Projeto Ponto de Cultura
Depoimento José Nogueira Santos
Entrevistado por Isabela de Arruda e Leandro Cusin
São Paulo, 15/04/2010
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV269_José Nogueira Santos
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - José, bom dia! Agradeço a sua presença aqui no Museu e eu queria que a gente começasse pelo seu nome completo, o local e a data dos seu nascimento.
R - O meu nome é José Nogueira Santos, eu nasci no município de Porteirinha, Minas Gerais, em 07 de julho de 1961.
P/1 - Tá. E o nome dos seus pais?
R - O meu pai, Osmano Cosme dos Santos, minha mãe é Joaquina Maria dos Santos.
P/1 - Você sabe um pouco da origem da sua família?
R - Por parte da minha mãe são portugueses e alemães. Mas a gente não herdou nenhum nome, mas tem por parte da minha mãe. Acho que a minha mãe é a quarta geração na origem. E o meu pai tem origem indígena também, lá do norte de Minas.
P/1 - E você tinham, no cotidiano de vocês, algum costume dessas origens?
R - Da minha família não ficou. Só na fala mesmo que tem, meus tios tem algum sotaque. Meu avô, por parte da minha mãe, tinha bastante sotaque porque era da origem.
P/1 - Você conviveu com seus avós?
R - O meu avô materno, ele faleceu [quando] eu tinha sete anos. Já o paterno, quando ele morreu eu tinha quinze anos, então já convivi um pouco mais. Agora, a minha avó materna, ela faleceu com 94 anos, então eu já estava inclusive morando aqui em São Paulo.
P/1 - E você tem alguma lembrança deles, como eles eram?
R - Tenho. Engraçado porque por parte da minha mãe é totalmente diferente. Eu sentia mais carinho, sentia que eles eram mais carinhosos com a gente. Por parte do meu pai eles eram muito secos, não tinha carinho, não tinha diálogo. Então [são] essas lembranças que eu tinha. Eu gostava mais do meu avô por parte da minha mãe. Era onde eu gostava mais de ficar.
P/1 - Mas eles moravam com vocês?
R - Não, a gente morava...
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Depoimento José Nogueira Santos
Entrevistado por Isabela de Arruda e Leandro Cusin
São Paulo, 15/04/2010
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV269_José Nogueira Santos
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - José, bom dia! Agradeço a sua presença aqui no Museu e eu queria que a gente começasse pelo seu nome completo, o local e a data dos seu nascimento.
R - O meu nome é José Nogueira Santos, eu nasci no município de Porteirinha, Minas Gerais, em 07 de julho de 1961.
P/1 - Tá. E o nome dos seus pais?
R - O meu pai, Osmano Cosme dos Santos, minha mãe é Joaquina Maria dos Santos.
P/1 - Você sabe um pouco da origem da sua família?
R - Por parte da minha mãe são portugueses e alemães. Mas a gente não herdou nenhum nome, mas tem por parte da minha mãe. Acho que a minha mãe é a quarta geração na origem. E o meu pai tem origem indígena também, lá do norte de Minas.
P/1 - E você tinham, no cotidiano de vocês, algum costume dessas origens?
R - Da minha família não ficou. Só na fala mesmo que tem, meus tios tem algum sotaque. Meu avô, por parte da minha mãe, tinha bastante sotaque porque era da origem.
P/1 - Você conviveu com seus avós?
R - O meu avô materno, ele faleceu [quando] eu tinha sete anos. Já o paterno, quando ele morreu eu tinha quinze anos, então já convivi um pouco mais. Agora, a minha avó materna, ela faleceu com 94 anos, então eu já estava inclusive morando aqui em São Paulo.
P/1 - E você tem alguma lembrança deles, como eles eram?
R - Tenho. Engraçado porque por parte da minha mãe é totalmente diferente. Eu sentia mais carinho, sentia que eles eram mais carinhosos com a gente. Por parte do meu pai eles eram muito secos, não tinha carinho, não tinha diálogo. Então [são] essas lembranças que eu tinha. Eu gostava mais do meu avô por parte da minha mãe. Era onde eu gostava mais de ficar.
P/1 - Mas eles moravam com vocês?
R - Não, a gente morava em outro sítio, mas a gente sempre estava indo pra lá. E depois, quando o pai da minha mãe faleceu, aí a gente foi pra morar no mesmo sítio da minha avó, pra gente cuidar, fazer companhia pra ela. A gente morava próximo do meu outro avô. Quando o meu avô materno morreu a gente passou a ir morar com a minha avó. E eles vivem até hoje lá. A minha avó faleceu e hoje eles tomam conta do sítio lá.
P/1 - Então, o que os seus pais faziam? Com o que eles trabalhavam?
R - Eles trabalhavam na roça, porque naquela época sobrevivia de subsistência. Produção de subsistência. Era disso que eles sobreviviam. Plantavam, colhiam, criavam gado. Hoje é até mais difícil de sobreviver dessa forma, as pessoas mais jovens não conseguem sobreviver dessa forma. Então tem que estar sempre procurando um outro meio de sobrevivência. Agora, meu pai e minha mãe como são aposentados, hoje dá pra sobreviver assim. Mas naquela época… Era difícil também, eram outros tempos. Não tinha o consumismo que tem hoje, então tudo o que se precisava, plantava, colhia e você tinha tudo ali. Você precisava [de] poucas coisas. Era diferente do que é hoje, o meio de vida lá no interior.
P/1 - E o que vocês plantavam?
R - A gente plantavam feijão, arroz, milho, algodão. Teve uma época, na década de 80, acho que 70, 80, Porteirinha foi considerada a capital mineira do algodão. Aí acabou e hoje o pessoal nem planta mais, mas a gente já plantou muito algodão naquela época. E cria gado também, porco, galinha, galinha caipira.
P/1 - E como que seus pais eram? Como você descreveria seus pais?
R – Engraçado, porque eu acabei de falar dos meus avós, que tinha aquela diferente. E entre meus pais também, a mesma coisa. A minha mãe, aquela pessoa carinhosa, que foi muito carinhosa comigo. Às vezes eu escrevia a história da minha vida na faculdade, e ainda falei assim, a gente sofria muito, mas o amor e o carinho que minha mãe dedicava a nós superava qualquer sofrimento. Já meu pai não, meu pai era muito… Acho que já vinha da origem de índio, de tudo isso, ele era mais rústico com a gente. Agora, minha mãe não, minha mãe foi totalmente o oposto. E até hoje ela é muito carinhosa.
P/1 - Mas seu pai era muito bravo? Como era?
R - Muito bravo. A gente era sempre bastante crianças juntos, éramos em dez. A diferença de nascimento entre um filho e outro era no máximo dois anos. Era aquela escadinha. Se a gente estava fazendo algazarra de criança, só brincadeira, meu pai já brigava com a gente, fazia a gente parar de dar risada. E era assim: ele estava do lado do lugar de pegar água pra tomar, ele pedia pra gente pegar água e levar pra ele. Do lado. Ele não queria nem ter o trabalho. Ele era bem assim. Então, do meu pai eu não tenho muita coisa de positivo, mas da minha mãe tem tudo de bom, que eu tenho pra falar dela.
P/1 - E você falou que vocês eram dez irmãos?
R - Dez. Dois homens e oito mulheres.
P/1 - E como que era a convivência?
R - Nossa, era muito gostoso. Mas, principalmente eu aprontava muito. Não de maldade, mas aquela coisa de criança mesmo, de brincadeira. Era muito gostoso aquela época. A gente trabalhava junto, fazia tudo junto. Eu comecei a trabalhar mesmo na roça, todo dia, com sete anos. Eu me lembro, a primeira vez que nós mudamos pra esse sítio na casa da minha avó, eu lembro que eu tinha sete anos, e nós fomos pra roça e meu pai e minha irmã mais velha já estava trabalhando. Nós passamos numa mangueira, que era do sítio vizinho e eu peguei uma manga e fui chupando. Quando chegou perto do lugar onde minha irmã estava, minha mãe falou assim: “Planta o caroço aqui, eu acendo uma brasa pro seu pai não ver que você veio chupando”. A mangueira nasceu, tem ela até hoje. Você precisa ver o tamanho da árvore que está lá. Eu tinha sete anos.
P/1 - E como era esse trabalho? Como começou esse negócio de trabalhar com os seus pais? Como era o cotidiano do trabalho?
R - A gente… Quando chegava seis a sete anos já ia pra roça todo dia. Era aquele ciclo naquela época. Cada época você fazia uma coisa. Na época de plantar, você ia plantar. Colher, você colhia. É engraçado porque fica até o cheiro, tinha o cheiro do feijão, quando arrancava o feijão, que era pra colher, ficava aquele cheiro dentro de casa. Depois, na época de fazer farinha, de moer cana, de fazer rapadura, tudo isso a gente fazia. Engraçado porque eram aquelas sequências. Cada época do ano era um tipo de trabalho que você fazia. Naquela época você trabalhava pra sobreviver com aquilo. Hoje não, hoje está diferente, não tem mais aquela sequência. Mas naquela época era bem dividido as épocas do ano. Era gostoso porque você ficava até esperando tal época.
P/1 - E como era o cotidiano?
