe e havia outra coleção, também a Globo fez, chamada Coleção Amarela, eram romances policiais que começaram a vir Brasil, os bons. Aí apareceu uma das tentativas fracassadas de lançar livros de bolso no Brasil, eram muitos baratos, pequenininhos, eu ia lendo, uns eram bons outros ruins. Fui conhecendo Tarzan, aventuras marítimas, Monteiro Lobato que foi liberado, havia revista de contos . As revistas, O Cruzeiro apareceu naquela época, todos nós líamos muito O Cruzeiro, chegou a ter uma tiragem enorme, então isso que se lia.
P/1- Seu Moysés, um pequeno corte na Educação. Você morava na Praça da Bandeira, e estudava no centro.
R- Na Praça da Bandeira. Pegava o bonde todos os dias e voltava de bonde.
P/1- Podia o senhor contar um pouco desse trajeto como era na época?
R- O Rio tinha um sistema de transporte que hoje se considera muito eficiente. A Light, o “polvo canadense” era muito eficiente, em São Paulo e no Rio. O bonde era muito barato, ele permaneceu muitos anos com a mesma tarifa. 10 centavos.100 réis naquela época por seção. Então saia pegava o bonde até o Pedro II, na mesma rua da Light, Rua Marechal Floriano, a Rua Larga como se chamava. Descia na frente da escola e entrava a... Saía, pegava o bonde e voltava. Você não tinha problema nenhum. Havia ônibus, mas o ônibus era mais caro, então nós não pegávamos. Então o grande transporte era o bonde. Agora, os meninos que moravam no subúrbio tinham que pegar um serviço de trem. Os que moravam na linha da Central, não sei se você conhece o Rio de Janeiro, a linha da central é bitola de um metro e sessenta, ela foi eletrificada em 1938, era mais confortável. Os que moravam na Leopoldina, inclusive minha mulher, iam numa linha a vapor de bitola de um metro, terrível. Pois bem, esses meninos meu colegas acordavam cedinho, pegavam o trem, desciam na Central e andavam até o Dom Pedro II. No quarto ano, quando comecei a estudar de noite a coisa ficou mais complicada. Eu ia de bonde para o trabalho, às cinco horas da tarde saia, comia mal numa leiteria, entrava às sete horas na aula que ia até dez e meia da noite, pegava o bonde e voltava para casa. Quando eu conto aos os meu filhos que eu andava de noite, eles diziam: “Mas hoje em dia você tem medo de andar lá de dia, não só de noite.” No entanto não lembro de crime lá e os meninos andavam do Pedro II até a Central, que são mais ou menos cinco quadras, passando o que é hoje o Itamarati, ás vezes andava pela Avenida Passos e ia até o largo São Francisco, onde todas as linhas de bonde faziam ponto final. Ônibus já era para quem estava melhor.
P/1- E como era nos anos 30 a região da Praça da Bandeira?
R- A Praça da Bandeira é considerado um lugar bom. Tinha um problema que não foi resolvido até hoje, enchia. Isso eu sei, pois meu filho acaba de escrever um livrinho que vai ser editado, “Tijuca das Águas”, O problema existe desde o Império. Na praça da Bandeira, nove rios que descem da Serra da Tijuca se estrangulam lá e não tem jeito de escoar em chuva forte. Então a Praça da Bandeira já era conhecido como o lugar das enchentes, com água pelos joelhos. É um lugar de classe média baixa, nós morávamos numa vila, O Rio de Janeiro tinha muitas vilas, como tinha em São Paulo. Nós morávamos numa vila de 24 casas, havia vilas de 30, de 50 casas e em Laranjeiras sobraram algumas . Nós morávamos numa casinha de dois quartos e duas salas, bastante confortável para uma vila. Agora entra na história da vida familiar e trabalho, mais não sei se chegou este ponto.
P/1- Pode, claro.
R- Eu quero dizer o seguinte, do final de 39 toda a situação da família piorou muito. Nós saímos de lá e fomos morar em frente, na casa de um casal israelita que alugava quartos, fomos morar em dois quartos, uma cozinha comum e um banheiro comum. Depois mudamos, também tudo perto da Praça da Bandeira, para os fundos de uma casa grande que o dono alugava, também dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Quer dizer, de 40 em diante tudo deu para baixo, em termos de conforto, de vida familiar, de renda familiar, e eu, por isso tive que trabalhar em 44. Só não fui trabalhar antes porque não podia legalmente.
P/1- Está, com 14 anos já podia.
R- Fui trabalhar, serviço de boy. Bem vamos entrar na vida profissional já.
P/1- Então vamos contar as necessidades da família
R- Saí para trabalhar. Aconteceu o seguinte: na época começou a lapidação de diamantes, que é um ofício muito rendoso. Refugiados belgas montaram lapidações no Rio de Janeiro, e muitos israelitas foram trabalhar nisso. Daí foi o emprego que eu consegui. Aconteceu que eu não tinha jeito, não conseguia fazer nada direito e fiquei lá três meses só. Ocorreu que na parte que seria a frente da casa, porque eu morava na parte que seria os aposentos dos criados, morava uma pessoa que foi famosa, Jaime Cortesão.
P/1- Há, Jaime Cortesão.
R- Era um refugiado português, um homem extraordinário. Veio para o Brasil, foi professor no Itamarati, a filha dele, Maria Saudade, casou com Murilo Mendes.
P/1- Hum hum.
R- A outra filha, Judite Cortesão está em Brasília. É, minha mãe falava: “Meu filho está precisando trabalhar, ele não dá para lapidação, é muito cansativo”, porque não aguentava depois estudar de noite; descobri o seguinte: se você trabalha numa linha de montagem, você não consegue estudar de noite. Ela disse: “Olha, vagou um cargo de boy no Conselho Britânico. Conselho Britânico é uma associação inglesa, como é comum na Inglaterra, meio oficial, meio particular, patrocinada pela rainha, dedicada a intercâmbio cultural. Dava bolsas, o primeiro dos bolsistas foi Vinicius de Moraes, com uma bolsa na Inglaterra. (Risos). O serviço era ir ao banco pagar e receber, entregar livros, esse negócio... Hoje não acreditam quando conto que naquela época os boys iam receber os salários das firmas em dinheiro nos bancos, andavam pela rua com a maleta cheia e nunca ouvi falar de um assalto.
Bem, esse era o serviço, além disso, você estava em um ambiente onde os funcionários eram gentis, a Judite Cortesão trabalhava lá, era uma pessoa extraordinária é, a Maria Clara Machado, a futura teatróloga, era secretária. Ambiente cultural, agradável, sem muita exigência e só se falava em inglês. Eu aprendi logo a falar inglês, em um ambiente onde só se falava inglês e lia os jornais, revistas e livros em inglês. Com 14, 15 anos já falava inglês, além de tudo havia o inglês do Pedro II, muito fraco, mais era alguma coisa.
Nesse tempo, chegou uma nova administradora, era um anglo argentina, uma mulher muito durona que tentou por ordem naquilo, quer dizer fez o pessoal trabalhar, que aquilo parecia um clube de intelectuais. Mais também não tinha muito o que fazer lá. O trabalho era o seguinte: pegar os jornais ingleses, as revistas inglesas, ir numa associação cultural e deixar lá. Livros de Medicina, eu ia lá à Faculdade de Medicina e deixava lá, esse era o serviço. Ou então, uma coisa que me ficou na memória... Eu tinha que levar, a chamada mala diplomática, que é correspondência que ia pela mala diplomática na embaixada inglesa, hoje o consulado inglês, na praia do Flamengo num prédio luxuosíssimo. Jorginho Guinle morou lá. Então disseram para mim: “Olha, você sai, pega o ônibus, desce nesse ponto e entrega. Isso você tem que proteger com tua vida.” Um adolescente fica muito impressionado com isso. Então eu saía direitinho, chegava no consulado inglês entregava a maleta diplomática, hoje em dia essas coisas parecem bobas.
Bem, isso foi muito bom para mim. Eu estudava, não chegava cansado e sabia inglês
P/1- Num ano o senhor já aprendeu inglês?
R- Sim; aquela senhora, que era detestada, disse para mim: “Olha, já notei que você é um menino interessado, então vamos fazer o seguinte, nós vamos pagar para você, em horário de serviço, a Cultura Inglesa. Isso foi algo extraordinário. Hoje em dia, eu acho que eu fui o filho que ela não teve, para ela dar tanta atenção para mim. OK, chega de psicologia, mais acho que foi sinceramente isso no meu caso. Aí fiz uma coisa que hoje eu acho que foi um erro, é criancice. Eu fui entregar um material sobre vida musical inglesa numa revista musical. Nesse lugar, o dono e diretor parecia um homem muito simpático, disse: “Olha, você trabalha no Conselho Britânico, eu estou precisando aqui um datilógrafo, sabe bater a máquina?”. Eu sabia bater um pouco. E me ofereceu um salário um pouco maior. Quer dizer, é claro que eu não sabia, mais eu pensei: “Eu estou cansado de ser boy, eu vou ser datilógrafo, que aparentemente tem um status um pouquinho melhor”. Para resumir, saí do Conselho Britânico e fui trabalhar como datilógrafo nessa revista. Descobri o seguinte, a revista era meio falida, como qualquer coisa cultural no Brasil. Tinha poucos leitores.
O diretor era um homem culto e simpático, mais eu descobri depois que e era um homossexual muito conhecido no Rio de Janeiro. Desses homossexuais intelectuais, mas ele não era ostensivo.
Isso foi uma experiência muito curiosa por uma razão; pelo fato da revista ser musical, nós tínhamos acesso ao Teatro Municipal. Assistia as temporadas de ópera, os concertos. Vi Mario del Mônaco, vi Gigli, vi Tagliavini, vi Maria Caniglia, vi concertos muito bons. O pessoal do Municipal, os dançarinos do corpo de baile e os críticos iam muito na revista. É claro que a razão era óbvia. Era um centro de reunião de homossexuais refinados, pessoas conhecidas nos meios culturais do Rio de Janeiro. Mais como os funcionários não prestavam atenção, eram apenas uma curiosidade.
P/1- Bem, podemos continuar.
R- Ali não tinha recurso, só atrasava pagamento. Eu não sou místico mais às vezes eu acredito em certas coisas. Uma hora lá eu disse: “Sabe de uma coisa, eu vou embora daqui.” Pois bem, três meses depois descobriu-se que o pessoal que eu trabalhava, que não recebia pagamento andou roubando revista e se eu tivesse ficado lá, ia ser envolvido. Não sei o que me deu, resolvi, vou embora daqui. Sabe de uma coisa, vou fazer serviço militar. Por qualquer razão meu pai queria que fizesse, não sei porque, hoje vejo como uma forma de afirmação física. Eu já estava no colegial, fui fazer o CPOR, inclusive escolhi infantaria, não tinha físico para isso, mais escolhi. Aí comecei a ter auto estima, porque era pequenininho, fraquinho, aquele que o sargento punha lá no fim, mas aguentei os dois anos de CPOR e saí muito bem.
