P/1 – Boa tarde!
R – Boa tarde.
P/1 – Queria começar pedindo que o senhor nos fale o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Nelson Pereira dos Santos, eu nasci em São Paulo, em 22 de outubro de 1928.
P/2 – O senhor pode falar para a gente o nome dos seus pais e avós?
R – Meu pai, Antonio Pereira dos Santos, meus avós paternos eu não conheci, mas eu sei que um deles, o meu avô paterno era José Pereira dos Santos. E os avós maternos eu conheci: o meu avô era José também, Toseto Binari, era italiano do Vêneto e minha avó Rosa Toseto Binário.
P/2 – O Senhor pode falar para a gente a atividade dos seus pais?
R – Meu pai era alfaiate, minha mãe, a companheira do alfaiate,“profissionário” como disse, era ser mãe, né ? Meu avô materno, o italiano, também era alfaiate.
P/2 – E os paternos o senhor não conheceu muito?
R – Não conheci. O meu pai ficou órfão com 12 anos de idade, órfão de pai e mãe. Então, provavelmente esse lado da família é um lado completamente desconhecido, né?
P/2 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho três irmãos. Um falecido, o mais velho.
P/2 – E o senhor nasceu em que lugar de São Paulo?
R – Eu nasci no Brás.
P/2 – E o Senhor pode contar para a gente um pouquinho como que foi a infância lá, com esses três irmãos?
R – Pois é, eu sou o caçula, né? Então, essa parte do Brás eu lembro muito vagamente. Logo em seguida, quando eu tinha 2 ou 3 anos, mudamos para o Bexiga, onde eu passei a minha infância e o começo da adolescência.
P/2 – Como que foi um pouco essa infância, conta para a gente como que era o Bexiga naquela época?
R – O Bexiga daquela época era como o Brás também, tinha uma presença italiana muito forte. No Brás tinham os italianos do Norte, não é, que era do Vêneto, enfim... E lá no Bexiga eram os italianos do Sul, napolitanos, calabreses,...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde!
R – Boa tarde.
P/1 – Queria começar pedindo que o senhor nos fale o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Nelson Pereira dos Santos, eu nasci em São Paulo, em 22 de outubro de 1928.
P/2 – O senhor pode falar para a gente o nome dos seus pais e avós?
R – Meu pai, Antonio Pereira dos Santos, meus avós paternos eu não conheci, mas eu sei que um deles, o meu avô paterno era José Pereira dos Santos. E os avós maternos eu conheci: o meu avô era José também, Toseto Binari, era italiano do Vêneto e minha avó Rosa Toseto Binário.
P/2 – O Senhor pode falar para a gente a atividade dos seus pais?
R – Meu pai era alfaiate, minha mãe, a companheira do alfaiate,“profissionário” como disse, era ser mãe, né ? Meu avô materno, o italiano, também era alfaiate.
P/2 – E os paternos o senhor não conheceu muito?
R – Não conheci. O meu pai ficou órfão com 12 anos de idade, órfão de pai e mãe. Então, provavelmente esse lado da família é um lado completamente desconhecido, né?
P/2 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho três irmãos. Um falecido, o mais velho.
P/2 – E o senhor nasceu em que lugar de São Paulo?
R – Eu nasci no Brás.
P/2 – E o Senhor pode contar para a gente um pouquinho como que foi a infância lá, com esses três irmãos?
R – Pois é, eu sou o caçula, né? Então, essa parte do Brás eu lembro muito vagamente. Logo em seguida, quando eu tinha 2 ou 3 anos, mudamos para o Bexiga, onde eu passei a minha infância e o começo da adolescência.
P/2 – Como que foi um pouco essa infância, conta para a gente como que era o Bexiga naquela época?
R – O Bexiga daquela época era como o Brás também, tinha uma presença italiana muito forte. No Brás tinham os italianos do Norte, não é, que era do Vêneto, enfim... E lá no Bexiga eram os italianos do Sul, napolitanos, calabreses, sicilianos etc. E como pouco no Brasil há uma relação muito parecida, nordestino versus sulista, tinha muito afinidade e muita rivalidade.
P/1 – E como que isso era vivido, o senhor sentia essa rivalidade como?
R – No dia a dia, na relação futebol, principalmente. Futebol, política, em segundo lugar política, primeiro lugar futebol. Então São Paulo...por exemplo, os times de futebol eram mais ligados à origem étnica de cada um. Hoje o Palmeiras, né, que era o time dos italianos, chamava Palestra Itália. O Corinthians era o time dos espanhóis e afins. O São Paulo Futebol Clube era o time que tinha se originado do time paulistano, que era o time da elite, mas que ficou sendo o time mais popular e portanto, era o mais... enfim, tinha mais torcida, né? Agora, com o tempo isso tudo mudou! Eu estou falando o começo dos anos 1930, né, o começo dos anos 1930.
P/2 – O Senhor pode descrever, assim, para a gente um pouco, como que era o bairro que o Senhor vivia, como que era a relação com as casas, com os vizinhos?
P/1 – Se brincava muito na rua, essas coisas.
R – O tempo todo!
P/1 – As brincadeiras quais eram...
R – Brincadeiras, brincadeiras eu…[risos] Não, vivia... Era sempre por isso que tinha... os italianos, as filhas dos italianos tinham um maior número, né, era meninos, filhos de italianos, com a criação italiana, inclusive São Paulo tinha colégio italiano, que é o Dante Alighieri e outros. A criançada aprendia o italiano, escrevia italiano etc, como havia escola alemã, como havia escola japonesa. E havia também o cortiço dos pobres, a presença do negro, então. Só que o cortiço é a favela paulista, né, é até horizontal, você não vê direito. Tem uma aparência assim, parece tudo bonitinho, mas ela é realmente um ambiente de favela. Então, era o convívio entre os meninos pobres do cortiço, os meninos italianos, os brasileiros misturados e os que se “abrasileiraram” também. Agora, no meu bairro não havia japoneses, os japoneses são em outro setor da cidade, eu fui encontrá-los no colégio depois, mais tarde, colégio do Estado. Lá eu tive muitos colegas japoneses. No grupo escolar também um pouco, mas mais no colégio. Enfim, era uma vida de rua. O que que se fazia na rua? Futebol, tempo de... festa junina fazia fogueira na calçada e soltar balão, fora disso era agressões aos estrangeiros, aos forasteiros, aos que não pertenciam ao bairro. Por exemplo, colocar um fio preto de noite para derrubar o chapéu; naquele tempo os adultos usavam o chapéu. Os homens, né, um chapeuzinho, então derrubar o chapéu a gente sabia que era, isso dava mil confusões. Outra coisa era também fazer um pouco de esporte, ia procurar um lugar para nadar que era longe, era o Rio Tietê, onde depois mais tarde meu pai me botou num clube que chamavam Clube Tietê, onde aprendi a nadar etc. Mas a vida era essa, ir para a escola, voltar da escola.
P/1 – Com quantos anos o senhor ingressou na escola mais ou menos?
R – Muito cedo. A escola que tinha no Bexiga, aliás, a casa ainda existe até lá hoje. Acho que a única coisa que sobrou daquele tempo.
P/1 – Qual o nome do colégio?
R – Chamava-se Primeira Escola Mista da Bela Vista, um lugar bonitinho. Eu me lembro da escola, que no pátio tinha dois cágados, então a gente fazia grandes maldades com os cágados [risos]. Eu acho que eles já tinham mais de 100 anos, aí. Talvez tenham sobrevivido, né? De vez em quando eu passo lá, me pergunto: “Será que eles ainda estão aí?” [risos]. Então eu fui para a escola com mais ou menos entre 4 ou 5 anos. Eu aprendi mais com a minha irmã, em casa, porque minha irmã gostava de brincar de professora. Então ela alfabetizou os dois irmãos mais novos.
P/1 – Escola mista? Porque era homens e mulheres? Porque nessa época era comum ser separado, né?
R – Era separado, mas tinha classe para as meninas e classe para os meninos.
P/1 – Ah, tinha classe separada!
P/2 – Era mista porque a escola atendia aos dois, na verdade.
R – Isso, é.
P/2 – E aí o Senhor permaneceu quanto tempo nessa escola?
R – Quanto?
P/2 – Quanto tempo o Senhor permaneceu nessa escola?
R- Eu permaneci... É porque essa escola ela não tinha o primário completo não, eu acho que era um jardim de infância adiantado, uma coisa assim. Eu acho que era equivalente ao primeiro, segundo ano, depois eu passei para o grupo escolar, no mesmo bairro, o Grupo Escolar Júlio Ribeiro. É aí que foi que eu terminei o curso primário, né?
P/1 – E tem alguma lembrança marcante do período de escola?
R – É, eu fui expulso da escola [risos].
