P/1 – É um bate-papo com cerca de uma hora e meia.
R – Tá.
P/1 – Nós queremos ouvir a sua história pessoal, queremos ouvir o que o senhor tem pra nos contar, o que o senhor tem vontade de contar. E o nosso papel aqui é muito mais o de um condutor, pelas suas memórias, do que propriamente de um entrevistador.
R – Sei.
P/1 – Então, a gente começa na sua infância, e vem seguindo a sua trajetória de vida, contada por meio daqueles pontos que o senhor acha dignos de nota, até o dia de hoje.
R – Tá.
P/1 – Eu e a Camila vamos fazer essa condução. Pois não.
R – Pode falar?
P/1 – A gente começa, aqui, no Museu da Pessoa com... Existe uma praxe aqui que a gente segue, que é pedir pro senhor dizer: o seu nome completo, o local de seu nascimento, e a data do seu nascimento.
R – E como é que os meus pais vieram, tudo isso também?
P/1 – Depois a gente pergunta, mas a gente começa por essa breve identificação: nome, local e data de nascimento.
R – Tá. Pode?
P/1 – Por favor.
R – Eu sou Paulo Ohira, nasci no dia 06 de fevereiro de 1938, um pouco antes da guerra, da Segunda Guerra, e hoje eu estou com 69 anos e, assim, é, Mirandópolis, é, bairro de Oriente.
P/1 – Mirandópolis, só pra registrar, fica em qual estado?
R – Estado de São Paulo.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais, Seu Paulo?
R – (Koiti?) Ohira e (Aiako?) Ohira.
P/1 – Fala um pouco da atividade profissional deles, eles nasceram no Japão, não é isso?
R – Nasceram, é.
P/1 – Fala um pouco pra gente, qual era a atividade profissional deles, lá no Japão?
R – Não sei.
P/1 – Não sabe?
R – Não.
P/1 – Quando eles chegaram aqui no Brasil, eles desempenhavam qual profissão?
R – É, lavoura.
P/1 – Lavoura, lá, no interior de São Paulo?
R – É.
P/1 – Pra gente começar essa nossa história, como é que se deu a vinda dos seus pais pro Brasil, o que o senhor sabe dessa parte da história da sua família?
R – É, meu pai queria vim pro Brasil, que todo mundo vinha naquele tempo, antes da guerra, e ele candidatou, ele pediu candidata, dizendo: “Qual é a jovem que quer casar comigo e ir pro Brasil?” E a minha mãe se candidatou, contra a vontade dos pais dela, e veio pro Brasil em 1937. É, já a minha mãe grávida de mim, já, antes de embarcar no navio.
P/1 – Qual era, mais ou menos, a idade deles nessa época?
R – Meu pai estava com 22, e a minha mãe 20.
P/1 – O senhor sabe, em algum momento eles contaram pro senhor, qual foi o grande motivo do seu pai ter vontade de vir pro Brasil, justamente pro Brasil, naquela época?
R – Pra ver coisa diferente, né, eu acho. Eu acho, né, do que ficar lá no Japão.
P/1 – E como foi a chegada deles aqui, no Brasil, o senhor tem ideia?
R – Bom, chegou, já, contratado pelos agricultores daqui e veio trabalhar na lavoura de café, algodão, com esses produtos, né?
P/1 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho, nós somos quatro, né?
P/2 – Os seus pais foram direto pra Mirandópolis?
R – Sim, porque já estavam contratados, né? Como daqui eles vão pra lá contratados também, né? Decaseg, né?
P/1 – E o senhor é o mais velho dos irmãos?
R – Sou.
P/1 – E são quantos irmãos?
R – Somos quatro.
P/1 – Qual é o nome deles?
R – (Yorani?), (Satumi?) e (Suno?)
P/1 – O senhor nasceu em Mirandópolis, mas foi registrado em Araçatuba, é isso?
R – Isto! Porque não tinha cartório naquele tempo, em 1938.
P/1 – Conta pra gente: como era Mirandópolis?
R – Ah, não sei.
P/1 – O senhor não se lembra?
R – Não, porque eu nunca fui lá.
P/1 – Nunca foi?
R – É, fui lá quando a minha mãe ficou doente e ficou hospitalizada na cidade de Mirandópolis, que lá é o ponto central, o núcleo, né?
P/1 – Entendi, mas a sua infância foi passada, então, em Araçatuba?
R – É.
P/1 – Então, conta pra gente...
R – Não, não! Araçatuba é onde fui registrado, é onde tinha o cartório mais próximo de Mirandópolis.
P/1 – Tá, mas aonde o senhor passou a sua infância?
R – No Oriente, Terceira Aliança, aliás!
P/2 – É um bairro afastado do centro de Mirandópolis.
R – Exato, isso!
P/1 – É uma comunidade nipônica?
R – É, porque lá tinha Primeira, Segunda, Terceira Aliança, e mais o Oriente.
P/1 – Eram quatro bairros de descendentes de japoneses?
R – É, sim! Tinha mais, né, tem mais até hoje, mas o principal, que eu conheço são esses aí.
P/1 – E era um bairro afastado da cidade de Mirandópolis?
R – Sim, mais ou menos, uns 40, 50. Como daqui até Mogi.
P/1 – Conta pra gente: como era o Bairro de Oriente nesse final da década de 30, no começo da década de 40?
R – Era tudo mata virgem. Tudo era mata virgem.
P/1 – Como o senhor se lembra da sua casa na infância, lá, no Bairro de Oriente?
R – Ah, aonde eu nasci?
P/1 – É.
R – Ah, muito difícil, viu, porque eu lembro o jeito do meu pai, assim, uma ou duas vezes, assim, que eu recordo. Lá, no interior, toda a japonesada faz sistema do Japão, né, porque lá não tem cama, não tem mesa, não tem nada, né?
P/2 – Como é o sistema?
R – Sistema... Cama, põe o tatame e depois, põe um... Eu não sei como é que fala em português, põe um tipo de...
P/2 – Lençol?
R – Não, não é lençol, é... Fala futon. Futon é...
P/2 – Uma futon, é almofada?
R – É almofada, mas feita de algodão, né, e forra aquilo e dorme, e depois cobre com o mesmo... Com um tipo de futon, né?
P/2 – Na alimentação, vocês seguiam também a tradição, o costume japonês?
R – Sim, até hoje, né, até hoje eu faço, eu é que faço a comida do meu filho, mas são mais de 70, de cada dez, sete é tempero japonês, né?
P/1 – Então, a comunidade do Oriente seguia todas as tradições culturais do Japão?
R – É, de manhã as crianças iam pra escola, aula japonesa, e à tarde ia pro grupo escolar, que é a escola daqui, né? Então, pra isso existia uma música japonesa, que se chama Papai e a mamãe (Ini?), quer dizer papai e mamãe, né? E nessa letra aí, então, consta a vida que os japoneses levavam aqui no Brasil, né, e são três estrofes de música que contam a história que eles levavam, a primeira estrofe diz: “Eu vim do Japão, junto com os meus pais, e onde os meus pais foram desbravados”, como diz, né? “E foi cuidar das plantações de arroz, café, algodão”, todas essas coisas, né? E na segunda estrofe conta que de manhã a gente vai pra escola japonesa, e à tarde vai pra aula brasileira. E a terceira estrofe conta que nós estamos aprendendo tudo, nessa aprendizagem a gente, é, fazendo amizade com o pessoal daqui, né, porque a gente não entende o que eles falam, e eles não entendem o que a gente fala, que é japonês e português. Então, essa letra são três estrofes. Posso cantar pra ver se fica melhor?
P/1 – Claro.
R – Então, eu vou dizer a letra em japonês, a letra da música, porque consta, que eu fiz a apresentação agora, nos 80 anos da Terceira Aliança, eu fiz essa apresentação. Então, a letra da música em japonês é assim: Papai e a mamãe (Ini?) é o título. (o entrevistado declama os versos da música em japonês). Essa é a letra da música que conta a história da imigração japonesa, como viveram aqui.
P/1 – E nessa comunidade do Oriente, todas as pessoas, os pais de família, como o seu pai, todo mundo trabalhava na lavoura?
R – Exato! E depois, cada um tinha os seus filhos, depois, cresceram, e esse aqui juntou com essa família, esse aqui juntou com aquela família e, assim, vai diminuindo a propriedade.
P/1 – E nessa comunidade tinham todos, ou alguns, serviços básicos de uma cidade, tinha ali, vocês tinham escola?
R – É, quer dizer, escola criada por nós, não foi pelo governo, principalmente escola japonesa, né? Aliás, mais tarde vieram do Japão, professores que a gente, é, estudamos, porque antes, principalmente antes da guerra, era feito pelos próprios imigrantes, que davam aula pros filhos que nasciam aqui, pra não perder o vínculo, né, do Brasil e Japão.
P/1 – O senhor se lembra de um dia, de um típico dia dessa comunidade quando o senhor era criança? O senhor ia pra escola de manhã, o senhor se lembra dos seus amigos, de como era viver ali na comunidade de Oriente?
R – Lembro, justamente este ano, que comemora 80 anos da Terceira Aliança, porque tem a Primeira, Segunda e a Terceira. Na Terceira Aliança, que fez 80 anos, eu estive lá, fazendo essa música que eu acabei de falar e, fora isso, o pessoal que morava lá ainda, assim, nós nos encontramos. Aqueles que estão vivos, naturalmente, né?
P/1 – Mas como era o seu dia-a-dia na infância, lá, em Oriente?
R – É, Oriente eu não lembro nada, porque eu tinha cinco anos quando saí de lá.
P/1 – Ah, o senhor saiu muito cedo de lá.
R – Nove, dez, 11, 12, 13. É, quando eu tinha cinco anos é que saí de lá.
P/1 – Então, o senhor não tem lembrança da sua...
R – O meu pai já tinha falecido, e a minha mãe casou outra vez, né? Casou com um viúvo também.
P/1 – Entendi. O seu pai, então, faleceu cinco anos depois da chegada?
R – Isso, ele veio em 37, em 42 ele faleceu. Em 43, a minha mãe casou outra vez, porque nós dois pequenos, o que vai fazer no meio do mato, como é que vai fazer, né? Então, casou com um viúvo que estava na Terceira Aliança, aí, nós mudamos pra Terceira.
P/1 – Ah, então, o senhor saiu da comunidade Oriente e foi pra comunidade Terceira Aliança?
R – Isso!
P/1 – Ambas ficam, ali, no entorno da cidade de Mirandópolis?
R – Isso!
P/2 – A Primeira Aliança chegou quando?
R – Não, a Primeira Aliança foi a primeira que foi fundada, em 1925. Em 26, foi fundada a Segunda, e a Terceira Aliança em 28.
P/1 – Então, as suas lembranças de infâncias estão mais ali, na Terceira Aliança?
R – É lógico, porque eu tinha dez anos quando. Não, eu tinha cinco, seis, sete anos.
P/1 – Entendi. Conta, então, pra gente: como era a infância vivida lá, nessa comunidade, o seu dia-a-dia.