R - A gente levantava cedo, tomava só café, porque naquela época era mais difícil, a gente não tinha as coisas pra comer. Então tomava só o café. Meu pai já ia tirar o leite, eu já ia pra roça, já ia fazer o que tinha pra fazer. O almoço era bem cedo. Naquela época a gente almoçava oito horas, nove horas da manhã. Não tomava nada no café, a gente tinha que almoçar cedo. A gente ia pra roça cedinho e levava o almoço pra lá, geralmente. Na roça a gente almoçava. Voltava pra casa perto do meio dia pra descansar um pouco - senão até o café do meio dia levava [pra] lá - e a gente só voltava à tarde, as cinco, cinco e meia da tarde. Se a roça era longe a gente não voltava pra casa no meio dia, ia de manhã e voltava só à tarde. Por muito tempo foi assim.
P/1 - Então o lugar era grande?
R - Isso, era grande e também, às vezes, meu pai fazia roça em outros sítios também. Ele não trabalhava só no dele. Ele pegava roça dos outros pra ganhar dinheiro extra também. A gente fazia isso.
P/1 - E todos os irmãos participavam?
R - A maioria. Aqueles que estavam grandes iam todos, porque não estavam no horário de escola. Na época da escola era assim: se determinado partido político ganhava, meu pai tirava a gente da escola. Atrapalhou muito também isso.
P/1 - Daqui a pouco a gente vai pra escola. Vamos um pouco ainda nessa primeira infância. Então você voltavam pra casa no final da tarde e aí o que vocês faziam quando chegavam?
R - Ah, jantava, depois lavava os pés pra ir dormir, porque naquela época a gente não tomava banho. O que parece uma coisa assim, pré histórica, mas não é. Na década de 60 o pessoal no interior não tomava banho. Não era só eu, era todo mundo. Não tinha banheiro nas nossas casas. Os banheiros, quando começou a distribuir, já foi no final da década de 70. [Eram] banheiros prémoldados que começaram a distribuir na área rural. Então a gente não tomava banho, lavava os pés, o rosto e os braços pra dormir. Às vezes, a gente tomava o banho de sábado. É engraçado a gente comentar, mas era isso o que acontecia. Às vezes, a minha irmã tomava banho durante a semana – que a moça é mais… -, aí eu falava: “Pra onde você vai?”. Era muito engraçado. E quando a gente fala isso hoje...
P/1 - Você falou que trabalhava, mas tinha um momento de lazer, de brincadeira entre os irmãos, de criança junto?
R - Tinha. A gente brincava muito nos horários que dava, geralmente de domingo. A gente brincava, eu e minhas irmãs. Como eu fui criado mais com as minha irmãs, então eu brincava mais era com elas mesmo. Mas era muito legal.
P/1 - E do que vocês brincavam?
R - Ah, a gente fazia casinha. Eu fazia... Porque tinha o mato, eu cortava os galhos da árvores e fazia casinha mesmo, de capim. O gado ia lá e comia. Eu gostava de fazer trabalho com barro também, fazia potinhos, porque lá tinha bastante barro. Eu fazia aquelas louçinhas pras minhas irmãs, tamanco de madeira e elas usavam até pra sair. Porque lá, como é barro, eu fazia tudo isso pra elas.
P/1 - E vocês tinham costume de contar história?
R - Tinham umas pessoas mais velhas que gostavam de contar histórias. Mas isso foi bem no início mesmo, aí foram morrendo as pessoas e acabou. O que a gente ouvia muito era a minha mãe, que cantava muito. A minha mãe, quando ela era nova, nossa, ela cantava muito. É uma coisa que marcou muito também. Ela cantava música que fez sucesso. Naquela época era música sertaneja, eu ouvia muito a minha mãe cantar. E meu pai toca também, meu pai toca violão, viola. Tinha muita música também no meio.
P/1 - Você lembra de alguma música?
R - As músicas que a minha mãe cantava era “Poeira”, de Cascatinha e Inhana, eu acho. É uma das que mais me marcou. Essas músicas antigas, caipira, raiz, que hoje toca na Cultura – Inezita Barroso que valoriza bastante esse tipo de música.
P/1 - E as pessoas que você falou que contavam histórias, que foram mais no começo, quem eram essas pessoas? Era gente de fora?
R - Eram parentes distante da minha avó materna. Era uma senhora que era muito famosa nisso de contar histórias. O resto a gente ouvia também das pessoas mais velhas. Sabe assim, essas histórias que você vai passando, passando de pessoa a pessoa. Tinham muitas histórias. Você ficava pensando. Às vezes dava até medo.
P/1 - Tem alguma que você lembra?
R - Ah, agora de cabeça assim eu não lembro, pra explicar. Mas eu lembro que eu ficava com medo. Dizem que a história você ouve e vai criando aquelas imagens, então não sei… Às vezes não é a imagem que está na história, mas a que vem na sua mente.
P/1 - Era meio de assombração?
R - Isso. Essas histórias.
P/1 - Entendi. E vocês tinham costume de ir pra cidade de vez em quando? Era muito longe? Como era?
R - Olha, a gente só ia quando tinham as festas mesmo. Quando eu era pequeno, eu só lembro de ter ido no município de Riacho dos Machados, que é uma cidadezinha pequena, bem pequenininha. A gente ia na missa, no mês de maio, porque tinha a festa lá. Eu tenho muita pouca lembrança dessa época. Quando eu comecei a ir pra Porteirinha, eu já estava acho que com uns oito anos. A gente ia de caminhão, era uma dificuldade. Eu não esqueço até hoje a primeira vez que eu fui. Eu estava ansioso. A gente saiu muito cedo. Pegava o caminhão, o mesmo caminhão levava as coisas pra gente vender na feira e a gente ia em cima daquelas coisas. Foi uma coisa que marcou muito. Eu nunca vou esquecer do primeiro dia que eu fui pra cidade de Porteirinha. Isso eu tinha acho que uns oito anos, oito pra nove anos. Depois eu já fui indo mais vezes, porque a gente começou a levar as coisas. Antes nem caminhão tinha. Aí foi quando veio o caminhão, foi quando eu fui também e a gente começou a ir todo sábado pra levar as coisas pra vender. Eu mesmo vendi muita coisa na feira.
P/1 - E você falou que essa primeira vez que te marcou, como é que foi quando você chegou lá? Que impressão você teve?
R - Pra mim era tudo novidade. A igreja, muita gente que até então eu nunca tinha visto, tanta gente junto. Um monte de gente na feira de sábado. Vai todo mundo da zona rural pra cidade. A cidade também, eu fiquei empolgado vendo tudo aquilo pela primeira vez. Foi interessante. Eu achei interessante.
P/1 - Como era a cidade?
R - Uma cidade pequenininha, mas só que a gente nunca tinha ido, tinha até medo de se perder ali no centro da cidade, não saía sozinho. Mas foi assim. Pra mim foi muito diferente. Eu passei a sonhar, a ter vontade de morar na cidade.
P/1 - Você tinha vontade de morar na cidade?
R - Isso, de morar na cidade.
P/1 - Por que você tinha essa vontade?
R - Acho que porque a gente já começou a ouvir rádio também, eu já fui entendendo como funcionava. O fato de você ir crescendo e ter que trabalhar cada vez mais faz com que você procure mudar de vida. Acho que é tudo isso o que passava na minha mente. Meu pai também, uma coisa que às vezes eu culpo o meu pai é porque criança o que a gente fala pra eles, eles tomam aquilo como certo, como verdadeiro. Meu pai falava que eu ia ser advogado e que meu irmão ia ser juiz. Então eu fui criando aquilo na minha mente, mas depois eu vi que não era nada daquilo, o meu pai só queria me sugar na roça. Levar pra estudar mesmo… Eu tive que correr atrás.
P/1 - E você falou que vocês iam pra cidade, além de trabalhar nas feiras, também pras festas.
R - Isso. Nas festas que tinha em maio, geralmente da padroeira da cidade. A gente ia.
P/1 - E como que eram essas festas?
R - Era muito gostoso também. Engraçado porque naquela época a gente ia pra cidade, o próprio pessoal da cidade abria as casas e o pessoal ia e ficava nos quartos, cada um ficava num quarto. Aquele monte de gente novo na casa das pessoas e era normal, ninguém pegava nada, roubava nada. Era muito engraçado, naquela época, o costume que tinha. Depois fazia procissão na cidade. Aquilo lá pra gente era um divertimento. Eu sei que a gente saía de casa pra ir a pé e era uns 35km. A gente ia a pé. Saía umas duas, três horas da manhã, chegava na cidade de manhã e voltava no finalzinho da tarde, quando terminava as comemorações. Chegava em casa muito tarde também. E tudo a pé. Também era engraçado que a gente comprava os sapatos. A gente levava, ia de chinelinho até a cidade e quando chegava lá a gente colocava aquele sapato. E pra voltar, a mesma coisa. É um costume. Engraçado porque era de todo mundo aqueles costumes, aqueles hábitos, de uma época que era assim a vida das pessoas.
P/1 - E tinha música nas festas? O que tinha?
R - Isso, tinha procissão. Tinham vários sons mas não tinha aquele específico. Não é como hoje que eles fazem aquele som. Era mais em volta da igreja mesmo que a gente ficava. No centro, no centrinho, que antigamente as cidades eram diferentes. Não tinha periferia. A igreja, aquele centrinho e comércio. Depois, quando as pessoas foram indo embora pra cidade, que criou esse negócio de periferia. Mas antigamente as cidades eram bem bonitinhas. Era tudo arrumadinho. Isso que eu achava interessante. Hoje é diferente. Mesmo as cidades lá não são mais como eram antes. Alterou tudo.
P/1 - E as comidas nas festas, como era? Era bom? O que tinha?