P/1 – Pode contar o porquê ou é censurado?[risos]
R – Eu não me lembro direito por que, mas eu sei que eu enfrentei a professora mais severa do colégio. E aí meu pai me colocou num colégio, numa escola privada. Naquele tempo chamava colégio...
P/1 – Interno, não?
R – Não, interno não, externo. Deus me livre! [risos] Interno...[risos]
P/2 – Se chamava como a escola?
R – Era no bairro da Liberdade e o colégio se chamava Independência, olha que bonito isso! Ainda queriam que eu fosse comportado.
P/2 – Não combina.
R – Independência, liberdade, não é ?
P/2 – E quais as recordações que o senhor tem dessa escola?
R – Foi uma outra fase, porque já... O que que eu me lembro dessa escola? Trabalhei muito para poder recuperar o tempo perdido. Me lembro que era uma escola... era bem vagabundinha, como todo ensino particular de classe média, não é? O meu colégio, grupo escolar, tinha uma professora que me botou para fora, era uma professora de alta competência. Depois eu fui para colégio do Estado. Aí era outro nível também o colégio do Estado. É isso. Mas eu não me lembro direito desse Independência não, eu sei que eu brigava muito. Porque aí já tinha outra relação social dentro do colégio, né?
P/1 – Desse não foi expulso, saiu por vontade própria?
R – [risos]
P/2 – E como que o Senhor falou que tinha outra relação social, como que era isso?
R – Porque no grupo escolar éramos todos italianos, éramos todos brasileiros, éramos todos pobres, né? Nesse colégio havia já uma diferença de uma classe média já com uma pretensão de ascensão social etc... Então teve discriminação. Então, no meu grupo escolar eu tinha que ir de sapato, né; porque eu vivia sem sapato, pra que usar sapato? E quando botava sapato achava de jogar bola, então tinha o sapato todo esfolado de jogar bola [risos] Nesse colégio ele não podia, então todos tinham sapatinho novo, engraxado e tal, eu só tinha um par de sapatos, então. A partir daí uma briga como acontece, revidar agressões, não é? E agressões sempre provocadas por essa comparação, a diferença, ficavam todos eles notando a diferença. Então, eu imaginei o que acontecia para o menino negro dentro de uma escola que só tinha brancos. Seria pior, né, esse tipo... A relação que se estabelece, não é, aqueles que só apontam a diferença. Em geral, é quem está apontando isso é porque está escapando disso, não é, conseguiu escapar [risos], então ele (disse?): “Você está atrasado você tem que fazer como eu...”
P/2 – Aí o senhor saiu de lá e foi para qual escola, aí foi por vontade própria, o Senhor saiu do Independência por vontade própria?
R – Foi, foi.
P/2 – E como que foi esse processo, depois o senhor foi estudar onde?
R – Fui para outros colégios, e antes de ir para o colégio do Estado eu fiz para o colégio do Estado, é o Colégio do Estado Presidente Roosevelt, ali no mesmo bairro da Liberdade. Que eu fiz ali foi minha, minha formação mesmo foi nesse colégio, onde ele pode dizer “eu me encontrei”; será que a gente pode dizer isso algum dia [risos]? Mas de qualquer forma lá que eu comecei a realmente ter mais, enfim, ver todo dia o grupo, filmes interessantes, a fase da vida também. No final dos anos 1940, que era meados dos anos 1940. Era guerra, o fim da guerra, quer dizer, isso tudo mexeu muito com a cabeça da gente, né?
P/1 – E nesse momento em São Paulo, o Senhor falou aí que começou a ter um grupo de amigos maior...
R –Isso, isso.
P/1 – O que vocês costumavam fazer, quais eram as diversões, os bate-papos...?
R – Era mais... Já no colégio privado que eu fiz o ginásio, que havia uma... a minha predileção muito dirigida para a literatura e história, né? E nesse colégio que eu fiz o curso clássico, que naquele tempo era chamado segundo ciclo, tinha curso clássico e o curso científico. Curso clássico para aqueles que se destinavam a carreira de humanas, direito etc. E o outro para engenharia, medicina... Então, nesse ambiente havia então afinidades, não é, quer dizer, e outros colegas vindo de outras escolas, lógico que também se interessavam por literatura e por história, história do Brasil. E na época, aquela coisa da guerra, e quando terminou a guerra também, a presença do Movimento Comunista no Brasil, que foi muito forte e muito sedutor para todos os intelectuais e todos os jovens. Uma vez eu falei de brincadeira, disse: “Quem não era do partido comunista naquele tempo, era como o jovem hoje que não fuma maconha [risos]”. Ele é discriminado, ele não entra, no time [risos]. É um pouco de exagero apenas para dar uma idéia de como era aquele tempo.
P/2 – O que que vocês faziam, o Senhor chegou a participar desses grupos e quais eram as discussões, o que que vocês estavam sentindo no momento, como é que chegava essa imagem da _______ _______?
R – Tinha uma organização de células do partido; que a juventude comunista é uma célula dentro do colégio. Tem que participar da política do colégio, da política estadual, da política municipal, da política nacional, as discussões todas à respeito do, enfim, do destino do país, o final da guerra, o fim do fascismo etc. Ao mesmo tempo tínhamos toda uma relação com o pensamento; não digo nacionalista não, mas era um pensamento típico daquele momento em acreditar que o Brasil ia dar certo. Tinha acabado a guerra, acabado todo movimento fascista, o totalitário horrível, acabado a ditadura no Brasil, estávamos entrando numa fase... a democracia chegou e então havia assim uma grande onda, de otimismo e confiança no futuro. Vamos todos dar certo! É isso que era a coisa mais importante do final dos anos... do final da guerra. 1945, 1946. E houve também uma coisa muito importante que mexeu com a cabeça de todo mundo, que foi a explosão atômica; a descoberta do átomo. Assim só contando uma anedota, o meu professor de química ele gostava de teatro, então ele só falava de teatro, não falava nada de química...[risos]. Então, quando bateu a primeira bomba atômica, ele saiu correndo para explicar o que era o átomo. Pode calcular [risos]? E foi mais interessante do que qualquer aula de teatro. Porque havia descoberto, as revistas começaram a publicar informações sobre, enfim, a linha toda das descobertas, das investigações da física, daquilo e tal. Isso também fez a cabeça mudar no outro sentido. Quer dizer: descentralizou e relativizou todo o pensamento. Eu estou dizendo com essas palavras agora, na hora tu pensa: naquela época eu apenas praticava isso, era levado à praticar isso, não é? Hoje eu sou capaz de conceituar mal e porcamente o que aconteceu, mas aquela época não tinha essa condição de conceituar do jeito que eu estou fazendo aqui. Mas foi importante isso. O mundo é outra coisa, não é?
P/1 – O Senhor falou que participou aí de alguns movimentos, tem alguma que tenha te marcado, alguma campanha, alguma... enfim?
R – Isso foi depois, durante o colégio, são muitas coisas; campanhas políticas etc. Dentro do colégio tinha Academia de Letras, eu fiz uma tese sobre Castro Alves, entrei nessa Academia de Letras do colégio.
P/1 – Do próprio colégio?
R – É. Colégio... Tinha Academia Nativista de Letras [risos]. E, o que mais, daquele tempo,,, enfim. Agora, eu fui para a Escola de Direito, eu entrei em, em 1947..., foi. Em 1948 tem uma campanha, que foi a grande campanha pelo “Petróleo é nosso”.
P/1 – Ah, você participou?
R – Participei.
P/1 – Conta um pouquinho para a gente.
R – Eu era diretor de um dos diretores do Centro Acadêmico da Escola de Direito, do Centro Acadêmico 11 de Agosto.
P/2 – Isso o senhor já estava na faculdade, é isso?
P/1 – Ham, ham!
R – Então, foi lá que nasceu, em São Paulo, foi lá no Centro Acadêmico 11 de Agosto que aí começou a campanha do “Petróleo é nosso”. Eu me lembro de um General Espírito Santos Cardoso, do general pai do nosso ex-Presidente, o... o Espírito Santo era o tio.
P/2 – Felicíssimo.
R – Felicíssimo é o tio, Espírito Santo é o pai, né? Conheci o Fernando Henrique naquela época.
P/1 – Mas eles foram fazer uma palestra na escola, como é que foi que...?
R – Foi. Tinha os seminários, palestras...
P/1 – É o (Cepeden?), né?
R – Coisa assim.
P/1 – É que era a Campanha Nacional “O Petróleo é nosso”.
R – “O Petróleo é nosso”, é.
P/1 – O senhor chegou a participar de algum comício...?
R – Eu era da diretoria do 11 de Agosto, portanto eu estava ali na organização, no acompanhamento de todo o movimento. Aula que é bom ninguém assistia. [risos]. Ia correndo para a escola, porque tinha tanta coisa boa na escola, menos aprender. É o Direito. Então ficava lá, fazia política, fazia cine-clube. Aí já estava mais para cinema.