R – Não tem tanto assim, né, mas uma coisa que lá, na Terceira Aliança, principalmente em Oriente, não existia luz, água encanada, e nem telefone. O único telefone, que a cooperativa mantinha, porque cada bairro tinha uma cooperativa, chama-se Cooperativa Agrícola da Fazenda Primeira Aliança, da Segunda Aliança e Terceira Aliança. Então, nós somos Terceira Aliança, tinha telefone número 38, o ano que eu nasci, então, eu não esqueço desse telefone.
P/2 – O senhor se lembra a primeira vez que o senhor falou no telefone?
R – Ah, não sei, porque, aqui, telefone bate assim, depois, telefonista atende, e a menina fazia a ligação aonde a gente queria.
P/1 – Mas do que as crianças como o senhor, daquela época, brincavam, o que vocês faziam?
R – Bom, brincadeira comum, né? Agora, em 1946, mais ou menos, depois da guerra, que terminou em 45, vieram os primeiros cinemas ambulantes, então, no caminhão tinha um dínamo pra produzir a força, né, vinha projetor, vinha tudo e, depois, vinha o pessoal. E o filme, quando é mudo, tem um historiador, chama-se... Ê, agora eu não me lembro... Então, tem o historiador! Como: Noites de China, China (noiuru?), então, esse é o primeiro filme que eu assisti na minha vida, preto e branco, mudo! Então tinha um que conta a história, pra se ter a ideia de como que é, então, fala assim: (entrevistado começa a narrar em japonês). Esse historiador é que conta como é que é, o que é, e o que vai acontecer, ou que está acontecendo, ou aconteceu, tudo isso aí. Depois entra a música, né, então, é assim, fala assim: (entrevistado começa a cantar em japonês). Quer dizer, a China é o lugar de sonho, quer dizer, a história é o seguinte: chinesa e japonês querem casar, mas os pais não deixam, então, um tem saudade do outro, o japonês que tem saudade da chinesa e a chinesa tem saudade do Japão, ou coisa parecida, assim, entende? Então, tudo isso é a história e, depois, o japonês mata o pai da moça, né?
P/1 – Esse foi o primeiro filme que o senhor viu?
R – É. E o segundo chama (Luten?)
P/1 – Mas espera aí, desse primeiro filme, qual é o nome dele mesmo?
R – Noites de China, China (noiuru?)
P/1 – E foi esse cinema itinerante que foi, lá, na Terceira Aliança?
R – É, exato. Então, quando vinha aquele caminhão a gente corria, porque o único que tinha caminhão era o meu padastro, então, quando vinha outro caminhão do interior, de fora, aliás, não do interior, de fora, quando vinha, nós já corríamos pra ver: o que será, o que tem, qual é a novidade? E todos nós corríamos lá e, depois, via, aí, ia num tipo de depósito, um lugar bem grande, e o pessoal, durante a tarde, aí, começa a colocar a maquinaria, põe o pano branco, que é a tela, tudo, então a gente perguntava pro, digamos, tio, né: “Tio, o que vai fazer com esse pano branco?” “Aqui, anda avião, aqui, anda carro, aqui, anda gente, aqui, os animais lutam, né?” “Mas que Diabo, como é que vai lutar nisso aí, né?”, a gente só ficava assim, aí: “Quando é que vai andar?” ”De noite!” “De noite?” “É, quando está escuro!” “Que Diabo, de noite!”. Aí, quando chegava cinco horas, então, a gente era dispensado. É, cada um vai pra sua casa, chega em casa, a minha mãe disse: “Bom, toma banho logo, janta e vai reservar o lugar”. Então, a gente levava uma almofada e reservava lugar, porque cinema, lá, nesse lugar não existe cadeira que nem essa aqui, uma poltrona, sentado pra assistir, é sentado no chão, com a almofada, entende? E quando escurece os pais vêm, aí, o dínamo trabalha, né, e depois, começa-se o filme, né?
P/1 – Então, o senhor, que no futuro teve uma relação com o cinema, uma relação profissional, teve esse primeiro contato ainda, lá, na comunidade, né, ainda, lá, na Terceira Aliança, teve esse primeiro contato?
R – Exato. E de lá que eu comecei a ir ver os filmes, depois, veio o sonoro também, né, deixando de se ter o muro, né? Então, esses filmes todos. Digo, ainda eu frequento hoje, eu frequento o Melodias da Saudade, a gente canta músicas de 1900, 1910, de 20, 30, 50, né, e depois, têm melodias, Cinemas da Saudade, então, exibe filmes de 1900, 1920, 15, 30, 40, entende? Quando exibiram um filme de 1960: “Ah, esse filme não presta!”
P/2 – Quando que, mais ou menos, o senhor viu esse primeiro filme?
R – Em 1946, logo depois da guerra.
P/2 – Você sentiu diferença, na época da guerra, aonde você morava?
R – Sentiu como?
P/2 – Alguma diferença...
P/1 – Como a guerra influenciou no cotidiano, ali, da sua comunidade?
R – Ah, eu não entendia muito, e assistindo o filme, esse Noites de China, filme de guerra, então, aonde os pais não deixavam casar, porque uma chinesa, e o outro japonês, então, a minha mãe dizia: “Olha, aquela matança que está tendo é a guerra, onde um mata o outro”. Então, tudo isso a minha mãe contava história, porque o filme é mudo, né, não tem explosão, não tem nada.
P/1 – E o senhor se lembra, assim, de alguma reação dos adultos, na época da comunidade, por causa da guerra?
R – Não, a gente brincava, porque tinha (Shindoreme?). (Shindoreme?) e (Saculacumi?). (Saculacumi?) e (Shindoreme?) são contra a derrota do Japão, se você falar que...qualquer criança fazia: “É, Japão perdeu, né?”, aí, levava um tiro na cabeça.
P/1 – Ah, porque era aquela parte da comunidade nipônica que não aceitava, né?
R – Exato, exato! Então, a gente brincava com o cabo de vassoura e dizia: “(Shindoreme?)”, é não sei o que, o meu pai falava: “Não fala isso! Isso não é assunto de criança!”
P/1 – Ah, porque tinha gente que não aceitava mesmo.
R – É. É um perigo desgraçado.
P/1 – E o senhor ficou nessa comunidade até quantos anos?
R – Até dez anos, onde eu não sabia nem comprar um quilo de açúcar. Eu não sabia falar o português.
P/1 – Ah, vocês só falavam em japonês lá?
R – Em japonês. Ou então, quando vinha alguém de fora, que não era japonês, então, a minha mãe: “Vai chamar o fulano, a ciclana que está no terceiro, quarto ano”. Quem estava no terceiro, quarto ano é que sabia falar português, mas quem estava no primeiro, segundo ano não entendia nada, então, tinha que chamar um aluno, uma aluna do vizinho.
P/1 – Ah, porque nos primeiros anos da escola a educação era toda em japonês.
R – Tudo em japonês.
P/1 – E o senhor, naquela época, o senhor se sentia praticamente no Japão, então, ali, né?
R – É, exato.
P/1 – O senhor tinha pouco contato, na infância, com a cultura brasileira?
R – É, porque se a minha mãe precisava de açúcar, mandava buscar mais, eu ia na cooperativa, e a gente comprava em conta corrente, não levava dinheiro, então, quando chega em São Paulo, tem que vim pra comprar um quilo de açúcar... (pausa)
R – Onde é que eu parei mesmo?
P/1 – A gente estava falando que vocês não falavam o português, falavam em japonês.
R – Que não sabia nem comprar um quilo de açúcar.
P/1 – E com dez anos, o senhor foi pra?
R – Campos do Jordão.
P/1 – Conta como é que foi essa mudança, por que o senhor se mudou?
R – É, porque teve problema com o meu padrasto, né, a saúde dele, então, eu fui pra lá.
P/1 – Ah, problema de saúde do padrasto?
R – Isso.
P/1 – E como é que foi essa mudança?
R – Ah, mudamos normalmente, né?
P/1 – Mas e aí, lá, o senhor não morava mais numa comunidade nipônica?
R – Não, não! Aí é que eu comecei a aprender a falar o português, que foi forçado, né?
P/1 – O senhor se lembra de alguma peculiaridade, alguma coisa ficou marcada na lembrança do senhor desse processo de...
R – É, lá eu comecei forçadamente a aprender a falar português, e fui coroinha da igreja Santa Terezinha de Campos do Jordão, Vila Abernéssia, e fiquei um ano, lá, na igreja, né, estudando o segundo ano primário.
P/2 – Na igreja católica?
R – Católica, a Santa Terezinha da Vila Abernéssia
P/2 – A tua mãe não seguia o budismo?
R – Não, não. Não é que não seguia, não tinha meio de seguir, porque a comunidade japonesa é muito pouca, né, então a gente é obrigado a seguir o que está na frente, né, não tinha escolha.
P/1 – Seu Paulo, como é que foi a sua integração na cultura brasileira, lá em Campos do Jordão, na escola nova, língua nova?
R – Então, exato, escola nova, com idiomas que começamos a aprender, não sabia nem como gastar dinheiro, como a gente tinha que receber troco, né? E na igreja a gente foi aprender, que eu era coroinha, né, então, foi aonde eu aprendi o primeiro passo da música sacra, quer dizer, a igreja é o... Aquela que diz assim:
“Glória a Jesus,
na hóstia santa,
com o que consagra sobre o altar,
e os nossos olhos se levantam,
para o Brasil abençoar,
que o Santo Sagramento,
que o próprio Cristo Jesus,
seja adorado e seja amado
nesta terra de Santa Cruz,
seja adorado, seja amado
nesta terra de Santa Cruz”.
R – Na hora da comunhão cantava essa música, eu gostava! Até hoje, eu não esqueço, eu canto também, é música de comunhão, né? E depois, lá, fazia muita procissão, então, é, Corpus Christi, por exemplo, carregar a cruz, essas coisas também, né? Então, quando vai fazer procissão, então, se diz assim: “Louvando a Maria, o povo fiel”. Então, essa daqui também é outra música que eu sempre gostei, sempre!
P/1 – Seu Paulo, nessa época, teve alguma pessoa que te marcou, assim, que o senhor guarda na lembrança, um amigo, um professor?
R – Propriamente dito, o meu padrinho, que faleceu recentemente, há dois, três anos atrás, e a madrinha está viva, eu telefono pra Campos do Jordão, não há meio de receber retorno, já, há três, quatro anos.
P/1 – Conta um pouco sobre essas figuras, os seus padrinhos.
R – É brasileiro, chama Júlio Domingues Pereira, pelo sobrenome, vê, né? Então, na escola que eu frequentava obrigava, por exemplo, a batizar e fazer primeira comunhão, então eu entrei na igreja pra ser até coroinha e tudo, né? E lá, o batizado e, ao mesmo tempo, já fiz primeira comunhão e na hora do batismo os professores que escolheram o casal, lá, Júlio Domingues Pereira, entende?
P/1 – Ah, foi escolhido, lá, ao acaso?
R – É, pelo professor da escola, né? Então eu acho que o professor chegou lá no... Ele tinha secos e molhados, chegou: “Você pode ser padrinho de um rapaz japonês assim, assim?”, e ele aceitou e eu fiquei sendo o afilhado dele.