R - A comida lá era uma coisa difícil naquela época. Enu não lembro muito de comida, nada nas festas. Eu sei que a gente comia o que a gente levava. Minha mãe fazia bolo, biscoito, eram essas coisas que a gente comia. Nas festas mesmo não tinha distribuição de comida e dinheiro pra comprar a gente não tinha. Às vezes a gente comprava um docinho, uma coisinha assim. Mas a gente ia mais pra se divertir, pra participar da festa.
P/1 - E lá no sítio, como que era a casa onde vocês moravam?
R - A casa que a gente morava, que nós passamos a morar – depois a gente mudou pra casa da minha avó - era uma casa muito grande. Sei que tinham cinco quartos, tudo o meu pai que fez. Era uma casa bem grande. Depois de um tempo, quando eu estava com uns doze anos, meu pai aumentou e fez um quarto só pra mim. Tinham cinco quartos na nossa casa, duas salas grandes, cozinha. Depois de um tempo, quando começou a fazer o banheiro, meu pai fez um banheiro também, fora da casa e tinha um curral na frente da casa.
P/1 - Você falou que começou a desenvolver vontade de sair, de ir pra cidade e tudo mais. O que você queria ser quando crescesse?
R - O meu sonho, quando eu era pequeno, era trabalhar em cartório. Eu não sei, eu acho que de repente o meu pai pode ter ido a algum cartório e eu visto aquilo lá. Eu queria ser escrivão. Acho que o meu pai falava muito e eu tinha vontade. Era o meu sonho. Mas depois tomou outros rumos e acabei sendo metalúrgico mesmo.
P/1 - Agora lembrei, você tinha contado uma história do seu registro. Como é que foi?
R - Eu fui registrado com 16 anos. Naquela época o pessoal nascia e não tinha dinheiro e não tinha aquela obrigação também. Tinha, mas o pessoal não cumpria. Sei que meu pai teve uma época – época política – que meu pai resolveu registrar todo mundo, acho que foram umas seis ou sete crianças que registrou. Foi em 76, eu nasci em 61. Eu ainda falei: “Eu não quero ‘dos’, o meu nome é José Nogueira dos Santos, mas eu não quero ‘dos’“ e ficou José Nogueira Santos. Eu que falei, eu mesmo escolhi.
P/1 - E José, agora indo um pouco pra história da escola, como foi pra você entraram na escola? Você tem uma lembrança do começo?
R - Tenho. Porque antes da gente mudar pra essa casa que o meu pai vive hoje, a gente morava próximo ao sítio do meu avô paterno. Lá tinha muita dificuldade pras crianças estudar. Meu pai foi sempre assim, uma pessoa ativa. Então o que ele fez? Ele construiu um salão do lado da nossa casa e levou uma sobrinha da minha mãe pra ensinar os alunos daquela comunidade, era um lugar muito deserto. Era um sítio no Riacho dos Machados, era uma cidadezinha muito pequenininha e não tinha nada. Meu pai combinou com o prefeito lá e construiu aquele salão. Minha prima foi trabalhar lá. Morava na minha casa com a minha mãe e lecionava lá. Desde o primeiro dia de aula... O que me marcou foi ela indo – que é do lado da casa da minha mãe - indo pra lá e pegou um pau deste tamanho, principalmente pra bater em mim. Eu acho que eu era muito agitado. O que me marcou, ela pegando aquele pedaço de madeira, uma vara, que era pra bater em mim, e em outros também. Era uma coisa que me marcou na infância, no primeiro dia de aula. Acho que eu tinha uns cinco, seis anos, por aí.
P/1 - E ela batia mesmo?
R - Eu não lembro dela ter batido em mim, mas aquela imagem dela falar, com aquela vara, que era pra bater em mim e em outros lá, eu lembro muito.
P/1 - E como era na escola? O que você gostava, você lembra?
R - Eu tenho pouca lembrança dessa escola que o meu pai construiu. O que marcou foi isso. Eu tenho algumas lembranças lá dentro, mas do conteúdo mesmo eu não tenho lembrança nenhuma. Só marcou esse fato, que ela fez isso.
P/1 - E você comentou da coisa da política do seu pai. Como era essa história?
R - Depois dessa escola a gente se mudou pra esse sítio que era da minha avó. Lá já tinha escola, eram outras professoras e tudo mais. Só que naquela época tinham uns partidos políticos, só que eles davam apelido, que era “gabiroba” e “lioba”, então na cabeça do povo era isso o que funcionava. Porque o povo era massa de manobra, então eles criavam – eu nem sei o nome dos partidos. Se o gabiroba ganhava, a gente ia pra escola, era o pessoal que o pai votava. Se era o outro, tirava das escolas. Tinha esse jogo político e acabou atrapalhando o desenvolvimento dos jovens. Eu mesmo fui fazer terceira série com quinze anos, por causa desse tipo de jogada que havia.
P/1 - E acontecia muito então?
R - Muito, não era só com uma família, [eram] com várias famílias. Se aquela determinada pessoa perdia, eles tiravam as crianças da escola. E criava toda aquela fofoca. Um falava do outro, o outro falava de um. E as professora também. Às vezes, tinham uns que levavam as professoras da cidade pra dar aula lá na roça. Teve uma, sabe o que ela fez? Ela me pegou e falou que só porque eu era bonito ela ia me pôr na sala dela com os outros que faziam outras séries. E eu, com sete anos, na sala dela não aprendi nada. Aquele ano perdi, porque ela falou que queria eu na sala só porque me achava bonito. Era uma coisa que não tinha nenhum acompanhamento, seguimento de lógica.
P/1 - Então foi meio que na sua juventude, já avançando pra adolescência, meio que intercalava: tinha vez que ia pra escola, tinha vez que não ia.
R - É, ficava um ano sem ir pra escola. Tinha vez que se fazia muito trabalho, coisa assim, eu ficava sem ir pra escola.
P/1 - E continuava trabalhando...
R - Continuava trabalhando com o meu pai. Quando eu fiz quinze anos eu falei: “Não, agora eu vou estudar”. Eu fiz o terceiro ano. Com dezesseis anos, a primeira vez que eu saí de casa, foi em 78, eu fui pra Porteirinha pra concluir o primário, eu fiz a quarta série. Fui trabalhar num laboratório fotográfico e estudava à noite, fiquei um ano. Foi uma mudança assim… Mas acabei voltando, voltei depois de um ano, porque antigamente era assim, pessoal ia pra cidade, fazia só até a quarta série e já estava bom, já ia voltar pra roça. Geralmente os professores eram quem fazia a quarta série. Já ia voltar pra roça pra ser professor. Depois que foi mudando, mas naquela época era assim. Depois eu voltei, mas acho que eu já tinha tomado gosto pela cidade. Fiquei pouco tempo e já voltei de novo pra cidade.
P/1 - Mas você falou que foi uma mudança. Como é que foi sair de casa?
R - Então, tem os lados positivos de eu sentir todas as novidades, mas por outro lado também a saudade da minha mãe, eu sentia muita saudade da minha mãe, da minha casa. Geralmente todo domingo eu voltava pra roça, ficava lá e na segunda de manhã eu ia pra trabalhar e estudar. Fiquei um ano assim aí depois voltei em 79, fiquei um tempo, voltei a trabalhar naquela loja que eu te falei, lá em Porteirinha, na loja de tecido. Ela mudou pra Montes Claros, então fomos pra Montes Claros. Fiquei 80 e quando foi 81 que eu vim embora pra São Paulo.
P/1 - Então, a primeira vez que você foi morar em Porteirinha você trabalhava em um laboratório fotográfico.
R - Quando eu descobri pra ir trabalhar foi assim: Meu pai trabalhava nos outros sítios vizinhos aí nós pegamos um serviço num sítio desse senhor, que era dono do laboratório fotográfico e nós fomos trabalhar. Eu trabalhava e acho que ele gostou de mim, me achou esforçado e falou: “Vou levar você pra trabalhar comigo lá”. Fiquei todo empolgado e tudo. Fui e era bem no centro da cidade. Eu fui, e não esqueço até hoje. Era dezesseis de fevereiro de 78, foi a primeira vez que eu saí de casa. Não esqueço desse dia. Chovia e eu com aquela malinha, indo pegar o ônibus bem longe. Eu sei que por causa da chuva o ônibus passou meio dia, eu fui, cheguei lá e ele foi me explicar, fui aprender todo o processo. Eu tirava bastante foto pra documento de batizado e até de defunto, naquela época, a gente tirava foto. De casamento, ia no cartório tirar foto. Aprendi bastante naquela época, só que eu não me identifiquei muito com a profissão em si, mas foi muito bom pra mim. Fiquei um ano trabalhando ali. Depois ele acabou fechando também o laboratório, depois de um tempo. Acho que ele já estava velho também. Mas pra mim foi muito boa aquela experiência. Sei que eu fazia tudo. Eu entrava na câmara escura, fazia todo o processo, revelação, copiar as fotos; naquela época era tudo foto preta e branca e tinha aquelas fotos que a gente colocava assim pra olhar. Tinha muito, nas festas, nos casamentos, geralmente o pessoal tirava aquelas fotos lá. E eu aprendi todo o processo.
P/1 - E a escola? Você estudava à noite.
R - Eu estudava à noite. Na escola, foi muito bom também. Eu aprendi bastante. Comecei a seguir aquilo que eu tinha vontade de ter feito. Foi legal, foi muito legal.