P/1- Dois anos?
R- CPOR era um ano e meio na prática dois anos, mais interrompido, você fazia nas férias. Eu consegui executar todos os exercícios físicos muito bem, passei. Bem, resumindo, fiz CPOR, passei e fui fazer faculdade. Tinha que fazer faculdade à noite. A noite podia ser Direito, que não tinha a menor aptidão ou um curso que ninguém sabia o que era, faculdade de economia que tinha aberto, os cursos não eram ainda registrados. Vê como na vida você toma decisões. Você diz: “Olha, vou precisar trabalhar. O que eu posso fazer?” Uma das profissões da classe média daquela época era ser guarda livros, contador, abriram os cursos superiores contábeis e atuariais. Para resumir, fiz concurso para isso numa faculdade que hoje é Cândido Mendes, muito fraca. Aí eu descobri que já havia a Nacional, que hoje é a Nacional de Economia, hoje de muito prestigio, naquela época estava começando. Professor era Eugênio Gudin, eram os outros economistas de renome, pedi transferência e me formei lá. Mas por aptidão, por interesse, eu teria feito o curso de Economia que ninguém sabia o que era. O pessoal dizia que eram contadores letrados e a profissão não era reconhecida. Quer dizer foi um atalho errado na vida que depois corrigi.
Quando eu estava no CPOR, abriu um concurso no IBGE. Estou antecipando: consegui antes emprego na Light como auxiliar de contabilidade. Eu fui fazer um teste, estavam começando esses escritórios de seleção de pessoal. Conheci um senhor austríaco, muito simpático. Eu fiz o teste, ele disse “Seu teste foi ótimo, vou te mandar para lá. Eu chego na Light, que tinha técnicas que naquela época no Brasil nenhuma empresa tinha.” Seleção, treinamento e o Chefe de Pessoal me chamou : “Escuta aqui, porque você precisa desse emprego? Pela sua educação, pelo seu teste, aqui a gente pegava gente com primário. Eu disse: “Eu agradeço, mas eu tenho 18 anos e não consigo outro emprego e preciso trabalhar.” “Pois não, eu admito o senhor, mas o senhor não vai se sentir tão bem no meio daquele pessoal.” Bobagem, você acaba se acostumando. Trabalhei seis meses na Light. E me fizeram uma concessão única, eu pude sair para fazer serviço militar, coisa que ninguém fazia. Porque não era, como dizem os americanos “One of the boys”, eu não era um da turma. Era muito estimado pelos chefes e colegas, mais sentia que algo diferente. O curioso é que não era um bom funcionário. O trabalho, contabilidade manual, você pegava uma fichinha e anotava, o dia inteiro anotando fichinha, eu me distraía, não consegui me concentrar nesse serviço.(Risos).
Fiz um concurso do IBGE, primeiro, como auxiliar de escritório. Passei. Cheguei para o meu chefe e ele disse: “É, está bom, realmente você aqui estava um pouco deslocado, tudo bem.” Fui para lá, o serviço era sair na rua e pegar questionário. Trabalhei três meses. Divertido, não tinha muito o que fazer e tal, mas agradável. Abre o concurso para auxiliar técnico que depois virou estatístico. Eu faço o concurso e passo em primeiro. Quando eu entrei, os funcionários olhavam para mim e perguntavam: “Quem é esse menino?”; era o estatístico mais jovem. Aí começou minha carreira no IBGE que foi... Foi deslanchando. A vida você toma certos atalhos que acabam dando coisas que você não imagina.
P/1- É verdade.
R- Então é isso, o começo da minha vida profissional foi isso.
P/1- E quer dizer, nessa época aí o senhor já estava namorando?
R- Não, eu sempre fui tímido com moças. Eu achava que não era atraente, que eu era pequenininho e tal. Mas o ambiente que estudava era tão pesado por causa de ser a noite que o sexo era uma conversa de tempo todo. O pessoal se gabava muito de proezas que eles não faziam. Você é envolvido desse ambiente. Mais tem uma coisa que hoje eu sei é muito bom, eu perdi a timidez sexual. Considerando os antecedentes, foi muito bom, que podia ficar inibido o resto da vida. Mas com os relacionamentos com as moças eu era muito tímido; agora por formação pessoal, pela influência da minha mãe, de sempre lutar, eu ia a bailes, ia a festas. Não interessa que as meninas não me davam atenção. Quer dizer, não me encolhi.
Minha fuga ainda era a leitura, uma vida chata. No Rio cada ministério tinha uma biblioteca muito bem montada, tinha cartões de nove bibliotecas e eu fui me desembaraçando. Primeira namorada aos 20 anos. Hoje sei que na verdade era muito tímido. E sendo filho único no meio sempre de pessoas mais velhas, tinha dificuldade de relacionamento. Hoje isso se chama imaturidade emocional, quer dizer, o seu cérebro se desenvolveu e as emoções ficaram infantis. Por ser filho único na verdade dependia de uma mulher de personalidade forte que era minha mãe. Porque meu pai, com os reveses financeiros ele se apagou. Essas pessoas que não conseguem resistir à adversidade. Aí já entra em outro atalho de vida familiar, eu não sei se vocês querem fazer umas perguntas.
P/1- Então, a gente chega lá .
R- A vida familiar piorou muito a partir de 39 quando ele começou a decair economicamente. Hoje sei que veio a guerra, e os negócios estavam complicados. Ele não tinha instrução, mais como era comum nos judeus da Polônia, tinha muita leitura, tinha sido socialista na Polônia. Ele conversando sobre política, história, me fascinava. Isso eu peguei, o gosto pela história. E nós alugávamos quartos para pessoas e veio um senhor velho morar conosco. Ele era um homem estranho, nascido na Rússia. Ele falava de certos lugares que pareciam romance policial. Tinha estado em Odessa, tinha estado em Constantinopla, tinha estado em São Francisco da Califórnia. E meus pais nunca falaram exatamente o que ele era... Hoje eu sei que provavelmente ele pertencia aqueles grupos judeus que entraram no tráfico de brancas. E foi um problema da colônia naquela época, e tem uma tese, sobre as polaquinhas . Esse pessoal era marginalizado dentro da colônia, ninguém falava nem se dava com eles. Meus pais nunca comentavam. Agora eu era menino, sempre no meio dos mais velhos, ouvia ele contando coisas e ficava fascinado. Me lembro um dia que ele estava contando que estava em Constantinopla no dia que Kemal acabou com os véus da mulheres, por um método muito simples: a partir de agora nenhuma mulher pode sair na rua com véu. Houve gente que não quis e saiu na rua com véu, a polícia arrancava o véu e dava uma chibatada no marido. (Risos). Para criança isso era fascinante, um homem que passou por tudo isso, combateu na guerra russo-japonesa.
Mas meu pai se apagou. O que num contexto é qualidade, um homem que conversa, um homem culto, numa sociedade que visa muito o esforço individual, o trabalho, o sucesso, você é apenas um fracassado. Isso obviamente me afetou o resto da vida porque se você não consegue admirar teu pai, todas as suas relações com pessoas ao nível de autoridade são difíceis. Porque o que ouvia do meu pai: “Esse camarada vive pedindo dinheiro, é um fracasso, não gosta de trabalhar, mandou o filho trabalhar logo. A mãe dele, coitada, se sacrifica para manter as aparências”. Isso me fez muito mal Porque nós empobrecemos mais não tínhamos a cultura da pobreza, pensar é assim mesmo, a gente tem que levar como pode, não adianta chorar, cada qual tem sua sina. Não, nós estávamos numa sociedade que valorizava o seguinte: quem não tem sucesso é por que é preguiçoso e não quer trabalhar. Mais eu estou perdido mesmo o que estava falando antes? Eu tinha parado quando fiz o concurso e entrei no IBGE
P/1- É que o senhor era um dos mais jovens estatísticos.
R- Era o mais jovem. Então realmente desapareceu o ambiente de privação em casa. Aluguéis atrasados, não privação de ter fome, ou andar descalço, uma privação de dificuldade de pagar aluguel, se privar de diversão, essas coisas todas desapareceram. Com meu trabalho tudo mudou. Quer dizer, pelo menos você constrói uma situação estável no nível de classe média muito baixa, mas no Rio de Janeiro naquela época a maioria da classe média vivia assim. Então isso foi muito importante para mim. Depois, valorização, você deu um salto, você era um boy, é funcionariozinho de uma revista falida, de repente você é um estatístico, cargo de nível superior e tudo. No IBGE fiz carreira de sucesso. Fui logo promovido a estatístico analista, que era um cargo de nível superior e quatro anos depois, começaram as bolsas para os Estados Unidos. Eles abriram a vaga e eu e 15 colegas se candidataram . Aí meu conhecimento de inglês fez com que eu fosse escolhido. Minha vida mudou completamente, passei um ano nos Estados Unidos.
P/1- Há, isso foi que anos?
R- Em 53.
P/1- O senhor ainda era solteiro?
R- Ainda era solteiro. Tinha terminado um caso que sempre me doeu muito porque a moça era gostava muito de mim. E foi algo doloroso. A moça era órfã, tinha estado em campo de concentração. Uma moça pobre, eu vivendo de um salário, na verdade na estava sustentando meus pais. Na colônia israelita havia a ideia do status. Diziam: “Um rapaz como você merece alguém melhor, uma menina bem de vida, com educação superior. Essa menina não tem instrução, não tem dinheiro, já foi noiva, como é que vai ser sua vida?” Eles fizeram me afastar dela, falando de coisas que o ex-noivo, muito mais velho que ela, espalhava. Para resumir, não tive estrutura para aguentar. Filho único, não tive em que me apoiar, rompi com ela. Isso é uma coisa que até hoje me dói. Felizmente, ela casou muito bem. (Risos) Com um sujeito muito melhor do que eu, pelo menos financeiramente. Tempos depois encontrei a tia dela que me contou que fora realmente o amor dela, e eu respondi que eu era antes muito infantil.
Bem fui para os Estados Unidos e comecei a ter relacionamentos bem sucedidos com moças. Então perdi a timidez.
P/1- Que cidade que o senhor foi?
R- Washington, que a bolsa era lá, mais eu viajei.
