Projeto: Museu Clube da Esquina
Depoimento: Hildebrando Pontes Neto
Entrevistado por: Soraia Moura
Local: Belo Horizonte, 21/04/2004
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Entrevista: MCE_CB014
Transcrito por: Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por: Grazielle Pellicel Teixeira
P – Hildebrando, eu gostaria que você falasse para nosso registro: seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Hildebrando Pontes Neto. Nasci em 27/9/1943 na cidade de Pontalina no Estado de Goiás.
P – Eu gostaria que você falasse um pouquinho agora do começo da tua carreira. O que te levou ao Direito, como é que foi um pouco essa sua vida profissional.
R – Veja só. Eu ingressei na Faculdade de Direito e tive o privilégio de conhecer o Fernando Brant. E através da nossa convivência, o Fernando sempre me dizia que eu precisava trabalhar com direito autoral, mas ele falava essa coisa para mim e eu preocupado com outras coisas. Com o fato de sair da escola, de me casar, de me encaminhar na profissão. As coisas foram passando, mas isso ficava na minha cabeça, porque nos tornamos amigos, queridos amigos, e até que um dia eu cansado de uma condição de advogado de empresa eu voltei para Belo Horizonte e me desliguei. Perdão, eu em Belo Horizonte me desliguei de uma subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce onde eu chefiava o Departamento Jurídico e resolvi ir para a praia, que eu ia virar pescador. Comprei lá uma canoa e fiquei praticamente um ano, é, quase um ano na praia sem fazer nada. E foi a fase mais importante da minha vida, porque foi o momento em que eu pude retomar todo o caminho da minha sensibilidade que tinha sido perdida. E eu comecei a admirar flor, me emocionar com golfinho, com essas coisas que há muito tempo eu não via. E quando eu cheguei em Belo Horizonte, o Fernando disse que nós precisávamos trabalhar com o Milton, que o Bituca estava precisando de um assessoramento para a gente encaminhar, conduzir, não só a vida dele desse...
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Depoimento: Hildebrando Pontes Neto
Entrevistado por: Soraia Moura
Local: Belo Horizonte, 21/04/2004
Realização: Instituto Museu da Pessoa
Entrevista: MCE_CB014
Transcrito por: Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por: Grazielle Pellicel Teixeira
P – Hildebrando, eu gostaria que você falasse para nosso registro: seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Hildebrando Pontes Neto. Nasci em 27/9/1943 na cidade de Pontalina no Estado de Goiás.
P – Eu gostaria que você falasse um pouquinho agora do começo da tua carreira. O que te levou ao Direito, como é que foi um pouco essa sua vida profissional.
R – Veja só. Eu ingressei na Faculdade de Direito e tive o privilégio de conhecer o Fernando Brant. E através da nossa convivência, o Fernando sempre me dizia que eu precisava trabalhar com direito autoral, mas ele falava essa coisa para mim e eu preocupado com outras coisas. Com o fato de sair da escola, de me casar, de me encaminhar na profissão. As coisas foram passando, mas isso ficava na minha cabeça, porque nos tornamos amigos, queridos amigos, e até que um dia eu cansado de uma condição de advogado de empresa eu voltei para Belo Horizonte e me desliguei. Perdão, eu em Belo Horizonte me desliguei de uma subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce onde eu chefiava o Departamento Jurídico e resolvi ir para a praia, que eu ia virar pescador. Comprei lá uma canoa e fiquei praticamente um ano, é, quase um ano na praia sem fazer nada. E foi a fase mais importante da minha vida, porque foi o momento em que eu pude retomar todo o caminho da minha sensibilidade que tinha sido perdida. E eu comecei a admirar flor, me emocionar com golfinho, com essas coisas que há muito tempo eu não via. E quando eu cheguei em Belo Horizonte, o Fernando disse que nós precisávamos trabalhar com o Milton, que o Bituca estava precisando de um assessoramento para a gente