P/1 – Mas depois, o senhor se aproximou dele, o senhor ficou próximo?
R – Não, depois, ficou escondido! Aliás, desaparecido! Não sabia onde estava, com quem estava, não sabia nada. Então, um dia, isso depois de casado, né, então, a minha sobrinha, que é da irmã da minha mulher, é, tinha um tio que morava em Campos do Jordão, aí, ela pegou e me perguntou: “Tio, conhece Júlio Domingues Pereira?” “Conheço, é, secos e molhados”. Aí, localizou, aí, reatamos, quer dizer, voltamos a ter relação outra vez, até que ele faleceu, há dois, três anos atrás.
P/1 – Vamos voltar um pouco no tempo, nessa sua chegada a Campos do Jordão. O senhor ficou lá até que idade?
R – É, dois anos só!
P/1 – Só dois anos?
R – É.
P/1 – E de lá o senhor foi pra onde?
R – Vim pra, fiquei, terminei em Mogi das Cruzes, no internato, depois, de lá eu vim pra São Paulo, e um ano, um ano eu tinha que terminar mesmo o quarto ano primário e, depois eu entrei, como ginásio, eu entrei na Escola Técnica de Comércio de São Paulo, onde ia fazer comercial, né? Aí, eu formei comercial, eu entrei no colegial, fiquei dois anos, e fiquei doente da vista e larguei. Aí, nessa época, que eu entrei na cinematografia, 15 anos e, depois de cinematografia, fiz de tudo, eu fui até, eu recebi até procuração do meu patrão, pra quando ele ia pro Oriente, porque ele era judeu, a família. Então, o patrão já faleceu, (Hugo Slezynger?), e a patroa, _______________ está viva, até hoje eu tenho contato com ela.
P/1 – Seu Paulo, quando o senhor saiu de Campos do Jordão e foi pro internato, a sua família, o seu padrasto, a sua mãe, eles ficaram em Campos do Jordão?
R – Não, vieram pra São Paulo.
P/1 – Foram pra Mogi das Cruzes também?
R – Não, não, São Paulo.
P/1 – São Paulo?
R – É.
P/1 – E aí, o senhor ficava nesse internato, e via seu padrasto, sua mãe esporadicamente?
R – É, exato. E depois, no segundo ano eu já viajava, no fim de semana eu viajava pra São Paulo. Como naquele tempo, até hoje, né, precisa ter autorização do juizado de menores, né? Aí eu fui na cidade de Mogi, uma pessoa, eu falei: “Aqui, esse aqui que é do juizado de menores, né?” Aí eu peguei e expliquei: Eu e a minha irmã recebemos a autorização pra viajar de São Paulo a Mogi, Mogi a a São Paulo”, por livre e espontânea vontade minha, e sem ser barrado pela fiscalização.
P/1 – Conta um pouco pra gente: como é que era o dia a dia, lá, no internato?
R – Ah, de manhã eu estudava japonês, à tarde ia pro grupo escolar e vice-versa. Se estudava primeiro japonês, à tarde grupo escolar, ou grupo escolar de manhã e à tarde a escola japonesa e, depois, no fim do ano eu fazia teatro, né?
P/2 – O senhor sentia muita falta da família quando foi pro internato?
R – Não, praticamente...
P/2 – E os irmãos, eles estavam no internato também?
R – Também, já estavam junto.
P/1 – Aí o senhor já tinha os três irmãos, nessa altura já tinha os três?
R – É, isso, isso!
P/1 – E o senhor estava com quantos anos?
R – Eu estava com 13 anos. Doze anos, aliás!
P/1 – Tem alguma lembrança especial desses dois anos de internato, um dia, alguma pessoa?
R – É, porque hoje esse internato virou, agora, a Cultura Aliança Japonesa de Mogi das Cruzes. Virou Cultura Aliança Japonesa.
P/1 – O senhor fez alguma amizade, assim, mais marcante nesse começo de adolescência?
R – Ah, tem! Tem uma pessoa que meu irmão encontrou, em vez de pegar o telefone dele, não pegou, agora eu vou ver se eu ainda encontro, naturalmente ele tinha, acho que, eu com 11, 12 anos, ele devia estar com 18, 20 anos, então, ele teria quantos? Doze para 20, oito. Oito com 70, 78 anos, hoje ele deve ter, esse rapaz. E depois, quando eu estudei, aqui, em São Paulo, a primeira escola que eu entrei, eu ainda tenho contato com duas, três pessoas ainda.
P/1 – Mas esse primeiro, era um amigo mais velho que o senhor tinha no internato?
R – É.
P/1 – E o que vocês faziam, vocês brincavam lá?
R – Não, não! Ele é, ele... Porque a idade dele era diferente, ele já trabalhava na mineração, era uma firma grande, né, tipo fábrica de carro, lá, em Mogi. É mineração, fazia as peças de carro, essas coisas.
P/2 – E como foi que vocês ficaram amigos?
R – Ué, porque morava junto!
P/2 – Ah, no mesmo...
R – Internato.
P/2 – Ele era amigo de todo mundo do internato?
R – É.
P/1 – O que o senhor gostava de estudar mais nessa época?
R – Bom, escola japonesa também eu gostava muito, porque, é, é por isso que o que eu sei eu aprendi tudo mais lá também, né, não foi só no interior, também, na Terceira Aliança. Lá, não podia se estudar muito, porque estourou a guerra, né?
P/2 – O que se estudava na escola japonesa?
R – O primário! É linguas, é, ler, escrever. Depois, eu fiquei doente, em 58, eu já parei de ler e escrever, já perdi muitas letras, né?
P/1 – Foi difícil aprender a falar o português?
R – Um pouco difícil, eu falava tudo atrapalhado, porque é diferente, por exemplo, se fala: (luzeiki?). (Luzeiki?) é luz, estação. Aqui, em português é Estação da Luz, né, é Estação da Luz. Japonês fala o contrário, (luzeiki?), o, (santareiki?), não fala Estação de Santana, fala Santana Estação, tudo ao contrário. Então, nessa hora a gente se atrapalhava muito, né?
P/1 – Tem uma história, que me falaram do nome do senhor ser, o senhor via no jornal o nome do senhor, porque é o nome do estado.
R – É, no que eu comecei a aprender a ler, o que eu achava estranho é que todas as páginas dos jornais, mas tudo, tudo tinha o meu nome, né: “Mas que Diabo! Por que tem esse negócio de meu nome aqui nos jornais?”. Aí, eu fiquei sabendo, por causa de são Paulo, né, é o Estado de São Paulo. Então, o meu nome estava lá, em todas as páginas assim.
P/2 – Com quantos anos o senhor descobriu isso?
R – Com 10, 12 anos, quando comecei, mal comecei a ler. Então, a primeira cartilha foi da Benedita Stall Sodré, chama-se, a primeira lição é A pata nada. Aí, eu falei assim. Eu conseguia ler: “A pata nada. Mas o que é a pata nada? O que quer dizer isso, né?”. A pata é a mulher do pato, né, então, a fêmea, o pato fêmea é pata, não é isso? Então, a pata nada, por que será a pata nada? Pata? Eu não sabia o que era pata, depois, eu, pior que pega o pé do cachorro, e fala assim: “Me dá a patinha, me dá a pata”. Como assim? Pata é a mulher do pato ou o que é, né? E tudo isso atrapalhava, quer dizer, em japonês também tem: (hana!?). (Hana?) é, isso daqui é (hana?), e a flor também é (Hana?), mesma coisa, a letra que é diferente, pela letra distingue se está falando da flor ou se está falando do nariz.
P/1 – Nesses anos de aculturação brasileira, que o senhor saiu daquela comunidade mais fechada, o senhor começou a conviver com a cultura brasileira, o que te chamou mais a atenção?
R – Ah, tudo é diferença, né? Todas as coisas que são diferentes acha engraçado.
P/1 – Por exemplo?
R – Bom, uma das coisas eu já falei, é...
P/1 – A palavra.
R – É, a palavra invertida, né? É, porque, por exemplo, o japonês com o inglês é semelhante. Fala inglês?
P/1 – Hum, hum.
R – Não tem duas boa noite? Good evening e good night. Japonês também tem. Good evening é quando chega, (combaua?), e (Oyasuminasai?) é quando vai embora, good night, né?
P/2 – O que é (Irashaimassê?)?
R – Seja bem vindo. Seja bem vindo.
P/1 – Mas e alguma coisa, assim, independende da língua, de hábitos sociais, ou de brincadeiras de criança, ou que é típico brasileiro, ou que o senhor não vivia aquilo na comunidade nipônica, tem alguma coisa que tenha te impressionado, ou que tenha te feito estranhar?
R – É, estranhar é que é diferente só, né, mas eu não sei bem como dizer. Estranhar? Estranhar mesmo, né, assim, mas é que diferente precisa tomar cuidado, a minha mãe falava errado, tinha que corrigir, né? A minha mãe viveu aqui até 1980, vamos supor, 40 pra 80, a minha mãe viveu 37, 38 anos sem falar português, né?
P/1 – Ela não falava português?
R – Não!
P/1 – E o que o senhor encontrou de melhor nessa cultura brasileira, quando era criança e descobriu, alguma coisa que o senhor não imaginava e tenha te agradado?
R – São matérias da escola. Eu gostava de contabilidade, eu gostava de história, geografia. Não a geografia de desenhar mapa, essas coisas, é acidentes geográficos, né? Isso é o que eu gostava. E idiomas também, porque eu e meu irmão, nós temos facilidade de aprender idiomas, então, o meu irmão estudava, ele trabalhava na Volks e ele estudava na Volks desde 12, 13 anos, sei lá, anos e anos ele estudou lá, e chegava em casa, ele fazia aquela lição dele, né? A pronúncia, por exemplo: “I, suai, dry, fier, fulf, zec, zig, ac, noi, trein”, um, dois, três, quatro, né? E depois, eu ia atrás dele: “I, suai, dry, fier, montag, dienstag, mittwoch, donnerstag”, que é segunda-feira, terça-feira, quarta-feira. Então, o meu irmão fala japonês, português, inglês e alemão.
P/1 – Esse é o segundo mais velho?
R – É.
P/1 – Era com quem você tinha mais proximidade?
R – Isso.
P/1 – Que é o (Yorani?)?
R – (Yorani?), isso. Então, ele falava já. Então, eu também gostava, então, eu ia atrás. Então, eu ouvia, antes de 1964, que foi o coisa, então, tinha aquele programa japonês, inglês, alemão, italiano, francês. Então, no francês tinha. Não, no programa alemão tinha a Dona Vilma Rossi, que ela fazia o programa da língua alemã, então, tocava aquela música: (entrevistado começa a cantar em alemão), quer dizer, é, 15 minutos de boa música, isento de propaganda, das Casas Pernambucanas. Então, tocava músicas, valsas, né? Então, eu gostava muito, 15 minutos de boa música mesmo, viu?
P/1 – Logo se vê que o senhor tem uma ligação forte com a música, né?