P/1- E conta um pouquinho então essa sensação de nunca ter viajado e ir aos Estados Unidos.
R- Quem nunca tinha viajado para Petrópolis... (Risos) Quatro colegas foram escolhidos. Chegamos a Washington, não era uma grande cidade. Morávamos numa pensão, trabalhávamos e estudávamos. Havia um clube de estudantes estrangeiros. Aí fui me desembaraçando... Primeiro eu estava vendo outra sociedade onde naquela época havia coisas que a gente no Brasil hoje tem. No Brasil naquela época todas as importações eram proibidas. Então uma bobagem, uma bobagem, a gente ficava meio deslumbrado, depois, o seguinte, quem vinha do Rio de Janeiro, que é uma cidade ineficiente onde tudo era burocratizado, a gente ficou assombrado como as coisas eram fáceis, como tudo se resolvia sem problema. Quer dizer, correio funcionava, telefone funcionava, todo mundo tinha rádio e depois veio a televisão. Que não existia no Brasil. Você está em outra sociedade, você sai de uma sociedade de privação, de dificuldades, para uma sociedade de abundancia. Depois meus colegas eram mais velhos que eu e muito desembaraçados. Descobriram que a gente podia alugar uma casa, dois cozinhavam e dois lavavam, então desembaracei um pouco manualmente, que minha mãe que sentia dor de me mandar trabalhar nunca deixou fazer nada em casa, o que é mau. Lá fui obrigado a fazer coisas, porque lá não existe criadas. Então de certo modo eu desabrochei nos Estados Unidos, voltei uma pessoa totalmente diferente. Chego aqui no IBGE, logo um chefe que tinha me conhecido, depois foi presidente do IBGE veio falar comigo e me nomeou assistente dele. Então aí a carreira á foi subindo.
Agora aí aconteceu um episódio, pensei em sair com uma moça professora, inteligente e a moça não queria nada comigo. Ela saia comigo, mas dando a entender que era desagradável. Isso foi mal porque a segurança que tinha adquirido comecei a perder de novo. O relacionamento acabou, cheguei para ela e disse: “Olha, sabe de uma coisa? Eu tenho a impressão que você tem vergonha de sair comigo. Não sei por que você sai mais você continua saindo e aparentemente minha presença é desagradável. Chega, acabou vai procurar outra pessoa”.
Então eu recebi um convite para ir para a Argentina, em outra bolsa, dois anos depois. Passei quatro meses na Argentina. Houve o levante contra Perón, assisti ao bombardeio.
P/1- Aonde?
R- Em Buenos Aires. Isso teve uma vantagem, a minha autoestima melhorou eu sempre me julgava um medroso físico, eu apanhava, em pequenininho dos meninos maiores, eu não tinha irmãos. No meio do bombardeio não senti medo algum.
P/1- O senhor podia contar como é que foi o contexto desse bombardeiro?
R- O contexto foi o seguinte: Eram dois brasileiros, eu e um colega meu. Um senhor casado, muito bom, muito enérgico, mas completamente diferente de mim, dessas pessoas que viviam muito no concreto. Era um grande chefe de seção, duro e tal, mas sem nenhuma curiosidade intelectual. Quer dizer, não era um companheiro ideal para mim. Mas uma pessoa muito boa. Então diariamente nós levantávamos, pegávamos o metrô, outra curiosidade é que Buenos Aires já tinha e no Brasil não. Era o seguinte: fazíamos uma pesquisa agrícola na província de Buenos Aires, com pesquisadores americanos patrocinados pela FAO das Nações Unidas. Eram vinte estrangeiros e vinte argentinos. Eram aulas de estatística depois nós saímos para o campo, a 600 quilômetros de Buenos Aires, o que para um menino criado na cidade foi uma grade experiência. Cada um de nós era acompanhado por um argentino. E o que foi comigo era um rapaz muito brilhante, de Córdoba, e foi uma companhia muito agradável. Então foram meses agradáveis lá. Estudando, vendo, trabalhando, conhecendo outras pessoas e a tensão política era muito forte. Eu tinha conhecido o Estado Novo, mais o Peronismo era muito popular, mas o pessoal da escola que vinha da classe média alta tinha ódio ao peronismo. Mas eu comecei a entender outro país. Estados Unidos era outra sociedade, Argentina era outro país. Comecei a entender melhor o país que eu tinha curiosidade de ver que esse país é diferente. A Argentina estava no apogeu naquela época. País onde se comia muito bem, ficava espantado como se comia bem e barato lá. A carne argentina, que era muito gostosa, comia no restaurante do hotel . E o maître veio falar comigo disse: “Eu notei que o senhor gosta muito da nossa carne, eu vou pedir para servir mais uma porção para o senhor. (Risos) Bem, para resumir, uma manhã nós estávamos almoçando, a gente ouve um estrondo: “Buumm” Aí meu colega disse: “O que está havendo?” Ele não tinha a menor curiosidade por política. Eu disse: “Olha, ouvi que ia haver um desagravo à bandeira que a oposição tinha queimado, diz o governo.. Deve ser este tal de desagravo”. Eu chego na janela e os aviões estavam baixando sobre a Casa Rosada e bombardeando. Eram quatro quadras de distância do hotel.
P/1- A então o senhor via a Casa Rosada da janela?
R- Exato. Um colega de curso disse: “Olha, nós estamos na América Latina, não é bom morar perto de palácio.” (Risos)
P/1- É mesmo.
R- Como eu disse, minha autoestima melhorou, você podia ter reação e medo, eu senti a calma, voltei para a mesa e disse: “Olha, vamos terminar o almoço que já vi que não tem jantar hoje.” (Risos) Reação egoísta. O dia inteiro teve várias ondas de aviões atirando, os sindicatos mandaram os operários. Começou o tiroteio ali, foi uma confusão danada. Não teve jantar. O meu colega que era muito ativo foi lá na portaria e disse: “Escuta, não vai sair comida?” Eles disseram: “Os funcionários estão em greve.” Ele disse: “Então eu organizo.” Chegou lá, foi na dispensa e organizou o jantar. Na manhã seguinte não houve comida, e tinha colegas nossos com crianças. Aí disseram:: “Tem uns camelôs lá perto da estação, trouxeram logo biscoitos, chocolate, essas coisas”. Fomos lá, compramos, demos para as crianças, comemos. Aí uns colegas nossos disseram: “Vamos embora daqui que isso daqui vai virar terra de ninguém.” Fomos até a Embaixada Brasileira que é em uma das antigas mansões da oligarquia argentina, um prédio impressionante. Fomos lá, entramos contamos o que tinha ocorrido. Brasileiro era inocente naquela época. Um dos diplomatas, que nós chamávamos de parasitas, (Risos), disse para nós: “Olha a gente pode dizer que não tem mais preocupações com a Argentina, os caras lá de cima não conseguiram acertar o palácio.” Olha o que ele pensou na hora.(Risos) Aí um deles disse para mim: “Olha, não vocês não mencionam aí a violência do regime peronista porque o senador Filinto Muller é sogro de um colega nosso, ele vem aí” . Fomos cumprimentar o embaixador que eu soube que foi do tenentismo, colega de Prestes, Orlando Leite Ribeiro. Voltamos para o hotel, os outros fugiram do hotel e eu continuei naquele hotel. Na manhã seguinte ouvimos um alto falante: “Todas as pessoas até quatro quadras façam o favor de sair porque tem nove bombas não explodidas.” Sabe qual foi minha reação? Virei para o meu colega e disse: “Sabe de uma coisa, nós estamos na quinta quadra, acho que vou continuar dormindo”... (Risos) Como se isso fosse preciso. Para resumir, perdi uma série de inibições, perdi o medo físico. A Fany hoje me diz: “Você é muito afoito.” Muito depois, eu e Fany estávamos em Madrid, alguém puxou a bolsa dela e eu me atraquei com o camarada. Ele deve ter pensado: “Esse velhinho aí é louco.” (Risos)
Bom, eu saí no dia seguinte ao bombardeio, fui até o correio, mesmo pensando que provavelmente não funcionava, mas estava. Mandei um telegrama para o Rio, “Eu estou bem.” Porque o que acontece, com o diferencial de horário de uma hora, havia o Repórter Esso, que era um noticiário que todo mundo ouvia. Eu disse: “Olha, meus pais vão ouvir que a cidade de Buenos Aires foi bombardeada, a praça de Maio. Eles sabem que eu moro na Avenida de Maio, a correspondência que eles mandavam para mim era na avenida de Maio, mas eles não vão saber a diferença, vão ficar em pânico. Depois minha mãe me contou que o telegrama chegou. Mas ela disse que veio logo alguém no rádio e avisou que nenhum brasileiro tinha sido ferido e tal. Foi duro, um colega meu foi atingido. No dia anterior eu tinha estado na praça de Maio. A gente descia do metrô e eu disse: “Dizem que o Perón sai essa hora, vamos ver ele.” Foi exatamente essa hora que bombardearam no dia seguinte, sabendo que ele ia sair. Eu disse: “Mas que imbecis acertar alguém de cima por que não chegaram perto? ”Morreram centenas de pessoas aquele dia. Quando eu voltei muito depois à Argentina Fany, numa hora a gente foi na praça de Maio, me deu algo e parei e ela disse: “O que você está sentindo?” Eu respondi: “Aqui, exatamente há 40 anos era o lugar que eu estava.” Você vê toda a sua vida passando. Voltei para o IBGE, continuei como assistente, comecei a dar aula esporadicamente.
P/1- Dava aula de que?
R- Eu dava aula de Estatística. Aí começou no Rio um programa “O Céu é o limite” em que você respondia perguntas.
P/1- Do Jota Silvestre.
R - J. Silvestre. Eu fui lá ao Rio. Apareci e ganhei vários prêmios. Aí colegas meus disseram... Começaram a aparecer os concorrentes. Fui a outro do Flávio Cavalcante, ganhei mais. Fui num terceiro, ganhei mais.
P/1 – Vamos contar essa parte, que isto é interessante. Então quer dizer, isso era que ano?
R – 56. A Argentina foi para um bombardeio em 55
P/1 – Quer dizer, a televisão começa aqui...
R – Começa em 53, 50 e tal. Mas pouca gente tinha.
P/1 – Era TV ao vivo ainda.
R – Teve tudo ao vivo. Então eu apareci na televisão.
P/1 – E como era? As pessoas iam responder sobre vidas de pessoas?
R – Não, eu escolhi o assunto. O primeiro programa eu fiz de História do Brasil que é um negócio muito grande. Eu aguentei cinco programas e ganhei muito dinheiro. Fiquei muito conhecido, os colegas, coisa e tal.
P/1 – Que perguntas eles faziam?