P/2 – Então deixa eu só voltar um pouquinho. Essa escolha da faculdade de Direito, porque foi? Havia alguma pressão familiar para que o senhor seguisse alguma carreira, enfim?
R – Não, pressão familiar não. Havia uma relação familiar muito próxima, muito boa. Primeiro tinha... A minha casa, quando eu morei no Bexiga, era pertinho da Escola de Direito. E meu padrinho de batismo era o porteiro da Faculdade de Direito, o José Epaminondas. Então eu passava lá para ver, sempre ele tinha algum presente para mim e tal, ele era uma pessoa maravilhosa. E o seu José, o meu padrinho, não tinha aonde ir, já está acabando o curso do colégio, engenharia nem pensar, medicina também, não tinha a menor vocação para isso. O único lugar, a única escola assim para eu continuar estudando que não ia dar muito trabalho, é a Escola de Direito. E para onde iam todos os que não tinham assim, nenhuma decisão em relação ao futuro, o que que queria de profissão etc. Tanto assim, que a Escola de Direito até hoje tem lá homenagem a três poetas, não tem nenhum jurista, nenhum advogado [risos], tem lá Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves. Então, todos que tinham vocação literária; porque essa escola, a escola em si, o ambiente físico da escola, né, tinha aquela tradição de abrigar esses poetas malucos, revolucionários, transgressores, boêmios. Então, até aquele tempo, no meu tempo de escola, ainda existia um ou dois exemplares desse tipo de boêmio auto destrutivo, aquele que era alcoólatra tuberculoso que escreve poemas de madrugada, que vai na escola só para...
P/1 – De alguma forma a escola então era um ambiente que o Senhor gostava, independente dos estudos?
R – Claro, claro! É.
P/1 – E quais são as lembranças mais marcantes dessa época?
R – Dessa época, essa campanha, depois eu fiz, eu fiz muita coisa na escola, aquele clube, 11 de Agosto tinha muitas atividades, as atividades da boemia estudantil, por exemplo, isso aí tem... todos os estudantes se lembram disso. E há pouco tempo, até o ano passado, em agosto, 11 de agosto, o dia da Fundação dos Cursos Jurídicos, eu fui homenageado na Escola de Direito, entre oito ex-alunos que se destacaram fora da área jurídica. Então eu tive a honra de estar ao lado do José Mindlin por exemplo, da Lígia Fagundes Teles, do Embaixador Ricupero, tinha mais gente importante, Juca de Oliveira, o ator, Paulo Autran... Paulo Autran foi companheiro mesmo, 2 anos à frente, mas contemporâneo dele na escola. Então, nessa oportunidade eu contei a história de como eu saí da universidade, eu terminei o meu curso, né? Porque em 1949, eu estava no terceiro ano, eu fui para a França, ganhei uma bolsa de estudo e queria estudar cinema. Fui para França, fiquei lá alguns meses, não podia fazer o curso porque a gente tinha que esperar um ano, foi uma confusão lá qualquer. Voltei para o Brasil para terminar o serviço militar e terminar o curso de direito e casar com a minha noiva, a Laurita. Então eu fiz o final do curso de direito eu nem ia mais na escola, nem o 11 de Agosto me atraía mais, eu estava fazendo cinema. Eu fui fazer um filme no interior de São Paulo, o Saci, como assistente de direção, depois, o pessoal que trabalhava no filme, eram dois cariocas importantes, que me convidaram para vir para o Rio. Eu vim para o Rio para fazer um filme e nesse meio tempo tinha que terminar o curso, fiquei pendurado numa matéria. Voltei para São Paulo para fazer a prova final dessa matéria. Era uma prova escrita e uma oral. Fiz a prova escrita, depois a prova oral eu era o único aluno e a matéria é a mais complexa de todas, era Direito Processual Civil. Foram quatro anos, ia cinco vezes por semana [riso], é matéria assim que não acaba mais, muito livro, muita apostilas. Eu fui fazer a prova oral, o professor muito gentilmente, disse: “Você escolhe o ponto.” Eu disse: “Não adianta que qualquer um... É melhor o senhor me perguntar.” Ele disse: “Vem cá, você é o que pegou a prova escrita, a sua prova escrita não é lá muito boa, tal, mas deixa eu te perguntar uma coisa, o que que você vai fazer na vida?” Eu disse: “Cinema.” Muito... “Cinema.” Ele: “ No Brasil, cinema [risos]?” Ele riu porque especialmente em São Paulo, o cinema era coisa impossível de ser feita no Brasil, porque tinha sido tentado a experiência na Vera Cruz, uma experiência... Os empresários paulistas muito bem sucedidos tentaram fazer uma indústria de cinema, importaram equipamentos, construíram estúdios perfeitos, iguais aos estúdios americanos e fracassaram, fizeram 14 filmes e morreram na praia. Outras tentativas só podem... Então, na cabeça do meu professor, tão bonzinho, ele não entendia: “Você vai... maluco, você tem o curso de Direito, vai ser advogado, vai fazer cinema no Brasil, é impossível.” E eu reafirmei: “Eu vou fazer cinema sim, já estou fazendo.” Fiz um filme lá no interior, estou trabalhando no Rio, tal.” Ele disse: “Está bom, vou acreditar em você, mas você vai prometer uma coisa.” “O que que é?” ”Você promete que não vai advogar, que não vai fazer concurso para juiz de Direito, não vai fazer concurso nem para Delegado de Polícia [risos]?” Aí eu contei essa história lá para a Congregação. Foi um motivo de riso e eu disse: “Mas é por isso que eu estou contando, porque toda vez que eu passava apertado no cinema, eu disse: “Bom, eu tenho uma outra profissão, posso ainda fazer... Mas eu prometi para o professor...”
P/2 – Teve um juramento, um pacto.
R - [riso] E foi isso, uma brincadeira, né?
P/1 – E, vem cá, diante dessas dificuldades o que que seduziu para ir fazer cinema, porque, pelo o que o senhor contou era difícil, né?
R – Era.
P/1 – Enfim, uma carreira muito promissora e tal. O que que te seduziu para o cinema?
R – Pois é, era... primeiro, assim, a ideia... Ir muito ao cinema, eu fui sempre de freqüentar cinema, depois com a participação em cineclubes, entendeu, vislumbrando a possibilidade de que era possível passar para o outro lado. Às vezes ficava olhando para dentro da tela e passar para fazer o filme. Outra coisa importante foi essa tentativa da Vera Cruz. O Cavalcanti chegou no Brasil, fez várias conferências, então ele disse: “Poxa, o brasileiro que fez cinema tão bom na Europa, não é, que é um grande... É um vitorioso. É até possível outros brasileiros, encontrar um caminho parecido.” E a ideia de... Começou a ter produção do cinema, em São Paulo. Havia mais no Rio, a diferença era muito grande, no Rio a tradição de fazer cinema já era bem arraigada. Em São Paulo houve muitas tentativas de fazer cinema. Eu lembro meu pai que sempre foi assim... arriscava tudo, acreditava sempre no futuro, ele comprou ações de uma empresa de produção de cinema, se chamava Companhia Americana de Filmes. Meu pai também comprou ações...Comprou terrenos da futura Capital Federal. Comprou quatro terrenos [risos]. Hoje ele se chama Planaltina, né? Mas isso foi em 1928, quando eu nasci. Imagina! Mas então, ele acreditou na produção de cinema no Brasil, em São Paulo. E essa Companhia Americana ela construiu um estúdio que não tinha nenhuma defesa sonora, mas parecia um estúdio e tal, sabe aonde? Ali no Aeroporto Santos Dumont, na entrada e saída dos aviões, quer dizer, era impossível pensar em fazer um filme sonoro naquele lugar. Mas essa companhia não produziu nada, ela fez o estúdio e faliu. Porque o cinema... Havia essa ideia da possibilidade de realizar cinema, quer dizer, não era uma coisa tão distante, tão mítica, não é, havia uma certa proximidade.
P/2 – E o seu pai contribuiu com essa atitude dele para o Senhor?