P/1 - E você tinha um grupo de amigos da escola? Como era? Você já estava na adolescência e tudo mais.
R - Isso, eu estava com 16 anos. Eu era muito tímido, sou até hoje. Mas eu criei um grupo, porque geralmente em cidade pequena as pessoas são conhecidas. A família de tal. Eu entrei mais em contato com essas pessoas que já eram de famílias conhecidas, que criei aquele vínculo. Mas em termo de nota eu fui bem. Por eu ser muito tímido, ter vindo da roça, eu consegui, não fiquei em nenhum exame, nenhuma matéria naquela época. Foi legal.
P/1 - E os momentos de diversão ainda era ir pras festas da cidade?
R - Isso. Era o mesmo processo. Geralmente eu ia pro sítio no domingo. Então geralmente na cidade eu quase não criei vínculo de diversão, era mais voltar pro sítio e ir nas festas mesmo, ir à missa. Quando eu ficava na cidade eu ia à missa. Às vezes eu ia de manhã ou então ia à noite, que era pertinho da igreja também. Eu morava no mesmo local do laboratório fotográfico, tinha o laboratório e a casa nos fundos. Eu ficava nos fundos. Então eu fazia comida… Foi uma experiência muito boa pra mim.
P/1 - E José, deixa eu te pergunta: nessa época, um pouco mais velho e tudo mais, já tinha, por exemplo, nas festas paquera com as meninas?
R - Nossa, eu era muito paquerado, mas eu era muito tímido. Eu era muito paquerado.
P/1 - E como era? O que acontecia?
R - Às vezes eu saía na procissão, a menina me chamava e eu ia, só que não falava uma palavra, não trocava uma palavra. Do nada já saía e ela ia embora. Ela ficava me olhando. Mas foi muito engraçado. E na escola também, tinha muita paquera, mas eu sempre fui muito tímido.
P/1 - E no trabalho, como que foi a sensação do primeiro salário? O que você tinha pra fazer com o dinheiro?
R - Engraçado porque era assim: era meio que uma troca. Não tinha aquele salário. O que acontecia: pagava, porque tinha pensão. Como eu não podia fazer comida direto, eu pagava pensão, que era o almoço e janta num mercado que ficava bem próximo, o mercado de comida. Eu comia lá. Ele pagava aquilo, pagava as passagens pra mim. Não tinha um salário. Eu pegava o dinheiro pra eu sair e era isso assim. Não tinha aquele salário definido. Era meio que uma troca só.
P/1 - E então você ficou esse ano e voltou pro sítio.
R - Voltei pro sítio do meu pai. Aí fiquei. Isso já foi em 79, que eu voltei. No meio do ano, essa dona da loja que trabalhei, ela me chamou pra trabalhar porque precisava no meio do ano, que era época das colheitas, então aumentava o movimento. Fui trabalhar com ela. Aí eu já ganhava… Era muito pouco o salário, salário mínimo e eram outras moedas, então acho que nem faço idéia de quanto que era. Eu fiquei o resto do ano e no final do ano ela mudou pra Montes Claros, uma cidade maior, porque ela comprou casa lá e resolveu mudar. Eu fui junto. Isso foi em 79. Fiquei em 79, final do ano e em 80 eu fiquei lá também. Eu já tinha dezessete, dezoito anos.
P/1 - O que você fazia?
R - Eu trabalhava na loja de tecido com ela e morava com eles. Só que eles são muito ricos. Inclusive, teve uma vez que ela falou assim: que eu era pobre com espírito de rico. Aquilo me marcou muito também, quando ela falou aquilo. Era legal porque eles me tratavam bem, mas eu via essa diferença. Eles tinham muito dinheiro e em certas coisas eu via que na minha casa não tinha, não era daquela forma e lá era diferente. Em termos de comida mesmo, a gente era pobre e lá era diferente: parecia que eles reclamavam até da margarina que você passava no pão. Já na minha mãe não tinha essa negócio. Tinha, você comia. Aquilo me marcou muito, eu ver essas diferenças; por uma pessoa ser tão rica e ter aquelas mesquinheza. Mas eu vivia normal ali, tudo o que tinham pra eles, eu vivia na mesma casa.
P/1 - E Montes Claros era muito diferente de Porteirinha?
R - Era bem diferente, porque era bem maior. É bem grande a cidade, inclusive é a maior cidade do norte de Minas. Mas era bem diferente. E lá eu também não consegui criar nenhum círculo de amigos, porque eu era muito fechado. Eu só convivia com a família mesmo e os netos dela, porque [ela] já era uma pessoa de idade, então já tinha netos. E eu convivi só ali mesmo. As filhas - ela tinha duas filhas solteiras na época ainda – era só o pessoal do meu convívio, eram eles.
P/1 - E os seus pais, quando você saiu do sítio essas duas vezes, você lembra como foi pra eles, se teve uma separação?
R - A primeira vez foi muito dolorida pra mim. Eu chorei pra ir embora. A minha mãe também ficou chorando, mas como Porteirinha era próxima, eles iam de sábado. Porque naquela época não tinha telefone, nada, não tinha rádio na cidade. Hoje tem, mas naquela época não tinha, então era só de sábado mesmo. Só quando alguém ia lá que a gente tinha notícia. Mas pra mim foi muito dolorido eu separar da minha mãe. Eu chorava de saudade.
P/1 - Bom, então de Montes Claros você veio pra São Paulo?
R - Isso. Em dezembro de 80 eu fui passar o Natal na minha mãe, e minha irmã mais velha ia casar em janeiro. Aí eu fui pra ficar no casamento e nas festas de final de ano. Mas já estava na minha mente “eu não vou voltar pra Montes Claros, eu vou embora pro Rio de Janeiro”. A gente ouvia muito a rádio e eu criava aquelas imagens de São Paulo, do Rio. Aí fui pra Montes Claros, porque não tinha coragem de despedir da minha mãe pra vir embora pra São Paulo. “Eu não vou conseguir despedir da minha a mãe”. Aí fui pra Montes Claros, falei com a dona que eu ia voltar pra casa da minha mãe. Ela acertou, me deu aquele dinheiro pra eu voltar. Que nada, fui pra rodoviária, comprei passagem pro Rio de Janeiro, sem endereço de ninguém, sem telefone, sem nada. Quando eu cheguei no Rio, eu falei “e agora?”. Cheguei lá na rodoviária e comecei a andar. Cheguei no Cristo e aquilo pra mim… Só com uma bolsinha, uma mochila com as minhas roupas. Passou uma senhora. Eu estava numa praça “você conhece uma pensão que seja barata para ficar?”. Contei a história e a minha sorte é que ela parou pra me ouvir. Eu estava bem tranquilo. Ela falou: “Você é louco, você não pode ficar assim. Aqui tem muito pilantra”. Ela era repositora do mercado, aqueles mercados grande que eu ouvia o comercial no rádio. Quando eu vi aquilo “nossa, eu ouvia isso no rádio”. Aí ela ficou trabalhando, fazendo serviço e eu ali do lado dela. Na hora do almoço a gente foi, almoçou, com feijão preto batido – eu lembro disso também. Naquela época tinha um programa que chamava “O Povo na TV”. Ela falou: “Vou te levar lá pra pedir pra alguém te ajudar”. Nós chegamos, mas era muito muvucado, era muita gente. A gente nem conseguiu entrar. Aí ela falou: “E agora?”. E quando deu no horário dela ir embora, ela falou: “Vou te levar pra casa, você toma um banho, janta e volta pra casa do seu pai”. Ela me levou na casa dela, que não ficava na periferia porque eu não me lembro de ter visto favela no Rio, então devia ficar próximo do centro também. A gente foi, eu tomei banho, jantei e ela tinha uma filha que era muito louca. A menina falava coisas sem nexo. E o filho dela era acho que do exército. A gente ficou um tempo e ela falou: “Você vai agora pra rodoviária, eu te levo até o ponto de ônibus, você vai pra rodoviária e volta pra Porteirinha”. Me deu o endereço dela e tudo. Eu cheguei na rodoviária do Rio e falei: “O quê? Eu vou pra São Paulo”. Isso só com um pouquinho de dinheiro, não tinha muito dinheiro. Aí falei: “Vou pra São Paulo”. E comprei passagem pra São Paulo. Mas quando eu saí de Minas eu sabia que tinha um primo da gente que ia chegar em São Paulo no outro dia. Eu cheguei em São Paulo, na rodoviária da Luz, antiga rodoviária, eu até tenho uma história pra contar do que aconteceu.
P/1 - Você ficou um dia só no Rio?
R - Fiquei um dia.
P/1 - Bom, José, você falou que chegou em São Paulo, mas a motivação de você vir pra São Paulo era por conta da rádio de você escutava, não?
R - Isso. É porque a gente ouvia muito programa, esses programas sertanejos, então eu comecei a me interessar por São Paulo, pela história de São Paulo. A gente ouvia muito o Zé Bettio, ele tinha um programa e ele falava muito sobre pontos de São Paulo, Estação da Luz, Jardim da Luz… Eu ficava imaginando tudo aquilo. Ele falava assim?: “Eu pego o ônibus do lado do Jardim da Luz” e aquilo fazia me identificar. Foi o que desenvolveu aquela vontade de vir pra São Paulo, de conhecer.
P/1 - E o rádio, vocês tinham costume de escutar na casa do seu pai?
R - No começo a gente ouvia na casa dos vizinhos, porque a gente não tinha rádio. Aí meu pai comprou o rádio, a gente já estava acho que com uns treze, quatorze anos quando ele comprou o rádio pela primeira vez. E a gente ouvia esse programas.