R – Historia do Brasil, eram perguntas muito disparatadas. Eu caí numa pergunta que poderia ter respondido, porque era a nota do Tiradentes: “qual era o nome do juiz que leu a sentença para Tiradentes?” Naquela nota antiga em que aparecia o Tiradentes tem uma cena lá, é um quadro acadêmico: “leitura de sentenças.” E eu sabia o primeiro nome dele, mas não sabia o segundo. Pronto, perdi.
P/1 – Uma pergunta muito detalhista.
R – Fui responder depois num programa de Flávio Cavalcante, que conheci. Você já ouviu falar do Flávio Cavalcante.
P/1 – Já.
R - Vida de Pedro Primeiro. Também aguentei vários programas. Depois fui a um programa com Murilo Néri. Eu virei quase profissional de televisão. Não tinha obrigação nenhuma. Precisava era de ganhar a vida. (riso)
P/1 – Seu Moysés, eles davam prêmios em dinheiro?
R – Em dinheiro.
P/1 – Eram bons?
R – Eram bons. Inclusive em um do Flávio Cavalcante eu ganhei uma passagem para o Uruguai, mas não fui porque meu pai estava doente, eu comecei a ficar com medo. Bobagem, poderia ter ido. Agora vê o que são as coisas. Fui num programa do Murilo Neves que você tinha que escolher uma companhia, eu escolhi uma mocinha. Uma conhecida minha, não era namorada, uma conhecida. Fizeram uma pergunta ( O prêmio estava acumulado há cinco semanas): “Quem é o autor de Imitação de Cristo e de Gil Blas de Santillana. Eu nunca li esses dois livros, mas sabia qual eram os autores, ficou na memória: (Thomas a Kempis e Lesage). Ganhei o prêmio na hora. Aí eu fiz uma coisa que até hoje me arrependo, apesar de eu poder racionalizar. Aquela mocinha estava com dificuldade, não tinha respondido nada, não fez nada, eu conheci na hora porque eu não queria ir sozinho. Se eu fosse sozinho iam dizer: “mas esse cara é veado.” (riso) Naquela época isso era importante. Na hora de receber o prêmio eu disse: “olha, eu gostei da sua companhia, vou lhe dar uma parte. Mas eu não acho que você tem que receber metade porque quem respondi sou eu.” Isso até hoje me arrependo, sabe. Que você fez de tão ruim? Ela acreditou que receberia a metade. Foi algo extremamente desagradável, eu não faria isso hoje. Mas naquela época, naquela mentalidade de menino que luta, você sempre fica chateado de dar alguma coisa do teu trabalho para outra pessoa.
P/1 – Porque ela só ficou de acompanhante.
R – Ela ficou dez minutos ali. O trabalho dela foi ficar dez minutos calada. Eu achava que não tinha que dar metade de um prêmio que era bom, que era seis meses do meu salário, para ela ficar dez minutos calada.
P/1 – Seis meses do seu salário!
R – Resumindo, os três prêmios foi um ano do meu salário
(PAUSA).
Aí em 57 eu conheci uma moça que frequentava o clube, estudava lá na Filosofia, era a Fany, com que eu fiquei noivo. Aí ganhei mais uma bolsa. O pessoal do IBGE dizia que eu era profissional bolsista (riso).
P/1 – Seu Moysés, só um instantinho antes de a gente chegar nesse capítulo do seu namoro, noivado, casamento. Como foi essa coisa de sair na televisão? As pessoas o conheciam?
R – Ah, fiquei absolutamente conhecido. No ônibus o pessoal me cumprimentava. Gente na rua me cumprimentava. Meus colegas, obviamente. Aquele programa tinha uma audiência tremenda. O nome era citado no jornal. E num deles eu fiquei ao lado de um velhinho em Geografia, que criou um problema danado. Ele caiu numa pergunta, era português. Recorreu, chamava o pessoal do IBGE. Acontece que ao contrário de mim e de outros candidatos que chegava lá, que consideravam aquilo apenas um serviço - apesar de tudo nós temos vaidade – ele fazia comentários, brincava, contava anedota. Pelo menos a direção do programa considerou que do ponto de vista de audiência interessava mantê-lo. Então, anularam a questão e permitiram que ele continuasse. Só que ele caiu numa segunda questão. Então nomearam uma junta de colegas do IBGE, um deles Orlando Valverde, um geógrafo brilhante. Ele disse à imprensa: “esse outro está querendo se promover, se candidatar a vereador, aparecer às nossas custas. Ele errou e pronto.” Mas foi curiosa a história, era algo, era a glória.
P/1 – E qual era a emoção ali? O senhor entrava confiante?
R – Ah, eu de certo modo ficava muito nervoso. O pessoal dizia: “você é muito nervoso, se você fosse mais calmo, você teria continuado no programa. Essa de quem leu a sentença, você tinha na memória porque lembrou do primeiro nome. Não lembrou do segundo porque estava muito tenso. E depois, você escolheu um tema muito amplo, você poderia ter escolhido um tema mais limitado.” Porque o do Flávio Cavalcante eu escolhi a vida de Pedro Primeiro, que inclusive me deu a chance de ler a biografia dele que era muito agradável, mas é um assunto que tem muitos livros. Você teria que ter a habilidade para pegar um tema mais limitado. Depois teve outros candidatos que pegaram a vida de Maria Antonieta. Tem dois livros só, o livro do Stefan Zweig e outro, praticamente era um livro só e Pedro Primeiro tinha um montão de obras. A pergunta que eu caí, na verdade, não tinha na biografia dele de Otávio Tarquinio, que é muito boa. Tinha num livro do Paulo Setúbal, pai do Olavo Setúbal que escreveu vários romances históricos leves. Foi: “qual era o nome do comandante da esquadra que levou Dom Pedro para a Bahia.” Quer dizer, um detalhe boboca . Era para o cara não ficar, porque o premio ia dobrando. Mas para resumir, fiz um capitalzinho que deu para dar entrada numa casa para os meus pais.
P/1 – Bem, aí então o senhor conhece a Dona Fany no clube?
R – É, no clube.
P/1 – Que clube era?
R – Clube dos Cabiras. Esse clube era dos judeus de esquerda, que acabou e o pessoal ia lá de noite, conversando. Aí eu já não estudava mais e ia lá de noite. Fany frequentava lá, que ela era professora de Ídiche e o curso dela era lá. Então a conheci . Tinha visto ela uma vez, comecei a sair com ela, era aluna da Filosofia, que era perto do IBGE. Então me encontrava com ela.
P/1 – E assim, que eram os programas? Era ir ao cinema?
R – O programa era ir ao cinema. De bonde (riso) e a praia, os programas eram praia e cinema.
P/1 – E esse ir à praia nos anos 50 era a mesma coisa?
R – Era o grande programa do Rio de Janeiro e ainda é, ir à praia e a grande diversão era o cinema, eram os cinemas da Cinelândia os grandes cinemas. Encontro, ir à Cinelândia e à praia.
P/1 – E aí, o senhor ficou namorando muito tempo ela?
R – Não, porque após conhecer ela, ganhei outra bolsa. Então tinha que tomar uma decisão, noivamos um ano e casamos. Aí já fui com ela para os Estados Unidos.
P/1 – Para Washington também?
R – Para Washington também. Mas aí já viajamos, ela encontrou os tios dela que moravam em Chicago, que aliás voltamos a conhecer agora. Porque meu sogro tinha vários tios que moravam nos Estados Unidos. Aí ficamos em Chicago um mês, conhecemos outras pessoas, com os sobreviventes ainda nos damos.
P/1 – E como foi essa coisa toda de já morar casado nos Estados Unidos?
R – Não teve problema. Como eu já tinha estado lá, não era novidade. Alugamos umas casas antigas, alugavam por andares. Então morávamos no primeiro andar, num lugar confortável, dois quartos. Depois, uma coisa que hoje em dia é comum no Brasil, tinha todos os aparelhos domésticos. Lavar roupa você tinha lavanderia comum, como tem agora um serviço que você vai lá, pesa. Supermercado só existia lá, estava começando no Rio. Então a vida doméstica era fácil. Fany fez cursos lá.
P/1 – Então enquanto o senhor estava fazendo o seu curso, ela também fazia lá.
R – Fazia cursos, passeava, fazia compras.
P/1 – Bom período, né?
R – É.
P/1 – E seu Moysés, indo para a literatura, o senhor é uma pessoa que leu muito, continua lendo. Esse período nos Estados Unidos puxou o senhor mais para os autores americanos?
R – Não. Puxou mais para as Ciências Sociais. Porque o curso era de Estatística do Trabalho, Levantamentos por Amostragem. Então, fui obrigado a puxar para a literatura técnica, que eram livros de Amostragem e de Estatística Matemática, que eu tive que estudar. E já tinha muitos trabalhos de Ciências Sociais, que eu comecei a conhecer. Autores americanos e europeus. Aí comecei a me interessar. Mas eu era obrigado a ganhar a vida com Estatística, então entrei na carreira de estatístico, Levantamentos por Amostragem, que foi a minha bolsa. Voltei, fui pro IBGE, lancei um levantamento por Amostragem que foi muito bem recebido, então meu nome ficou conhecido. Só que pagava muito pouco. Aí – veja as coisas da vida - o mesmo psicólogo que me mandara para a Light, ficava no mesmo prédio do IBGE. Um dia eu estou entrando no prédio, ele me viu e perguntou: “escuta, você é contador?” Eu disse: “escuta, meu amigo, eu fiz ciências contábeis, mas sinceramente não sei nem fazer um lançamento.” Aliás, detesto contabilidade. Eu fiz porque não tinha outro curso a noite (riso). Ele disse: “olha, está abrindo uma firma nacional que quer montar um quadro com pessoal de nível superior, está expandindo. Vou te mandar lá.” Eu no IBGE podia trabalhar meio período. Foi a única coisa que de certo modo como funcionário foi boa. Quer dizer, fui trabalhar meio período, de certo modo chegava um pouquinho tarde no serviço. E o pessoal me conhecia como um funcionário muito assíduo, começou a ficar chateado com isso.