R – Muito. Cinéfilo! Naquele tempo essa palavra não existia, mas ele e minha mãe freqüentava cinema, conhecia todos os filmes, era o hábito de frequentar cinema. Mas, que mais que me seduziu, o próprio cinema, quer dizer, a ideia do filme e a possibilidade também de fazer filme, quer dizer, quando apareceu a Vera Cruz eu já estava bem seduzido pelo cinema, entendeu? A Vera Cruz começou em 1947, por aí, 1948, tempo da escola; 1949 eu fui para França para estudar cinema. E também, uma outra coisa importante que eu acho que é, no plano cultural, intelectual, foi a presença do cinema italiano. Que o cinema italiano neo-realismo, ele virou tudo de cabeça para baixo, né? É porque cinema era igual à grandes capitais, grandes estrelas; capitais, falando em dinheiro, né? Grandes estrelas, tecnologia avançada, não é, a tecnologia que só gente do primeiro mundo poderia dominar e controlar. Então, cinema era realmente uma arte do outro lado, eqüidistante então. E o neo-realismo fez o quê, é um cinema com o equipamento mínimo possível, feito na rua, com o dinheirinho lá do estúdio e com o próprio povo como ator. Esse que foi a virada. E o neo-realismo mexeu no mundo inteiro, porque influenciou o cinema indiano, mexeu no cinema... na Grécia apareceu o neo-realismo, cinema francês, a nouvelle vague, não seria o que é se não tivesse existido o neo-realismo, o próprio cinema americano foi chacoalhado por aquilo, muitos atores americanos foram para a Itália; uma estrela mor do cinema americano, a Ingrid Bergman foi lá apaixonada pelo Rossellini, foi fazer os filmes na Itália. E outros atores: Anthony Quinn, outros foram filmar na Itália para descobrir aquele cinema que revelava o cotidiano, a vida comum.
P/2 – Tem alguma produção que o Senhor se recorde que tenha lhe marcado?
R – Muitas produções. É bom lembrar sempre os grandes clássicos desse neo-realismo, são os filmes do Rossellini, o Paisà, o Roma Cidade Aberta. Depois, mais tarde, esse movimento neo-realista ele prosseguiu, ele se enriqueceu muito com outros autores, como o Visconti, não é, que aí ele juntou a história com o cinema, ele combinou as duas coisas. Esse filme do Visconti, foi uma grande revolução; essa palavra é feia demais, revolução cultural [risos], mas mexeu com a cabeça de quem estava nadando, boiando na área literatura da história das artes, e de repente deu assim, é possível.
P/1 – Conta para a gente da tua primeira experiência de trabalhar com cinema, você falou que é o “Saci”, se eu bem escutei?
R – Não, antes do Saci eu fiz um documentário comigo mesmo, 16 milímetros, também foi... A tarefa do partido [risos].
P/1 – Ah, é? E era sobre...[risos].
P/2 – E como que era, conta para a gente.
R – Não, é que existia; foi no final dos anos 1940... deixa eu lembrar bem direitinho... foi por aí. Seguinte: todos os anos havia um famoso Festival da Juventude, que aconteceu na, na... sempre num país do lado socialista, né, naquele tempo. Em 1950, se eu me lembro bem, foi em Berlim. O Grande Festival da Juventude. Então eu fui encarregado de fazer um filme sobre a juventude paulista, como vivia a juventude paulista, né, é no campo, é na escola, no exército, em fábrica, etc. Então eu fiz um documentário assim, porque eles se perderam, foi e não voltou, era cópia única, não tinha cópia. Então essa foi a primeira experiência mesmo.
P/2 – E como que vivia essa juventude, o que que o Senhor retratou neste trabalho?
R – É igual hoje, né?[riso] Acho que hoje até um pouco pior [risos].
P/2 – O que o Senhor destacou nesse trabalho?
R – Era difícil. Era um documentário bem naturalista, o que que era o trabalho de um jovem na fábrica. Olha, era o lugar mais difícil de filmar. Porque manobra do exército não tive problema, filmei tiro de canhão, soldadinhos marchando. Agora, para entrar na fábrica com uma câmera, parecia entrar... Sei lá, era lugar muito feio, não podia filmar, sei lá o que escondiam lá. Mas de qualquer forma eu consegui fazer algumas cenas.
P/1 – Agora fala para a gente assim, de uma maneira, a situação do cinema brasileiro, quando o Senhor começou a trabalhar com cinema e quando e como, né, o Senhor decidiu vir morar no Rio.
R – Naquela época, não é, que havia...(pausa) Ainda era, o cinema brasileiro ainda era uma atividade privada, não havia participação do Estado. A única participação do Estado, que agora se transferiu para outro setor, era a censura. Era a única coisa que o Estado fazia pelo cinema era proibir, ou deixar passar, proibir parcialmente, proibir inteiramente [risos]. Era isso. E era constitucional, você vê que hoje... que “paísinho” a gente virou. Isso acabou em 1988.
P/1 – Eu ainda me lembro daquela tarja.
R – Você lembra? [risos] “ É proibido para menores de 18 anos.” Ainda existe isso de outra forma, um pouco mais sofisticado, principalmente na televisão. Mas de qualquer forma era de iniciativa privada, era dinheiro do bolso do produtor e do próprio mercado. Como por exemplo, o caso da Vera Cruz foi um investimento maciço, pesado, de um grupo de capitalistas, eles não pensaram pedir dinheiro ao Governo, obrigar ao Governo a dar dinheiro para o cinema. Eles fizeram um investimento, só que não foram muito bons na gestão da produção e muito menos na questão de mercado. Eles achavam que o mercado estava pronto. Inclusive, tinha uma ilusão tão grande que ousavam colocar no letreiro do filme, primeira coisa que se lia, assim: “Do planalto paulista para as telas do mundo [risos].” Então, olha que ilusão! As telas do mundo pertencem ao cinema hegemônico de Hollywood, e principalmente as telas do Brasil, nem as telas da Cidade de São Paulo eles poderiam ter quanto mais as telas do mundo, né, é ilusão incrível. Então, aquele investimento todo, não voltou, mergulhou, “fiuti”, acabou, acabou o fôlego e a Vera Cruz então ficou pendurada, fechou. No Rio de Janeiro havia uma produção mais antiga, por tanto, mais sábia, que aqui já tinha mais continuidade, porque se situava muito bem no mercado, porque também estava aliada sabe ao que: ao rádio. A produção do cinema no Rio de Janeiro, até a invenção da televisão, a instalação da televisão, era ligada à todas as rádios que divulgavam música, que tinham um elenco de artistas, cantores, compositores e tal. Então o cinema, o filme, ele fazia o papel que a televisão faz hoje, quer dizer, levava a imagem do cantor, lá no Ceará, no Mato Grosso, lá o consumidor ouvia a voz do Orlando Silva, a voz da Linda Batista, mas queria ver a não ser; tinha a fotografia do lado, mas o cinema levava um show, ela cantando, então os filmes tinham maior sucesso por isso, ele tem essa relação. A linguagem de um filme da época era isso, uma historinha assim, de preferência com um cômico, e no caso foi o Oscarito, o Grande Otelo, foram maravilhosos, fizeram filmes importantíssimos, né, e tudo isso entremeados com show, então tem o show da Linda Batista, o show... [risos]. A construção era essa, então havia procura para aquele cinema. O cinema da Vera Cruz é um cinema que se organizou para ser um cinema de mercado internacional, então tinha a história, a construção muito bem feita, a fotografia ótima.
P/1 – Fala de algum filme para a gente.
R – Da Vera Cruz?
P/1 – Tem vários, tem... O primeiro se chama Caiçara.
P/1 – Que o considere, acha que foi bom.
R – O primeiro filme foi Caiçara e nessa época eu era crítico em cinema, da revista do Partido Comunista, chamada Fundamentos. Aí eu malhei o filme, disse que o filme não tinha nada a ver com o povo brasileiro etc.
P/1 – Mas hoje o Senhor mudou, mudaria a sua crítica?
R – Não, não mudei, em relação a esse filme não. Porque era assim: ator de teatro lá dos Jardins, nascido no berço de ouro, fazendo um papel de um caboclo caiçara, tá na cara, cinema não é teatro, cinema tem que ter essa verdade, cinema é burro demais, tem que ser concreto, o personagem tem que ter o chamado fisic du role inteiro, não é, principalmente no Brasil, etnicamente, enfim. Mas aí o Vera Cruz tinha... obedecia aos cânones do cinema industrial americano e eram histórias para maioria, autores italianos que nunca tinham conhecido o Brasil [risos], então faziam as histórias... Fizeram filmes bem feitos e tal. Tem um filme lá feito por italiano muito bom, da Vera Cruz, uma comédia deliciosa, se chama Uma pulga na balança, o diretor; como é o nome dele? Eu vou lembrar daqui um pouco. Tem um filme da Vera Cruz que é um clássico, que rompeu com tudo isso que a Vera Cruz fazia, foi um filme feito pelo Lima Barreto, chamado Cangaceiro. Esse filme foi o primeiro filme que lidou com o mito brasileiro, não é, uma coisa do cangaço etc. É verdade que era o caminho, era assim, fazia alguma coisa parecida com o western, filme americano, o gênero western, com um conteúdo brasileiro, a idéia foi essa. Aí deu certo, o filme vendeu no mundo inteiro, então foi uma coisa que... Dizem até que esse foi o último filme da Vera Cruz e que deu certo, que ganhou mesmo as telas do mundo, mas a Vera Cruz já estava devendo tanto à Columbia Distribuidora, que ficou por isso mesmo. Mas o que que estava perguntando, o que era mesmo? Eu fui desviando...