R – É, música. Então, atualmente, eu estou no André Luiz, bom, eu estou em nove comunidades, então, começa: primeiro, é Cultura Aliança Japonesa, é, estou também no (Ochianomikai?), é, Chá de Encontro, então, no Chá de Encontro é proibido a entrada de casados, porque já tem parceiro! O que vai fazer lá, procurar o quê? Sarna pra coçar! Então, Chá de Encontro pra quem vai procurar parceiro ou parceira. E depois, tem a Melodias da Saudade, música japonesa de 1960, 65. Depois, tem Cinemas da Saudade. Depois, tem Clube da Terceira Idade dos Japoneses, Clube da Terceira Idade do Hospital das Clínicas, lá, também dança, canta, faz bingo, faz viagem, passa no médico, ganha remédio, quando precisar, faz tudo. E depois, eu estou no Sesc [Serviço Social do Comério] Pompéia. Eu vim agora do Sesc Pompéia, né? Depois do Sesc Pompéia, eu também estou na Cada André Luiz, lá, nós estamos aprendendo a Ave Maria de Gounod em latim, aprendemos Nabucodonosor, de Giuseppe Verdi. Depois, então, nós estamos estudando agora Jesus, Alegria dos homens, de Johann Sebastian Bach.
P/1 – Então, Seu Paulo, conta pra gente: como é que a música entrou na sua vida?
R – É paixão! Simplesmente paixão, não foi nenhuma influência de alguém.
P/1 – Qual é a lembrança mais remota que o senhor tem de música? O senhor contou do cinema, fala da música agora.
R – Música, eu aprendi a gostar de piano com o Concerto número 1 para piano, de Tchaikowski, Opus número 23: (entrevistado começa a cantarolar a música citada) “Tãn tãn tãn tããã, tãn! Tãn tãn tãn tããã, tãn tãn tãn tãn. Pum, tã, tã, pum tã tã. La ra la raaa, la ra laaa”. Conhece essa música?
P/1 – Claro, linda! E o senhor tinha quantos anos? Onde foi, mais ou menos, assim, qual é a idade?
R – Mais ou menos, sete, oito anos.
P/1 – Lá, na comunidade?
R – É. A primeira vez que eu ouvi foi nessa idade, e tocando já: (entrevistado cantarola) “Tãrãrãrã, rããã”. Aí, eu comecei a aprender a gostar, porque antes eu só cantava música japonesa, né, só música japonesa. Hoje, canto também música japonesa. Então, tem uma música japonesa, que eu tenho o disco, e está gravado na fita, eu estou procurando pra passar pra CD, porque fita arrebenta, né?
P/1 – Em qual circunstância o senhor ouviu essa primeira música não-nipônica, o senhor se lembra, foi numa festa?
R – Não, o vizinho que tocava! Música clássica quem tocava era o vizinho, que faleceu recentemente também.
P/1 – Aí, o senhor começou a ouvir e se apaixonou por música?
R – É, exato! E meu irmão gozava: “praplã, plãrã plãrã plã, plãrã plãrã plã” “O que foi?” “Ah, vai entender isso aqui, não sei o quê”, que hoje ele fala assim: “Carmem, de Bizet, Tchaikowski, não sei o que”, ele não entendia nada, mas hoje ele gosta também, de música clássica, né?
P/1 – Agora, vamos retornar pro internato de Mogi das Cruzes. O senhor ficou lá dois anos?
R – É.
P/1 – E depois, saiu de lá por volta dos 13, 14 anos de idade?
R – É.
P/1 – E aí, vem pra São Paulo?
R – Isso.
P/1 – Morar com os seus pais?
R – Isso. Depois, eu comecei a trabalhar em cinematografia, né, e fazia fiscalização, gerente.
P/1 – Conta em mais detalhes isso pra gente. Como foi o seu primeiro trabalho?
R – Bom, foi bico: eu vendia, por exemplo, agulha de máquina de costura pra escolas de corte e costura. Vender terreno, que meu padrasto não deixou, porque quem é vendedor de terreno, tem muito picareta, como dizem, né, enganação, entende? Então ele falou que não se deve. Então, eu vendia qualquer coisa. Ah, (katekan?), que é uma roupa, é, que era novidade naquele tempo, acho que não existe mais isso.
P/2 – O que é?
R – É uma roupa, né, camisa, a blusa de mulher, chama (katekan?).
P/2 – É um tipo de tecido?
R – É, então, eu acho que não existe mais. Eu não sei se existe. Então, eu comecei a vender roupa, vendia agulha de corte e costura, que foi muito bom, porque as meninas pagavam direitinho, enquanto que roupa: “Ah, semana que vem eu te pago”, essa semana que vem eu estou esperando até hoje.
P/1 – Agora, o senhor começou a trabalhar como vendedor quando veio pra São Paulo, depois do internato?
R – É, porque como eu não conseguia emprego definitivo, quer dizer, trabalhei também em uma firma, fiquei um ano e meio e saí, entrei em outra firma, e fiquei um ano e saí, né? Mas, depois, firmou mesmo na cinematografia.
P/1 – Depois desses bicos de vendedor, aqui, em São Paulo, aí, o senhor foi trabalhar no cinema, como é que foi isso?
R – É, primeiro que eu estava numa distribuidora, distribuidora de filmes, Produtora e Distribuidora Araida Artes do Brasil e Monogram Pictures Corporation, então, lá, tinha Tarzan, filme Anjos de Cara Suja, de comédia tinha – o que mais? – esses filmes, né, tipo da televisão, né, e depois, tinha filmes de produção grande como: o El Cid, né? El Cid tinha 18 partes de filme, tinha quatro horas e meia, cinco horas de projeção, ou seis horas, uma coisa assim. Uma fita comprida, eu acabei nem assistindo também.
P/1 – Mas como é que o senhor chegou nessa distribuidora?
R – Procurando emprego eu vi lá: precisa-se de menino, office-boy, eu entrei lá, perguntei, aí, imediatamente fui convocado e comecei a trabalhar.
P/1 – O senhor tinha quantos anos?
R – Acho que 16 anos pra 17, e quando completei 18 anos, já, aí, em 1956, já, tirei Título de Eleitor, e a primeira votação foi o JK, o Juscelino Kubitschek de Oliveira, a primeira eleição que eu votei.
P/1 – Mas antes disso um pouquinho, como foi a sua adolescência, aqui, em São Paulo, o senhor saía, o que o senhor fazia pra se divertir, além do trabalho, lá, na distribuidora?
R – Não, na distribuidora eu trabalhava de segunda a domingo, porque se pegar a fiscalização tem que ficar a semana inteira, duas semanas, três semanas, o tempo que o filme ficava eu tinha que ficar lá.
P/1 – Mas e nas horas de lazer, nas poucas horas de lazer o que o senhor fazia, o senhor se encontrava com amigos?
R – É, encontrava com um amigo e ia no cinema, porque eu não pagava cinema, quem ia comigo no cinema não pagava, por quê? Pelo conhecimento, né? Minha mãe também, quando queria assistir um filme japonês, eu levava a minha mãe lá. Ou arrumava o convite pra minha mãe com a minha irmã, entende, a gente ia pro cinema.
P/1 – E qual foi o filme que te marcou nessa época, o senhor se lembra de algum especial?
R – Qual, japonês, inglês, alemão, italiano, francês, brasileiro?
P/1 – Qualquer um que tenha te marcado muito.
R – Bom...
P/1 – Pode ser mais de um.
R – Japonês é mais filme épico, né, principalmente de samurai. O de (Hibari Missora?), por exemplo, foi uma grande estrela também, Hibari, né? Depois, tinham os filmes musicais também, como o (Koga Masao?), por exemplo. Agora, brasileiro, tinha O Cangaceiro, né? Até, hoje eu canto no Hospital das Clínicas: (entrevistado canta) “Olé mulher rendeira, olé mulher rendá”. Aí, todo mundo... Aí, depois, tem, quando eu vou cantar essa música, aí, depois, tinham filmes com músicas brasileiras como. Conhece a Cabecinha no ombro? (entrevistado canta) “Encosta a sua cabecinha...”, essa tem em japonês também: (entrevistado começa a cantar a música em japonês) Então, tem, e, aí, eu canto em... Depois, tem a Lampião de gás, da Inezita Barroso: (entrevistado canta) “Lampião de gás, lampião de gás” (o restante da letra ele canta em japonês). Depois, teve Catita também. (entrevistado canta em japonês) Tudo isso é uma marcação que tem até hoje, e eu gosto, viu, eu tenho gravado na fita, e a fita está sujeita a arrebentar com o tempo, então, eu estou passando tudo pra vídeo.
P/2 – Só pra eu entender uma coisa. O senhor saiu do internato e veio com a família pra São Paulo?
R – Não, eu vim com, quer dizer, família e com os meus irmãos, né?
P/1 – A família já estava aqui, né?
R – É, já.
P/2 – Os irmãos já estavam aqui?
R – Não, estavam...
P/2 – Estavam lá?
R – É.
P/1 – E aonde é que a sua família morava aqui?
R – Na Tabatinguera.
P/2 – Tabatinguera?
R – É, na João Mendes.
P/1 – E quando foi que o senhor teve o problema nas vistas?
R – Em 58, quando fiz 20 anos de idade.
P/1 – Aí, o senhor ainda estava trabalhando na distribuidora?
R – Estava. Estava fiscalizando o Cine Glória, da Rua do Gasômetro. Eu estava no Cine Glória, na Rua Gasômetro e...
P/2 – O senhor pegava a bilheteria e levava, é isso?
R – Não, não, fiscalizar! Fiscalizar é o seguinte: por exemplo, a senhora é dona do filme, e eu sou o dono do cinema, então, a gente pergunta: “Como que vão fazer esse negócio?”, então, a senhora diz: “Me dá 60%”, e 40% é pra mim “Não, não, vamos fazer igual, 50 a 50” “Tá bom”. Agora, se não mandar fiscal, lá, pra fiscalizar, entra 600 pessoas e fala que entrou só 200, entende? Não é? Entrou mil, fala: “Ah, entrou só 300”.
P/2 – Por isso que o senhor trabalhava de domingo a domingo?
R – É, exato.
P/1 – Fiscalizando?
R – É. Quer dizer, isso é difícil de acontecer, né, mas o dono do filme, que é americano, aliás, da Artes do Brasil, que é americano, então, de praxe é obrigado a mandar fiscal.
P/2 – O senhor frequenta muito cinema hoje em dia?
R – Não, eu não gosto de cinema de shopping.
P/2 – Mas e de rua?
R – De rua eu gosto, mas não tem!
P/2 – Aquele na Augusta, o senhor não gosta?