A empresa era Listas Telefônicas Brasileiras, aí começou outro atalho na carreira. Era uma empresa familiar nacional. Tinha capital americano, fundador americano, mas o filho Gilberto Huber, era brasileiro, acabou se metendo na política, depois eu soube foi do IPES em 64. Ele queria expandir a firma, era muito ativo. E disse: “olha, o negócio de listas telefônicas é um negócio muito lucrativo, mas muito precário, porque depende de uma concessão do governo. Então nós queremos diversificar, com alguma estratégia, com novos produtos, indo para o exterior, etc. e tal”. Eu disse assim, não com ele, mas com outro camarada: “olha, eu estou bem no IBGE, mas ganho pouco, quero tentar outra carreira. Mas só posso trabalhar meio expediente.” “Mas aqui é o expediente inteiro.” “é, mas só posso trabalhar meio expediente.” Sabe que eles me aceitaram? Mas logo depois eu descobri o seguinte: naquele tempo funcionário público com dez anos de serviço podia ter licença premio. Seis meses, remunerado. Tirei licença premio e fui trabalhar tempo integral na Lista... Um ambiente inadequado para mim era ambiente de vendedor à base de comissão. Quer dizer, eu não estava acostumado, cheguei um mês depois e pedi demissão. Foi recusada e me deram aumento (riso). Trabalhei mais um mês, pedi demissão de novo, foi recusado, me nomearam gerente de Estatística. Fiquei lá dois anos, só que deu um problema: resolveram transferir a sede para São Paulo. Eu tinha um filho pequeno, Fany esperava outro, eu estava com a vida organizada. Mas eu percebi instintivamente que era uma oportunidade de carreira, porque a alternativa era voltar ao IBGE e ficar naquela vida medíocre. Não seria tão medíocre, teria entrado no magistério ou convidado para uma estatal, como alguns de meus colegas. Eu vim para São Paulo, fiquei um ano. Com um filho pequeno e esperando outro filho, não dava para Fany ir para lá logo.
P/1 – Quem foi o primeiro filho?
R – Carlos.
P/1 – Carlos nasceu em que ano?
R – 59. Agora, nesse meu cargo na LTB eu vi umas coisas que não tinha aptidões para gerente de linha. Certa dificuldade com relacionamento com pessoas abaixo de mim, em nível intelectual, eu era muito bom em serviço em se tratando de pessoas do meu nível, porque eu os inspirava, mas com pessoas que na verdade só trabalham porque precisam, você tem que ser duro com elas, eu nunca fui bom nisso. Como gerente de linha eu fui mal sucedido na minha carreira, como gerente de Staff fui bem sucedido. Mesmo assim não fui demitido. Fiquei lá dois anos, fui aumentado, vim definitivamente para São Paulo, Fany veio depois para São Paulo, já com duas crianças, e começou minha carreira em São Paulo. Aí chegou um ponto, em que tinha que voltar para o IBGE depois de três anos, a licença e as férias vencidas se esgotando. Eu disse: “eu não vou ficar aqui nesse lugar de lista telefônica. Isso é um ambiente difícil para mim.” Peguei um anúncio no Estadão, fui lá, quem é que selecionava? Era o mesmo que me escolhera para a Light e para LTB. Ele riu: “Oh, você de volta “.Disse: “olha, o cargo é gerente de treinamento. Sinceramente eu acho que você, pela personalidade, não é um gerente de treinamento. Você tem certa dificuldade com pessoas, por timidez. Tem pessoas que te acham arrogante.” Eu disse: “Não, não é arrogante.” “É que você fica calado.” “Fico calado por timidez, não é arrogância não (riso). Dei a impressão errada.” Diante de estranhos eu sou tímido. Não esqueci isso. Mandou-me para a Lever e eu fui logo admitido. Para um cargo que não existia: consultor estatístico. Ganhando mais, em um ambiente muito bom. Fiquei 15 anos na Gessy Lever.
P/1 – Onde era a Lever?
R – Ela era na Praça da República, no centro da cidade, depois mudou para a Vila Anastácio, onde fica até hoje a fábrica. Depois ela foi para o Centro Empresarial, mas ela era num prédio muito bom na Praça da República, era muito conveniente para trabalhar. Lá fiquei e fui bem. Quer dizer, consegui vencer, que o cargo não existia, o pessoal não sabia bem o que eu fazia. Consegui vencer certa hostilidade contra o pessoal de Staff, que numa firma industrial sempre existe, como descobri, e me firmei lá. Foram 15 anos realmente muito gratificantes do ponto de vista profissional. Embora, visto em retrospecto, eu me acomodei. Uma vez eu li o seguinte: as palavras mais tristes são: “poderia ter sido”. Mas aprendi o seguinte: que o contratual, “que seria se não fosse?”, é um exercício bobo. Porque você idealiza: “ah, se eu não fizesse isso, poderia ter sido isso.” Mas quem disse que seria? Um colega meu americano, da LTB, com quem fiz amizade, disse uma vez: “você não soube comercializar os teus conhecimentos.” , Foi verdade reconheço (riso).
P/1 – Mas seu Moysés, então vamos traçar esse painel da chegada em São Paulo.
R – A chegada para São Paulo. Como disse, a LTB se transferiu para São Paulo.
P/1 – Vieram morar aonde?
R – Na Vila Mariana numa casa grande. Eu no Rio morava em apartamento. Fany já morava em casa, mas não estava acostumada com essas casas grandes. Na Vila Mariana na parte que desce para a Aclimação, então era meio em declive. Mas quer dizer, em termos de conforto do domicílio era muito bom. Aí vivia dizendo: “vamos voltar para o Rio.” Inconscientemente, eu não queria voltar para o Rio. Porque , a inflação estava muito forte, dei entrada em uma vilinha em construção, numa casa. Lá na rua Michigan onde eu moro agora. A casa mal ou bem acabou de construir, eu fui morar lá. Depois mudei para uma casa maior nessa mesma rua Michigan. Aí a licença esgotou e eu pedi demissão do IBGE. Quando cheguei lá o Chefe de Pessoal me disse: “não, vou recusar tua licença. Você fez uma carreira brilhante.” Eu disse: “ah, mas não dá. Eu estou ganhando mais do dobro lá, não dá.” Ele disse: “está bem, muita gente está saindo e tal.” Depois fui convidado a voltar várias vezes. Mas aí fiquei na Gessy Lever. Hoje em dia, vi que foi um salto arriscado, porque eu estava há seis meses na Gessy Lever, o pessoal não sabia bem o que ia fazer de mim, mas o fato é que eu fiquei lá 15 anos.
P/1 – O que um estatístico fazia?
R – Bem, há controle da qualidade, perspectivas de mercado uma série de assuntos, porque logo perceberam que eu tinha conhecimentos de economia. E a Lever tinha em cada país o chamado Departamento de Estatística e Economia, que trabalhava com dados da economia e mercado para preparar relatórios da situação financeira do país para Londres, onde tinha o Departamento Central de Economia e Estatística. Então comecei um outro atalho da minha carreira como Estatístico Econômico, que eu sou agora no Banco Central, apesar que a minha graduação não era inicialmente em economia, mas fiz muitos cursos disto em pós-graduação, inclusive no exterior. Bem, eu fiquei lá.
Aí dei um passo que parecia bom e não foi, um dos meus diretores era um escocês e ele estava saindo da Lever, chegou para mim e disse: ‘quer trabalhar comigo?” Eu disse: “em que?”Ele disse: “olha, a Brascan – a “holding” da Light, vai ser encampada pelo governo e a experiência deles foi má na encampação da Companhia Telefônica Brasileira, eles perderam o dinheiro, pois não tinham preparado projetos de investimento. Eles estão formando um departamento de especialistas para preparar projetos porque provavelmente a encampação vai ser com cláusula de reinvestimento.” Eu aceitei, isso foi um risco boboca. Minha filha Zilda disse (ele nasceu já em São Paulo): “puxa, você com três filhos, larga uma companhia como a Lever e vai dar um salto no escuro”.. Eu disse: “é, eu tinha que dar um salto, senão acabaria me aposentando aqui...” Fui para a Brascan, e o que aconteceu? A encampação da Light foi sem reinvestimento e um novo grupo tomou conta da empresa e eles disseram: “nós não vamos fazer novos investimentos.” Então eu disse: “então não tem mais nada o que fazer, puxa, perdi meu emprego e tudo.”
Antes fecharam o escritório em São Paulo de estudos estratégicos, mas me convidaram a permanecer, mas teria que ser no Rio. Aí voltei para o Rio, voltei sozinho, porque disse: “Fany, esse negócio não é certo não.” Ah, meus filhos tinham feito vestibular e estavam estudando no Rio. Eu recuperei o apartamento que tinha no Rio e eles foram morar lá com minha mãe. Ela morava antes conosco, e ficou morando com eles. Então eu disse, não tenho despesa adicional de ir pro Rio: fui morar com os meus filhos, o que inclusive foi bom.
P/1 – Agora só queria voltar um pouquinho. Antes de trabalhar na Brascan então o senhor trabalhou na Lever, 15 anos?
R – Gessy Lever, a Lever tinha adquirido a Gessy antes de entrar para lá e adotou novo nome, fiquei 15 anos. Como consultor estatístico, trabalhando quase sozinho, que para o meu temperamento descobri que é melhor, que tenho dificuldade com pessoas, mas tenho grande capacidade de concentração em problemas. Dado um problema, eu penso logo como chegar lá e resolvê-lo. Isso depois eu descobri... Inclusive fui muito amigo do chefe de pessoal, hoje são Relações Humanas, os títulos mudaram (riso). Ele era psicólogo, uma vez brincando comigo ele mostrou o teste de Rorscharch, de planilhas com manchas coloridas. .
Ele disse: “quer fazer?” Eu fiquei curioso, fiz. Ele comentou: “olha, o teste mostra o seguinte: você não é uma pessoa ativa, é uma pessoa que tem mentalidade analítica. Você vê o conjunto, vê a floresta, você não vê as árvores. A pessoa desse tipo tem grande capacidade de pegar o problema, decompô-lo e depois resolvê-lo. Agora, não são bons gerentes de linhas, porque você não tem interesse em detalhes nem pessoas. Você tem interesse em processos.” Isso eu confirmei muito depois, sabe. Então depois fui nomeado gerente de pesquisa operacional, eu operava na pesquisa de mercado, no controle de qualidade industrial e preparava relatórios econômicos. Era um quebra-galho intelectual; para tudo que o pessoal de linha não conseguia resolver e que exigia algum conhecimento matemático e econômico, eu era chamado. Mas a minha função mesmo era assistente de diretor, acontece que um dia meu diretor voltou para a Europa e veio um novo diretor era indonésio, de descendência chinesa. Um homem cultivadíssimo, educado. Ele disse para mim: “olha, vi aí o seu serviço, muito interessante, mas sinceramente eu não vejo a necessidade da companhia manter uma pessoa de seu nível.” Como o pessoal da agência de publicidade Lintas, que era da Lever, já tinha me convidado para trabalhar lá na pesquisa de mercado, eu fui lá e disse: “escute, vocês uma vez me convidaram. E mudou o diretor e ele acha que realmente não há muita necessidade do meu serviço, então eu queria trabalhar aqui, È possível?” “Pois não.” Porém, dia a dia, bem ou mal, eu fui me familiarizando com o diretor lá na Lever e um dia ele me chamou e disse: “olha, chegou o pedido da Lintas para o senhor ir para lá. Eu neguei. Agora eu acho que o senhor é indispensável.” (riso). Eu disse: “está bom.” Fiz amizade com ele, logo depois a companhia me mandou para Londres, passei um mês lá com Fany. Ele nos convidou a jantar e foi muito amável, era um sujeito finíssimo, depois foi diretor financeiro da Unilever.