P/1 - O que tinha te atraído para o Rio, o Senhor estava falando o cinema do Rio, como ele era feito...
R – Ah, sim! Então, a questão o cinema brasileiro, você me perguntou o que que era antes, o que que era hoje.
P/1 – A situação do cinema brasileiro.
R – Então, o cinema da época da iniciativa privada. Com a televisão, a chanchada, esse cinema rádio, essa fórmula, cinema rádio, acabou, entrou em decadência. Nesse momento é que aparece o cinema novo com outro tipo de cinema, o cinema cult, né, o cinema que tem reconhecimento internacional, mas não na bilheteria, mas reconhecimento internacional na crítica, na repercussão, não é, que deu, enfim. Mas essa fase do cinema de iniciativa privada, essa fase ela se encerra também com os congressos de cinema. Teve dois congressos de cinema. Eu participei desses dois congressos, o congresso em São Paulo, depois outro no Rio, que era o fim da iniciativa privada. Então nesse congresso é que se propõe a participação do Estado, tanto era... tudo se pedia ao Estado: “Papai, estamos aqui...[risos]”. Não tem condição de sobreviver, pode fazer o filme melhor que seja, mas vai para os cinemas, o exibidor põe uma semana e deixa para lá, porque a oferta do cinema americano é muito maior e garantida. O cinema brasileiro não pode oferecer assim, com tanta precisão, os filmes para o ano todo, com uma temporada inteira, Então, eles têm realmente uma relação com cinema americano umbilical. Porque a economia do cinema no Brasil, do mercado de cinema, é a economia do cinema americano, é dependente da economia do cinema americano, é preciso que esses filmes tenham renda aqui, só para poder ter mais filmes, tudo. É uma trajetória, não é, de dependência histórica. Não é, que vai dizer porque a política é essa, não, isso aconteceu [risos], vinha acontecendo desde dos anos 1920, desde que começou o mercado cinematográfico no Brasil. Então, essa fase da tentativa de fazer cinema com recursos próprios, tal, acaba nesse momento. Outros exemplos: aqui no Rio tinha Cinédia, do Ademar Gonzaga, ele tinha estúdio, ele produziu muitos filmes. Depois a Atlântida, que foi iniciativa dos irmãos Burle, depois o exibidor Ribeiro comprou e começou a produzir. Ele como exibidor tinha condições de dar saída para os filmes que produzia. Era esse o panorama do cinema brasileiro até esse momento. Então, quando começa a intervenção no Estado, aí começou palidamente, assim; primeira coisa do Getúlio, obrigar a passar filmes. Tá bom, tem que passar oito filmes para cada; quer dizer, para cada oito filmes importados, tinha que passar um brasileiro. Isso foi o começo da participação do Estado. Mas, era preciso mais do que isso, não é, então... Por questões de facilitar importação de equipamentos e matéria-prima, filme virgem, essas coisas assim. Todo esquema do Estado foi montado para proteger o cinema importado. Vou dar um exemplo: na época em que havia a; como é que chamava, quer dizer, todo dólar que o Brasil produzia era controlado pelo Banco do Brasil, então ele... tudo que a gente produzia em dólar ficava para o Brasil. Aí o Banco do Brasil vendia dólar para quem precisava e havia várias categorias de dólar, três, ou quatro, ou cinco, uma coisa assim, sabe, quer dizer, o dólar mais barato, que ninguém precisava de dólar para... eles chamavam cultura, ou medicina, tal, que era comprado o dólar por um, né, então... e o cinema... Cinema para exportar as vendas obtidas daqui era o dólar... comprado o mais barato possível [risos]. Da outra ponta, dólar mais caro para comprar filme virgem. O dólar custava cinco ou dez vezes mais do que aquele que exportava o lucro, enfim, era uma coisa... Eles dão um exemplo de uma rede de medidas que favoreciam a exploração do cinema importado no Brasil. Estou dando uma só, eram muitas e não existia nada para o cinema brasileiro. Eu vou dar um exemplo, outro dia... eu estou com problema aí de importação de um... o meu primeiro filme foi para Praga, foi para a Tchecoslováquia, na época se chamava Tchecoslováquia e a gente exportar o máster. O negativo original perdeu-se, não quero contar essa história, mas enfim, eu preciso daquele que foi para lá para fazer um novo negativo. Lá me informaram que o máster que eles compraram em 1956, 1957, foi para a China. Aí eu me lembrei da história da China, porque que aquele máster foi para a China. Porque a China comprou o filme e queria que a gente fizesse, enfim, uma banda internacional, uma coisa assim. Aí a gente fez e o valor da compra que a China mandou para o Brasil foi 5 mil dólares. O funcionário da Cacex simplesmente proibiu, eu disse: “Como?” “Vocês estão fazendo uma fraude aí, porque vocês devem estar ganhando por fora, porque só os cinco mil dólares, olha aqui quanto eu exporto só do filme da Fox que passou no mês passado aqui. E a China tem muito mais gente que o Brasil, tem muito mais cinemas, Vocês estão...[risos].” Então impediu... E aqueles cinco mil dólares ia resolver muitos problemas da nossa pequena produção. Mas então, veja a diferença de tratamento, né? Então, daí há sempre essa demanda, né, da participação do Estado, mas um Estado que fosse à favor, não que fosse contra [risos]. É quando é para você ser a favor do cinema brasileiro, é.... hoje, quer dizer, nós tivemos um período em que a participação do Estado era quase 100%, no tempo da Embrafilme. A Embrafilme co-produzia o filme, distribuía, financiava roteiros, era tudo, praticamente, tudo feito pela empresa do Estado, E depois, quando chegou em 1990, com o Collor, que acabou tudo, o cinema brasileiro ficou no meio da rua, né, porque perdeu tudo que tinha de apoio, era paternalismo quase 100%, depois zero. Aí voltou a participação do Estado, mas uma participação indireta, através das leis de incentivo. E agora, desde do final o Governo do Fernando Henrique é que foi criada a Agência Nacional do Cinema, não é, que aí voltou a ter uma presença do Estado, uma presença regulatória etc etc.
P/1 – Então, antes da gente explorar o patrocínio da Petrobras, queria que falasse um pouco da experiência do Rio 40 Graus para a gente, como foi fazer o filme, dificuldade, sucesso.
R – [riso] Ah, esse filme... Eu estou comemorando 50 anos, não é, Rio 40 Graus, então estamos levantando toda essa história, assim, como o filme... o ponto de vista financeiro, administrativo e produção, como é que ele foi feito? É assim: eu tinha o roteiro; que eu já tinha trabalhado em outros dois filmes aqui, conheci alguns produtores, pensava em vender o roteiro, não consegui. Aí encontrei um antigo, um ex-colega do mesmo colégio famoso, Colégio Presidente Roosevelt, da rua lá da... do bairro da Liberdade, o Ciro Freire Cure, que era funcionário da Cacex, alto funcionário da Cacex, um economista brilhante e então ele bolou um programa de produção com base cooperativista, na realidade é o seguinte: era alguma coisa que já se fazia, que ainda hoje se faz em teatro. E uma parte é captar dinheiro e outra parte captar trabalho. Então a equipe, o diretor etc, o trabalho... contra o trabalho, cada um recebia uma participação na futura renda do filme. Ao mesmo tempo a gente podia vender cotas para quem quisesse investir no filme, né? Quem ia investir eram os amigos muito próximos, os parentes…[risos]. Não tinha nenhuma perspectiva de ser um bom negócio, não é. Fazer um filme Rio 40 Graus, uma coisa assim... E, enfim, o filme foi feito assim com ajuda, colaboração. Humberto Mauro era diretor do Instituto Nacional do Cinema Educativo emprestou uma câmera adaptada, uma câmera de cinema mudo que foi adaptada, a gente não tinha câmera de graça. O dono do laboratório deu um financiamento para revelação e copiamos tudo isso até a primeira cópia. Mas um pedaço de... enfim, havia sempre uma possibilidade de colaborações, apoios, tal. E o filme foi feito dessa forma. No final, quando o filme ficou pronto, o dono do laboratório levou o gerente da Columbia para ver o filme e a Columbia comprou o filme. Então, começamos lá em cima, acabou com distribuição é... a mesma distribuição que a Vera Cruz tinha na época dela.
P/1 – E a trilogia sobre o Rio.
R – Pois é! Não, fiz o Rio Zona Norte, mas o Rio Zona Sul desisti, fui fazer.... Porque o Rio Zona Norte foi um fracasso, eu tinha produzido também um filme Rio Zona Norte, e produzi um filme em São Paulo, no grande momento do Roberto Santos e os dois filmes não foram bem na bilheteria e não tinha nem uma Embrafilme para pagar a conta [risos], nem a (Cine?), então... Aí parei com a produção de cinema, voltei, fui trabalhar em jornal, trabalhei no Diário Carioca e depois Jornal do Brasil e tudo ... É isso aí que eu contei. Aí tentei fazer o Vidas Secas, que choveu, fiz um outro filme. [risos] A história aí vai indo, vai indo...[risos].
