Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Maria Aurora Félix
Entrevistado por Márcia Ruiz e Maurício Riviero
São Paulo, 17/05/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV006
Transcrito por Luisa Fioravanti
Revisado por Natália Ártico Tozo
R – Eles mudaram meu endereço. Não é mais 20 de maio, mas eu falei para o meu marido. Eu falei: “Nunca vou mudar o dia do meu nascimento, maio de 1905, nunca vou mudar!”, aí ele diz assim: “Mas hoje você tem paciência que nós vamos assinar papel, tudo”. Mas porque mudou o nome, o endereço? Mudaram tudo, até do casamento!
P/1 – Vamos começar Dona Aurora, bom dia! Eu queria que você falasse o seu nome completo, local onde a senhora nasceu e a data do seu nascimento.
R – É Maria Aurora Félix, nasci em 1905, em Portugal, Vila Real de Trás-os-Montes. Fui daqui para nascer lá.
P/1 – Qual era o nome dos pais da senhora?
R – Meus pais? Meu pai é Jesuino Félix e a minha mãe Inocência Félix, na parte da mãe dela era Matos dos Reis.
P/1 – E Dona Aurora, a senhora falou que foi para nascer lá. Por que isso?
R – Porque o meu irmão mais velho, quando casaram, tiveram um menino, depois quando ela estava bem gorda para ter outro, meu pai disse que falou para ela: “Este aqui tem que nascer em Portugal!”, eles moravam em Santos. Ela teve que ir no médico ver se podia viajar, porque naquele tempo os __________ demoravam muito. Aí ela foi fazer exame e o médico disse que ela podia ir, então elas foram para Portugal a propósito para esse nascer lá, na terra do meu pai, Vila Real de Trás-os-Montes.
P/1 – Dona Aurora, qual era a atividade dos seus pais?
R – Meu pai? Ele trabalhava aqui em Santos numa drogaria espanhola, preparar remédios, preparar coisas para remédios, tanto que ele chegava lá, o meu irmão mais velho gostava porque eu acho que o meu pai estava amassando amêndoas com doce e dava um pouquinho para ele comer, ele gostava, é isso aí, uma...
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Depoimento de Maria Aurora Félix
Entrevistado por Márcia Ruiz e Maurício Riviero
São Paulo, 17/05/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PC_MA_HV006
Transcrito por Luisa Fioravanti
Revisado por Natália Ártico Tozo
R – Eles mudaram meu endereço. Não é mais 20 de maio, mas eu falei para o meu marido. Eu falei: “Nunca vou mudar o dia do meu nascimento, maio de 1905, nunca vou mudar!”, aí ele diz assim: “Mas hoje você tem paciência que nós vamos assinar papel, tudo”. Mas porque mudou o nome, o endereço? Mudaram tudo, até do casamento!
P/1 – Vamos começar Dona Aurora, bom dia! Eu queria que você falasse o seu nome completo, local onde a senhora nasceu e a data do seu nascimento.
R – É Maria Aurora Félix, nasci em 1905, em Portugal, Vila Real de Trás-os-Montes. Fui daqui para nascer lá.
P/1 – Qual era o nome dos pais da senhora?
R – Meus pais? Meu pai é Jesuino Félix e a minha mãe Inocência Félix, na parte da mãe dela era Matos dos Reis.
P/1 – E Dona Aurora, a senhora falou que foi para nascer lá. Por que isso?
R – Porque o meu irmão mais velho, quando casaram, tiveram um menino, depois quando ela estava bem gorda para ter outro, meu pai disse que falou para ela: “Este aqui tem que nascer em Portugal!”, eles moravam em Santos. Ela teve que ir no médico ver se podia viajar, porque naquele tempo os __________ demoravam muito. Aí ela foi fazer exame e o médico disse que ela podia ir, então elas foram para Portugal a propósito para esse nascer lá, na terra do meu pai, Vila Real de Trás-os-Montes.
P/1 – Dona Aurora, qual era a atividade dos seus pais?
R – Meu pai? Ele trabalhava aqui em Santos numa drogaria espanhola, preparar remédios, preparar coisas para remédios, tanto que ele chegava lá, o meu irmão mais velho gostava porque eu acho que o meu pai estava amassando amêndoas com doce e dava um pouquinho para ele comer, ele gostava, é isso aí, uma drogaria espanhola.
P/1 – E a sua mãe fazia o quê?
R – A minha mãe? Eles moravam em Santos e fizeram um negócio na sala, porque não tinha luz, não havia luz, não havia nada, tanto que meu pai comprou uma carroça, um caminhão, uma carroça de cavalos e pôs um homem tomando conta para alugar para mudanças, porque não havia bonde, não havia nada. E no meio do salão onde eles moravam, ela fez um negócio com ferro e dentro era fogo. Bastante fogo e compraram aqueles ferros de passar, mas tudo de ferro, encostavam ali naquela armação que estava quente, para esquentar, para passar roupa. Tinham as mulheres para passar roupa para tudo, pagava, todos estavam ganhando. Então ficavam aqueles ferros em volta daquela coisa que elas fizeram ali para passar roupa. Então ela dizia assim, que precisava ter muito cuidado com aquelas roupas de criancinhas, finas, precisava primeiro experimentar bem em um outro pano, para não queimar, fazer tudo prensadinho.
P/1 – Então a mãe da senhora trabalhava com...
R – Nisso daí.
P/1 – Para passar roupa para fora?
R – É.
P/1 – E me diz uma coisa Dona Aurora, porque os seus pais vieram para o Brasil?
R – Na casa do meu pai, eles eram em três irmãos. Já aqui no Brasil, moravam todos em Santos.
P/1 – Ah, então o seu pai veio para encontrar com os irmãos aqui em Santos?
R – Acho que é, porque eles... Já tinha algum [aqui], depois veio ele, depois veio o outro. Tinham três aqui, lá não tinha futuro nenhum e vieram todos para o Brasil!
P/1 – E a sua mãe veio para o Brasil também direto? Como que foi?
R – Não, não. Ela estava onde está o padre, como é que chama?
P/1 – Em Roma?
R – É, ela esteve ali até ser uma mulher, aí quando o irmão dela que não é da parte do meu pai chegou perto dela, lá onde ela estava trabalhando, disse: “Olha, arruma a tua mala, as tuas coisas que vamos para o Brasil”. E ela arrumou e vieram para o Brasil, nem deu tempo dela abrir a mala, já tinha um (presidente?) com a família, já contratando e levaram ela para uma fazenda. Então ela fez um almoço, porque sabia tudo, tudo, tudo, sem saber ler e escrever.
P/1 – A senhora me contou que ela foi de Portugal para Roma. Por que ela foi de Portugal para Roma? Como que foi essa história?
R – Ela estava em Portugal com os pais, de lá que levaram ela para Roma.
P/1 – E como é que levaram ela, dona Aurora?
R – Eles foram lá na casa dos meus pais, onde eles moravam e convenceram, custou convencer, eles não queriam deixar ela ir, mas depois deixaram. Acho que fizeram promessa, mas nunca mandaram ela estudar.
P/1 – Ah, então foi uma pessoa lá na casa dos seus avós e pegaram a sua mãe e a levaram para Roma. Mas ela era criança. Como que era?
R – Eu penso que ela deveria ter uns dez anos, por aí, levaram ela para trabalhar, porque eles fazem isso. Eles sabem que levam pessoas seguras, de confiança. E ela ficou lá até ficar mulher grande, daí...
P/1 – E quando ela chegou no Brasil, aí ela foi trabalhar na fazenda como cozinheira?