P/1 – Mas o senhor teve um trainee que ficou conhecido...
R – O Gilberto Gil. Um dia aparece o Gilberto Gil, a Lever vinda da Inglaterra e da Holanda, era muito sensível à opinião pública e aos sindicatos. Os sindicatos vinham aqui e filmavam as linhas de montagem e parece que comentaram o seguinte: “não tem um gerente negro aqui na Lever. Por quê?” Só empregados negros, gerente não. Negro lá é moreno. “Olha, há poucos negros no curso superior.” O recrutamento da Lever é um dos melhores, mas eles recrutam da USP, da FGV e da PUC e os engenheiros da Engenharia da USP e de Curitiba... Até Curitiba eles não aceitavam muito. Então realmente, não tem nenhum de cor. “Ah, isso causa muito má impressão na Europa.” (riso). Então veio a ordem do serviço pessoal: recrutem na Bahia. Fizeram um edital lá pedindo trainees. E aparece quem? O Gilberto Gil, que é formado em Administração de Empresas. Ele tinha passado num concurso de nível superior e foi logo contratado. Ele já tinha composto músicas... Bem, na Bahia ser compositor não é novidade (riso). O Caetano Veloso já tinha chegado aqui, a Lever era a maior patrocinadora de programas de televisão, patrocinava novelas e tudo mais. Ele com um contato na Lintas conseguiu ser apresentado aos artistas, à Elis Regina, levou umas músicas dele. Ele é muito inteligente, tanto que quando ele foi estagiar na fábrica em Valinhos, ele de noite era o maior sucesso, cantava as músicas dele e tal. Bem, um dia me contaram: o presidente da companhia abre a televisão, está lá o Gil (riso). Aí o serviço de pessoal disse: “olha,. o senhor nos perdoe, estamos muito interessado na sua carreira, mas o senhor vai ter que decidir. Ou o senhor vai fazer carreira artística, ou o senhor fica aqui na Lever. Ele disse: “sabe de uma coisa, acho que eu vou optar pela carreira artística.” Aí tudo começou. Fiz amizade com ele, ele estagiou comigo. Um dia ele estava num avião na Europa, já era conhecido, senta ao lado dele o presidente da Lever. Disse: “Gil, você foi o pior investimento de pessoal que nós fizemos e a melhor contribuição que fizemos à cultura brasileira foi trazer você da Bahia e trazer para São Paulo”. Aí ele deslanchou. Mas sempre diz: “eu trabalhei na Gessy.”
P/1 – Ele conta, mas ele trabalhava ou ele ficava lá...
R – Ficava lá, saía. Não dá, as duas coisas não dão, mas quer dizer, de certo modo foi graças aos contatos da Lever, com Caetano e tudo, que ele pôde ir em estúdio de televisão, conseguiu ser apresentado à Elis Regina, vendeu aquela música “Louvação”, que eu não acho a melhor que ele fez mas entrou no programa “O Fino da Bossa” e deslanchou.
P/1 – Então o senhor estava aqui, já com os filhos...
R – Pequenos e depois resolvi dar o salto para a Brascan e fui para o Rio, Fany ficou aqui. Quando eu ia ao Rio, visitava o presidente do IBGE, tanto o anterior (Ayres) que se afastara, quanto o novo (Isaac) que tinha sido meu colega de faculdade, eles já tinham me convidado a voltar, coisa que depois eu me arrependi de ter não ter feito, mas depois me contaram que eu me arrependeria se tivesse ido, porque o ambiente de serviço público mudara... Fui visita-lo e o Isaac disse: “olha aqui, então eu acho que agora há uma chance de fazer você voltar para o IBGE. Nesse meio tempo vagou um cargo de professor na Escola Nacional de Ciências Estatística; você não quer dar aula?” Me mandou lá. Eu fui recebido com hostilidade: “ah, o Isaac é patrício dele, mandou ele para cá...” Mas consegui me firmar na Escola porque fui escolhido paraninfo dois anos seguidos e gostava de lecionar.
A Brascan, como disse, foi adquirida sem cláusula de reinvestimento e meu mundo afundou, pensei, estou sem emprego. Mas então eu fico no IBGE que o Isaac, me convidou. No dia que ia voltar para São Paulo pois já ia assinar o contrato para mudar de vez para o Rio, o Delfim Neto assume o cargo do Ministério do Planejamento e demitiu o Isaac no dia seguinte. Aconteceu um negócio curioso: eu estava no aeroporto e isso deu no jornal, eu fiquei completamente atarantado e o Carlos, meu filho, depois me disse que pensou: “Ih, papai vai ler o jornal, papai vai ter um ataque.” Para resumir, não fui para o IBGE, mas continuei na Escola.
Nessa época aconteceu na Brascan algo inédito para mim. Eu fiz uns trabalhos de análise de investimento que eles gostaram muito. Aí ocorreu um episódio - curioso como certas coisas se implantam na infância, chegou um camarada lá, bem falante, dizendo que queria vender uma fábrica de papel em São Paulo. Você se lembra que havia uma fábrica de cadernos, que era na Marginal Tietê, que tinha um cheiro horrível, que ninguém aguentava. Era uma família, eles deram para ele vender. Eles já morreram, a fábrica já fechou, eu posso contar (riso) sem quebrar a ética. Ele apresentou o projeto para nós e meu diretor, que era um italiano muito simpático, disse: “olha, eu vou mostrar esse projeto ao meu assistente, doutor Moysés, e ele vai examinar.” Tudo bem. No dia seguinte, esse camarada me telefona: “ Doutor Moysés, tal, tudo bem? O senhor está analisando o meu projeto. Vamos direto ao assunto: eu queria convidá-lo para almoçar comigo, discutir uns assuntos.” Algo me deu, eu achei estranho. Eu disse: “Eu agradeço, teria o maior prazer de discutir com o senhor, mas tenho uma norma de não discutir assuntos de serviço em conversas particulares.” Curioso, isso foi uma coisa que eu trouxe dos Estados Unidos; lá no código de ética dos funcionários, eles não podem discutir assuntos de serviço em conversas particulares nem em correspondência particular. Isso é rigoroso lá. Ele disse assim: “Doutor Moysés, o senhor não vive de trabalhar de graça e nem eu. Eu já vi que o diretor considera muito sua opinião. Se essa venda for efetuada, 20% é seu.” Direto! Isso era mais do que eu ganharia em dez anos. Eu disse: “eu lamento...” e desliguei. Isso veio de meus pais a norma da honestidade, mas vamos supor que eu estivesse em dificuldade, tivesse um filho doente, tivesse alguma necessidade premente, será que não aceitaria?. O curioso foi que eu entrei na mesa do meu diretor e contei. Sabe o que ele fez? Deu uma gargalhada e disse: “Moysés, você vem de outro ambiente, você não está acostumado com esse tipo de pessoa, não liga para isso não.” Depois eu contei isso em outra firma, o pessoal disse: “ vai ver que o diretor depois ligou para ele e disse: meu amigo, essa oferta o senhor pode fazer a mim diretamente; não precisa passar pelo meu assistente.” (riso). Não aceitou a compra, de qualquer forma.
P/1 – Então, retomando, o senhor estava contando de sua volta ao Rio?
R – No Rio, comecei a trabalhar e comecei a dar aula. De noite, ia encontrar com meus filhos. Recapitulando, a Brascan foi vendida sem cláusula de reinvestimento, para outro grupo canadense. Foi uma “compra hostil”, na Bolsa americana, oferecendo um ganho maior aos acionistas. O fato é que eles conseguiram tomar conta da companhia e só ficaram com o banco e a imobiliária; está continua muito bem sucedida. Eles trouxeram um executivo do Canadá, com quem eu fiz amizade. Bem, eu cheguei para ele, que era o presidente da e, imobiliária, e disse: “olha, eu larguei meu emprego na Lever, onde estava muito bem, vim para o Rio, agora vou ser demitido.” Ele disse: “não, acho que você não está na lista de demitidos não.” Eu disse: “mas por via das dúvidas vou procurar emprego.”
Ia todo dia na Agência do Estado de São Paulo, lia o jornal. Vejo um anúncio: empresa de pesquisa de mercado busca estatístico. Descobri logo: era a Nielsen, quando eu era da Lever, eu tinha ajudado a Nielsen se implantar no Brasil.
A Nielsen é uma empresa de pesquisa de mercado, que audita produtos alimentícios e de higiene em lojas e a Lever estava interessada. Eu fizera muita amizade com o pessoal da Nielsen. Recortei o anúncio, mandei e fui admitido na hora: Perguntaram, “onde é que você estava, hein?” Eu disse: “aconteceu isso...” “Pois não, o senhor está admitido. Claro, tem que voltar para São Paulo.” Cheguei para o meu diretor na Brascan e disse: “lamento, mas eu pedi demissão.” Ele disse: “é, mas você não estava na lista dos demitidos.” “Mas agora já dei palavra.” Fui demitido, recebi uma boa indenização, além de todas as obrigações legais. Vim para São Paulo inseguro, demitido, passando uma tensão tremenda. Mas quando eu fui à entrevista, eu vi que estava bem. E numa hora lá o diretor que estava me admitindo, que já me conhecia, perguntou: “você vai querer continuar lecionando?” Eu disse: “bem eu gostaria, mas é no Rio.” “Bem, vamos fazer o seguinte...” Eu comecei com um salário menor, mas eles me pagavam passagem aérea de ida e volta. Não foi uma coisa boa para a saúde. Você sair sexta-feira do serviço, pegar um avião, ir para o Rio de Janeiro, dar aula sexta á noite, dar aula sábado de manhã, pegar um avião e voltar para cá não foi bom para a saúde.
Parecia tudo bem na Nielsen, eu na minha profissão, eles me conheciam... Não foi bom: eu entrei num departamento cheio de problemas, os subgerentes queriam ser gerentes, me detestavam, porque eu tomei o negócio deles, me sabotavam. Eu não tinha capacidade de enfrentar intrigas dentro de empresas. Exige um certo talento; se você não tem você não consegue. Fora disso eu não gostava daquele serviço. Porque na verdade o meu serviço não era só na área de Estatística era também serviço burocrático. Mas mesmo assim aguentei lá seis anos.