P/1 – Assim, dos filmes que o Senhor já realizou, quais são os preferidos e se tem algum assim que o Senhor não goste, né, porque não dá tempo de falar de cada um aqui, então...
R – [risos] Vamos falar do...
P/1 - O senhor mesmo falando das suas preferências aí, na sua obra.
R – Ah, eu gosto de todos. Agora, tem um que não é... não chegou a ser um filme, quer dizer, eu considero um rascunho de um filme, que é o Mandacaru Vermelho, é o tal filme que eu deveria fazer Vidas Secas, mas mudou tudo, choveu na caatinga e eu inventei essa história do Mandacaru Vermelho e fiz um filme que os atores são todos da equipe, lá só tinha um ator profissional; não, dois atores profissionais, o resto era assistente de direção, tal...[risos] Uma brincadeira!
P/1 - E os preferidos, são todos?
R – Ah, eu gosto muito desse...
P/1 – É como filho, gosta de todos...
R – Cada um... porque cada um é uma experiência diferente, né? Sempre isso foi até já bem caracterizado pela crítica, que muda um pouco, um filme... é um outro filme, é outra... Isso acho que é também o espírito de jornalistas. Se eu cobrir uma matéria vou fazer de novo o mesmo assunto, aí pensa em outra... Sempre assim, uma mudança de filme para filme. Mas sempre... Aqueles que mais ficaram, que são mais lembrados, não é, acho que é o Rio 40 Graus, eu gosto muito dele porque é o primeiro, o primeiro sempre é importante, o Vidas Secas, tem o... como é o outro? Fome de Amor, um filme especial, O Francês..., vou acabar falando todos, O Amuleto de Ogum eu gosto muito, Memórias de um Cárcere. Memórias de um Cárcere tinha um pouco; não é biográfico, mas tem muita relação com minha passagem pelo Partido Comunista, muita... a vivência, não é muito semelhante à que era do personagem e depois, enfim. todos são...
P/1 – Eu queria saber o que que o Senhor considera que mudou no cinema brasileiro aí, ao longo dos últimos anos?
R – Eu acho que o que aconteceu, digamos; você me perguntou a diferença... cinema novo e agora, né?
P/1 – Isso.
R – Quer ver, ó, do cinema novo eu vi aquele grupo aguerrido num momento de transformação, tinha assim, uma disposição de lutar. Duas coisas faziam isso: isso não só no cinema, né, na pintura, literatura, música, era a questão social, não é, que é um discurso antigo, da literatura dos anos 1930, na Semana de Arte Moderna, portanto, modernizar o Brasil, acabar com esse atraso, essa coisa que nos conduz aí, acabar com isso, ter essa ilusão, né? A segunda coisa era, como tinha uma ditadura militar, era lutar pelas liberdades democráticas, quer dizer, ser contra a ditadura, contra qualquer tipo de opressão, qualquer tipo de autoritarismo etc. Então, essas duas coisas. E uma terceira que eu acho que o que foi o grande legado do cinema novo, que foi assim, o domínio da linguagem universal do cinema e ao mesmo tempo juntando isso com a nossa herança cultural. O cinema é uma linguagem universal, então ainda é possível ela ter esse trânsito rápido, o cinema vai em qualquer lugar, vence a barreira da língua. Agora, até então, com raríssimas exceções, o cinema brasileiro fazia essa tentava a linguagem e ao mesmo tempo achava que o conteúdo tinha que ser aquele que aquela linguagem que ele aprendeu levava com ela. O cinema novo e outros que antes do cinema novo se voltou para a nossa tradição, para a nossa cultura, para a nossa história. Acho que é isso. Então, por exemplo, um Deus e o Diabo na Terra do Sol é um brilhante filme, qualquer lugar do mundo, qualquer um que assista em assim, festivais, quantos livros ele produziu fora do Brasil em estudos sobre o cinema, porque é uma linguagem para eles que é uma coisa completamente nova e para nós também, quer dizer, isso foi um grande momento, não é, do cinema, Agora, hoje... Uma coisa também, naquele tempo éramos 15. Hoje, só lá na Universidade Fluminense, onde tem o curso de cinema e o qual eu fui professor e ainda sou lá, aposentado, saem uns 50 jovens por ano assim, com vontade, aquela vontade de fazer cinema, com a cabeça feita pro cinema. E a cada um ao seu modo, essa a diferença, não é, porque não há mais nenhuma ditadura nos oprimindo, a questão social ela é completamente aberta, é discutida em todos os níveis, em todos os lugares, quem quiser fazer cinema assim, que faça, mas não é obrigado mais. Tem uma coisa que se dizia: “Hoje a juventude não é mais obrigada a salvar o mundo, ela tem que salvar ela mesma, é só cada um fazer o que quer.” Então, daí a pluralidade do cinema brasileiro, a pluralidade temática, que é uma grande vantagem, que o cinema brasileiro tem isso, uma riqueza. Porque são muitos criadores, são muitos talentos, muitas pessoas, vidas dedicadas ao cinema e à criação cinematográfica. Outra coisa, a formação também. Nós todos fomos autodidatas. Quando eu comecei, no meu tempo tinha um livro de cinema em espanhol, que lia todo dia [risos] carregava debaixo do braço: Tratado da la Realización Cinematografica, do Leon Kulechov. Aí apareceu um livro de um crítico de cinema em São Paulo, Carlos Ortiz, uma “cartilhazinha”, coisa muito simples, tal. Era a única coisa em português que havia; já até se alimentava do que era importado mesmo, né? Algumas revistas de cinema no Brasil, mas mais de divulgação dos filmes, não havia uma revista de estudo, de crítica, de ensaios, tal. Isso vai acontecer posteriormente com o tempo e tudo isso... Isso hoje. Quantas escolas de cinema, né? Eu participei da fundação de duas: a de Brasília, que fechou seis meses depois, em 1965 os militares nos botaram para fora, lá estava o Paulo Emílio etc. Depois a Universidade Federal Fluminense teve um curso de cinema, em 1968. Aí, aqui em São Paulo, de 1966, 1967, com Paulo Emílio e há outros cursos superiores de cinema em outras universidades privadas. Aqui no Rio nós temos a Gama Filho, na Estácio, fora cursos, digamos, independentes, em São Paulo tem na FAAP [Fundação Armando Alvares Penteado] também tem um bom curso de cinema, além disso muitos jovens vão estudar nos Estados Unidos, ou na França, ou na Itália. Então, hoje, como se diz aí em linguagem mercadológica, o RH do ser brasileiro [risos] é muito bom, muito rico e é eficiente. Além do mais todas as facilidades das novas tecnologias; tecnologias que é proporcionada para o aprendizado, para a realização, para a reprodução, para o conhecimento. Por exemplo, dar um exemplo só, como o cinema brasileiro era desconhecido, né, até o caso do Limite, de Mário Peixoto. Limite é um filme de 1930 e ele ficou famoso. Só que não era visto, não era conhecido, tinha uma cópia só que é guardada por um amigo do Mário Peixoto. E até o Glauber escreveu no primeiro livro dele, disse que tinha que destruir esse filme, porque ele um mito, né? Todo jovem que ia fazer um filme, queria fazer cinema, diziam: “Não adianta! Você jamais fará um filme tão bom quanto Limite. E cadê o Limite? Ninguém conhecia, então... O Limite estava na memória dos mais velhos, dos poucos que tiveram a oportunidade de ver o filme. Aí, perguntaram: “Vamos acabar com... Destruir esse filme.” Não havia cinemateca, então as cópias eram difíceis de ver. Eu, por exemplo, eu conheci Humberto Mauro pessoalmente, antes de conhecer a obra dele. Quando eu vim para o Rio eu conheci Humberto Mauro. Eu vi o último filme que ele fez, que estava sendo lançado em 1952. Os filmes que ele fez que depois, graças ao Davi Neves, ao próprio Glauber, foram recuperados a memória crítica, os filmes do Humberto Mauro, toda obra dele. Era um desconhecido, porque não havia como, na cinemateca tem uma cópia quando ele estava começando. Hoje é videocassete, DVD. Os jovens têm condições de fazer um bom estudo da história de cinema em geral e da história do cinema brasileiro, porque que aconteceu, o que não aconteceu, e tal, mas grande diferença isso, é uma, uma outra coisa.
(pausa)
(Fim da Fita nr. HV/2005-49)
P/1 – Retomando a entrevista, Senhor contando como foi a participar da criação da Embrafilme, da concepção, o que deveria ser essa Empresa.