R – É, antes mesmo de alugar uma casa para morar, lá em Santos, já tinha gente. Um presidente com a família, levaram ela para lá e ela fez um grande almoço, tinha bastante daqueles pretos lá, caipiras, que não ganham nada trabalhando. E ela fez o almoço, bastante coisa, e não é que acabou tudo. Não sobrou nada na cozinha, aí os empregadinhos, aqueles velhinhos começaram a dizer para ela que estavam com fome, que não tinham o que comer, que não tinham nada nas panelas, que estava tudo vazio, e ela ficou tão desesperada de ver eles cheios de fome e não tinham nada para comer, ela falou que ficou tão desesperada que agarrou o caldeirão e jogou por baixo da mesa e bateu nas pernas de todo mundo! Aí a esposa do doutor lá veio falar com ela, os pretos diziam assim para ela: “Ih, ela vai te bater! Tem um chicote aí que bate nas empregadas! Ih, ela vai te matar!”, e ela disse: “Ah, não vai, não!”, ela tinha uma chaleira com água fervendo que: “Se eles vierem para cima de mim eu jogo essa água neles”. Daí a dona da casa veio e tirou a chave do depósito e disse para ela assim: “Vai lá, tem bastante coisa. Veja o que você pode fazer e fala para os empregados esperarem um pouquinho!”. Ela foi fazer outra comida, eles estavam loucos de fome!
P/1 – Eram escravos essas pessoas?
R – Eram escravos, não ganham nada! Eles falavam: “Inocência, ela vai te bater! Olha lá aquele chicote, com aquilo lá que ela bate!”, e ela dizia assim: “Em mim ela não vai bater não, se ela vir para cima de mim eu jogo a chaleira com água quente nela!”.
P/1 – A senhora sabe quanto tempo ela trabalhou nessa fazenda, dona Aurora?
R – Ah, não sei não. Não sei, sei que depois ela ficou na casa do pessoal da fazenda, ficou lá, arrumou namorado, casou.
P/1 – E como é que ela conheceu o teu pai?
R – Ali mesmo, todos juntos moravam em Santos, ali onde está para subida da Nossa Senhora do Monte Serrate, era ali que eles moravam.
P/1 – Ah, era ali que era a fazenda?
R – Não, não, era ali que eles alugaram a casa e ela passava roupinha.
P/1 – E me diz uma coisa dona Aurora, a senhora lembra do bairro, porque a senhora nasceu em Portugal e depois veio para o Brasil, é isso? E a senhora lembra do lugar onde morava quando era pequena?
R – Lá em Portugal?
P/1 – Não, em Portugal a senhora chegou a morar?
R – Não, isso eu já falei.
P/1 – A senhora chegou a morar em Portugal ou não?
R – Não, foi só assim, minha mãe quando ficou boa vieram embora outra vez. Porque ela deixou as coisas, tudo controlado, carroça, cavalo, para fazer aluguel, tudo controlado, ela deixou uma pessoa tomando conta um tempo marcado, depois ele veio e tomou conta de tudo.
P/1 – Aí voltaram para o Brasil com a senhora neném?
R – É, podia estar dando, não sei, isso eu não lembro.
P/1 – Tá. E a senhora lembra da casa onde morava em Santos quando era pequena?
R – Lembro.
P/1 – Como que era? Conta para gente.
R – Era uma casinha muito vagabunda...
P/1 – (risos).
R – A senhora fala aqui e está escutando do lado de lá.
P/1 – Como que era a casinha, conta para gente?
R – A casinha? Engraçado, quando tinha calçada na rua, aqui já era a porta, já entrava na casa.
P/1 – A calçada era muito pequena, então?
R – Não, mais ou menos. Tava andando?
P/1 – E como que era o bairro? A senhora lembra como que era?
R – Macuco.
P/1 – Macuco? E o que tinha nesse bairro? Como ele era? Conta para gente!
R – Naquele tempo era muito feio, hoje está bonito. Tudo cheio. Assim, de um lado tinha a força pública e a gente via quando eles se jogavam lá de cima fazendo ginástica, isso eu ainda me lembro, eu era pequeninha, mas a gente gostava de ver voando o homem lá em cima.
P/1 – Ah, o pessoal da força pública ficava fazendo exercício de manhã e a senhora ficava vendo? E como que era...
R – Aquele bairro era muito feio, feio mesmo.
P/1 – O que tinha de feio que a senhora não gostava?
R – Não tinha nada, _______ pela rua, de um lado estava a força pública e do outro lado tinha um, como se fosse um tanque d’água, água limpa, e ali tinha a entradinha, subia para o Monte Serrate, e nós moramos quase em frente.
P/1 – E a senhora se lembra...
R – Eu nem sei como me lembro disso! Eles ficaram tudo bobo porque eu me lembro.
P/1 – E me diz uma coisa, a senhora tinha muitos amigos com quem brincava ou não?
R – Eu sempre tive muitos amigos, até hoje.
P/1 – E como que eram as brincadeiras na sua infância?
R – Brincadeira de roda, correr um atrás do outro para pegar quem entra primeiro na roda, era brincadeira de criança mesmo, não tinha outra coisa.
P/1 – A senhora tinha alguma cantiga de criança que a senhora lembra ou não?
R – De quê?
P/1 – Aquelas cantigas, aquelas musiquinhas que se cantava quando criança, a senhora lembra de alguma?
R – Lembro.
P/1 – Ah é, qual que a senhora lembra?
R – Lembro, às vezes eu até canto sozinha, é engraçado que quando a gente precisa a gente esquece! Depois lembro tudo outra vez. É, “o castelo pegou fogo, São Francisco deu sinal, acuda, acuda, acuda a bandeira nacional!”
P/1 – Ah, era uma musiquinha que a senhora cantava quando era pequena? E a senhora lembra de algum amigo seu de infância? Como é que ele chamava? Os amiguinhos, a senhora lembra do nome deles ou não?
R – Eu acho que não lembro o nome deles.
P/1 – Não. E como que era o seu cotidiano em casa? O que a senhora fazia quando era pequena, conta do dia-a-dia. A senhora levantava...
R – Não fazia nada, nada. Ainda lembro que a minha mãe fazia um vestidinho e ia me vestir e me dava uns “puns” na barriga e dizia: “Encolhe essa barriga, vamos!”, porque eu sempre tive barriga, desde pequenininha. Meu pai era magrinho, mas tinha uma barriguinha. Eu puxei tudo ele, tudo!
P/1 – E como que era o dia, você levantava... A senhora tem irmão, dona Aurora?
R – Irmão? Uma quantidade deles!
P/1 – Quantos irmãos a senhora tem?
R – Quer ver, olha, não contando eu, não é? O primeiro antes de mim, Joaquim, Encilho, Oscar, Orlando, Marinho, depois tinha a minha irmã Eulália, eu. Depois, é que morreram, tinha Juvenal e Araci, esses dois morreram. Era uma turma grande.
P/1 – E o que vocês faziam? A senhora era a mais velha, não?
R – Quase, o mais velho era um, o que nasceu primeiro, o que depois nós fomos para Portugal. O resto eram todos abaixo de mim.
P/1 – E o que vocês faziam? Essa criançada toda dentro de casa? O que essa criançada toda fazia?
R – Na casa não fazia nada.
P/1 – Não! E não brincava na rua também?
R – Não, não podia brincar na rua, não deixavam.
R – Ali ninguém brincava na rua. Dentro de casa brincava ou então ia naquele negócio que subia para a Nossa Senhora do Monte Serrate, tinha um negócio assim, que podia brincar.