Caí doente, fiz operação de ponte de safena. Fiquei lá mais dois anos como assessor até que a Nielsen foi comprada na matriz nos Estados Unidos. . Um homem safenado, naquela idade, que esperança teria? Não teve jeito. Foram amáveis comigo, disseram: “ estamos acabando com as funções de staff, você pode ficar aqui três meses, pode usar o escritório à vontade”. Eu comecei a telefonar para essas firmas de seleção de executivos, mas descobri que era conhecido profissionalmente e recebi logo ofertas de emprego. Estava quase aceitando uma delas, como consultor de uma concorrente da Nielsen, onde me conheciam. Recebi então um telefonema de um ex-colega, que tinha sido diretor da Nielsen e tinha ido para a Listel Abril, que também fazia lista telefônica. Minha vida deu a volta completa. Voltaria para a lista telefônica, mas num departamento com uma série de problemas que não sabiam resolver. Tinha uma vantagem que para mim: era muito perto de casa, lá na Berrini. Moral da história: aceitei essa oferta.
Um ou dois meses na Listel, já não tinha muito o que fazer. Tinha um diretor americano lá, um sujeito simpaticíssimo, mas não aprendera a falar português. Então eu virei contato dele, fiz amizade e um dia lhe disse: “olha, acho que pesquisa de mercado aqui é um dinheiro jogado fora, não apura nada, ninguém entende nada.” Ele foi lá à presidência, fez criar-se uma gerência e fui nomeado gerente de pesquisa de mercado. Fiquei seis anos lá nessa função, satisfeito, com poucos probleminhas.
Ao mesmo tempo a PUC abriu pós-graduação à noite. Eu fiz prova lá, passei. Sou chamado: “olha, tua prova foi algo fora de série...” A questão que caíra na prova era para fazer uma dissertação , escolhendo entre temas: Sociologia do Conhecimento, que não conhecia e política brasileira de 45 a 64. Eu estava lá! Conversando com a prof. Carmen Junqueira que era a diretora da pós-graduação da PUC, eu disse: “Carmen, é uma coisa curiosa... Porque na prova eu conversei com minhas coleguinhas, disse: , eu descrevi a época de Getúlio. Elas disseram, Quem foi Getúlio?” . E iam fazer pós-graduação em Ciências Sociais.
Bem, para resumir, fiz pós-graduação. Com 50 anos entrei, à noite, bastante cansativo porque eu trabalhava de dia. Terminei a pós-graduação em Ciências Sociais. Sociologia Urbana. Deu uma série de problemas, porque se você trabalha você não conseguia se concentrar. Mas para resumir, eu consegui redigir a tese, fui a exame, passei e terminei o mestrado. Não consegui ser aceito para o doutorado, porque eu já vinha de outra área. Aí eu descobri como é a vida acadêmica: “Mas sua graduação foi na parte de Matemática, sua vida foi na parte de Matemática, Estatística Matemática. Por que você quer ficar nas Ciências Sociais....”.
P/1 – E a sua tese? O senhor podia falar um pouquinho dela?
R – A minha tese foi o seguinte. Eu sempre tive interesse pelo Rio de Janeiro. O Rio teve uma reforma urbana no começo do século e meus pais me falavam muito disto, pois quando chegaram ao Rio de Janeiro ainda havia quem se lembrasse de como antes estava horrível. A cidade foi iluminada e saneada, para se modernizar, na linguagem de hoje. Eu conheci algumas pessoas que contavam isso e achei que esse período tinha sido muito estudado do ponto de vista de Engenharia, de construção e não sobre o ponto de vista social: o que isso afetou as pessoas? Eu escrevi uma tese que eu considero hoje muito fraca, faria melhor hoje. Como eu dava aula no IBGE, levantei todos os censos antigos e os relatórios contemporâneos, mas fiz uma tese confusa, que recebeu dez inclusive porque a banca disse: “o senhor não é um aluno comum. Pela idade, pela vida profissional, por currículo.” Meu orientador foi Vilmar Faria, que estava no Cebrap. e foi levado para Brasília como assessor do Fernando Henrique.
Muito bem, como é que eu cheguei ao Banco Central? Estava na Listel, de repente começou a crise de 90 e 91. Começaram a demitir pessoal, cortar despesas,etc.. Eu já tinha passado por esse processo. Eu sempre fiz concurso, era uma forma de segurança, era uma espécie de seguro desemprego; abriu um concurso para o Banco Central, eu sempre tivera curiosidade nessa área econômica quando eu trabalhava com pesquisa de mercado. Para resumir, eu faço concurso e passo. Eu não pensava passar, não estudei nada, não dava para estudar. Recebo uma cartinha amável, a prova foi em 89... Que eu tinha sido aprovado, mas como as nomeações estavam proibidas pelo Sarney, eu seria chamado depois. Eu tirei 62o lugar de 11 mil candidatos; no dia da prova me escondi num canto; eu parecia avô dos candidatos... . Um dia em 92 vem outra cartinha, dizendo: “O Sr. foi nomeado, apresente-se e tal.” Eu hesitei muito. “Vou, não vou?”.Porque o salário era muito menor. Mas eu disse assim: “olha, aqui na Listel estão diminuindo, diminuindo. Eu já vejo que vou ser demitido. Olha, foi uma agonia, é desagradável você com mais de 60 anos começar de novo, como estagiário. Eu fui para o diretor, disse: “olha, vou falar francamente. Aqui estão cortando os gerentes. Se por acaso pretendem acabar com minha gerência, eu gostaria que os senhores me dissessem porque tenho uma chance de outro emprego.” Agora, a Listel não fazia acordo com funcionário. Eu disse: “Agora, não vou pedir demissão, eu tenho direitos” . Ele disse que falaria com o presidente por coincidência eu o conhecia do tempo da Nielsen, ele fora gerente de Marketing da Kibon. Eles concordaram e pagaram tudo. Fui ao Banco Central, e o diretor de pessoal disse: “francamente, o senhor veio fazer o quê aqui? Com o seu currículo, com a sua formação.” Eu falei: “desejo voltar para o serviço público...” “Pois não, um homem com o seu conhecimento, posso por o senhor na Consultoria Econômica.” Fiquei lá estagiando, fiz um curso obrigatório.
P – Estagiando. Quer dizer o senhor virou trainee
R – Trainee. Eu digo que fiz uma grande carreira ao contrário: aos 30 anos era gerente e aos 60 virei trainee ( riso). Mas o pessoal me tratava diferentemente, é claro. Fiz o curso, fui o primeiro colocado. Na hora de nomear os estagiários, eu não fui nomeado para o Departamento econômico. Foi muito desagradável. Ninguém entendeu e meus colegas ficaram muito irritados, disseram: “não, foi lobby de outra candidata que foi nomeada”, com quem depois eu fiz amizade. Não sei. Pelo currículo e pelo curso seria eu o nomeado. Mandaram-me para uma seção que fazia controle de consórcios de automóvel. O pessoal me tratava com muita amabilidade, mas foi uma decepção. Fui, trabalhei lá, não tinha problema nenhum. A um colega que eu tinha conhecido na Consultoria Econômica, eu disse: “olha, eu quero que vocês saibam que qualquer vaga aqui, eu quero vir para cá.” Ele depois foi nomeado gerente e logo me requisitou. Aí o meu chefe dos consórcios, que era uma pessoa amiga, disse: “olha , você está sendo requisitado para a consultoria econômica. Eu fico chateado, porque você é um funcionário muito bom.” Eu disse: ‘ eu agradeço, foi um pessoal muito bom, muito amável comigo. Mas, sinceramente, não é minha vocação ser oficial administrativo, dar despacho em processo de encerramento de consórcio (riso).” Disse: “pois não. Não quero prejudicar o senhor” Fui para a Consultoria Econômica e lá me firmei. E é isso.
P/1 – O senhor está a quantos anos lá?
R – No Banco Central estou no sétimo ano. Fiz sete anos lá.
P/1 – Pretende aí...
R – Não, eu tenho que me aposentar compulsoriamente dentro de seis meses, que eu completo 70 anos.
P/1 – Então, quer dizer, o senhor vai ter que parar de trabalhar.
R – Tem que parar de trabalhar.
P/1 – O senhor começou aos 14, ou seja...
R – Bastante, né, bastante.
P/1 – São 56 anos.
R – Dá para cansar, né (riso).
P/1 – E quais são seus planos agora?
R - Nenhum. Sentar na cadeira de balanço, ficar ouvindo música e lendo, que é o que eu gosto de fazer. Os prazeres civilizados, me disseram “não, mas um homem como você pode entrar nas associações sociais.” Eu disse: “meu amigo, sabe de uma coisa, eu trabalhei muito na minha vida, não tenho disposição para fazer qualquer coisa que eu tenha obrigação. não obrigado. “Não, mas vai haver convite para ser consultor.” Disse: ‘está cheio de consultor aí, gerente desempregado.” Tem uma coisa no Banco Central: quando começou essa onda de demissões, nos outros concursos, muita gente de meu nível, que tinha sido gerente e mesmo diretor fez concurso para ter um emprego e ganhar a vida. É isso, nada mais.
P/1 – Seu Moysés, estamos chegando ao fim da entrevista e eu queria tocar ainda alguns detalhes. Então um deles é da relação de senhor com os livros, né.
R – Livros, né. Eu sempre li compulsivamente. É o seguinte: eu estou em um lugar, tem Caras, eu leio Caras. Até lista telefônica! Um dia cheguei no Rio, não tinha nada para fazer, tinha uma lista telefônica, eu comecei a localizar meus colegas de ginásio, pelo sobrenome, (riso). Hoje eu considero isso foi excesso. Porque, em primeiro lugar, eu sei hoje em dia que isso é uma fuga. Como pessoas que fumam, que bebem, que jogam, a leitura foi a minha fuga contra o mundo externo, que desde criança, eu passei a considerar hostil. Isso foi dito por uma psicóloga: “você se defende do mundo externo pois, por experiências dolorosas de infância que te marcaram, você considera o mundo externo, principalmente as pessoas, hostis. A priori você considera hostil e depois você se abre, quando você as conhece.. E a tua fuga foi a leitura, como poderia ter sido outra.”
P/1 – Uma fuga sadia.