R – Por exemplo, a primeira Embrafilme ela nasceu no... em que ano foi mesmo, foi 1968, 1969, por aí, não é? Ela nasceu para fazer o quê? A única finalidade da Embrafilme naquele tempo, quando nasceu, isso em plena ditadura militar, foi para divulgar o cinema brasileiro no exterior, era essa a finalidade. Bom, veja só a ironia: naquele momento o cinema brasileiro era mais do que divulgado no exterior por conta própria, porque era os filmes do cinema novo, que a partir de 1964, festival de Cannes, depois 65 festival de Berlim, né, três filmes ficaram muito conhecidos, foi: Deus e o Diabo, Vidas Secas, do Glauber e Os Fuzis, do Rui Guerra. Junto com esses os filmes do Glauber, né, do Cacá Diegues, enfim. Os filmes do cinema novo começaram a ser vendidos, divulgados fora do Brasil. E o que mostrava o cinema novo? Era tudo que a ditadura dizia que não existia no Brasil, né, que a propaganda oficial estava tudo resolvido, estava tudo bem, era o milagre, a economia maravilhosa tal. E como é que o país tem uma economia tão boa e tem miserável na favela, né? Que que pode... Como é que se explica? Então, essa Embrafilme, a primeira Embrafilme, ela nasceu para exportar os filmes, assim, de propaganda mesmo, propaganda turística, o filmes (anódinos?), os filmes têm só uma historiazinha que podiam combinar com a propaganda oficial da ditadura. Essa foi a primeira Embrafilme. No Governo Geisel, começo do Governo Geisel, havia uma promessa de redemocratização. Uma promessa de... uma... enfim, fazer uma outra coisa diferente. Procurou um contato com o mundo intelectual, o mundo da cultura, houve uma tentativa de, uma reaproximação ou uma aproximação com o mundo da cultura. E o cinema respondeu positivamente, com a condição, entendeu, eu fiz parte logo no começo, disse: “Está bem. É preciso, então, alguma coisa que defenda o cinema brasileiro do ponto de vista econômico e político e aí saí também. Havia o Ministro Ney Braga, da Cultura, da Educação e Cultura e havia também o Ministro Reis Velloso, do Planejamento, um homem muito ligado ao cinema, que a formação dele... gosta muito de cinema. E quando estudava em Harvard ele viu filmes brasileiros tipo Vidas Secas, sendo apreciados pelos colegas americanos, tanto que ele teve uma grande satisfação, que ele conta a vida dele, de assistir isso, não é, quer dizer... o cinema brasileiro, que no conceito dominante era alguma coisa desprezível, não é, não tinha status cultural, de repente o cinema brasileiro está lá, presente, numa universidade da importância de Harvard. Isso ajudou muito. Então, vamos negociar! E foi esse o ponto de partida para se chegar à nova Embrafilme. O modelo ainda... eu participei da comissão que reestruturou os órgãos de cinema. Os órgãos que existiam eram: o Instituto Nacional de Cinema, que tinha sido feito anteriormente, durante o começo da ditadura e havia o antigo Instituto Nacional de Cinema Educativo, que foi feito por Roquette Pinto e Humberto Mauro, a (seguir?) Humberto Mauro, e a Embrafilme, que foi criada depois. A idéia então, o que fazer com esses órgãos? E a proposta que eu apresentei foi uma imitação [risos] do que tinha acontecido na Fundação da Petrobras, era um triângulo, um tripé, sei lá, como se chama isso. É... uma empresa dentro do mercado, atuando com todas as coisas as atribuições possíveis, né? Produção direta não, porque aí interferiria no pensamento, na criatividade. Qual produção, projeto sempre tem que nascer com o produtor, diretor. A Embrafilme participaria; participou depois da produção, com 40% do valor do orçamento. A Embrafilme também distribuiria os filmes. Isso foi feito adiante, a Embrafilme Distribuidora, que adiantaria sobre a renda mais 40% do orçamento. A Embrafilme Exibidora; essa nunca aconteceu. A Embrafilme Importadora de Filmes; também isso nunca aconteceu, não é, e o projeto ficou pela metade. E a coisa mais greve é que a Embrafilme, ela não se organizou, não foi organizada para ser uma empresa. O que aconteceu com a Petrobras! Assim, uma empresa mesmo, competitiva, com organização empresarial, tudo que é “lólóló”, que é essas coisas todas, não, ficou um misto de repartição pública e empresa, né, que é um comportamento não... Tudo era permitido à Embrafilme, menos ganhar dinheiro, menos uma atividade lucrativa. De vez em quando até parecia o INPS [Instituto Nacional de Previdência Social]. “Se ela está desempregado, dá um financiamento de um roteiro para escrever essa...” Ficou uma coisa que não foi uma empresa mesmo para competir, para entrar no mercado e competir e estabelecer um espaço para o cinema brasileiro, dentro do mercado brasileiro. Ela ficou pela metade, não é? Enfim. Mas a Embrafilme, o que ela viveu já foi o suficiente para mostrar que é possível, não é, ter no próprio mercado, condições para dar auto-suficiência à produção do cinema no Brasil. É isso.
P/1 – E eu queria saber como surgiu o patrocínio da Petrobras; falando um pouquinho da sua experiência, emendando também como o Senhor vê a importância de uma empresa como a Petrobras, patrocinar o cinema brasileiro?
R – Pôxa, eu acho que é a Empresa que mais patrocina, não é? Eu acho que no começo a própria Empresa não sabia da importância disso, não é verdade? Acho que era mais, um pouco, assim... As estatais em geral, elas aplicavam, faziam os investimentos na área do patrocínio através de recomendações políticas, era um pouco assim. Mas não havia dentro, acho que dentro da própria Petrobras não havia essa consciência de como é importante essa área, né? Eu via, desde o começo tinha muitos projetos, tal, eu me sinto acionista da Petrobras [risos]. Eu não tomei cadeia por causa do “Petróleo é nosso”, mas alguns colegas tomaram naquele tempo, então. Esses colegas poderiam até cobrar um quinhão aí do sucesso da Petrobras [risos]. Porque as leis de incentivo, tanto a Rouanet, quanto a Lei do Audiovisual, elas não são para o cinema tão atrativas na iniciativa privada, são poucas as empresas privadas, as indústrias, tal... No começo houve, mas eu tenho impressão que havia também um pouco de corrupção numa empresa privada, no momento de utilizar as leis de incentivo, havia alguma combinação entre os intermediários, dos produtores com os executivos das empresas privadas, não é, em aplicação desses recursos, nesse projeto ou naquele projeto. Mas no decorrer do tempo, não é, as estatais é que ficaram sustentando o grosso da produção de cinema e a Petrobras eu acho que é a maior de todas. Eu acho que essa união assim, é tão natural [risos], na minha cabeça pelo menos, é tão natural ter uma Empresa como a Petrobras, sólida, forte, vigorosa, não é, lucrativa e tal, né, reconhecesse outra atividade brasileira, econômica e cultural, que têm complicações muito graves, complicações que a própria Fundação da Petrobras teve que enfrentar, a história muito mais pesada, é uma outra área que dá até guerras, não é? É verdade que o cinema também é muito complicado. Tem um teórico do cinema que diz que “o país antes de pretender ter um cinema independente, ele precisa ter uma bomba atômica, ele precisa ter o poder nuclear, sem o poder nuclear ninguém vai ter um cinema independente.” Eu acho um pouco exagerado, mas de vez em quando talvez dos seus exageros, né, podem abrir uma luz, dar uma luz em algum aspecto da nossa atividade, da nossa vida. Mas é isso eu acho, entendeu? Eu vejo a presença da Petrobras na atividade cultural do cinema é vital, é vital e é alguma coisa que também contribui enormemente no plano político, econômico, na afirmação do pensamento brasileiro, na área do audiovisual. Esse é o grande passo, a grande segurança que ela nos dá.
P/2 – E quando foi assim, que surgiu o patrocínio da petrobras para o Senhor, no seu trabalho, conta para a gente um pouquinho quando que surgiu o patrocínio da Petrobras?
R – Foi no final do Governo Fernando Henrique. Eu ganhei o patrocínio para a restauração dos meus filmes pela BR. E a Petrobras eu ganhei um brinde, fiz até um curta-metragem, homenageei o meu compadre Zé Kéti, compositor. Agora, antes... Eu infelizmente não tive, apesar de ter apresentado os meus projetos, mas eu não tive é... Não foi aceito. Eu tinha um chamado... que era Guerra e Liberdade, que era a história do Castro Alves, em São Paulo e não consegui patrocínio. Eram tantos não é... e não havia também os critérios que foram estabelecidos, agora acho que é por mais alguma coisa meio... Não quero fazer nenhuma crítica, absolutamente, eu não estou me queixando, eu estou respondendo à sua pergunta.