P/1 – E a senhora ia para a praia? A senhora se lembra de ir a praia lá em Santos?
R – Não lembro, mas fiquei perdida. O meu tio, irmão da minha mãe, ele fazia todos os domingos, pegava os meninos e levava na confeitaria para comer doce, para brincar e eu, como foi mulher, demorou mais para vestir, fiquei um pouco mais, mas depois eu não soube o caminho, aí eu fui andando, andando, andando e fui parar na praia. Meu pai já estava desesperado e ia dar parte na polícia para me acharem e estava um movimento danado a minha procura e eu fui andando, andando, andando e fui parar na praia, lá eu sentei e fiquei brincando com a areia. O meu pai ia dar parte na polícia, quando a verdureira chegou e ele falou assim: “Eu não quero saber de verdura, minha filha está perdida! Me roubaram ela!”, ela disse assim: “Eu vi uma menina brincando lá na praia com a areia!”, e ele disse: “Vai ver que é ela!”, aí ele correu lá na praia e era eu.
P/1 – E a senhora não ficou com medo?
R – Não, nem pensei nisso, pequena, brincando com a areia, botando nos pés, fazendo buraco!
P/1 – Me diz uma coisa dona Aurora, vocês foram para a escola com quantos anos? A senhora foi estudar, foi para a escola, seus irmãos também, como que foi?
R – Quando eu era bem novinha a minha mãe pagava uma escolinha, mas logo abriram uma sala da prefeitura, a sala do governo, porque era lá no Jardim Paulista, naquele tempo não era esse nome. A minha mãe me colocou lá para estudar porque não tinha escola, a escola, o grupo escolar, ficava longe do bairro.
P/1 – Era lá em Santos isso?
R – Era tudo em Santos.
P/1 – E a senhora lembra o nome da sua professora, como foi o seu primeiro dia de aula?
R – Não, não lembro o nome da professora.
P/1 – E a senhora lembra do primeiro dia de aula?
R – Lembro da escola que a gente escrevia, Escola Feminina do Caguaçu, o bairro chamava Caguaçu, Escola Feminina do Caguaçu!
P/1 – E me diz uma coisa, dona Aurora, essa escola só tinha menina?
R – Não, meninas e meninos, estavam separados em salinhas. O governo pagava porque não tinha escola para o pessoal estudar.
P/1 – Como que era essa escola, conta um pouquinho para gente, ela tinha um pátio, tinha uma ________?
R – Era uma sala, uma sala cheia de bancos, cadeiras e ali estavam as meninas, os meninos estudando.
P/1 – E a senhora ficava o dia inteiro na escola?
R – Não, só naquelas horas da escola, depois não. Depois a gente passou para o grupo, só que tinha que andar muito. Nós estávamos bem lá embaixo da Avenida Brigadeiro e a escola era pertinho do Largo do Paraíso, o grupo. Depois nós passamos para lá.
P/2 – Dona Aurora, a senhora ia como para a escola?
R – A minha avó levava ou meu pai, qualquer um levava. Ah, tinha um empregado para levar a gente na escola.
P/1 – E a senhora ia como, a pé, a cavalo?
R – A pé. Não tinha nada de bom naquele tempo, e a lama, então?
P/1 – Ah é, tinha muita lama, dona Aurora!
R – Cheio de lama, uma lama mesmo! A Alameda Lorena que hoje é uma coisa chique, ali, se pusesse o pé, ele afundava. Horrível!
P/1 – E a senhora chegava na escola então cheia de barro? E como é que a senhora fazia, dona Aurora, lavava os pés? O que fazia na escola para se limpar?
R – Ah?
P/1 – A senhora se limpava quando chegava na escola, lavava os pés, essas coisas?
R – Lá fora tinha mato, a gente se limpava um pouco. Foi um tempo ruim mesmo, viu!
P/1 – E me diz uma coisa dona Aurora, como que era a escola? A professora explicava, ensinava, a senhora fazia a lição na escola ou fazia a lição em casa?
R – Ela passava a lição para fazer em casa e a gente trazia para ela ver e tudo, aí ela fazia outra. Era muito boa a professora.
P/1 – E tinha luz na escola, tinha tudo? Como que era?
R – O que?
P/1 – Tinha luz na escola ou não?
R – Tinha luz? É mesmo! Não, era lampião.
P/1 – Era lampião?
R – A Avenida Brigadeiro Luís Antônio, desde o Largo São Francisco até o Itaim Bibi, era tudo lampião de gás.
P/1 – Mas isso aqui em São Paulo?
R – Ainda lembro daqueles lampiões. É lá na Alameda Lorena, na Avenida Paulista.
P/1 – Então essa escola que a senhora estava estudando era aqui em São Paulo?
R – É.
P/1 – E como é que a senhora veio de Santos para morar em São Paulo?
R – Morar em São Paulo? É mesmo, como é que foi?
R - Ah, a viagem que nós fizemos a vapor demorou muito, então chegamos aqui em São Paulo. Meu tio, irmão do meu pai, já estava aqui, ele foi lá no Jardim Paulista, na Alameda Lorena, e viu uma chácara com uma casinha, falou para o meu pai, que foi ver e alugou. Nós fomos para lá, no Jardim Paulista.
P/1 – E aí vocês vieram de Santos para morar em São Paulo?
R – É, morar em São Paulo.
P/1 – A senhora tinha quantos anos? A senhora lembra?
R – Mais ou menos, acredito que eu tinha... Acho que eu tinha uns oito, nove anos.
P/1 – E essa escola que a senhora está contando lá na Brigadeiro é uma escola aqui em São Paulo?
R – É.
P/1 – E a senhora estudou até que ano, dona Aurora?
R – Até o quarto ano. Só que estudei duas vezes o quarto ano porque depois eu fui estudar lá em paralela àquela cidade que todo mundo vai estudar e se forma? Como que chama lá?
P/1 – Na USP [Universidade de São Paulo]?
R – É...
P/1 – Não tem problema se a senhora não se lembra.
R – É, é lá...
P/1 – E me diz uma coisa, dona Aurora, e a senhora parou de estudar por quê?
R – Porque de estudar, porque eu era pequena e foram me pegar (porque me levaram embora?).
P/1 – Levaram a senhora embora para onde?
R – É, me levaram embora. Uma mulher lá que foi na casa da minha mãe, convenceu a minha mãe para ela deixar me levar, mas ela nunca me mandou estudar, me pôs na cozinha para trabalhar. Mas aprendi, aprendi, aprendi de tudo, tudo, tudo. Ficou tudo na minha cabeça!
P/1 – Agora dona Aurora, onde essa mulher levou a senhora? Para onde a senhora foi morar com ela?
R – Lá no próprio hotel.
P/1 – Hotel!
R – É, nos fundos tinham dois quartos para mais pessoas que trabalhavam, porque era hotel cinco estrelas.
P/1 – Como era o nome do hotel, a senhora lembra?
R – Do dono do hotel?
P/1 – Não, o nome do hotel!
R – O nome do hotel? Hotel Cinco Estrelas!
P/1 – Ah, ele chamava Hotel Cinco Estrelas! E onde ficava esse hotel?
R – Ali onde o padre mora, como é que chama?
P/1 – Perto da catedral, não?
R – É.
P/1 – E aí a senhora ficou trabalhando lá na cozinha?
R – É, continuei, continuei, continuei até ficar mulher. Um dia meu irmão falou para a mãe: “Eu vou lá pegar a Aurora e vamos para o Brasil!”.