R – Não, esse na Augusta, no centro. No centro, cinema, no centro tinha, no Largo do Paissandu tinha: Cine Art Palácio, Cine Olido, Cine Rivoli, Cine Broadway, depois, no lado de lá tinha: Cine Bandeirantes, é, que virou Cine Ouro, depois, tinha Paissandu, Cine Marrocos, todos esses cinemas chamados cinemas de rua, que hoje só tem Cine Marabá, o resto, tudo é porcaria, pornô. Cinema de família, no centro, só tem Cine Marabá. Então, quando o Cine Marabá, em 1900 e... Não, desculpe! Em 2005 ele completou 60 anos, o Marabá, então, no dia 13 de maio eu peguei e telefonei, a menina atendeu: “Cine Marabá”, eu falei assim: “Eu queria falar com o gerente” “Quem quer falar com ele?” “Um amante do cinema” “O quê?” “Um amante do cinema. Faz o favor, me chama”, aí, o gerente falou: “Quem é que está falando?” “Eu sou amante do cinema, eu quero dar os meus parabéns pelo aniversário do meu querido Cinema Marabá, porque eu fui, trabalhei no cinema, e a data do aniversário e tudo eu não esqueço, dia 13 de maio de 1945, ainda estava em plena guerra, que terminou em agosto de 45. Então, eu estou dando parabéns pelo aniversário”. Aí, ele ficou, acho que meio encucado, ficou assim... Aí, um dia eu passei e falei assim: “O senhor é o gerente?” “Sou” “Eu sou o Paulo, o amante do cinema” “Ah, é o senhor, é?”, aí, batemos papo, né? Então, o Cinema Marabá foi inaugurado em 45, no dia 13 de maio. E em 15 de agosto de 88 foi inaugurado o Cine Metro, na Avenida São João, né? O Cine Áurea, que fica na Rua Aurora, aquele também, ele foi inaugurado em 58, né, em 29 de abril de 58. E, assim, todos esses são cinemas que inauguraram na minha época.
P/2 – E depois de fiscal, o senhor foi fazer o que na distribuidora?
R – Aí, eu passei a ser gerente, que o meu patrão fez cinema pequeno, Cine Europa, Bijou, Cometa, Guarani, quatro cinemas, eu...
P/1 – O Cine Bijou é dele?
R – É. Era, né, ele já faleceu. Vendeu. Faleceu já. Então, Cine Bijou, Europa, Cometa, Guarani, então, eu gerenciava, subgerente, cada cinema tinha um gerente fixo, depois, eu fazia folga, quando é que ia folgar, eu fazia a folga, né, fechava o cinema. E, naquele tempo, o senhor sabe aonde fica o Largo Franklin Roosevelt?
P/1 – Hum, hum.
R – De lá, à meia-noite, uma hora da madrugada, eu pegava aquele pacotão de dinheiro da renda do cinema, enfiava no bolso e ia a pé até a João Mendes. Até a João Mendes, ia a pé! Nunca aconteceu nada, graças a Deus, nunca!
P/2 – E o senhor morava aonde?
R – Então, na Tabatinguera, na João Mendes. Então, eu ia até a João Mendes a pé!
P/2 – Ah, levava pra lá e, depois, levava pro...
R – É, no escritório, no dia seguinte. E hoje, nem com uma nota de cem não dá pra andar. (riso)
P/1 – E aí, quando o senhor teve o problema na visão, isso influenciou muito no seu trabalho?
R – Não, influenciou no seguinte: que eu fazia o que eu posso fazer. Então, depois de uns tempos, eu fiquei uns quatro, cinco anos trabalhando pro TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, Rua Major Quedinho, ou...
P/2 – Sertório?
R – Não, Major Quedinho. Não! É, Major Quedinho.
P/1 – Não, o TBC? É.
R – É, TBC, Teatro Brasileiro de Comédia. Então, aquele lá, hoje, está fechado, o Teatro das nações, na Avenida São João, e junto, anexo ao Teatro de Bolso, né? Então, pra fazer aquilo lá, então, eles fizeram cota de participação, e essa cota de participação, é, a pessoa compra um tipo de ação e, com isso aí, entra no teatro todo mês, duas pessoas por mês. Todo mês! Então, quando eu trabalhei lá, e depois, o cinema já começou a morrer, o teatro também, já terminou a minha obrigação, aí, eu comecei a trabalhar com banca de jornal.
P/1 – Mas espera aí, antes de chegar nessa nova etapa. Nessa idade, o senhor já tinha 20 anos de idade, né?
R – Isso.
P/1 – E namoros, o senhor namorava?
R – Não! Eu casei, é, apresentação! Chama-se (Miai?)
P/1 – Desculpa, eu não entendi.
R – (Miai?). (Miai?) é a apresentação.
P/2 – Se casa por apresentação.
P/1 – Ah, tá!
R – Então, eu não estava nem aí pra casar, né? Então, eu tinha 25 anos. Aí, no dia 29 de abril de 1963, veio a tia, que é a irmã do meu padrasto, chegou lá: “Olha, tem uma moça assim, assim, assim, eu gostaria que você visse ela, se você gostar e ela gostar, então, você pode casar, né?” “Eu, casar?”, eu falei. Minha mãe apareceu, falou: “Ué, todo mundo casa! Você não está com 25 anos, o que está fazendo aí?” “Eu tô caçando mosca”, eu falei assim, né?
P/2 – Por que o senhor não queria, não estava nem aí pra casar?
R – Não, não é que eu não estava nem aí, porque eu não estava nem pensando, né, eu estava trabalhando de segunda a domingo, de segunda a domingo. Aí, eu peguei, no dia 29 de abril de 63, aí, meu padrasto e eu, e a minha mãe falou assim: “Pede folga, porque trabalha de segunda a domingo, pede folga no domingo que vem, dia cinco de maio” “Tá bom!”. Aí, eu cheguei lá e eu falei assim: “Seu Hugo, eu tenho que levar os meus pais, eu não sei aonde, onde Judas perdeu as botas, e eles não sabem falar português e eu tenho que ir lá pra ser intérprete.” “Ah, tudo bem, não tem problema, não.”
P/2 – O seu padrasto também não falava português?
R – Não. Aí, eu falei que ia levar, né? “Vai, tudo bem”. Depois, encontrei com ela, com a família dela, e nós, aí, com a irmã do meu pai, que ela que falou disso, né? E conversa vai, conversa vem, tudo, e ficou acertado que ia namorar umas semanas, ou meses, sei lá, né? Ia namorar!
P/2 – Quem é que fez esse acerto?
R – Eles, lá.
P/2 – O senhor gostou dela?
R – Não, não. Não sei, no primeiro dia, nada de gostar, tem que ter um pouco de, né, namoro, né, vamos dizer. Aí, eu peguei, e acertou isso aí. No dia seguinte, eu falei assim: “Seu Hugo, se o senhor está com vontade de me bater, pode bater. A senhora também, Dona Janina, pode me bater” “Bater em você por quê?”, eu falei assim: “Porque aquela história de ir levar os meus pais assim, assim, assim foi a maior piada do mundo”, aí, os dois, o casal ficou assim, né? “Isso é piada, né?” “É o seguinte: a tia, a irmã do meu padrasto, queria apresenta uma moça, e se der tudo certo, casa, se não der, tudo bem!”. Aí, eu falei que era mentira, dizendo que ia levar os meus pais pra não sei onde, né, e isso tudo era pura invenção minha, história, né, pra poder escapar, pra poder faltar naquele dia, eu falei na segunda-feira. Aí, ele falou assim: “Se der tudo certo”. Aí, passou três semanas, na terceira semana nós confirmamos: “Eles vão casar”.
P/2 – Como é que você fazia pra namorar se você trabalhava tanto?
R – Então, nos dias de domingo eu folgava.
P/2 – Em três domingos, então, o senhor já se decidiu que ia casar?
R – É. Então, um dos gerentes chamava-se Osvaldo: “Osvaldo, o Paulo vai folgar, agora, domingo, viu? Então, se vire, aí, no domingo, que o Paulo não vai trabalhar.” “Tá bom, tudo bem”. Porque o Cine Cometa abria às nove da manhã e fechava à meia-noite, então, uma pessoa só, o dia inteiro, todo dia! Cansa, né? Então, eu tinha que ir fazer uma ________ também. Aí, eu peguei, eu falei assim: “Eu vou sair pra namorar”, e namorei, né, tudo bem! Aí, na terceira semana eu perguntei: “Como que é, o que você acha?” “Bom, se você quer, eu aceito” “Tá bom, se você aceita, eu também aceito”. Aí, cada um foi pra casa contar, dizendo: “Nós vamos ficar, né?”
P/2 – Aonde vocês namoravam?
R – Ia pro cinema, levava ela pro cinema. Ia, levava pro cinema, e à tarde levava em casa, jantava e levava ela pra, ela morava em Pinheiros, levava pra Pinheiros de volta. Eu voltava às 11 horas, meia-noite.
P/2 – Vocês iam de ônibus?
R – É, de ônibus.
P/1 – E como é que foi o casamento?
R – O casamento foi feito na casa dela. Eu morei dois anos com os meus pais, depois, mudei pra Vila Maria, à custa do meu compadre, hoje. E esse proprietário da casa, que ele queria vender a casa, então, eu tinha que sair, eu saí em 1970, eu fui morar na Vila Maria, morei até 2000, 30 anos, já! A minha mulher morreu em 98, e em 1998, aí, eu vendi a casa.
P/1 – Mas nessa época, logo que o senhor se casou, como era o seu relacionamento com os seus irmão?
R – Não, normal.
P/1 – Vocês eram próximos, eles moravam em São Paulo?
R – Não, morávamos todos juntos. Dois anos, né? Depois, eu saí de lá, que eu fui morar na Vila Maria, aí, só nós dois.
P/1 – Aí, o senhor se casou e foi morar com a esposa?
R – É, quer dizer, casei, fiquei com ela, com os meus pais, depois de dois anos eu fui morar na Vila Maria.
P/2 – Ah, então, morava os seus pais, os irmãos, você e ela?
R – Isso.
P/1 – E o senhor continuou trabalhando lá, como subgerente nas salas de cinema?
R – Isso, é.
P/1 – E com que idade que o senhor abandonou esse trabalho no cinema?
R – É, em 1967. É, de 67 até 92 eu fui jornaleiro, né?
P/1 – Aí, como é que foi, como é que uma banca de jornal apareceu na sua vida?
R – Primeiro foi aqui, na Rua Tupi, na General Olímpio da Silveira. Depois, foi alugado, e o dono lá, me desentendi como o dono, eu peguei e caí fora. Aí, eu estava perambulando aí, dois, três meses, como o Cine Áurea, o dono do Cine Áurea era primo do Ademar de Barros, ele me conhecia, porque eu fiscalizava cinema, né, eu fiscalizei o cinema deles também, então, ele me conhecia, e ele falou assim: “Oh, deixei recado com teu irmão. Oh, o Seu Fernando está procurando você”. Aí, um dia eu fui lá no escritório dele: “O que é, hein, Seu Fernando?” “É, lá embaixo, na galeria tem espaço, eu vou com você, e você vê, faz o que tem que fazer aí, e eu mando o carpinteiro, e fazemos prateleiras pra você vender jornal lá, assim eles não põe tudo...”, porque antigamente não tinha saco de lixo, era lata de lixo, então, empilhava tudo o que é lata de lixo lá, e cheirava mal, então, ele queria que eu montasse banca de jornal naquele beco, naquele espaço, pra eles evitarem de jogar lixo lá, né, largar lixo, aliás. Aí, eu comecei a fazer a banca de jornal lá.