P/1 - Tinha esse programa e tinha mais algum que vocês gostavam?
R - Tinha esse e tinha um outro, que era “Linha Sertaneja Classe A”, passava todos esses cantores sertanejos, geralmente tinham circos também naquela época e os shows eram nos circos. Ele falava e eu ficava imaginando como era, que tamanho era. Eu ficava imaginando tudo aquilo. Depois começou a sair aqueles discos e a gente ouvia. Identificava também, porque além de ouvir no rádio o nome daquelas pessoas, quando você via fotos daquelas pessoas também era legal. Parecia que concretizava aquilo que você estava só ouvindo, quando você vi as fotografias daquelas pessoas da época.
P/1 - Bom, então aí você foi pro Rio e do Rio foi pra São Paulo.
R - Eu vim pra São Paulo. Eu cheguei na rodoviária da Luz de madrugada - acho que era umas cinco horas da manhã - eu sei que estava escuro, mas bem tranquilo. Cheguei e perguntei lá na informação que horas que chegava esse ônibus de Porteirinha. Eles falaram: “Não chega aqui, chega na rodoviária do Glicério”. Eu falei: “Nossa, como que eu faço pra ir pra lá?”. Eles falaram: “Atravessa a rua e pega um ônibus e vai até lá no Glicério”. E isso eu fiz, atravessei a Rua Duque de Caxias – até hoje tem o ponto lá; passei esta semana pra dar uma olhada, atravessei, peguei um ônibus e fui lá pro Glicério. E fiquei lá esperando, mas bem tranquilo. Quando o pessoal do ônibus chegou lá de Minas e me viu, ficou tudo assim: “Nossa, você está aqui”, mas ninguém sabia. Naquela época o pessoal vinha pra São Paulo e era uma novidade, todo mundo ficava sabendo. O pessoal reunia na casa daquela pessoa, fazia uma festa, era como se fosse uma festa, ia muita gente. Porque era novidade. Só que eu não quis passar por isso, eu era muito… Eu achava que ia chorar muito, ficar com muita saudade da minha mãe. Então eu preferi vir assim. Aí, o que aconteceu? Eu cheguei lá, encontrei com eles e nós fomos pra Suzano, de taxi ainda. Gastei todo o meu dinheiro que eu tinha pra pagar esse táxi. Era tão fácil de ir, tem um trem, tudo, mas eu acho que eles não tinha aquela destreza andar, então a gente foi de táxi. Fui pra casa da minha tia, irmã da minha mãe, já morava em São Paulo há muito tempo. Quando ela me viu ficou muito apavorada também “Você é louco. Você avisou?” “Não, tia, eu vim assim”. O que aconteceu lá em Minas? A minha tia, irmã da minha mãe foi em Montes Claros e encontrou minha antiga patroa. Perguntou por mim: “Não, o Zé foi embora, voltou pra casa da mãe dele”. “Não, mas ele não está lá”. O que me machuca até hoje é essa história da minha mãe ter sofrido. A minha mãe ficou desesperada, o meu pai ficou desesperado. Foi uma semana muito difícil pra minha mãe, que ficou me procurando em todo lugar que ia e não me achava. Eu liguei pra minha prima em Porteirinha, só que ela não avisou a minha mãe. Só no sábado que minha mãe foi pra lá que ela ficou sabendo. Minha tia escreveu também depois pra minha mãe, eu também escrevi. Fiquei lá em Suzano. Ah, esqueci de contar a história minha irmã casou em janeiro e veio embora pra São Paulo com esse meu cunhado. Fui pro Rio e pensei: “Eu vou lá pra São Paulo e fico lá com a minha irmã”. Fui pra Suzano, fiquei uns dois dias e depois o meu primo me levou até Mauá. Fiquei com a minha irmã.
P/1 - Mas, voltando um pouquinho, você falou que chegou em São Paulo na rodoviária da Luz, mas qual foi a impressão que você teve quando chegou na cidade?
R - Eu fiquei todo empolgado “Nossa, eu tô em São Paulo”. Só que estava escuro, não deu pra ver muito. Mas quando eu peguei o ônibus, eu via muito prédio. Eu nunca tinha visto aquilo. Aquele monte de prédios, prédios altos. Foi muito legal. A sensação muito boa. Engraçado é que eu não tinha medo. Eu [me] sentia muito tranquilo e meio realizado de ver uma coisa que até então era só um sonho. Foi uma sensação muito boa deu ter visto aquilo tudo ali sozinho. Estar vendo aquilo que eu tinha vontade de ver. Foi uma sensação muito legal que eu tive.
P/1 - Você encontrou o seu primo, foram pra Suzano e depois ficou só dois dias lá?
R - Fiquei dois dias e no domingo já fui pra Mauá, fiquei com a minha irmã. Minha irmã também levou um susto muito grande quando me viu. Só que em Mauá já foi diferente, já era periferia, rua de chão. Eu não era acostumado com periferia, nem conhecia porque quando eu saí do sítio pra ir morar na cidade eu fui morar no centro da cidade. Eu gostava do centro, mas eu tive que ficar, porque a minha irmã morava lá, pagava aluguel. Então foi muito difícil. Eu nunca tinha passado por aquilo. Na casa da minha mãe era mais confortável. Morei em Montes Claros na casa de um pessoal muito rico, também tinha muito conforto. Eu senti muita diferença. Mas eu sempre queria ter o meu canto. Fiquei seis meses com a minha irmã. Com dois meses já comecei a trabalhar na metalúrgica. Com seis meses eu já fui morar sozinho. Aluguei dois cômodos, comprei minhas coisinha e já fui morar sozinho.
P/1 - Mas em Mauá mesmo?
R - Em Mauá mesmo. Fiquei trabalhando, isso foi em 81, que eu comecei a trabalhar. Em 81, 82 e 83 veio uma crise terrível. Mas antes disso eu já tinha voltado pra Minas, porque foi assim: Eu comecei a trabalhar em abril nessa empresa e quando foi em dezembro eu fui pra Minas passar o Natal lá. E foi muito legal a ida. Eu fui comprando presente, levando presente pra todo mundo. E ainda tinha aquele lance de você chegar e todo mundo ir te ver. Era uma festa. Quando eu cheguei lá todo mundo foi me ver. As minhas irmãs ficaram muito felizes deu ter ido, ter voltado lá. Naquela época a gente se comunicava por carta. Até hoje eu tenho muita carta. Mandava pra minha mãe, minhas irmãs. Era só por cartas que a gente se comunicava. Naquela época não tinha telefone.
P/1 - E sua mãe não pedia pra você voltar pra Minas?
R - Falava, escrevia falando que estava com saudades. Mas eu queria ficar aqui trabalhando. E de certa forma pra eles também era melhor, porque eu já podia ajudar. Ajudava, mandava um dinheirinho, presentes pra eles. Trazia minha mãe pra fazer tratamento. Na época eu tinha convênio médico e eu coloquei a minha mãe como dependente. Ela vinha fazer tratamento. Ela chegou a fazer até cirurgia com tudo isso. Fiquei até em 83. Em 83 veio uma crise tremenda e me mandaram embora. Arrumei serviço, mas pra trabalhar à noite, num frigorífico. Uma empresa grande, mas eu não me adaptei. Fiquei um mês. Levava marmita, tudo, até que um dia eu decidi que não ia mais trabalhar. Peguei a marmita e joguei fora. Eu nem descartei, eu joguei. Não conseguia mais emprego e aí voltei pra Minas. Eu levei as minhas coisas, mas eu voltei muito triste porque eu não queria voltar. Eu cheguei e fiquei seis meses só, porque eu comecei a trabalhar na roça, mas não era mais aquilo que era na época da minha infância. Aí fiquei seis meses. Com seis meses a empresa me chamou de volta. Foi o pessoal pra lá e me deu o recado, falou pra eu vir. Voltei e comecei a trabalhar. Isso foi em 84. Em 85 eu conheci uma pessoa em São Paulo, na Nove de Julho, e aí que eu vim morar em São Paulo. Porque mesmo morando em Mauá o meu foco era São Paulo. Eu vinha passar final de semana, cinema, era tudo São Paulo. Pegava o trem e vinha. Conheci essa pessoa e vim morar em São Paulo. Aquilo foi o auge.
P/1 - Mas, um pouquinho antes: a empresa ficava me Mauá mesmo?
R - Não, em Suzano.
P/1 - E como que era o trabalho lá?
R - Ah, eu não gostava porque era produção, fundição, muito pó, muito barulho, mas eu tinha que trabalhar. E eu não tinha estudo. Até então eu só tinha até a quarta série. E eu ganhava um salário até que razoável, no contexto da minha história. Então estava bom. Eu fui ficando. Depois fui mandado embora; aí voltei; e quando voltei, depois de um tempo fui melhorando também, já melhorei de posição lá dentro. Acho que porque eu trabalhava certinho e o pessoal gostava de mim lá dentro, então eu fui melhorando. Aí, quando eu passei a morar em São Paulo, tudo era tudo novidade. Eu pegava o ônibus ali na Avenida Paulista, tinha um ônibus da empresa, de São Paulo pra Suzano.
P/1 - Então quando você veio morar em São Paulo você continuou trabalhando em Suzano?
R - Trabalhando lá e morando aqui.
P/1 - Agora explica um pouco pra gente como foi vir morar em São Paulo. Como você conheceu essa pessoa, que era ela.