P/1 – A senhora trabalhou em...
R – Só lá, de lá fomos para o Brasil. Antes de tirar a mala, eu já estava com o emprego pronto.
P/1 – E me diz uma coisa, a senhora quando ficou mais velha, casou com quantos anos?
R – Eu não sei, acho que com dezessete.
P/1 – E como é que a senhora conheceu o seu marido?
R – Porque ele também era português, da mesma terra e veio para o Brasil.
P/1 – Aí a senhora conheceu ele aonde?
R – Eu conheci ele, mas não liguei, nós estávamos brincando no porto que era perto da onde a gente morava. No porto, estava lá, a turma grande, era onde fazia tudo, as latas, as conservas, estava ali e passou uma cigana, pegou a mão do meu marido, quer dizer, não era nada, pegou a mão dele e falou assim para ele: “Você vai casar com uma prima!”. E ele ali tinha uma prima com a mesma idade minha e eles brincavam muito, então todo mundo pensou que ele ia casar com ela, ele disse: “Eu gosto muito dela, mas não para casar!”. Depois foi casar comigo.
P/1 – Quando a senhora casou, nessa época você tinha uns dezessete anos. O que você fazia na adolescência nessa época que tinha dezessete anos? Ia em cinema, em teatro, fazia alguma coisa?
R – Não, eu fazia o serviço da casa. Ajudava a minha mãe.
P/1 – E a senhora não fazia nada para se divertir?
R – Às vezes eles me levavam para brincar, assim, o meu marido agora, naquele tempo não, mas ele tocava sanfona, que era grande, então ele começava a tocar e todo mundo começava a pular e dançar na rua, em qualquer lugar. Era esse o divertimento, e as crianças, as meninas, brincavam de roda. Roda, lenço atrás.
P/1 – Me diz uma coisa, a senhora lembra, nessa fase que tinha dezessete, dezoito anos, como que eram as roupas, como as pessoas se vestiam? A senhora lembra disso?
R – Lembro a roupa.
P/1 – Como que era?
R – A minha mãe que fazia. Tudo simples, mas bonito, muito bem feito. Até as calcinhas ela punha bordadinho em volta, bonitinho mesmo, ainda lembro, punha a perninha e um babadinho.
P/1 – E as roupas das moças, como que eram naquela época?
R – As roupas das moças... Agora não lembro... É tudo simples também, não lembro.
P/1 – A senhora conheceu o seu marido e foi morar aonde? A senhora casou com o seu marido quando? A senhora lembra?
R – Lembro.
P/1 – Quando foi? A senhora lembra o ano, pelo menos?
R – O ano? É uma coisa que não estou bem lembrada.
P/1 – Não tem problema. E a senhora casou e foi morar aonde, dona Aurora?
R – Fiquei morando em Santos, mesmo.
P/1 – Ah, a senhora ficou morando em Santos?
R – É.
P/1 – Mas a senhora veio para São Paulo, ficou morando um tempo e depois vocês voltaram para Santos de novo?
R – Não, espera, eu casei, aí fiquei morando em São Paulo, agora eu lembro... Meus pais já moravam em São Paulo na chacrinha que meu pai alugou, a minha mãe alugou uma casinha bem em frente da onde ela morava e ela pediu para nós alugarmos para ela morar lá.
P/1 – E a senhora lembra como era o bairro, que era o Jardim Paulista, não era?
R – Agora é Jardim Paulista, naquele tempo a gente chamava “o bairro da sujeira”, porque se você pisasse com o pé ali ele afundava. Foi preciso eles abrirem, reforçar a terra. Vacas, tudo afundava.
P/1 – E o que tinha em volta desse bairro? Eram só fazendas, sítios, o que tinha em volta?
R – Mato, mato à beça. Moro para lá, eles reformaram tudo.
P/1 – E a senhora lembra se tinha a Avenida Paulista nesta época ou não?
R – A Avenida Paulista? Tinha!
P/1 – E como ela era?
R – Mas ficava longe! Da Avenida Paulista até onde nós estávamos. Agora é Alameda Lorena. Naquele tempo não era Lorena, era Caguaçu.
P/1 – Caguaçu era o nome da rua? E me diz uma coisa dona Aurora, o seu marido fazia o quê?
R – Ele era motorista, mas particular.
P/1 – E ele trabalhava para que família?
R – B. Santana.
P/1 – Eles eram donos do que, a senhora lembra?
R – A loja do B. Santana era na Rua Direita.
P/1 – Loja do que?
R – Loja de eletricidade, muito grande, metade da loja era em consignação. Mas era grande, quase que um quarteirão todo.
P/1 – E eles trabalhavam com.... Só tinha material de...
R – Ele só trabalhava, ele trabalhava para levar os operários onde estavam trabalhando, material de eletricidade, tudo de eletricidade!
P/1 – A senhora casou e como era o seu dia-a-dia de casada? A senhora lembra no começo como que era?
R – Lembro, naquele tempo foi muito ruim. A gente era muito pobre. Engraçado, até hoje eu falo, a gente deu festa no casamento. Assamos cabrito, minha cunhada, a irmã dele que fez, eu não faria nada, fez tudo, um festão danado. Naquele tempo ninguém dava um presente!
P/1 – Ah, não tinha o hábito?
R – Não se ganhava nada, nada, só comiam, comiam, comiam.
P/1 – E o que teve na sua festa de casamento para comer?
R – Ah, teve um cabrito assado, batata assada, arroz, salada.
P/1 – E a senhora lembra do seu vestido de noiva?
R – Era de organdi branco com os bordadinhos.
P/1 – E me diz uma coisa dona Aurora, a senhora ficou morando nessa casa perto da sua mãe, e como era o seu dia-a-dia? A senhora levantava, acordava muito cedo, como que era?
R – Levantava cedo.
P/1 – Ah é!
R – E começava logo cedo a trabalhar.
P/1 – E o que a senhora fazia?
R – Eu fazia de tudo! De tudo. Toda a vida, tanto que agora eu tenho muita pena, não posso fazer quase mais nada, e como é duro ficar parado!
P/1 – Mas a senhora fazia o que? Arrumava a casa, passava, lavava?
R – Lavava, passava, fazia de tudo. Ajudava a minha mãe.
P/1 – A senhora continuava a ajudar a sua mãe depois de casar?
R – Tanto que meu pai veio a morrer, quando minha mãe morreu, meu pai, eu trouxe ele para minha casa, cuidei dele. A minha mãe, nós estávamos todos, uma turma sentada, a comadre dela, tudo, nós estávamos sentadinhos e ela sentada na cama, encostada. De repente a comadre dela fala assim para mim: “Aurora, a tua mãe está morrendo!”. A casa cheia de gente e minha mãe morreu que nem um passarinho, meu pai foi a mesma coisa, eu fui preparar a mamadeira, eu comprei um vidro, podia pôr ali o leitinho dele, apertar, podia ele sozinho tomar, eu fui com aquilo para dar para ele, dois suspiros e ele morreu. Daí eu gritei, era um sobradinho, eu gritei para o meu marido: “Manuel, papai está morrendo!”. Porque era para o meu marido ir trabalhar e não foi de noite, mas veio um irmão meu, Milo, ficar comigo, passar a noite comigo e com meu pai. Nós estávamos lá no Jardim Paulista, não havia telefone, ninguém tinha telefone, meu pai morreu e a família maior da parte dele morava em Santos, mas foi uma correria, uma atrapalhada danada para conseguir pôr tudo em ordem, ele morreu numa caminha que só vendo, e a minha mãe foi a mesma coisa.