P/2 – Me diz uma coisa, como foi fazer documentário sobre pensamento social brasileiro, como o Gilberto Freire, o Sérgio Buarque de Holanda, como surgiu a idéia e como é que foi a realização desses documentários?
R - A Petrobras também colaborou com o final do Sérgio Buarque de Holanda, último pedacinho do Sérgio Buarque de Holanda [risos]. Ah, foi um grande prazer fazer, né? Eu fui convidado para fazer o Gilberto Freire, era para o centenário do nascimento dele, participar das comemorações do centenário do nascimento dele. Então teve um trabalho de preparação muito grande, fiquei muito tempo trabalhando, trabalhei com muitos escritores para adaptar. A idéia era fazer 13 capítulos, mas depois problemas com a produção, com o canal GNT, eles preferiram fazer menor, fazer uma série mais enxuta. Passei para quatro episódios. Tive a sorte maravilhosa de trabalhar com o Professor Edson Neri da Fonseca, é o narrador do filme. A fundação do professor era a de colaborador dos roteiros, designado pela Fundação Gilberto Freire, a função dele era ler os roteiros e corrigir aqui, a melhorar as informações ali.... Nessa relação de repente me dei conta de que era ele o objeto do documentário. O Professor Neri que conviveu com Gilberto Freire muitos e muitos anos, que conhece toda a obra de Gilberto Freire, é o guardião da obra não publicada do Gilberto Freire, ele procura o que ele escreveu, o Gilberto escreveu que não foi publicado em livro, né, até ele faz... Até hoje ele trabalha nesse sentido, ele conhece tudo e ao mesmo tempo tem uma memória prodigiosa, assim, uma cultura riquíssima, variada, né, de marchinha de carnaval, né, à teologia, ele é professor de teologia no Mosteiro de São Bento, em Olinda. E ao mesmo tempo ele conhece as marchinhas mais pitorescas do repertório brasileiro. Enfim, é uma pessoa riquíssima e é bonito, ele é um homem bonito, alto, simpático, né, fala que é uma beleza. E aí falei: “Pronto! O filme está pronto.” Esse filme é o Professor, a memória dele etc. Trabalhamos muito e... e foi isso né, foi bom.
P/2 – E o Raízes do Brasil?
R – Raízes do Brasil é outra experiência. Por causa do centenário do Gilberto Freire, uma das filhas do Sérgio Buarque, a Ana de Holanda: “O Nelson, faz o filme do meu pai, que o centenário dele vai acontecer no ano que vem.” Isso era o ano 2001. “- A ideia é boa!” Eu fiz o roteiro, o canal GNT já tinha mudado de perfil, não participou. Eu comecei a fazer uma produção independente junto com a Vídeo Filmes, do Walter Moreira Salles, que apoiou também o Casa Grande & Senzala, Walter e o João, foi um grande documentarista. Eu fiz então o filme com a Miúcha, que juntos também escrevemos o roteiro do filme, as idéias, tal, na realidade ia ser um filme só. Aquele texto que o Sérgio deixou, não é, mais a memória da família. Mas ia ficar tão comprido, é complicado, porque tem tanta coisa que eles falam que eu não podia cortar, então eu tive a idéia de fazer dois filmes, separar um com o retrato dele afetivo, feito pela família, todos eles falando, os netos também [risos]. Eu achei a experiência maravilhosa, foi muito divertido fazer e depois, o filme, viajamos aí fazendo a contrapartida social, que eu me comprometi a exibir o filme em quatro ou cinco universidades, acompanhando assim uma mesa redonda, um seminário sobre Raízes do Brasil, sobre Sérgio Buarque etc e foi fantástico, já estivemos em várias universidades, Campinas, a USP [Universidade de São Paulo], em São Paulo, Bahia, Brasília, Porto Alegre, o que mais? Olha, foi... Realmente todos os lugares, o debate, a juventude toda ali presente, começa... descobre uma personalidade assim, uma figura que é tão atual e que provoca muito interesse, especialmente dessa obra fundamental, que é Raízes do Brasil. O problema da formação do chamado “homem cordial”, as relações afetivas, as relações privadas se sobrepõem às relações públicas, tanto é uma formação, muito, muito interessante. Esse é... o filme, o livro, tudo me dá uma... dão uma mistura boa [risos]. E foi ótimo!
P/2 –Uma última perguntar assim, mais sobre a sua obra, sua obra é temperada com humor. Como é que o Senhor vê o humor, ele é fundamental para você?
R – Eu acho [risos]! Eu tento,ter, muitas vezes não dá certo [risos]. Mas eu acho que, sei lá, a tradição, é uma coisa muito da família, teve a minha mãe... o jeito dela. Sempre há um pouquinho, uma pitada de humor nos meus filmes. Eu acho que não dá para fazer de outra forma. E outra coisa também, com o Sérgio Buarque de Holanda também, é outra grande lição que ele deu, deixou para todos os amigos, para a família, ___ _____, não se levar à sério, se começou se a levar à série, fritou-se, não é [risos]? Ele tinha a obrigação de estar sempre ironizando as coisas, inclusive, a ele mesmo. Ele dizia isso para a gente. Porque é aquele comportamento do homem do modernismo, nunca acreditar no... que aí vira “careta”, não vai ter mais condições de pensar, de trabalhar, né, de viver as coisas com mais precisão.
P/1 – E atualmente o Senhor está envolvido com algum projeto?
R – Tenho dois projetos antes, o terceiro é a aposentadoria [risos]. Esses dois projetos, estou já assim na fase de preparação, não é, que é um filme de ficção, vou ter que fazer um original meu, história minha, o título é Brasília 18%. Quando fala junto Brasília 18%, a ideia que surge é um pouco... uma coisa suja, corrupção, porcentagem e tal, as pessoas duvidam, muitos dizem assim: “É muito pouco [risos]!” Eu disse: “Na verdade não é isso, 18% é a umidade relativa do ar. Depois fiz Rio 40 Graus é a temperatura aqui na cidade. Em Brasília não é a temperatura, é a umidade relativa. Já passei em Brasília se vê um dia que chegou a 7%. O último inverno chegou a 10% e é uma coisa que incomoda, é prejudicial, as crianças não vão para a escola... Então, 18% é um número assim, quase no limite ... e esses 18% é o que acontece nos três dias, quando decorre a história. Por que 18? Podia ser 17 e meio, né, podia ser 19, vamos dizer assim, porque vai ser o meu 18o filme de longa metragem de ficção. Como o Fellini fez 8 e meio, eu vou fazer 18 [risos]. Então é essa a ideia. Mas a história tem um pouco a ver com corrupção sim, uma pitadinha. Mas numa boa. É mais uma história de amor, uma história muito especial. Hoje tem a Ancine, a gente é obrigado a fazer a sinopse de três linhas. Então eu vou repetir aqui a sinopse que foi enviada para a Agência Nacional de Cinema: “Médico legista apaixona-se por mulher assassinada, cujo o corpo é o corpo de delito de um escandaloso caso de corrupção política e administrativa que acontece em Brasília, onde a umidade relativa do ar é de 18%. Pronto. É isso aí [risos].
P/1 – E qual é a sua principal atividade hoje e o que costuma fazer nas horas de lazer?
R – Eu estou sempre ocupado com filme, né, quer dizer, só os projetos todos... Tem esse filme que vai começar a produção, tem a restauração dos filmes antigos, que está sendo patrocinado pela BR, Petrobras-BR. Eu tenho agora então esse ano muitos convites da comemoração dos 50 anos Rio 40 Graus e tem o França-Brasil, né, tem alguma coisa que vai acontecer na França. E tem um outro projeto, que é o segundo projeto que é o Tom Jobim. Eu já escrevi o roteiro com a Miúcha e estamos na fase de preparação quer dizer, começar a parte burocrática de apresentação, aprovação na Ancine, depois começar a capitação, que é um filme para ser feito logo depois do Brasília. Também dois episódios, parecido com o Sérgio Buarque.
P/1 – Então, para finalizar eu queria saber o que o Senhor achou de participar do Projeto Memória Petrobras e o que o Senhor acha da Petrobras está fazendo um projeto, né, escrevendo a sua história aí, através de depoimentos?
R – Ah, eu gostei muito aqui de conversar com vocês [risos]. Espero que façam proveito aí deste histórico desorganizado e de tão indisciplinada memória, agora, pô, é fundamental toda e qualquer iniciativa, de resguardar, preservar a memória, recuperar, né? É muito importante para nós brasileiros, em qualquer setor. A dificuldade que a gente tem de quando precisa pesquisar, vai para o passado e não acha as coisas, não existe, existiu mais se perdeu, enfim. Eu dou parabéns a vocês e estou bem feliz de saber que vocês estão fazendo esse trabalho. E bom para mim estar participando, viu? Obrigado.
P/1 – Obrigada ao Senhor.
P/2 – A gente é que agradece.
Recolher