R - Então, foi muito engraçado porque eu conheci essa pessoa na rua, assim de olhar, e começar a conversar. Aí “Vamos pra lá”. Fui pro apartamento dele, era um professor. Ele morava sozinho e tinha, acho que 33 anos na época, e eu tinha 24, 25. A gente ficou junto. Com dois meses eu fui morar com ele. Sei que a minha família… Foi um baque pra minha família também, porque eu nunca fui de fazer as coisas e esconder. Eu sempre falava. As minhas irmãs ficaram preocupadas, mas depois viram que era normal, que era pessoa de bem. Ficaram empolgadas quando viram que eu ia morar num apartamento. Foram lá e viram o apartamento bonitinho e era uma pessoa decente, professor e tudo. Depois em seguida veio a minha mãe, que ficou preocupada também. Meu pai veio, ele gostou mais ainda, porque o Osmar – o nome dele era Osmar - ele tocava violão e ele canta também muito bem, já gravo até cd. O meu pai gostou mais ainda. Até hoje a gente tem esse laço de se falar, de estar ligando. Pra mim foi muito boa aquela experiência. Eu me identifiquei porque eu sempre gostei do centro da cidade. Eu me vi naquele sonho de infância, porque cidade era aquilo. Não onde eu morava em Mauá, periferia. Eu via todos aqueles monumentos do Jardim da Luz, Igreja da Sé. Eu saía e fotografava. Na Sé tinham aqueles fotógrafos que tiravam foto na hora. Eu tirei, mandava pra minha mãe. Eram essas histórias de São Paulo.
P/1 - E você falou que gostava muito de ir ao cinema. O que você gostava de fazer além desses passeios?
R - Eu ia muito ao Zoológico também, no Parque Ibirapuera, na Paulista. Chegava alguém da minha família, então eu já levava na Paulista “Vamos na Paulista”. Eu mostrava aqueles casarões antigos; eu contava mais ou menos a história pra eles.
P/1 - E os cinemas que você frequentava onde que era? O que você gostava de assistir?
R - Eram aqueles cinemas de antigamente, aqueles cinemas de rua. Tinha o Olido, tinha o Metrópole, era o que eu mais gostava de ir. Mas tinha o Cine Ipiranga também, que naquela época ainda estava funcionando legal – depois que foi decaindo. Inclusive até fecharam todos eles. Então era uma época muito boa.
P/1 - O que você gostava de assistir? Tinha algum gênero, algum filme que você lembra?
R - O que mais me marcou foi o “Marvada Carne”. Eu levei a minha irmã, a Terezinha, até então ela nunca tinha ido ao cinema. Acho que “Marvada Carne”… A gente estava assistindo e de repente passava o viaduto em frente o apartamento onde eu morava. Mostra um pedaço do prédio assim, na 9 de Julho, e ainda falei pra ela: “Você tá vendo lá o apartamento onde eu moro?” Então pra mim aquilo foi toda novidade, foi o que marcou muito pra mim.
P/1 - Bom, então você continuava trabalhando em Suzano e você ficou lá por quanto tempo, morando em São Paulo e trabalhando lá?
R - Nesse apartamento na 9 de Julho eu morei dois anos. Aí, o que aconteceu? O Osmar, ele já trabalhava aqui, era professor há mais de dez anos. A mãe dele já estava de idade e ele quis voltar pra dar aquele apoio pra ela e voltou. Eu sofri muito porque ele voltou pra Ibirá, ele é de Ibirá. Ele voltou pra Ibirá e eu voltei pra Mauá. Aluguei mais uma casa lá e voltei pra Mauá. E minha irmã, que morava lá em Minas... Eu trouxe ela pra ir morar lá comigo também. Lá é meio difícil sobreviver, eu falei: “Vem pra cá”. Aluguei uma casa maior e ela veio morar comigo. A Vani. Ela já tinha casado, então ela veio morar comigo. Aí eu voltei a estudar, comecei da quinta série. Eu terminei o ginásio, trabalhando e morando lá com ela. Depois o meu cunhado arrumou serviço, alugou uma casa e eu passei a morar sozinho de novo. Fiquei bastante tempo morando sozinho.
P/1 - E como foi voltar a estudar? Você estava com vinte e seis?
R - Eu estava com 26, 27 anos. E foi legal. Eu sentia necessidade de voltar a estudar e tentar crescer também. Sei que foi uma experiência legal. Sei que tinha uma época que eu trabalhava de horário, aí eu revezava: Às vezes estudava de manhã, na outra semana à noite. Depois eu só estudava à noite. Mudei de cargo lá na empresa e eu só trabalhava de dia, aí ficou melhor.
P/1 - E era muito diferente da escola lá de Minas?
R - A diferença por causa da idade, porque como eu fiz supletivo, era pessoa mais velhas e eu sentia a diferença de sotaque. Apesar de ser… Essas cidades como Mauá, que é periferia e tem muita gente no Nordeste, mas eu senti uma diferença nesse contexto. Mas eu consegui criar um vínculo legal de amizades.
P/1 - José, você sentia alguma dificuldade por ser de Minas, por ter vindo de outro lugar. Você lembra disso?
R - Não, comigo eu nunca senti preconceito. Eu nunca tive. Só na empresa mesmo que gera entre eles mesmo. Eu percebi em relação a mineiros mesmo, que tem muita… Não sei porque mas rola uma oposição. Eu sempre percebi isso no ambiente da empresa.
P/1 - Mas em que sentido?
R - Eu não sei, eles parecem que tem medo dos mineiros. Fala que mineiro é isso… Rola muito isso.
P/1 - Mas aí você fez o supletivo?
R - Fiz o supletivo, continuava trabalhando. Saí da empresa, pedi pra me mandar embora. Eles me mandaram embora. Com o dinheiro que eu peguei eu construí minha casa em Mauá e passei a trabalhar por conta, o que foi uma experiência muito boa pra mim em relação à São Paulo, só que foi em Mauá. Trabalhei oito anos.
P/1 - O que você fazia?
R - Eu comecei vendendo cachorro quente, fui ampliando muito a clientela, aluguei um salão e montei uma lanchonete em frente ao SESI. Fiquei oito anos trabalhando por conta.
P/1 - E como foi essa experiência?
R - Foi uma época muito boa na minha vida, porque eu conheci muita gente, ganhei muito dinheiro também, foi uma fase boa. Uma que o contexto da economia foi favorável naquela época. Depois foi decaindo e aconteceram uns problemas. Perdi o meu sobrinho, ele trabalhava comigo. Essa irmã que quando casou veio morar em São Paulo, ela teve um filho. Eu morava com ela na época em que ela ficou grávida e tudo e eu fui o padrinho dele, tinha muito carinho por ele e ele por mim. Quando fui trabalhar ele foi trabalhar comigo. Só que aí depois ele morreu. Quando ele morreu a minha vida tomou outro rumo.
P/1 - O que aconteceu?
R - Ele teve uma asfixia mecânica na piscina do SESI, eu trabalhava em frente ao SESI em Mauá. Depois de um tempo ele resolveu fazer a carteirinha, tinha dezenove anos. Na segunda vez que ele foi, ele morreu. Meu mundo acabou. Eu sofri muito. Parei de trabalhar, fiquei três anos sem fazer nada. Nada, nada. Ficava só em casa, fiquei muito mal. Depois que eu comecei a fazer trabalho voluntário e aí que eu fui melhorando.
P/1 - Mas você continuava morando em Mauá?
R - Aí já estava morando na minha casa, construí.
P/1 - Mas você morava com esse rapaz?
R - É, quando a gente voltou pra Mauá continuamos morando junto. Depois que eu construí a minha vida ele voltou a morar com o pai dele, com a mãe. E eu fiquei morando na minha casa.
P/1 - E esse trabalho voluntário que você falou que você fazia, como é que começou essa idéia? Por quê?
R - Porque eu estava muito mal. Eu precisava fazer alguma coisa. Eu sentia a necessidade em fazer alguma coisa. Liguei no Dante Pazzanese e tinha esse trabalho. Eu ouço muita CBN e falaram. Eu peguei o telefone, marquei e aí eu vim e fiquei acho que um ano trabalhando como voluntário na pediatria.
P/1 - E o que você fazia?
R - Eu ficava brincando com as crianças, geralmente são pessoas de longe, do país inteiro. Vem pessoas até da Bolívia, às vezes. Lá [era] de cardíaco, geralmente criança com problema cardíaco fica lá internado. Eu ficava lá, ajudava as mães na hora de dar comida, brincava com eles. Aqueles que estavam melhorzinho a gente brincava, conversava com as mães. O voluntariado é meio isso: Às vezes você conversar com a pessoa você já está ajudando. Então eu fazia isso. Fiquei um ano. Como estava desempregado tinha que gastar com passagem, tudo, pensei: “Eu preciso procurar um mais perto”. Consegui lá em Mauá, era perto da minha casa. Lá tem um abrigo que cuida de crianças abandonas. Fiquei também mais de um ano trabalhando como voluntário. Depois de um tempo perguntaram se eu queria trabalhar, falei: “Agora já tô melhor, agora eu acho que já consigo”. Porque quando eu entrei lá tinha vaga de motorista, mas eu não quis “Não, não vou conseguir trabalhar. Quero só passar um tempo”. Depois de um ano comecei a trabalhar como funcionário mesmo, como monitor. Trabalhei dois anos e pouco como monitor.
P/1 - E essa experiência já não era voluntária?