encaminhar, conduzir, não só a vida dele desse ponto de vista, mas ajudá-lo no que fosse preciso. E eu ingressei nesse projeto. Já conhecia o Bituca. Conhecia o Bituca dentro da redação d’O Cruzeiro. O Fernando me apresentou, porque o Fernando trabalhava na revista O Cruzeiro aqui em Belo Horizonte. E depois nós tivemos um encontro memorável aqui em Diamantina, onde o Bituca foi fazer uma matéria para a revista Manchete e por absoluta coincidência... Ô, perdão, para a revista O Cruzeiro. E por absoluta coincidência, o presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira fazia uma matéria para a revista Manchete. E foi um encontro de Milton com Juscelino. E na porta do Seminário de Diamantina: Lô, Márcio Borges, Fernando, e tinha mais gente presente. Eu estava lá. Cantaram junto o Beco do Bota. E foi realmente um momento de grande emoção. E, aliás, o Márcio, o Marcinho Borges retrata esse encontro no “Os Sonhos Não Envelhecem”. E ele até achou que eu fui abusado com o presidente Juscelino Kubitschek, porque eu o chamei de Nonô. Além de estar de porre já naquela altura – nós tínhamos bebido tudo o que tinha direito em Diamantina. Na verdade, foi uma forma afetuosa que eu busquei para dizer ao presidente que eu também tinha por ele um carinho imenso, que o Nonô era algo muito íntimo assim, de meu coração para ele. E ele ficou muito feliz com isso. Ele me deu um abraço e eu tenho esse abraço tatuado no coração até hoje. Então a partir daí nós começamos, eu pessoalmente, comecei a assessorar o Bituca. E veio se somar a esse trabalho inicial o Marcinho Ferreira, que prematuramente nos deixou, mas que teve a partir daí também um papel fundamental na vida do Bituca, na vida do Milton. E que ele pode ter tranquilidade para poder fazer o que ele sabe fazer, e com competência. E com genialidade. Que é compor e cantar.
P – Isso foi em que época mais ou menos?
[pausa]
R – Que época que foi isso, hein?
P – Que você volta da praia.
R – Eu tenho impressão que foi por volta da década de 70, 80.
[pausa]
P – Essa sua volta para Belo Horizonte, o encontro com o Bituca foi mais ou menos em que época?
R – O meu encontro com o Bituca... Eu tenho certeza que foi em 70, 71 que nós nos conhecemos, mas a minha volta se deu na década de 80. Então, entre 70 e 80 esses fatos se passaram. Se não me falha a memória porque eu sou péssimo para registro de datas e guardo na memória os fatos, mas as datas me martirizam. Eu não consigo ter uma noção clara disso.
P – Então, nesse período, o Milton e o Clube eles já estavam consolidados como, na carreira artística, eles já tinham uma projeção.
R – É, na verdade, do que posso te dizer, quer dizer, o Milton é o fato gerador de todo esse processo, né? E ao redor dele, se agregam nomes já expressivos do cancioneiro popular brasileiro que todos nós conhecemos, mas que na verdade já com ele conviviam antes. E vieram novos nomes. Enfim, esse caudal de gente boa foi se ampliando, foi crescendo para se transformar nisso que se chama esse grande Clube da Esquina, gerador de sensibilidade, de música. E não só com conotação nacional quanto internacional, quer dizer, então eu tenho... Eu dizia à você antes dessa entrevista que eu sou privilegiado por uma série de razões e considero um grande privilégio poder entrar nesse Clube pela porta da frente. E embora não sendo músico, embora não tendo a minha sensibilidade voltada para essa área, mas música é algo que sempre encanta minha alma e cerca a minha vida porque eu não vivo sem música. E eu me emociono, me emociono e me sensibilizo com a manifestação da música em todos os seus patamares. E não seria diferente com relação a esse grupo genial, maravilhoso que veio formar, estruturar esse Clube da Esquina para ensinar a esse mundo e ao próprio Brasil um pouco de sensibilidade e de visão das coisas que é tão importante e de que nós carecemos hoje. Eu acho que é um mundo muito mais árido, mas felizmente a sensibilidade prevalece sobre tudo isso. Muito bom.