R – Eu disse uma vez para Fany, depois de comer: “bem, pelo menos leitura não engorda. (riso).” Uma pessoa me disse: “foi muita literatura inútil...” Eu disse: “olha meu amigo, com os três programas de televisão que eu ganhei, não foi inútil não. É um conhecimento inútil, mas para mim pelo menos rendeu (riso).”
P/1 – Quais são os autores que você preferiu.
R – Bem, eu sempre me interessei muito por História. Li muito História Econômica. Quer dizer, eu gostava muito de Matemática, mas não era de pegar um livro de Matemática e ficar estudando. Matemática, curiosamente para mim, foi sempre uma maneira de distrair a tensão; eu pego e começo a ler um livro de Matemática. Mas sempre preferi Ciências Sociais. Por isso que eu fiz mestrado em Ciências Sociais. “Mas por que você não fez mestrado em economia?” Eu disse: “olha, realmente, se eu podia escolher, eu queria Ciências Sociais.” Prefiro livros de História, Sociologia, Antropologia; Ciências Humanas, quer dizer. Sempre gostei muito de Ciências Humanas. Economia eu gostei porque a considerava uma ciência humana e não uma ciência matemática, especialmente certas partes de Economia mais ligadas à Macro. De modo que eu leio compulsivamente. Agora, sempre gostei muito de teoria literária. Li muitos autores desse assunto, crítica literária, tudo. Mas você vê que eu leio tudo; caiu na minha mão, eu leio. Se eu vou lá e escolho, eu escolho Ciências Sociais, História, Teoria Literária e Poesia; eu gosto muito de ler versos, tenho em casa uma coleção de livros de poesia.
P/1 – E quem o senhor gosta mais na poesia?
R – Bem, gostava dos românticos. Hoje lendo os românticos, acho que já passou. Os românticos era poesia para ser declamada. As crianças declamavam muito, aprendiam na escola. Eu lembro até hoje que na escola eu tinha que declamar o Y-Juca Pirama, do Gonçalves Dias (riso). Naquele tempo era popular. Bem, depois comecei a conhecer os poetas em inglês, que eu leio muito bem.. Descobri que tem traduções muito boas, do Ivo Barroso e outros, fiquei atraído com os sonetos de Shakespeare, inclusive a Zilda me trouxe uma edição fac-similada do original e tenho outras traduções e textos declamados. Agora eu leio tudo. Curioso que os poetas brasileiros modernos eu não gosto muito não. Tirando Vinícius, Cecília, Drummond e Cabral que eu acho bons, os mais recentes, os construtivistas, eu não aprecio. Então eu leio muito os poetas ingleses, americanos, um pouco franceses e espanhóis, além de Montale e Amihai. Posso ler alguns no original, mas gosto de ler traduzido.
Gosto muito das traduções do Haroldo de Campos e do Augusto de Campos. A tradução da Ilíada é assombrosa de bem feita. Eu tinha lido na escola ainda a tradução do Odorico Mendes, que é a tradução clássica, que também é muito boa.
P/1 – O Haroldo até publicou um livro com a tradução do Odorico .
R Aquela do Haroldo é muito boa; aquela que o herói começa a falar, a Ira de Aquiles
P/1 – O Carlos, seu filho, conta que o senhor fez um trabalho aí que o senhor ganhou a coleção Nobel.
R – Ah, isso foi um negócio curioso. Do pessoal que conheci na Lista Telefônica, dois deles pegaram depois a concessão da edição do Nobel, a Ópera Mundi, eram dois eram americanos, tinham vindo para o Brasil como gerentes, eram muito cultos. Eles pegaram a concessão do Nobel e me chamaram para fazer umas palestras sobre a economia brasileira, que eles acharam que iria elevar o nível dos vendedores de enciclopédia e coleções, que também eram muito competitivos. E disseram: “como você gostaria de ser pago?” Eu disse: “sabe de uma coisa, eu não tenho condições de comprar a coleção Nobel , poderia ser para com a coleção.” “Então para você vamos fazer uma encadernação especial.” Está lá em casa. O Carlos, adolescente, pegou de mim essa mania compulsiva de ler; acho que foi a única pessoa que leu uma série de autores que ninguém sabe que existe no Brasil. Laxness, um islandês e Sillimpaa, um finlandês que escreveu um livro muito bom. E outros aí que ninguém mais ouviu falar, mas que são bons escritores, só que ninguém os lê hoje em dia.
P/1 – Que no início os prêmios eram dados mais para autores nórdicos, né?
R – É, havia esse viés. Alguns, Ibsen, claro, que é muito bom, são conhecidos. Mas, na verdade, a maioria daqueles autores ninguém lê mais. Porque o viés deles, naquela época, na Academia sueca, era que era necessário manter a tradição. Quando o mundo começou a se industrializar, começou a haver a reação dos intelectuais contra a sociedade urbana e comercial. Então começaram a exaltar o camponês, que ele era o homem das virtudes; aquele mito do homem natural. Então apareceu um montão de autores que romantizavam a vida rural, só que nenhum deles era camponês. Homens da cidade que olhavam o homem o campo. Agora ninguém lê aquilo. Em compensação Tolstoi não ganhou o Nobel, outros grandes escritores não ganharam, por essa mania idiota de celebrar o bom camponês. ... Quando o pessoal chegou a ver o camponês, como o Monteiro Lobato via o caboclismo, quando o pessoal viu o caboclo mesmo, viu que não tinha nada disto. Lobato viu um sujeito para ele estúpido e ignorante (riso). E depois se arrependeu, criou o Jeca Tatu. Como os indianistas: quando o pessoal foi ver índio mesmo, viu que o índio não era o bom selvagem que eles tinham imaginado. E o camponês substituiu o bom selvagem
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P/1 – Estamos chegando ao fim, infelizmente...
R – Vocês podem chamar outro dia, quando quiserem.
P/1 – Eu queria que o senhor contasse um pouquinho da sua família, dos seus filhos, netos.
R – É o seguinte, eu tive dois filhos e uma filha. Primeiro Carlos, que deu muito trabalho. Ele era muito brilhante, passava em primeiro lugar em tudo, mas começou a mostrar problemas de temperamento que deve ser algum gene mal meu. Que a professora chamava, dizia: “ele é tão inteligente, mas emocionalmente ele é completamente infantil e agressivo. Deu trabalho, passou direto do vocacional, que era uma escola pública muito boa, passou direto para arquitetura no Rio. Agora vejo que foi um erro mandar eles para o Rio... Mas a Universidade Federal, você não queria recusar. Ele não conseguia se formar, largou, foi para Israel, viajou . Afinal ele conseguiu se formar, porque aparentemente a escola não jubilou ele. Levou nove anos para se formar. Dois anos esteve no exterior . Negócio de trabalho, ele foi logo aceito para trabalhar na Flumitur, como intérprete no aeroporto, fez uma porção de amizades, o pessoal achava ele bom, escreveu vários trabalhos, mas ele não conseguia se fixar em nada. Finalmente fez pós-graduação em História, chegou a Doutor e trabalha nessa área, com mulheres também, sempre teve sucesso com mulheres, mas não se fixava em nenhuma. Todas eram moças que gostavam dele, mas ele não queria nada. Finalmente casou-se aos 40 anos com uma moça da mesma idade dele, professora, já com uma filha. Mas, quer dizer, Carlos deu muito trabalho, se meteu em muitas confusões. E todo mundo dizia: “esse rapaz é tão brilhante!” Eu disse: “eu tenho muito medo que o brilhantismo dele... Eu conheço vários casos na vida de pessoas muito brilhantes que nunca conseguiram chegar a nada, porque não conseguiram se firmar em nada.”
Agora Beto se formou com dificuldades, achava que não ia passar, passou no primeiro ano de economia, fez o curso de Economia, começou logo a trabalhar, encontrou uma moça médica, casou, tem dois filhos. Eu disse uma vez: “Carlos é minha fantasia e Beto é minha realidade (riso).” E a filha, que nasceu um pouquinho mais tarde, (Zilda), que eu acho que reuniu todas as qualidades. Uma moça persistente, inteligente, bem sucedida em tudo, caráter muito firme, boa esposa, boa mãe de dois meninos e boa profissional. É isso.
P/1 – E os netos?
R – Netos é encantador. Por enquanto não dão trabalho, são muito jovens (riso).
P/1 – O senhor tem quatro, né?
R – Quatro e de certo modo mais uma neta adotiva, que essa moça que casou com o Carlos agora tinha uma filha que a gente considera como neta.
P/1 – Então, quer dizer, dessa jornada toda, como o senhor avalia esse percurso todo do senhor?
R – Bem, aí é que está o negócio. Eu acho que poderia ter feito mais, bem, isso todo mundo pode achar. Poderia, por que não? Porque uma coisa que tentei não passar para os meus filhos foi a insegurança. Se você passa, na infância e na adolescência por insegurança, isso te marca o resto da vida. Quer dizer, você nunca quer arriscar nada, porque foi muito duro conseguir o seu ninho de conforto. Se eu tivesse tido mais segurança econômica desde criança, eu arriscaria mais, poderia ter aproveitado mais meus conhecimentos. Não que eu achasse que era boa pessoa e dizia que não era bom, mas eu não queria arriscar; eu tinha medo de perder e a minha timidez. A minha timidez já vem de outras coisas: você é filho único, você é pequeno, você é pobre. Então, quer dizer, a timidez vem disso. Você acha realmente que as pessoas te desprezam. É claro que tudo isso a gente pode ir vencendo lentamente, mas ficou sempre uma marca psicológica que hoje em dia você está já está acostumado. Quer dizer, uma vez eu pensei: é como essas pessoas que dirigem com um pé no acelerador e outro pé no freio o tempo todo. Você vê aquelas pessoas: “se eu pudesse começar tudo de novo...” aquela história. Depois é o seguinte, o fato que a pobreza, ou pelo menos a privação na educação, me prejudicou. Porque se eu tivesse recursos, eu teria feito outra faculdade; de dia, em condições muito melhores. Que eu tinha aptidões diferentes. Está certo que saiu melhor do que eu esperava, mas poderia ter sido diferente. É isso.
P/1 – E qual é o seu sonho que o senhor ainda quer realizar?
R – Eu quero realmente envelhecer ao lado de minha mulher, vendo nossos netos crescerem. A essa altura você não tem grandes coisas a realizar.
P/1 – Então está ótimo. Eu agradeço aí a sua entrevista...
R – Está bem.
P/1 – E quem sabe a gente ainda faz outra.
R – À vontade. Eu disse: “olha, eu vou começar a entrevista dizendo ‘meus pais eram honestos, mas pobres’ (riso).” Em vez de ‘pobres, mas honestos’’ (riso).
P/1 – Então muito obrigado, seu Moysés.
R – De nada.
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