P/2 – Mas e a primeira banca de jornal, como que o senhor foi...
R – Banca normal, da rua.
P/2 – Mas como é que o senhor escolheu essa mudança, como foi essa mudança do trabalho como subgerente de cinema pra banca?
R – Porque cinema, não tinha mais. Fechou, fechou, fechou!
P/2 – Os cinemas fecharam?
R – Fecharam! Em 67 não tinha mais cinema pra trabalhar.
P/2 – Não tinha mais cinema?
R – Não.
P/1 – Por que aconteceu isso?
R – É, porque saiu televisão, televisão a cores, filmes em cores, do cinema, na televisão, então, os cinemas foram avacalhando, avacalhando.
P/2 – Fechou em 60 e?
R – Sete. Em 67, também, acabou o bonde, o bonde na rua. Quantos anos tinha em 1967, em meia, sete?
P/2 – Quantos anos eu tinha?
R – É.
P/1 – Zero!
R – Ah, é. Então, em 1967, no dia 19 de janeiro, ou 19 de janeiro de 67 acabou, foi a última viagem do bonde na rua.
P/1 – O senhor se lembra desse dia, assim, como é que foi?
R – Lembro!
P/2 – Como é que foi?
R – Eu ia fazer uma festa na Vila Maria, não deu certo, né? Ia fazer festa, em 2007, este ano, já faz 40 anos que o bonde saiu da cidade, e não deu certo.
P/2 – Mas como foi o dia?
P/1 – O senhor se lembra?
R – Esse dia, 19 de janeiro?
P/1 – É.
R – Eu não etava em São Paulo, eu estava viajando. Quando eu voltei da viagem tinha acabado o bonde, então.
P/2 – O senhor gostava de andar de bonde?
R – É, bonde era mais barato, eu ia sempre. Naquele tempo, eu já fumava, né, então, a diferença de ônibus pra bonde é que dava pra comprar cigarro.
P/1 – E a vida como jornaleiro, como é que era o seu dia-a-dia?
R – Ah, uma luta! Porque a minha mãe dizia: “Toma conta do cinema, já que você é procurador do cinema, se dedique ao cinema como se fosse seu, com amor, carinho e dedicação, porque um dia, quando você for patrão, o menino ou menina que trabalhar com você, vai se dedicar do mesmo jeito, porque Deus faz isso. Deus, lá em cima, sabe o que faz”. Dito e feito, um dia, eu fiquei patrão de banca de jornal, e tinha um menino, que o menino se dedicava muito!
P/2 – E você ainda fala com ele?
R – Esse menino?
P/1 – É.
R – Infelizmente, morreu afogado na Lagoa do Ibirapuera, não tem a lagoa lá, no Ibirapuera? Foi catar a bola que caiu lá e morreu afogado.
P/1 – Faz tempo isso?
R – Ah, foi em 1978 ou 80, por aí.
P/1 – Mas e a banca de jornal, o senhor tinha uma freguesia...
R – Ah, tinha! Eu...
P/1 – ...cativa?
R – Exato, porque eu trabalhava, mais ou menos, de cada cem jornais, 80 jornais era entrega a domicílio, quer dizer, a entrega a domicílio garante, porque a pessoa não vai comprar em qualquer lugar, então, eu fazia uma seleção de manhã pra entregar, eu vejo quem é que vai sair cedo de casa com o jornal na mão, então, eu vou lá entregar, entende? Depois, revistas também: Bom apetite, Medicina e Saúde, Forno & Fogão, é, crochê, tricô, bordado, tudo isso, a maioria é fascículo de mulherada.
P/2 – É o que mais vendia?
R – É.
P/1 – E os jornais, quais eram os jornais mais vendidos?
R – Ah, tem: O Estado, a Folha, o Jornal da Tarde, a Folha da Tarde, esses são os melhores, e depois, tem: O Diário Popular, que virou O Diário de São Paulo, agora, né, então, esses aí são os melhores.
P/2 – E antes de ter a banca, o senhor já lia algum?
R – Lia.
P/2 – Qual que o senhor gostava?
R – Não, eu lia tudo, tudo estava na minha mão, né, então, eu lia o que tinha na minha mão.
P/1 – E o senhor ficava na banca o dia todo?
R – Não, eu tinha o menino que ajudava, entende? Agora, quando a entrega tem que ser rápida, eu deixava ele na banca e, xiiii, corria a freguesia, senão, eu mandava: “Oh, vai entregar em tal lugar, tal e tal lugar”.
P/1 – Qual era o nome da rua mesmo? Desculpe a pergunta.
R – Aurora.
P/1 – Ah, era na Aurora?
R – É. Então, quando eu me estabeleci na Aurora, minha cunhada, a irmã mais nova da minha mulher, xingou tanto: “Onde se viu, trabalhar no meio dessas prostitutas, não sei o que”, eu falei assim: “Vera, presta atenção no que eu vou falar. As prostitutas respeitam muito mais do que qualquer um”. Respeita mesmo! Se eu estou com anel, aliança, elas diziam: “Não mexe com o Seu Paulo, ele é casado, tem esposa que eu conheço”, porque a minha mulher, de vez em quando, ia lá, entende? E as prostitutas respeitam muito, mais do que qualquer pessoa.
P/1 – Então, naquela época, no final da década de 60, começo da década de 70, já era uma área de prostituição, ali?
R – Ah, sim! Faz tempo. Só, que não tinha a maconha. Hoje, já é a maconha também, né? Chama-se, é...
P/1 – Cracolândia!
R – Cracolândia, exato. Maconha não tinha, mas a prostituição tinha, mas as prostitutas respeitam muito mais do que qualquer um.
P/1 – Mas era um lugar, assim, perigoso?
R – Não, não, não! Não tem nada de perigo! Não tem nada de perigoso, elas não faziam nada com a gente.
P/1 – O senhor abria que horas...
R – Principalmente eu, né, que elas me conhecem, vendia fiado pra elas, elas pagavam no dia, direitinho. Chegava lá: “Seu Paulo, chegou a Amiga?” “Chegou, pode pegar.” “Tá bom, depois eu acerto.” “Tá, tudo bem, eu marco aí.”, marco pelo número do apartamento que ela mora. (risos)
P/1 – E o senhor ficava na banca até à noite?
R – É, das sete da manhã às sete da noite. É mercado, uma galeria. Na galeria tinha: açougue, floricultura, frangos, verduras e legumes, frutas, peixe, é, rotissa, rotisse, como que é, rotisseria, que chama? Rotisseria, tinha de tudo lá dentro.
P/1 – E como era a sua vida em casa, nessa época?
R – Então, eu chegava às oito, oito e pouco, aí, tomava banho, jantava, assistia alguma coisinha de nada, um jornal, aí, dormia às nove horas, já, às três horas eu levantava
P/1 – Três horas?
R – Três horas.
P/1 – Nossa senhora!
R – Antes das três horas, porque três e 15, três e 20 eu saía de casa, porque o ônibus saía antes das quatro horas do ponto, porque lá é ponto final da Praça da Alegria.
P/2 – Na Vila Maria.
R – Vila Maria alta.
P/1 – E pegava o ônibus às quatro?
R – É. Ia na cidade e comprava revista, porque revista não entrega no, não é entregue, só o jornal que vinha na banca, e a revista tem que buscar na distribuidora, a gente, é, até, antes das sete horas tem que estar tudo pronto.
P/2 – Todos os dias o senhor ia comprar revistas?
R – De segunda a sábado, é. Sábado tem pouca coisa, mas tem o jornal alemão, que saí uma vez por semana, tem que ir buscar no sábado. Então, eu vendendo o jornal alemão, saía no jornal, o próprio alemão dizendo: japonês vendendo jornal alemão.
P/2 – O senhor nunca teve saudade da época que trabalhava em cinema?
R – Tenho saudade, então, e saudade também da banca de jornal, 25 anos, né?
P/1 – Mas aí o senhor ficou 25 anos na banca, e o senhor continuou frequentando cinemas? Como um amante do cinema, e não como profissional.
R – Não frequento, até, hoje, se eu tivesse chance eu frequentaria, mas, infelizmente, tem que ir aonde eu não gosto muito, né, como é que é? É, shopping, né? Eu não gosto muito, mas quando tem filme bom eu vou lá.
P/1 – E filhos, Seu Paulo, o senhor teve filhos?
R – Tenho três.
P/1 – Quando foi que o senhor teve o primeiro filho?
R – O meu primeiro filhos nasceu quando eu estava junto com os meus pais.
P/1 – Ah, logo no começo da sua vida de casado?
R – É, isso! Um ano e meio depois. É, depois que completou dois anos eu saí de lá, né?
P/1 – Quais são os nomes dos seus filhos?
R – Luiz Antônio (Shigueraro?), o Marcelo (Massaiochi?) e a Glória (Yoshie?).
P/1 – Fala pra gente em que ano eles nasceram, só pra gente registrar.
R – O Luiz Antônio nasceu em 1965, sob o signo japonês de cobra; o segundo é o Marcelo (Massaiochi?), nasceu em 29 de abril de 67, sob o signo japonês de carneiro; e terceira é a Glória (Yoshie?), sob o signo de cachorro.
P/1 – E qual é a atividade deles, hoje?
R – O Luiz Antônio está morando em Santa Catarina, na capital, Florianópolis, Glória mora, aqui, na Vila Madalena, e o Marcelo mora comigo, quer dizer, eu é que moro com ele, ele é massagista, né, acupunturista, agora está estudando fisioterapia também.
P/2 – Você deu um nome em português e um nome em japonês pra eles?
R – É, enquanto que eu...
P/2 – Pro Luiz Antônio, não, é só português?
R – Não, é Luiz Antônio (Shigueraro?).
P/2 – O (Shigueraro?) não é sobrenome, é um nome, né?
R – Não, nome! O sobrenome é Ohira.
P/2 – E eles aprenderam a falar um pouco de japonês?
R – É, eu falava pra minha mulher: “Olha, nós dois falamos japonês, vamos falar em japonês dentro de casa, um dia, quando ele precisar ir pro Japão, vai dançar de verde e amarelo sem saber, né?” Aí, quando se fala em japonês, tem que traduzir em português pra eles entenderem melhor, né? Então, o que acontece? Se eu falar mais em português, português! Então, lembra aquele Bateau Mouche, que afundou no Rio de Janeiro? Enquanto eu estava vendo aquele navio afundar, ele voltou, à meia-noite, dizendo: “Mamãe, eu acho que vou pro Japão”, eu falei: “Dito e feito! Eu não falei? E agora, em menos de seis meses ele vai aprender a falar japonês como a gente fala? E agora? Dito e feito”, depois, foi lá, apanhou que nem cão sem dono.
P/1 – E o senhor, nunca foi pro Japão?
R – Fui uma vez, em 95.
P/1 – Como é que foi essa experiência?
R – Ah, passeio, né? Eu queria trabalhar, fiquei quatro anos tentando, tentando, ninguém queria me pegar.
P/1 – Isso foi depois que o senhor parou de trabalhar com a banca?
R – É.