P – Sem dúvida, que continue assim, né?
R – Com certeza.
P - Quando você encontra com o Milton, eles começaram muito jovens. O Clube da Esquina iniciou muito jovem. Eles não tinham essa preocupação de organizar essa questão da propriedade intelectual, do que eles estavam fazendo? Ou você encontrou assim...
R – Não. Eu penso que na verdade o grande encantamento que esse Clube traz é exatamente esse, que eles já se conheciam antes, principalmente o Bituca e os Borges. E agregou-se depois Fernando, nesse núcleo, digamos, nessa matriz inicial. A preocupação deles era a preocupação com a realização da música. Com a criação artística. E eles não estavam, o Fernando é que tinha uma noção mais exata disso. Até porque, ele não gosta muito que a gente fale [sobre] não, mas ele foi, ele é formado em Direito. E nem por isso eu estou falando que ele é advogado, ele fica bravo com essa coisa. Mas na verdade, o Fernando tinha essa clareza, essa noção. Mas a preocupação das pessoas era uma preocupação realmente voltada com a criação. A partir do momento em que eles também começam a ocupar um espaço no mercado brasileiro, passam evidentemente a ter uma preocupação com o que seria realizado. Qual seria o destino da sua criação intelectual?! De que maneira as obras realizadas seriam tratadas pelas gravadoras e por quem delas pudesse fazer uso?! E eu creio que aí é que então começa essa idéia de um contrato que tem que ser feito, um produtor que tem que conduzir a coisa com seriedade. E o Bituca tinha passado por algumas experiências negativas em torno disso, que evidentemente precisava já no patamar que ele se encontrava, de já um grande nome da Música Popular Brasileira, e já projetando a sua canção para o mundo, ele precisava ter um mínimo de estrutura e um mínimo de organização. E eu por um absoluto privilégio, pude contribuir inicialmente com essa estrutura. Por isso, é que eu digo que eu entrei nesse Clube pela porta da frente. Porque apesar de não tocar guitarra...
P – (risos)
R - ...eu compreendia perfeitamente o som dela.
P – E veio colocar uma certa ordem na casa.
R – Ajudei a promover isso. Tenho essa clareza hoje, essa tranquilidade para poder dizer isso. E a partir daí, andei trabalhando com outros nomes do Clube da Esquina, porque acaba virando uma família onde nós nos conhecemos e nos tratamos de uma maneira respeitosa e muito elevada. E isso tudo é muito bom, muito rico.
P – Imagino. E deve ser uma parceria muito interessante. Porque você traz um lado, vamos dizer assim, mais prático, um lado legal, um lado pragmático mesmo, lidando com pessoas que lidam basicamente com a sensibilidade. Então eu acho que é um...