P/1 – Ele não estava doente?
R – A velhice.
P/1 – Ele morreu com quantos anos, dona Aurora?
R – Agora os anos eu não sei, mas era bastante. Ele tinha já uma perna que custava para ele andar.
P/1 – Me diz uma coisa, a senhora lembra da Revolução de 1932?
R – Ah?
P/1 – A senhora lembra da Revolução de 1932?
R – Lembro!
P/1 – Como que foi? A senhora viu alguma coisa?
R – Vi.
P/1 – Como é que foi? Conta pra gente.
R – Eles ensinaram as crianças a cantar: “São Paulo só, São Paulo só, São Paulo só!”, chegaram a dar tudo, as mulheres, as patroas, até os negócios dos guarda-chuvas que era cabinho de ouro, tudo elas deram, deram tudo para ficar: “São Paulo só, São Paulo só!”, elas não queriam que ficasse o resto, era separar, como é São Paulo de Santos.
P/1 – Do Brasil.
R – Do Brasil. Então gritavam: “São Paulo só, São Paulo só!”. Eu costurava para fora.
P/1 – A senhora costurava para fora?
R – Costurava. Uma freguesa disse assim para mim: “São Paulo vai ganhar!”, “São Paulo vai ganhar! E com o dinheiro de uma empregada nós vamos poder ter duas!”. E eu a favor contra ela.
P/1 – A senhora não queria que São Paulo se separasse?
R – Não, eu tinha um cunhado que era militar, e ele dizia para mim, tanta coisa contra e eu dizia para ele: “Isso aí tudo, eles não vão ganhar!”, ele pegou e disse para mim: “Cunhada, eu podia dar parte da senhora e a senhora ia presa!’, eu disse: “Olha, então dá, eu posso ir presa uns dias, mas depois você vai ficar o resto do tempo!”. Eu sabia que quem ia ganhar somos nós, e depois eu tive essa idéia, até no jogo, então jogando, ganhando e digo: “Não torço por ninguém, só peço a Deus que ganhe aquele que merecer!”.
P/1 – E me diz uma coisa dona Aurora, a senhora lembra das lutas? Viu alguma luta lá na Paulista, alguma coisa?
R – Como?
P/1 – Durante a Revolução a senhora viu alguma luta, alguma coisa ou não?
R – Não, não, não vi nada. Foi uma Revolução muito estúpida. Ultimamente eles estavam mandando até crianças, mocinhos. Uma amiga espanhola, que morava lá no Jardim Paulista, nós nos conhecíamos desde pequenas, ela dizia assim para mim: “Aurora, corre depressa, estão pegando meninos da idade do teu filho João, e ele vai, viu! Estão levando tudo, os homens já foram, não tem mais! E vem de lá sem uma perna, sem um braço, outros nem vem, já morreram”. Quando ela me disse isso: “Aurora, tem um lugar que você leva o nome dele, que você convence ele!”. Ela até me explicou o lugar, onde era, a rua, tudo. Eu escrevi e telefonei para o meu marido, falei: “Olha, a nossa amiga assim, assim falou isso, isso e isso e agora eu estou com medo do João, vão levar ele!”. Aí ele disse assim para mim: “Então faz assim, às seis horas vou estar aqui na porta da loja de Santana e nós vamos lá”. Foi assim, quando deu seis horas eu estava lá esperando ele sair, saímos, tomamos o ônibus e fomos lá falar com esse homem que ela mandou. Ele pegou toda a nota do nome dele, tudo direitinho, não é, para eles não encontrarem o nome, não chamar ele, e não foi, graças a Deus!
P/1 – E dona Aurora, quantos...
R – O Marco, quando ele nasceu, ele _________ para ficar comigo. A mãe estava com febre, não podia dar ______ no peito, mas chorão, chorão, chorão. Ele ficou comigo, já estávamos com o carrinho pronto para ele. Aí fiz uma mamadeira, ele não queria pegar, eu espremia assim na boca dele, quando ele sentia o gostinho, aí ele pegou, tinha só uns dias, né, chupou tudo e depois pus para dormir.
P/1 – Dona Aurora, vamos buscar um pouquinho, quantos filhos a senhora tem?
R – Três.
P/1 – Como que é o nome deles?
R – Esse primeiro era João, que é o nome do pai do meu marido, João. A menina Aracy e o outro Mario. Mario, João e Aracy.
P/1 – Os filhos da senhora estudavam onde?
R – Ele estudou bastante, ele estudou datilografia, depois, como eles ficavam brincando lá na rua, lá no Jardim Paulista, jogando bola, a minha filha fez uma força danada para ele ir estudar, essa escola, que agora é uma cidade, está espalhada por tudo, eu não sei mais o nome, três, três... Eu esqueci o nome, daqui a pouco eu lembro da escola. A escola... FMU!
P/1 – Ah, FMU! Seus filhos estudaram, fizeram faculdade lá?
R – E além disso naquele tempo era, porque agora eles mandaram jogar a máquina fora porque não vale mais nada. Agora é computador e esse computador é o dono do mundo inteiro. Que tomou conta do mundo inteiro. E é bom, eu falei isso para uma médica que estava me tratando, ela disse assim para mim: “É bom para uns e para outros não. Perderam tudo, né?”, daí eu falei assim: “Essas máquinas antigas podem jogar fora!”.
P/1 – Dona Aurora, seu marido trabalhou sempre nessa loja?
R – Sempre com esse B. Santana, era Benedito, eles cortam o Benedito e põem B.
P/1 – A senhora morou no Jardim Paulista até quando? A senhora mudou de lá?
R – Aí nós construímos uma casa, como é que chama lá, um lugar bonito, bom...
P/1 – Lá em Interlagos? Não?
R – Não, Interlagos estamos morando nós, estamos morando já em Interlagos. Eu sei de cor todos os _________. Eu sei que nós construímos uma casa, quer dizer, nós alugamos uma casa, um sobradinho primeiro, até veio uma senhora lá, era frio, ela estava com um casaco quente e falou assim: “Eu queria falar com a dona Maria!”, aí eu falei: “Aqui não mora ninguém com esse nome!”, eu esqueci que eu era Maria, nunca ninguém me chamou de Maria! Eu falei para ela: “Olha...”, e ela falou assim: “Maria costureira!”, eu falei assim: “Costureira aqui não falta, até mesmo dentro daquela ______ é costureira, mas eu não sou Maria”, e ela foi embora, mas quando ela chegou na esquina que tinha que descer um degrauzinho, ela enfiou a mão no bolso e tirou o meu cartão, a minha filha tinha mandado fazer, quer dizer, tinha posto o meu nome completo, mas eu fiquei, acho que queimou até a minha cara, que coisa, né? Nem o meu pai me chamou de Maria. Uma vez o meu pai disse assim para a minha mãe: “Eu vou na cidade, eu vou no cartório, vou por tudo o nome dos filhos, porque depois metade o governo leva, então já vou por tudo direitinho para os meus filhos!”, e foi, quando ele voltou, tirou o chapéu, lembrou e disse assim para a minha mãe: “Ah, a Aurora não vai receber nada!”, “Por que?”, “Eu esqueci que ela era Maria!”, aí saiu correndo, a sorte dele é que o lugar de por Maria estava reservado, não teve que mexer em nada.
P/1 – Aí a senhora recebeu?
R – Mas quantas voltas a vida dá, não?
P/1 – E me diz uma coisa, dona Maria, dona Aurora, a senhora saiu lá do Jardim Paulista e foi para essa casa que vocês construíram, e os seus filhos eram grandes ou pequenos nessa época? Como que era?