P/1 – Quando que o senhor parou?
R – Não, não, não! Não é que parou, trabalhando na banca, e ia fazer entrevista. Trabalhava na banca e ia fazer entrevista. Onde tinha entrevista, ia fazer entrevista, depois, reprovado, reprovado, reprovado! O que eu ia fazer? A minha vista, né? Eu queria ser tradutor lá, intérprete! A turma que vai daqui não sabe falar português! Mas precisa saber ler e escrever também, então, não tinha chance.
P/1 – Mas o senhor trabalhou na banca, teve banca até quando?
R – Até 92.
P/1 – Lá, no mesmo lugar?
R – É.
P/1 – E por que o senhor parou com a banca?
R – Porque tinha mais ladrão que freguesia de jornais e revistas.
P/1 – E como é que foi o término?
R – Então, eu peguei e fui no Cine Metro, que eu tinha amizade, eu falei com a menina: “Me bate um negócio assim, assim, assim”, ela bateu, né, dizendo que vai deixar de ter banca, por motivo de saúde, quer dizer, tem que ter um pouco de desculpa, né, por motivo de saúde, pá pá pá, a moça escreveu, aí, eu peguei e imprimi 300 folhas, aí, eu comecei a distribuir pra freguesia toda, avisando todos os fregueses, isso aconteceu em dois meses: dia cinco de julho de 1992 deixarei de ser o jornaleiro. Avisei todo mundo, distribuidora, tudo! Não fiquei devendo nenhum centavo na distribuidora, nada!
P/2 – O senhor não pensou em mudar a banca de lugar?
R – Não! Eu paguei muito caro. Quando a gente se interessante, principalmente, eles metem a faca.
P/2 – E aí, o senhor parou?
R – Parei! Eu já estava cansado de levantar às duas horas. Antes, eu dormia duas horas, pra levantar às seis, sete horas, porque ia no trabalho do cinema, né, fechava meia-noite, dormia às duas horas da madrugada e saía de casa seis horas, seis e meia, sete horas, né, conforme o dia. Depois, quando eu era jornaleiro, dormia mais cedo, às nove horas da noite, nove, dez horas, e levantava às três horas, né?
P/2 – Mas os trabalhos que o senhor disse que procurou quando ainda estava com a banca...
R – Lá, no Japão!
P/2 – ... Não quiseram? Quando o senhor tinha a banca o senhor fez entrevistas de trabalho?
R – Isso, pra ir pro Japão.
P/2 – Ah, ia e voltava?
R – Hã?
P/1 – Não, ele queria arrumar um trabalho no Japão, né?
R – No Japão, exato.
P/1 – Mas e como é que foi, o senhor encerrou o trabalho na banca em 1992?
R – Não, eu comecei em 1980 e pouco, 88, 87, que eu comecei a procurar, fui fazendo entrevistas.
P/1 – Pra trabalhar no Japão?
R – Exato, e não deu certo.
P/1 – Então, o senhor parou de trabalhar com a banca em 92...
R – Que tinha mais ladrão do que freguês de jornal, né?
P/1 – ... E a partir daí, como é que foi a sua vida?
R – Aí, eu comecei a aprender a fazer massagem. Hoje eu faço massagem também. Mas só massagem simples, né?
P/2 – Você gosta de aprender bastante, né? Porque o senhor está aprendendo um monte de coisas agora.
R – É. Então, eu aprendi a fazer massagem. Naquele tempo, eu ganhava 30 reais pra a aplicação, falei: “Arruma três, quatro”, e já dava cento e tantos reais por dia. Por dia, né?
P/1 – E nessa época os seus filhos moravam com o senhor ainda, ou não?
R – É.
P/1 – Em 92?
R – É. Em 92, é. Então, o meu filho que está comigo aí, o do meio foi pro Japão, né, o que apanhou por não saber corretamente o japonês.
P/1 – Mas aí, o senhor foi pro Japão em 1995?
R – É, passeio, né?
P/1 – Ah, foi só pra passeio?
R – É, exato.
P/1 – O seu filho estava morando lá, no Japão?
R – Isso, e depois, ele veio junto comigo e não voltou mais pra lá. Pra encerra, encerrar no Japão os cinco anos de atividade, e ele convidou nós pra ir pra lá a passeio.
P/1 – E o que o senhor achou quando conheceu o Japão, qual foi a sua impressão?
R – Ah, vida muito agitada, pra quem está acostumado a agitação daquela vida, corre, corre, corre. E mantém limpa a cidade, ninguém joga nada, nem palito de fósforo. E tem galho de cerejeira, assim, ao alcance das crianças, aí, olha, mas nunca pega e arrebenta, nunca! Está tudo bonitinho, limpinho, ou, no chão só vê pétalas de flores ou folhas de árvores, né, caída no chão. Papel, palito, ponta de cigarro, não se vê.
P/2 – Que cidade do Japão que o senhor foi?
R – Ah, eu estive em várias, eu estive em Kumamoto, capital Kumamoto, é, eu estive em (Aichi-ken Nagoya?), eu estive também aonde os meus pais nasceram, né, (Aichi-ken Nagoya?)...
P/1 – É em qual região do Japão a cidade dos seus pais?
R – (Aichi-ken Nagoya?)! (Aichi-ken?) é província de (Aichi?), Nagoya é cidade.
P/1 – É no sul, fica no sul do Japão?
R – Eu não sei! Eu não sei, porque eu não entendo muito o mapa do Japão. A minha mãe olhava: “Aqui ficava tal”, pelo formato do mapa, né, a minha mãe conhecia tudo direitinho, mas eu não entendo.
P/2 – O senhor foi pra Tóquio?
R – Fui, eu passei em Tóquio, passei uma noite em Tóquio. É, o diabo, que, é, que no Japão quando, eu posei duas noites no hotel, uma em Kumamoto, na cidade de Kumamoto, e outra em Tóquio. Depois, estive no... Ah, estive na casa do meu irmão, que já está aqui, meu irmão morava na, é, aquela cidade, é, é morava numa das cidades, aí, eu fiquei três dias, ele pegou três dias de licença, né? Em (Shizuoka?)! Não, não é em (Shizuoka?), não! Em (Yamanashi?)! É, ele esteve em (Yamanashi?), e ele estava trabalhando em (Yamanashi?), pediu três dias de licença, ele pegou o carro dele e rodou o Japão todo.
P/2 – Foi só um irmão seu que morou lá?
R – Meu filho e meu irmão, tem dois. Tem outro ainda que está lá.
P/1 – Dos seus três irmãos, é uma irmã e dois irmãos, hoje em dia eles estão aonde?
R – Então, um está no Japão. É, e o outro irmão está aqui.
P/1 – E airmã?
R – A minha irmã também está aqui, ela já está aposentada, né?
P/1 – Moram em São Paulo?
R – É.
P/1 – E um está no Japão?
R – É.
P/1 – Aí, o senhor voltou, depois desse passeio, em 1995...
R – Fui e voltei, né?
P/1 – ... Conta como é a sua vida, assim, porque o senhor ficou viúvo, em que ano mesmo?
R – Em 98.
P/1 – Então, quando o senhor foi, a sua esposa foi com o senhor?
R – Exato.
P/1 – Aí, o senhor ficou trabalhando como massagista, depois da banca...
R – É, isso.
P/1 – ... Morando, lá, na Vila Maria?
R – Então, eu falava: “Vixi Maria, né?”, quando se assusta com alguma coisa: “Vixi Maria, né?”, não fala assim?. Eu moro na Vila Maria, nada de Vixi Maria. (riso)
P/1 – Mas e depois que o senhor ficou viúvo, o senhor saiu de lá?
R – De onde?
P/1 – Da Vila Maria?
R – Ah, eu vendi a casa, porque a casa estava velha, só eu morei 30 anos, eu não sei quantos anos morou lá o dono anterior, a casa já estava em petição de miséria, eu vendi antes que começasse a cair tudo, né? Consertar, eu não tinha dinheiro pra consertar.
P/1 – Aí, o senhor foi morar com o seu filho?
R – É.
P/1 – E como é a sua vida desde então, quais são as suas atividades? (pausa) Então, a gente estava falando de 1995, depois que o senhor retornou do Japão, aí, alguns anos depois o senhor ficou viúvo e foi morar com o seu filho, né, vendeu a casa, como foi a vida a partir de então, morando com o filho, o filho já era casado?
R – Era casado, mas hoje, infelizmente ficou sozinho. Separou, né?
P/1 – Então mora o senhor e seu filho?
R – É. E eu que faço a comida dele, porque ele é vegetariano, não come qualquer comida, né?
P/2 – Onde que é agora a sua casa?
R – É, na Condessa Siciliano, no Jardim São Paulo.
P/2 – Em que região que fica?
R – Uma estação depois da Estação Santana.
P/1 – Como é o seu dia-a-dia hoje, o senhor falou antes que o senhor frequenta várias comunidades, como é o seu dia-a-dia? Pelo visto é um cotidiano bastante animado, né?
R – É, porque na terça e quinta eu vou no Sesc, né, lá em Pompéia, Rua Clélia. Eu vou lá, faço ginástica, encontro com o pessoal, né, converso e tudo. E quarta e sexta eu vou no Hospital das Clínicas, né?
P/1 – O que o senhor faz no Hospital das Clínicas?
R – Ah, a gente canta, dança, faz bingo, ou faz viagem, passa no médico. Agora, sexta-feira eu tenho que passar no médico. Periodicamente é obrigado a passar lá, pra ver como é que está a coisa, a pressão. Uma vez por ano faz exame de sangue, urina, fezes, tudo.
P/1 – E o que mais, têm mais comunidades que o senhor frequenta?
R – É, depois tem os cinemas da saudade, melodias da saudade.
P/1 – Aonde é?
R – Na Liberdade.
P/2 – Como que o senhor foi descobrindo essas comunidades todas?
R – Não, eles é que convidam, né, a gente, porque um vai conhecendo o outro, né? Depois, é, André Luiz, pra cantar óperas, por exemplo, Giuseppe Verdi, Johann Sebastian Bach, é, Gounod, a Ave Maria. Só, que Gounod é cantado em latim, né? Essas coisas que eu gosto, eu faço. Então, quando eu vou ensaiar uma música, o professor já sabe: “Vamos ensair uma música que o Seu Paulo Gosta”. Tem Luzes da Ribalta, de Charles Chaplin, tem o Mágico de Oz, Além do Arco-Íris, né? Tudo isso aí, a Ave Maria, de Gounod. Tudo isso aí eu gosto.
P/1 – Seu Paulo, a gente está caminhando, já, pro final da entrevista, e eu queria fazer uma pergunta pro senhor, é o seguinte: o senhor que é brasileiro, com essa ascendência nipônica, com toda a cultura japonesa permeando na sua história, o que o senhor acha que é a grande lição que um brasileiro pode ter da cultura japonesa, e ao mesmo tempo, uma grande lição que um japonês pode ter da cultura brasileira?
R – Ah, eu nunca pensei, viu, nesse ponto. Precisa haver capacidade, interesse, é, de cada um, né? Por isso que eu nunca pensei, né, nisso aí, o que pode ser?