R - Depois eu trabalhava à noite, mas eu gostava, gosto muito ainda de frequentar lá. Eu trabalhava à noite e de dia eu ia pra casa dormir. Eu era meu pai lá. A criançada gostava muito de mim.
P/1 - Você lembra alguma história desse trabalho que te marcou ou alguma pessoa que tinha lá?
R - Lá as histórias deles são histórias muito doloridas. Inclusive tem quatro irmãs que estão lá porque o próprio pai abusava das crianças. Se você for analisar as histórias de cada é muito complicado. A gente não pode[se] envolver muito, mas eles são muito carentes. Se você dá um pouco mais de atenção parece que eles apegam, porque tem muita carência. Eu saía com eles pra passear. Teve um dia que nós íamos nos reunir e eu trouxe eles aqui no Ibirapuera. A gente veio de trem, metrô, acho que umas 20 e poucos crianças. Passamos o dia no Ibirapuera com eles. Fiz tortas, fizeram salgados, trouxe refrigerante. Sei que eles se divertiram muito.
P/1 - E aí você ficou dois anos trabalhando lá?
R - Dois anos.
P/1 - E aí, você saiu de lá e como que foi? Por quê você saiu de lá?
R - Porque eu cansei de trabalhar à noite. Quando eu comecei a trabalhar eu aluguei um apartamento em Santo André, que eu gosto… Meu sonho era morar em apartamento de novo. Aluguei a minha casa e aluguei um apartamento em Santo André e atualmente eu estou morando em Santo André.
P/1 - Faz muito tempo?
R - Faz três anos.
P/1 - Então é bem recente?
R - É, que eu vim pra Santo André.
P/1 - E aí você saiu do abrigo, parou de trabalhar e foi trabalhar em algum lugar?
R - Não, agora eu estou parado. Como eu estou estudando, agora eu já quero voltar mais [pra] área mesmo.
P/1 - E você está estudando o quê?
R - Eu estou fazendo Letras.
P/1 - Como é que surgiu essa vontade?
R - Eu acho que a própria necessidade de você estar evoluindo, acompanhando. A primeira pessoa da nossa família que fez faculdade foram minhas duas sobrinhas. Eu já sou o terceiro, apesar de ser um geração anterior a eles, eu sou o terceiro da família que está fazendo faculdade. Esse ano talvez eu já consiga mudar pra área e quero também ver se eu consigo trabalhar num horário só, de dia. Não quero mais trabalhar à noite.
P/1 - Mas por que você escolheu Letras?
R - Primeiro fato é porque a faculdade fica praticamente do lado do apartamento onde eu moro. E eu acho que eu me identifico também com a literatura um pouco mais.
P/1 - Você sentiu alguma mudança na sua vida desde que você entrou na faculdade, alguma coisa que te marcou?
R - Pra mim é novo, mas acho que com a vivência de mundo, achei um caminho meio normal. Achei tranquilo.
P/1 - José, você estava contando pra gente antes de uma viagem que você fez. As cidades históricas de Minas. Como foi isso?
R - Isso. Eu também sempre tinha muita vontade de conhecer as cidades históricas. A primeira vez eu fui sozinho. Fui pra Ouro Preto e Mariana. Fui, passei o Natal na minha mãe e na volta já passei lá e conheci as duas cidades. Eu gostei muito, me identifiquei muito. Quando foi em 94 eu voltei, eu e o Márcio, eu já morava aqui em São Paulo, na Barão de Campinas. Nós fomos pra São João del Rei, Tiradentes, Congonhas, Mariana e Ouro Preto. Nós ficamos cinco dias. Foi muito legal, eu tirei bastante fotos.
P/1 - Mas por que você tinha vontade de ir pra esse lugar?
R - Engraçado, uma coisa que me identifico é [com] o antigo. Eu não sei. Eu tenho aquele negócio de saudosismo com o antigo. Isso me marca muito. Até em programa que tem alguma coisa que fala com o antigo, eu me identifico. Fotos antigas, prédios antigos eu acho muito bonito, me identifico muito.
P/1 - E tem alguma coisa lá que te chamou muito a atenção, que você guardou com carinho?
R - Marcou muito as senzalas que tem. Inclusive, em Ouro Preto tem a Casa do Contos e embaixo tem a senzala, o lugar que os escravos dormiam, então aquilo me marcou muito. Tem o Museu dos Inconfidentes também, é muito interessante. Porque é uma coisa que está na história e aí você vê aquilo ali ao vivo assim, é muito legal.
P/1 - E assim, vindo mais pros dias de hoje, você tem algum sonho hoje que você queria realizar?
R - Meus sonhos… Depois de uma certa idade… O sonho é viver bem, são essas coisas assim. Porque já estou com 50 anos… Meu sonho é comprar um carro, ter meu apartamento em São Paulo, porque eu ainda pretendo ter.
P/1 - E quais são as coisas mais importantes na sua vida hoje?
R - As coisas mais importantes… Acho que mais importante, em primeiro lugar, é a família mesmo, que está sempre ali. Meus sobrinhos, todos eles gostam muito de mim. Estudar, manter o estudo, como agora eu estou fazendo. Depois arrumar um trabalho, e aí isso.
P/1 - José, tem alguma coisa que você queria falar que eu não te perguntei?
R - Então, uma coisa que eu quero comentar é da antiga rodoviária da Luz, me marcou muito quando eu cheguei, porque tinha tipo uns quadrados de acrílico colorido. Aquilo me marcou muito. Eu pensei: “Preciso fotografar”, eu nunca tinha fotografado. Apesar deu ter morado ali pertinho, não fotografei. Esta semana eu vou lá pra ver. Como eu vinha aqui pra entrevista pensei em passar lá pra reavivar alguma coisa. Fiquei muito frustrado, quando eu cheguei lá e estava demolindo, porque eu já tinha ouvido que ia demolir. Eu pensei: “Vou lá pra fotografar, pelo menos”. Quando eu cheguei já tinham tirado todas aquelas placas. Que coincidência, “justo agora que eu vou falar disso aqui, está assim”. Engraçado porque hoje de manhã eu estava ouvindo a CBN e o Heródoto Barbeiro comentou de um email que ele recebeu de um professor que vai levar as crianças lá na Sala São Paulo. Primeiro ele foi ver como estava [aquel] área ali. Ele elogiando que está demolindo a Estação da Luz e eu já estou aqui pensando o contrário, com dó de ter demolido. Apesar de que vai reformular, vai fazer outro complexo de cultura. Vai ser teatro, essas coisas. Mas como eu tenho esse lado saudosista já fiquei o contrário dele. “Nossa, não devia ter demolido, devia ter ampliado, mantido a característica de um prédio antigo que havia ali”. Foi a minha história, quando começou, quando eu cheguei... Ali foi a primeira ligação que eu tive em São Paulo. Então eu fiquei meio triste.
P/1 - Tem alguma outra história que você queira contar pra gente?
R –Ah, acho que você perguntou tudo.
P/1 - E como foi contar a sua história?
R - Eu estou achando que parece que não tive uma sequência, queria contar mais coisas.
P/1 - Mas tem alguma coisa que você queria contar?
R - Ah, tem as novidades de São Paulo, de conhecer o metrô. Quando fizeram a rodoviário do Tietê, foi engraçado também. Eu fui voltar pra Minas a primeira vez, já tinha terminado o Tietê. Eu falei: “Eu preciso saber onde é”, aí fui uns dias antes, peguei o metrô e eu fui até lá, só pra saber pro dia que eu fosse na minha mãe já saber, não me perder. Então foi engraçado também esse “lance” deu ter ido conhecer. Sempre tive essas curiosidades da cidade. Conhecer o novo.
P/1 - Tem coisa de mudança da cidade que te marcaram?
R - A cidade está sempre mudando. Eu acho que um ponto negativo é destruírem prédios antigos e fazerem outros novos. Acho que tem que ter aquela dinâmica, mas muitas coisas tinham que manter. Acho que eles tinha que preservar mais esse prédios históricos, tinham que preservar mais. Então muda muito, mesmo nas ruas. Igual como quando eu morava na 9 de Julho, era totalmente diferente você sair da Estação da Luz para ir pra 9 de Julho, hoje é totalmente diferente. Dependendo do caminho que você faça, você nem reconhece mais. Ali pelo Anhangabaú tá totalmente mudado. A Tiradentes está totalmente mudada. Quando eu morava na 14 Bis a gente ia assistir o desfile de 7 de Setembro ali na Tiradentes, hoje nem existe mais ali. Tinha o carnaval também, que era ali. Engraçado porque hoje eu estou morando no ABC e eu estou sempre em São Paulo. A gente vai aos museus, ainda mais agora que eu estou fazendo faculdade, então isso também conta como horas culturais. A gente está sempre indo nos museus, no Museu da Língua Portuguesa, na Pinacoteca quando tem exposição. Vou no Banco do Brasil também.
P/1 - Tem mais lugares como a antiga rodoviária que te marcou por não existir mais ou algum espaço que mudou muito que você lembra?
R - O que me chama mais atenção é aquela em volta, ali mesmo, mudou mais. Mas a Paulista também está bem diferente da que eu conheci.
P/1 - Quais foram as mudanças?