R – Era, até o meu marido e eu saímos, quando mudamos saímos do Jardim Paulista e fomos para lá, eu e ele levantamos cedo e fomos na cidade, deixamos os filhos dormindo e fomos marcar hora para ver se podia mudar e eles podiam ir na escola, porque era longe, então nós tomamos ônibus para lá, para cá, e ele disse assim: “Vai dar, nós podemos mudar!”, então nós fomos para lá. Lá na Avenida Sabiá, Avenida Canário. Aí eu fui morar na Rua Canário.
P/1 – É lá em Moema?
R – Moema, nós construímos uma casa tão bonita, tão boa, ai que gostosa!
P/1 – E o bairro como que era naquela época?
R – O bairro também, tudinho cheio de lama.
P/1 – Não tinha rua e calçada?
R – Então, os meus filhos faziam assim, eles levavam um sapato limpinho, deixavam num canto, num armário qualquer, naquele todo sujo e punham o outro, para poder tomar o ônibus para o trabalho. Não foi fácil a vida da gente, não, não foi fácil não.
P/1 – E essa casa tinha luz?
R – Tinha luz.
P/1 – A rua também tinha luz ou era lampião?
R – Não, a rua não tinha luz, só tinha lama, mas lama mesmo, e para chegar dali onde nós estávamos para o ponto de ônibus eram quatro quarteirões.
P/1 – E dona Aurora, como que era essa coisa da senhora comprar comida? Como que era naquela época? Tinha um mercadinho, um supermercado?
R – Tinha feira bem em frente de casa. Eu tinha largado a costura, não estava mais costurando, já tinha idade também, não estava mais costurando e encontrei o doutor Sor..., um doutor lá da família e falou assim para mim: “Dona Aurora, eu vou pedir um grande favor para a senhora”, eu disse: “ O que é?”, “A senhora faz o vestido da minha mulher?” Ele era italiano, e eu falei: “Mas não posso, eu larguei tudo!”, eu estava triste, aborrecida, meu marido tinha morrido e eu queria mesmo largar, fazia muitos anos, eu costurei mais de sessenta anos!
P/1 – E a senhora quando parou de costurar estava morando em Moema ainda?
R – É, Moema. Aí eu falei para ele: “Não vai dar para eu fazer, estou muito nervosa, estou tremendo!”, e ele: “Ai dona Aurora, por favor, faz pelo menos um, porque o parente dela vem para o Brasil, um padre, dizer a primeira missa e ela é a única pessoa da família dele que está aqui, ela quer ir muito chique. Ela já mandou fazer vestido, já experimentou sete vezes, não pode, ela disse que não vai nessa festa do menino dela, vai fazer um frio danado, ela é a única pessoa da família aqui!”, aí eu concordei. Fiquei com pena, concordei, quando deu o dia seguinte, lá vem ela com o pacote, três vestidos, em vez de eu fazer um para ela, três! Eu disse: “Mas como vocês se aproveitam da gente, não?”, ela: “Tem que aproveitar mesmo, agora que a senhora não vai costurar mais! Também com esses três eu fico bem!”
P/1 – E a senhora lembra da cor e do modelo dos vestidos que a senhora fez para ela?
R – Não, não lembro, ela escolheu no figurino. Eu tinha figurinos estrangeiros, ela escolheu nos figurinos. Eu fiz os vestidos dela e outros também, e continuei, tinha uma caixa de costura para acabar, eu ia acabar com aquela para eu sossegar, mas não adiantou.
P/2 – Dona Aurora!
R – Eu estava acostumada com a minha freguesia, eu não pegava nem uma blusinha de ninguém. Já tinha certinho o ano todo!
P/2 – A sua família gostava de futebol?
R – De Portugal?
P/1 – De futebol!
R – Futebol? Gostava, menos eu. Eu gosto de olhar o que estão jogando e falo assim: “Eu não torço para ninguém, Deus sabe aquele que merece, que vai ganhar”.
P/1 – E para que time a sua família torcia? A senhora não torce para ninguém, mas o seu marido torcia?
R – Torcia para a Portuguesa. Português ferrado!
P/1 – Dona Aurora, vamos voltar um pouquinho, a senhora falou que nessa época fazia as compras para a casa tudo na feira, a senhora comprava de tudo na feira?
R – Não, não, tinha o armazém! Comprava tudo no armazém.
P/1 – E como é que a senhora pagava no armazém nessa época?
R – Pagava na hora.
P/1 – A senhora pagava em dinheiro? Não tinha uma caderneta lá?
R – Não, não, pagava na hora.
P/1 – E me diz uma coisa, dona Aurora, a senhora falou que seu marido faleceu, ele faleceu de quê?
R – Olha, ele começou a se sentir bom, mal, eu chamei o médico em casa. O médico examinou ele e ele continuava gemendo de dor, e o médico disse assim para ele: “Aí Seu Manuel, não é tanto assim para o senhor gemer desse jeito!”, mas era, viu! Daí ele começou a piorar e eu chamei outro médico, o outro médico já começou a dar um remedinho, um pouquinho melhor, mas continuou ruim, ainda sofrendo bastante. Aí chamei três, era o terceiro, aí o outro veio, examinou e falou assim para mim: “Olha, a senhora pode dar para ele o que ele quiser, até feijoada, não tem mais cura!”, mas assim na minha cara! “Até feijoada, não tem mais cura!”.
Agora tinha uma senhora, a dona do armazém que eu gastava, gastava por mês, no fim do mês pagava, fazia a compra. A dona do armazém escutou e viu quando o médico falou que ele não tinha cura, ela falou assim para mim: “Aurora, porque tu não vai no centro espírita pedir uma consulta para ele?”, e eu falei assim para ela: “Como é que eu vou deixar ele? Ele se joga da cama! Tá ruim que só vendo!”, aí ela disse assim para mim, a dona do armazém: “Você quer que eu vou para você?”, a gente nessa época aceita tudo. Eu disse: “Quero sim!”, ela foi. Era longe dali onde nós estávamos, esse centro que ela ia era na Consolação, era longe, eu não sei se ela tomou ônibus, ônibus não tinha, se tomou carro, não sei como que ela foi. Ela foi e chegou lá e já tinham acabado as consultas. Ela viu lá no fim do salão uma cadeira e foi sentar lá, antes de começar o chefe chamou ela: “Já que a senhora _________ por último, vem aqui que eu vou lhe dar umas explicações!”, ela veio na mesa onde ele estava e ele disse para ela o que tinha que fazer: “Vai depressa, faz isso tudo. Se ele aguentar oito horas e meia esse tratamento ele está salvo!”. Ah, o mais depressa coitadinha, ela correu, foi na casa dela, como era armazém tinha, o que ele mandou fazer? Ele mandou pôr uma toalha grande, aqui assim no lugar dos peitos, cortaram, para o biquinho ficar livre, naquele tempo querosene era remédio, bom mesmo: “Molha essa toalha no querosene e enrola bem aqui, mas enrola bem, aperta bem nas costas, nos pulmão!”, porque o mal dele era o pulmão. Daí ela sozinha de noite, essa senhora, não era parente, não era nada, ela, da casa dela, pegou o querosene, a toalha e fez como ele mandou. Mas ele se bateu tanto, mas tanto durante a noite, foi uma noite triste, que medo que eu passei sozinha com ele. Porque aquela toalha enrolou tudo para baixo, quando foi de manhã, ela foi a primeira a chegar lá em casa, era em frente quase. Quando nós vimos aquilo tudo ela ficou tão assustada que ela disse assim para mim: “Olha, não mexe em nada, eu vou buscar esse homem, porque ele trabalha, se não eu não acho ele em casa, ele vai trabalhar!”. E ela correu, acho que foi de carro, e dali, de onde nós estávamos à Consolação. Nós estávamos no Jardim Paulista, perto da Brigadeiro e o homem era lá na Consolação, mas ela foi lá e trouxe ele, ele olhou, eu estava chorando triste e ele disse assim para mim: “Irmã, uma ferida dentro, escondida, é difícil curar, mas uma ferida quando está fora é fácil de curar!”, ele queria dizer que o pulmão, ele disse assim para mim: “O pulmão dele está limpo que nem um cristal!”, estava tudo ok, tudo, era tudo tomado, sangue, pus, nas costas e aqui. E falou assim: “Eu vou tirar tudo isso e vou trazer uma enfermeira que ela já vai trazer os remédios necessários e vai colocar aí. Na segunda vez que ela fizer, a pele já vai estar nascendo”. Foi tudo feito direitinho como ele mandou, ele foi buscar uma enfermeira do Hospital São Paulo, na Avenida Paulista, ela veio, já trouxe a malinha com os remédios e tudo, com as faixas para enrolar.