P/2 – Teve algum amigo brasileiro que disse que aprendeu alguma coisa com você?
R – É, alguns que casaram com japonês ou japonesa, que quer ir pro Japão, mas sem saber falar japonês, diz que não quer ir, quer aprender a falar japonês. Eu ensino, mas o japonês tem complicação, em contagem principalmente, pra contar a gente fala: (entrevistado fala em japonês), pra contar folha de papel: (entrevistado fala em japonês), pra contar cachorro: (entrevistado fala em japonês), quer contar carro: (entrevistado fala em japonês), tudo diferente! E se a pessoa não souber dizer que: hoje estava frio: (entrevistado fala em japonês)
P/2 – Mas e o jeito de viver, na verdade, o que a gente está perguntando é sobre o jeito de viver dos japoneses e dos brasileiros, porque você conhece um pouco dos dois, né, do jeito de viver...
R – Aqui, né?
P/2 – Na sua vida, né, o jeito de viver dos japoneses, e o jeito de viver dos brasileiros, então, pela sua trajetória de vida o que você tira desses dois modos diferentes de viver, qual é o grande valor de cada um deles?
R – É, os dois têm valores, né, os dois têm!
P/1 – O senhor tem um sonho especial, hoje em dia?
R – Não! Já, em fevereiro eu vou fazer 70 anos, eu vou vivendo. Do jeito que está, tudo bem.
P/1 – O que é que o senhor mais gosta de fazer hoje em dia, de tudo isso que você faz, tem tanta coisa que o senhor faz?
R – Eu faço tudo isso aí. Ah, por exemplo, que nem isso, a música japonesa, é, que eu fiz em português, por exemplo, né, é, fala assim: (entrevistado canta em japonês), então, em português:
“Cai a tarde calmamente,
e ao anoitecer,
lá, bem no alto da montanha
tocam sinos,
as crianças vão para casa,
vão se dando as mãos
e com as crianças
o corvo também vai”
R – E em português é: (entrevistado canta em japonês). Então, essas coisas que eu faço, e que eu gosto.
P/1 – Cantar!
R – É, cantar e fazer...
P/2 – Desde criança, o senhor cantava?
R – É, eu sempre...
P/2 – Desde criança?
R – Quando eu era criança, antigamente chamava nodojiman, hoje fala karaokê, né?
P/1 – Ah, o karaokê!
R – É, hoje é karaokê, mas antigamente chamava nodojiman.
P/2 – E quando vocês eram crianças, vocês brincavam de cantar?
R – É, exato. Lá, no internato, por exemplo, estava lá. Lá, fazia competição de música, né? É, então, e tem música, que no ano de 1940 o Japão estava fazendo 2600, quer dizer, o calendário do Japão e o calendário de hoje tem uma diferença de 660 anos, então, em 1940 quando festejou 2600 no Japão, saiu uma música muito bonita, música que eu não dispensaria nada. Ô, diabo, é que eu não acho essa fita, né, eu estou desesperado procurando. Agora, se tiver disco intacto, ainda vai dar pra fazer cópia, mas se quebrou o disco, já dançou, né, aquele de 78 rotações. Então, eu estou procurando aquilo lá. Então, fora isso, já tem um monte de músicas, assim, entende? Inclusive, eu ia deixar testamento, que se eu morrer deixo esses montes de gravações, que está aqui, pra pessoas interessadas, ou até, pode ser um clube aí, né, ou pode ser uma instituição onde se aglomeram idosos da época aí, né?
P/2 – O ano que vem vai fazer cem anos da imigração japonesa, o senhor vai fazer parte de alguma festa?
R – É, nós vamos ver se cantamos o Hino Nacional Brasileiro, pro japonês não é fácil, né? É difícil, né, não é fácil, mas a joponesada está ruim de cantar: (entrevistado canta trecho) “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”, eles não pronunciam direito, é um problema!
P/2 – Vocês estão treinando bastante?
R – É, mas está desanimando, viu, quem está ensinando.
P/1 – O senhor está ajudando a ensinar?
R – É, mas sabe como é, né, acha que... (riso) Porque o Hino Nacional Japonês é bem curtinho, né?
P/1 – Como que é?
R – (entrevistado canta em japonês). Até aqui, é bem curtinho.
P/1 – Esse é o hino japonês?
R – É.
P/1 – O senhor acha que a comunidade japonesa aqui no Brasil se integrou bem ao Brasil?
R – Integrou! Integrou! Agora, uma coisa que eu estou muito satisfeito, é que eles não zombaram porque o Japão perdeu, depois que eu entendi que o Japão perdeu a guerra, eu fiquei com medo, né, logo depois, digamos, um ano depois, dois anos depois que eu vim pra cá, né? Não, três anos! Eu pensei que a turma ia falar: “O Japão perdeu! O Japão perdeu!”, ninguém falou nada, e graças a Deus, também, é, em menos tempo, que eles deram, acho que 20 anos, em 20 anos disse que ia voltar tudo à tona, ah, nem levou 20 anos, acho que em 12, 15 anos voltou à tona, né, recuperou a economia e tudo, né?
P/1 – O senhor quer falar mais alguma coisa, quer contar mais alguma história que a gente tenha se esquecido de perguntar?
R – Não.
P/1 – Ou quer cantar mais alguma música?
R – Não. As coisas que eu passei, são essas aí, a maioria, é cinema, banca de jornal, né, depois, fazer massagem, né? Fazer massagem é pra gente ganhar uns trocos, né?
P/2 – Posso perguntar uma coisa, que eu fiquei curiosa, que o senhor falou dos filhos, falou o signo chinês...
R – Não é chinês, é japonês!
P/2 – Japonês?
R – É, eles têm pequena diferença.
P/2 – O senhor falou do signo japonês, o senhor segue, acredita um pouco nisso?
R – Não, eu fiz, eu vou te dar, eu fiz tabela de signos, chama-se Signo Anual Japonês.
P/2 – Como, tabela?
R – Então, ano tal. Por exemplo, começando, tem 12 bichos, 12 animais! É rato, vaca, tigre, coelho, é, dragão, cobra, cavalo, é...
P/2 – Serpente?
R – Já falei, serpente é o dragão.
P/2 – Ah, o dragão é a serpente no japonês?
R – É, entende? Então, depois é o carneiro, tem ave, a turma fala galo, né, não é galo, é ave, é tudo que tem pena.
P/2 – E o senhor é qual?
R – O meu é tigre. Então, primeiro é rato. O rato é o signo mais esperto de todos, ninguém dá pernada nele. Aí, então, a minha ex-patroa era de rato, de 1924, então, eu falei: “É, Dona Janina, a senhora que é feliz” “Por quê?” “Ninguém dá pernada na senhora” “Quantas pernadas eu já levei!” (riso) “Ah, Dona Janina, assim não”, eu falei assim, né? Então, vaca não gosta de ver a pessoa passando fome. Lembra aquela Diana, que morreu em acidente dentro do túnel?
P/1 – Ah, a princesa Diana!
R – É, então, ela era de vaca, por isso que ela ajudava tudo o que é faminto da África, entende? Foi em 1961 que ela nasceu. Entende, Então, ela ajudava...
P/2 – Quem ensinou essa coisa dos signos pro senhor, foi a sua mãe?
R – Não, não! É, um amigo meu, eu comprei um livro e o meu amigo, que leu tudo, me ensinou. Aí, eu fiz uma tabela: ano tal, isso, ano tal, isso. Por exemplo, você, que ano que é?
P/2 – 1977.
R – É cobra.
P/2 – Cobra?
R – É. Cobra faz as coisas certinho, nada de coisa torta pra desabar de um lado ou de outro, faz direitinho, cobra! Então, rato é esperto, a vaca não gosta de ver pessoas passando fome na frente, tigre gosta de fazer coisas que os outros não fazem, por exemplo, se eu cantar na multidão, se eu cantar uma música que todo mundo canta: “Outra vez?”, não fala assim? “Outra vez?”, né? Agora, se eu vou cantar uma música, por exemplo, uma _________, por exemplo: “Nossa, que música diferente, né?”, não é, a turma fica assim. Que nem essa aí que eu estou atrás, essa música dos dois mil e 600, do coisa, né, quer dizer: (entrevistado começa a cantar em japonês), essa é a primeira estrofe da música. Então, eu vou ver se eu vou achar isso aí, e, que é orquestrado, então, é orquestrado, e eu aproveito pra usar como se fosse karaokê, acompanhamento, né? Aí, eu vou ver se canto na frente de todo mundo, porque todo mundo vai se espantar: “Ah, música de 1940, né?”, quem conhece, né? Então, isso é o que o tigre gosta, fazer coisas que ninguém faz, que todo mundo, no português claro, admira, porque é música, a, meio antiga, né?
P/2 – E o que mais? Aí, tem o tigre, que o senhor estava falando um pouquinho de cada um.
R – Tem o, que gosta de carinho, o...
P/2 – Cachorro?
R – Não, não, o coelho! Depois do tigre é o coelho.
P/1 – Qual é o signo de 1981, o senhor se lembra?
R – Oitenta e um, espera aí. É ave!
P/1 – Ave?
R – É, ave não gosta de compromisso.
P/1 – (riso) Oh, sou eu! Sou eu! (riso)
R – Gosta de ficar livre, não gosta de compromisso. Então, sabe pra que não serve quando é esse signo aí? Ser síndico, porque síndico não pode largos o prédio e ir passear, né, não pode.
P/1 – Então, eu não vou ser síndico e não vou casar?
R – É. E cachorro gosta de ser, é, não é gosta! De cachorro todo mundo gosta, todo mundo gosta! Então, minha filha é cachorro, então, chega lá: “Glorinha, vamos tomar um sorvete? Glorinha, vamos tomar café?”, leva a minha filha, todo mundo quer levar, esse é cachorro. Agora, ave não gosta de compromisso. O javali gosta de guardar, economia, sem os outros verem.
P/1 – Javali é econômico?
R – É econômico, é. É, e cobra gosta de fazer as coisas certas, né? Tem uns aí que eu não sei, o dragão eu não sei, o coiso eu também não sei, o carneiro, né? Ah, o cavalo gosta de vencer sem a ajuda de ninguém, o cavalo vence mesmo, né?
P/2 – O senhor observa que esses tipos se confirmam?
R – É, geralmente, né? Não é 100%, né? O cavalo gosta de vencer sem a ajuda de ninguém. É assim, e todas essas coisinhas que...
P/2 – O senhor acha que a sua trajetória de vida, então, confirma, você ser tigre e gostar de coisas diferentes?
R – É, eu gosto, né? Eu gosto de coisas diferentes, é, pega a música japonesa e passa pro português, ou vice-versa, cantar música que ninguém canta, como a Cabecinha no Ombro, Lampião de Gás, né, em japonês.
P/1 – Bom, Seu Paulo, então, a Camila, eu e o Museu da Pessoa gostaríamos de agradecer a sua presença aqui, e a gente fica muito feliz em poder compartilhar um pouco da sua história, que é muito bonita, tá bom? Muito obrigado!
R – Nada.
Recolher