R - Eu acho mais a calçada, está bem diferente do que era antes. O calçamento. Tem metrô, naquela época não tinha. E uma coisa que marcou muito também, quando eu morava na 9 de Julho tinha bem em frente a quadra da “Vai Vai”. Eu não gosto muito de carnaval, de samba, mas todo domingo a gente era obrigado a conviver. O Osmar adorava. Às vezes eu ia pra lá com ele, na quadra, pra assistir os ensaios porque ele gosta muito de carnaval. É uma coisa que me marcou muito também, estar morando ali em frente da quadra da “Vai Vai”.
P/1 - E você tinha falado também do carnaval na Tiradentes, como era?
R - O carnaval na Tiradentes eu não assisti, só pela televisão. Marcou muito aquelas imagens da Inezita Barroso. Eu não esqueço dela quando ela transmitia dali. É uma imagem que tem na minha mente, só que é pela televisão. Ir mesmo eu não cheguei a ir.
P/1 - E o desfile de 7 de setembro também?
R - A gente ia no desfile.
P/1 - Como era?
R - Era aquele monte de polícia, até então não tinha senso crítico de ver porque era ditadura na época, era 80 e pouco, ainda era ditadura. As pessoas vão meio inconsciente aplaudir uma coisa que pode estar voltado pra você, porque se hoje você vê com lado crítico é bem isso o desfile de 7 de setembro. Mas eu achava legal, a gente ia.
P/1 - Tem mais algum outro evento da cidade que você tem muito na lembrança e você queira falar?
R - Daquela época… Hoje é a passeata gay que está marcando muito. Mas acho que hoje está perdendo a característica. Acho que no início era mais focado mesmo. Essa última que teve eu não fui. Eu fui na anterior. Eu já achei muito diferente, acho que perdeu meio o foco.
P/1 - Desde o início você tinha costume de ir na parada?
R - Não. Eu fui depois que começou a ficar bem divulgada mesmo. Eu fui umas 3 vezes e achei legal. Aí na última eu achei eu já estava meio avacalhado. Eu sinto que está assim o movimento. A passeata em si.
P/1 - Mas do movimento gay você chegou a participar?
R - Não, não cheguei a participar não. Não participo. Eu não levanto bandeira mais também não me escondo dentro do armário. Dessa forma que eu ajo. Com qualquer pessoa, inclusive com relação à minha família, todos eles me respeitam muito. Inclusive acho que pela própria atitude que eu tenho em relação ao assunto. A minha família, todos eles me adoram, me respeitam, me admiram. Meus sobrinhos, todas elas. Até a minha sobrinha de nove anos tem consciência, sabe, mas me tem como exemplo de caráter, porque às vezes as pessoas têm uma imagem, denigre e não é assim. Eu tenho essa visão. Eu não tomo bandeira, mas também não me escondo. Eu defendo a dignidade humana.
P/1 - Além da sua família, desde primeiro o Osmar, depois o Márcio, você sentiu alguma vez alguma dificuldade por conta disso?
R - Muita dificuldade. Nossa, é muito complicado.
P/1 - Você lembra de algum história que te marcou muito, de situações que possam ter acontecido?
R - Tem sempre muita piadinha, em qualquer lugar, ambiente. Mesmo entre a gente tem aquelas piadinhas que a gente já acaba incorporando. Mas é muito difícil você manter a dignidade sem levantar bandeira, e sendo. É muito complicado porque você parece que tem que viver meio como um ator., pra fazer seu papel de vida normal.
P/1 - Mas teve alguma situação que você lembra que tenha acontecido. Alguma história?
R - Sempre tiveram muitas histórias, mas a que mais me marcou, que eu devia ter agido... Quando eu trabalhava em Mauá, quando eu tinha minha lanchonete, em frente tinha uma casa de produto de limpeza. Eu entrei pra pegar produto e o cara é meu amigo, o dono da loja. E do lado tinha um estacionamento, o cara trabalha com transporte de criança, essas vans. E eu estava dentro dessa loja e ele entrou e falou: “Estou com olho no viado”. Entre pessoa adultas. Estava eu, o senhor, que é meu amigo, uma menina, cliente também e esse cara chegou e falou isso. Uma coisa que machuca muito e o cara tem dois filhos que são gêmeos, eu acho pode até ser, porque pelo jeitinho… Eu vi eles, viviam lá na minha lanchonete. Quem é sabe quem é. Eu via o jeitinho deles e o pai falar isso pra uma pessoa, que é um adulto, que está… Então isso é coisa normal, que acontece.
P/1 - Mas o que você fazia nessas situações? Você falava alguma coisa?
R - Não, eu nem falei nada pra ele. O que eu devia ter feito é ter pego aquelas pessoas como testemunha e ter movido um processo. Mas a própria vida mostra pra essas pessoas. Porque ele tem dois filhos. E o que eu costumo dizer é que a única coisa que a gente é diferente é só na cama, porque o resto é normal. Nós somos pessoas normais. E por que o pessoal tem tanto pra criticar, pra não aceitar? Mas é do humano mesmo, o que é diferente, o que foge aos padrões, as pessoas já tem preconceitos.
P/1 - E como que foi a descoberta? Como que foi o processo?
R - É muito dolorido, é muito complicado, porque desde o início, desde que eu morava lá no interior eu já sentia diferente. Um dos motivos que a gente se torna muito tímido é isso, é fechar. E eu não tinha pra quem perguntar nada. O primeiro conhecimento que eu tive foi através de um livro que falava um pequeno trecho sobre o assunto. Foi aí que eu vi que tinham pessoas assim, que podia ser normal sendo assim. Foi em 84 que eu tive o primeiro contato com a pessoa, até então eu pensava que era só travesti, pessoa assim muito debochada. Eu achava que não tinha pessoas normais. Eu conheci uma pessoa, um cara casado, muito decente também, que me ajudou muito. Logo em seguida em conheci o Osmar. Porque, engraçado, logo que você aceita você mesmo aí muda tudo, você passa a ver o mundo diferente, a encarar diferente. Foi pelo menos o que aconteceu comigo, de achar normal. Quando eu conheci, logo eu já fui morar com o Osmar e a minha família assim: “Onde você conheceu, como você conheceu?” E de repente eu tive uma vida normal, decente. Eles viram que pode ter uma vida decente, aí se torna mais fácil.
P/1 - Mas eles já sabiam ou eles só ficaram sabendo quando você foi morar com o Osmar?
R - Só quando eu fui morar com ele. Porque até então eu namorava, eu estava namorando com uma menina. Eu fiquei dois anos namorando com ela, mas eu sabia que não era aquilo. Pra minha mãe eu falei abertamente, mas ela não acreditou. Eu fiquei morando com o Osmar e minha mãe sempre cobrava casamento, até que um dia eu falei: “Mãe, eu não vou casar”. Hoje eu converso normalmente com eles. O Márcio já foi pra lá e eles gostam dele. Até hoje meu pai pergunta: “E o Osmar, está bem? Mando abraço”. Porque eu ligo pra ele. Ele mora em Ibirá mas a gente se fala por telefone ainda. Mas é muito complicado você ser homossexual, mesmo em São Paulo é complicado você viver. É muito complicado.
P/1 - Mas em Minas, desde jovem, você sentia, você sabia, mas não conhecia ninguém lá?
R - Não, lá eu não conhecia ninguém. Só quando vim pra cá, depois de muito tempo que eu fui aceitar. Até então eu não aceitava, sofria muito, muito mais. Quando você não aceita você sofre muito mais. Quando você aceita é mais fácil, porque aí a gente não briga com a gente mesmo, você só tem que brigar com o mundo. Então já é um alívio.
P/1 - Tem mais alguma história que você queira contar?
R - Acho que é só sobre esse assunto mesmo. Engraçado que depois que eu terminei com o Márcio eu conheci uma outra pessoa e faz onze anos que a gente está junto.
P/1 - Mas você continua morando sozinho?
R - Eu fiquei morando sozinho mas depois eu conheci essa pessoa e como ele morava em Diadema, e eu em Mauá, não dava certo. Quando arrumei serviço, “Vamos morar junto”. Quando eu aluguei o apartamento em Santo André a gente já alugou junto. A gente faz faculdade junto.
P/1 - Como é o nome dele?
R - É Willia. A gente está junto há onze anos já.
P/1 - Como é a relação de vocês com as pessoas?
R - Em relação a nossa família é normal. Minha família gosta muito dele. Ele já foi pra casa da minha mãe três vezes. A gente se dá muito bem. Eu com a minha família também. Minhas sobrinhas, eu tenho até ciúmes, porque às vezes eu acho que elas gostam mais dele do que de mim. E a gente estuda junto. Agora a gente está estudando no mesmo horário, à noite, então a gente está estudando na mesma sala. E a gente se dá muito bem, temos amizade, aquele vínculo é muito legal.
P/1 - E vocês se conheceram como?
R - Também na rua, no olhar. A gente tem muito assim, do olhar. Cruzou o olhar. As três pessoas foi tudo assim na rua. O Osmar eu conheci na Barão de Itapetininga. O Márcio foi lá em Mauá mesmo e o Willia foi em Santo André. Engraçado que Santo André tem uma história na minha vida, a primeira pessoa que eu conheci foi em Santo André. E a segunda, que eu estou até hoje, foi em Santo André. Hoje a gente mora junto e pretende comprar apartamento, se Deus quiser. A gente terminando a faculdade, a gente vem pra São Paulo. Quero acabar a minha vida aqui em São Paulo.
P/1 - E como foi contar a sua história pra gente?
R - Eu achei a experiência legal, você reviver aqueles momentos. O processo de eu ter vindo. Acho que foi legal.
P/1 - Então muito obrigada.
R - Eu que agradeço.
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