Eu sempre fui muito ajudada. Todo mundo me ajudava, todo mundo. Eu dizia: “Meu Deus, eu preciso ser muito boa com todo mundo! Todo mundo me ajuda!”, se não fosse ela ele teria morrido, mas ele falou isso: “Mas você vai ter muita paciência, viu! Você está com o seu estado muito melindroso!”, (de fato?), __________ ficou bom. Que nem, olha, veja só, ali mesmo, naquele lugar, aquele pessoal ali é como se fosse tudo irmão, tinha uma senhora muito doente lá numa cama, uma outra foi visitar ele, antes da doente falar, ela falou assim: “Olha, eu sei que o menino da Aurora está desenganado do médico, e eu sei um remédio que cura ele e fica bom”, a doente. Então ela disse assim: “Me fala o que é que eu vou fazer, porque a Aurora está doente!”, e o menino morrendo e eu doente, “me fala que eu vou fazer esse remédio para ela!”, ela disse assim: “É um remédio esquisito, mas cura garantido!”, ela nem quis mais saber da doente, foi fazer o que ela mandou, ela disse assim: “Você vai numa cocheira onde tem cavalinho novo, você pega aquela sujeirinha dele, põe num pano bem limpinho, amarra, faz um chá e dá para ele, se der agora, amanhã cedo está tudo arrebentado, o sarampo dele, porque recolheu”. E o médico, por isso que ele falou que ____________ não tem cura, pois olha, essa minha amiga também já morreu, ela foi procurar o cavalo, lá tinha mato, essas coisas, ela achou a cocheira, catou, deu para o menino beber, ela mesma deu porque eu não podia, eu estava doente e isso aqui estava duro, tudo duro, não mexia, ela deu o chazinho para ele. De manhã até parecia ferida dele de tanto que arrebentou, com esse chazinho.
P/1 – E qual era dos seus filhos que estava doente?
R – O mais novo, o Mario. Aí ela deu o chazinho para ele. Quando era de manhã o médico veio para passar o atestado de óbito para ele, quando ele olhou assim e viu ele bom, não sei o que ele falou de ruim, que essa senhora que fez o chá falou assim para ele: “O senhor está achando ruim porque não foi o remédio de farmácia!”, o remédio de farmácia não ia curar ele, português não tem papa na língua para falar, ele é português, e assim curou ele também. Meu marido foi curado com querosene naquele tempo, porque agora o querosene queima, não presta mais para isso. A gente até quando estava gripada pegava uma colherzinha de água, pingava umas gotinhas, ou duas de querosene, para gripe não tinha coisa melhor, agora até para passar no chão ele queima.
P/1 – Dona Aurora, me fala uma coisa, e os seus filhos...
R – Você acha que eu estou falando demais?
P/1 – Não, está ótimo, a senhora está contando muitas histórias bonitas, boa para a gente aqui. Me diz uma coisa dona Aurora, seus filhos cresceram e eles casaram também, conta um pouquinho do casamento deles.
R – Todos casaram, minha filha casou, todos casaram, todos já morreram, não tem nenhum!
P/1 – A senhora não tem nenhum filho vivo?
R – Ah, eu fiquei para ser _______, não tem ninguém! Morreu tudo, morreu pai, morreu irmão, morreu meu marido, morreu tudo.
P/1 – A senhora tem agora só neto e bisneto?
R – É, o Marco e agora uma, irmã do Marco vai ter nenê também, vai começar agora.
P/1 – Me diz uma coisa dona Aurora, o filho mais velho da senhora, quantos filhos teve?
R – Agora eu não lembro não.
P/1 – Quantos netos a senhora tem?
R – Ah, mas era uma carrada de netos, oito, dez irmãos, uma carrada de netos.
P/1 – A senhora tem muitos netos?
R – É, e todos me querem. Ah, meu Deus, e como eles gostam de mim, até parece que eu tenho melado! É mesmo, até agora, outro dia, a minha menina, que eu criei, Daniela, essa eu também criei, a mãe dela lá, mas eu criei ela, desde que ela nasceu. Ela sofreu, sofreu, a coitadinha estava tão doente e a minha filha disse assim para mim, essa minha neta disse assim para mim: “Vó, eu compro esse remédio que é tão caro, caro, já gastei uma porção de bisnaga, e ela não há meio de melhorar”, porque quando ela estava para nascer, o pai parou num lugar que o outro veio, empurrou o carro dele, machucou que até saiu sangue da barriga dela! Aí o médico disse assim: “Nós temos que segurar, ela está para nascer mas não pode nascer, está se batendo muito!”. Pegou, não deixou e deu um remédio para ela ficar mais uns dias, mas quando ela nasceu, coitadinha, quase tudo em carne viva e essa minha neta, que eu moro com ela, disse assim: “Vó, eu não sei o que vou fazer, essa pomada é tão boa e ela está cada vez pior!”, eu só falei assim para ela: “Você quer deixar por minha conta?”, ela disse assim para mim: “O que a senhora vai fazer?”, “eu vou tratar ela com vaselina, mas vaselina pura, do lugar assim assim”, que agora não presta mais, estragaram essa farmácia. Eu tinha um pote e tinha um mocinho que morava lá perto. Dei um dinheiro e falei “me compra mais um pote dessa vaselina pura”, aí eu comecei a lavar bem com cuidadinho, passando bem aquela vaselina pura, na segunda vez a menina já dava risada, toda contentinha, e sarou. Vaselina pura, não é com todos aqueles remédios não. E ela comprava aquele ______________, que era cara, eu não sei, “não há meio, ela não sara!”, eu disse: “Deixe por minha conta!”. Sarou logo, logo, na segunda vez já estava dando risadinha, a cara alegrinha porque era nenê. Ah, eu falo demais, não me faz falar tanto. Depois eu almoço duas vezes!
P/1 – Dona Aurora, me diz uma coisa, com quem que a senhora mora hoje?
R – Com essa minha neta, que é mãe dessa que eu criei a filha dela, a outra mais velhinha eu criei também. Porque ela precisa trabalhar, ela é advogada, ela precisa trabalhar para sustentar e eu cuidava delas. Essa que agora eu passava pomada e sarou, ela gosta muito da gemadinha com açúcar batidinha, como ela gostava daquela gemada! E só pode ser ovo fresco. Eu saia na rua, onde tinha galinheiro e ia perguntar se queria me vender alguns ovos, até que consegui uma que me vendeu. Toda a semana ela me vendia uma meia dúzia de ovos e a outra mais velha, eu pegava a gema e punha na comida, misturava bem, ela gostava. Eu criei elas com muita saúde.
P/1 – Dona Aurora, a senhora falou que morou lá em Moema... Depois que o seu marido morreu a senhora ficou morando sozinha por muito tempo, com os seus filhos ou não?
R – Não, não fiquei sozinha, ninguém me deixa ficar sozinha!
P/1 – A senhora foi morar onde depois que saiu de Moema?
R – Bom, nós fomos morar em Interlagos, tanto que está lá a casa até hoje, um casarão bonito, grande, e a minha filha tinha muita vontade de comprar aquele prédio, e eu pensei “eu pego o dinheiro e dou para ela”. Faltava um pouquinho para fazer... Porque era para vender 70 mil a casa e faltava uns quebradinhos para fazer os setenta. Falei para minha filha: “Está faltando um pouquinho, mas agora no pagamento eu te dou!”, “ah, mas não mãe, eu tenho dinheiro, eu termino!”, e comprou aquele prédio. É dela, não é meu, é dela, ela comprou no nome dela, por isso que ela dizia: “Eu tenho a minha casa!’, e eu digo: “Abençoada, porque eu não tenho!”.
P/1 – Dona Aurora, os seus filhos morreram do quê? Seus filhos morreram muito novos ou não?
R – Não, quase todos com bastante idade.
P/1 – Já morreram com mais de sessenta anos?
R – É, quase todos com bastante idade, mas não quanto eu. Eu já, passou da época. Eu às vezes fico brava comigo e, meu Deus do céu, até quando? Eu escuto uma vozinha assim: “Vai demorar um pouco, ainda!”.
P/1 – (risos).
R – Eu escuto, eu converso com eles. Converso. Um falou: “Ih, você vai ficar no mundo muitos, muitos anos, muito velhinha”. Eu perguntei, perguntei: “Mas por quê? Eu tenho muito pecado?”, a resposta foi assim: “Ah, nem tanto!”, quer dizer que é um pouco. Todo mundo que está aqui é para pagar dívida. Senão não estava... Ah, chega de falar!
P/1 – Vamos lá, vamos para encerrar? Você fez uma pergunta?
R – Lá em Interlagos.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse para mim o seguinte: se pudesse mudar alguma coisa na sua vida, o que a senhora mudaria, dona Aurora?
R – Agora?
P/1 – Se a senhora olhar na sua vida, o que a senhora mudaria se pudesse?
R – Eu acho que não mudaria, porque eu tenho toda a minha família, o pouquinho que tenho agora, todo eu _________ muito, muito, essa que eu moro agora não me deixa faltar nada, me faz engordar de tanto que ela me dá, é roupa, é remédio. Eu estive contando os vidros de remédio desde manhã até a noite, uns 25 quase trinta que eu tomo, que ela compra!
P/1 – Então a senhora não mudaria nada na sua vida?
R – Não, não mudaria nada.
P/1 – E agora outra coisa dona Aurora, que eu queria que a senhora falasse...
R – Eu tenho meu quartinho, eu não preciso me preocupar com minha roupa, com nada, elas que procuram o que eu vou vestir, o que eu não vou vestir, o que fica bom. Eu não me preocupo nem com, nem posso, não me deixam, eu não sei mais onde estão as minhas roupas, não mando em nada, é só sentar na mesa: “Mãe, vó!”. Tem uma que está no Rio, ela é irmã desse Marco. Ela telefonou no Dia das Mães dizendo para a minha filha: “Fala para a minha avó que estou mandando um beijão para ela porque é Dia das Mães!”, não esqueceu. E agora outra coisa, ela vai ter nenê, conhece ela?
P/1 – Não.
R – Ela vai ter nenê, ela é irmã do Marco, ela foi para o Rio porque lá tinha trabalho, já há muitos anos, melhor do que aqui. Lá no Rio sempre tem mais trabalho do que aqui, e ela arrumou um trabalho lá, arrumaram para ela, por isso que ela foi para o Rio, agora está morando lá. Outro dia eu estava pensando assim: “Meu Deus, aonde foram parar os meus móveis?”, eu tinha uns móveis tão bons, tão bonitos, tinha um relógio cuco, bonito que só vendo, cadeira de balanço, tinha tudo, tudo. Eu pensava assim: “Onde foi parar os meus móveis?”, ela pegou e disse assim, ela pegou o computador, pediu o computador emprestado para a minha filha e ficou procurando e achou e veio me mostrar: “Dinha!”, meu apelido ali é Dinha, “Dinha, olha os seus móveis, sua geladeira, seu relógio cuco, os seus móveis estão todos aqui, olha aí!”, no computador, ela me mostrou______ geladeira e tudo, então quer dizer que do Rio, veio buscar tudo aqui em São Paulo, acho que alugou um caminhão, máquina de lavar, tudo, tudo.
P/1 – Estava tudo com ela?
R – Quer dizer que ela já levou a casa dela completa. O marido dela é farmacêutico, bom serviço, ele esteve lá com ela.
P/1 – E dona Aurora, para encerrar, eu queria que a senhora falasse o que achou desse nosso bate-papo. A senhora gostou de conversar com a gente?
R – Gostei, gostei muito.
P/1 – Por quê?
R – Porque além de todas as coisas que interessa, tudo gente bonita, olha aí, tudo gente bonita, gente que sabe onde tem a cabeça, não é? Tudo isso, eu gosto. Porque eu sempre tenho, minhas amigas, meus amigos de verdade, mas quantos que já foram, mas eu não choro por ninguém, eu não tenho lágrima, eu chorei muito pelos meus filhos, chorei muito por causa do meu marido que ficou doente umas duas, três vezes, acho que gastei tudo quanto era lágrima, agora não tenho lágrima. Quando ele morreu o pessoal ficou admirado, a minha filha me levou em frente a casa dela que era em frente do lado, eu não vi sair o enterro, mas depois falou que foi o enterro, diz que varou quadras e quadras de carros, ele era muito querido ali em Moema, ele morreu em Moema. Ele morreu com 62 e eu fiquei com 58. Ele tem cinco anos a mais do que eu.
P/1 – Então faz quase cinquenta anos que a senhora está viúva. A senhora não quis arranjar outro marido?
R – Eu larguei, acabei aquelas costuras, fiz mais aqueles três que ela aproveitou de mim, fiz e depois fazia uma coisinha para um, para outro. Eu não posso ficar parada, eu fico escrevendo, a caneta cai, eu ___ a pegar, _______________________, aí a minha netinha que eu criei, eu falo assim para ela: “Olha que porcaria de letra! Dá nojo olhar!”, ela pega, lê tudo que eu escrevi e dá uma nota.
P/1 – E o que a senhora escreve dona Aurora?
R – Eu faço cópia, o que eu posso fazer? Eu faço cópia do outro livro! Faço uma cópia, então eu faço aquela lição... Então ela pegou e me deu uma nota: “Onze”, eu falei: “Eu não quero onze, põe dez!”, “ah Dinha, mas dez, o nove é mais do que o dez!”, eu disse: “Não faz mal, põe o dez!”, “não, é onze!”.
P/1 – Está bem dona Aurora, eu queria agradecer a senhora de ter dado o depoimento. Agora a gente vai fazer uma coisinha, a senhora vai repetir o seu nome...
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