R – É, não, isso é um grande privilégio para mim. Porque o meu trabalho ele não se restringe apenas a um trabalho técnico, jurídico, quer dizer, eu acabo de uma maneira ou de outra participando na criação ou do processo de criação. Eu costumo dizer o seguinte, e esse é uma boa oportunidade para que eu deixe isso registrado: é que eu devo ao Milton e ao Fernando a condição de advogado de propriedade intelectual em que me transformei hoje. Quer dizer, se tem um – e sem nem uma modéstia, ou imodéstia, perdão, sem nenhuma imodéstia – eu hoje tenho, consegui uma projeção na propriedade intelectual a nível nacional. E já participando de lutas, e de embates e de construção de lei. E participei inclusive na condição de presidente do Conselho Nacional de Direito Autoral, onde tive o privilégio de trabalhar com o ministro Celso Furtado. Quer dizer, todos esses fatos que a vida foi me acenando e eu os enfrentando com absoluta tranqüilidade e com firmeza, eu quero deixar registrado que eu devo isso a Milton Nascimento e a Fernando Brant. Porque na medida em que também eles confiaram no meu trabalho eles, e eu realizando esse trabalho. Eu me projetei através deste trabalho e comecei a ter solicitações e reconhecimentos de grande parte da MPB. Cheguei a até advogar aqui em Minas duas causas para o Chico Buarque, Beth Carvalho. Gonzaga, que era dessa família. O Gonzaguinha que era... também estive junto. E junto a vários outros nomes. Toninho Horta, o próprio Ronaldo Bastos. Enfim, você vai de uma maneira ou de outra fazendo aqui e acolá um trabalho e que é sempre uma ligação muito saudável, muito rica não só do ponto de vista profissional quanto do ponto de vista espiritual. É uma forma maravilhosa de crescimento. E eu posso dizer a você já na altura dos meus 60 anos de idade que por essas circunstâncias, quer dizer, ainda que eu tenha encontrado o meu caminho no Direito – do ponto de vista da propriedade intelectual, que me realiza e me deixa extremamente feliz – mas na verdade a minha vida é uma vida em que eu fui abençoado. Abençoado exatamente pelos amigos e pelas oportunidades que sempre as enfrentei com muita tranquilidade, com independência e com verdade. Que eu acho que isso é importante.
P – Agora, Hildebrando, você lembra alguma grande luta, um grande momento que você tenha passado junto com o Bituca, com esse grupo? Uma grande conquista de vocês?
R – Olha, eu digo a você, posso dizer a você o seguinte: é... Tiveram sim, tiveram momentos de muitas gratificação pessoal na medida em que essas pessoas ou através de um ou de outro elemento do grupo, quer dizer, perfilou uma linha de conquista para a MPB. E eu me refiro por exemplo à própria construção da lei autoral brasileira hoje. Essa lei ela nasce em um anteprojeto dentro do Conselho Nacional de Direito Autoral. O Conselho era integrado pelo Fernando Brant, pelo Gonzaguinha, por atores. Também por técnicos em matéria autoral, era um Conselho misto. Um conselho que inaugurou essa formatação pela primeira vez no país. E que na verdade brigamos pela construção de uma lei de direito de autor que pudesse estar comprometida com os interesses dos criadores nacionais. É claro que é um embate muito forte, muito pesado, porque você tem do outro lado a indústria cultural que não quer abrir mão de determinados privilégios, de conquistas que na cabeça deles pareceriam absolutamente irremovíveis. Mas de qualquer sorte, quer dizer, com esse grupo de artistas e de criadores. E neles, eu incluo toda essa gente do Clube da Esquina, porque se tinham uma representação através de Fernando, mas todos eles sabiam perfeitamente do que se estava brigando, e porquê se lutava. E somou-se a isso outras cabeças e conseguimos alguns avanços, mas é preciso estar sempre atento porque a coisa não para por aí. Eu, uma vez, conversava com o Fernando e dizia para ele: “Pois é Fernando, nós lutamos por essa coisa já há tantos anos e parece que a gente está começando a lutar por uma coisa que ainda não começou.” Quer dizer então, na verdade não acaba. As reivindicações têm que ser permanentes e a gente tem que estar sempre atento a esse processo. E por uma contingência também de vida, eu acabei de certa forma passando pelo, tendo a visão do autor na medida que sou modesto escritor de literatura infantil. Com já 8 livros publicados. E eu sei como é que é isso. Principalmente eu com a visão do advogado, tratar dos meus direitos autorais junto aqueles que deles se utiliza. É por essa razão que eu volto dizer para você que a luta tem que estar sempre, nós temos que estar sempre atentos a esse grande, à essa grande movimentação de interesses em torno da criação intelectual. Mas eu penso que essas conquistas foram sim, foram frutos de decisão, de consciência e de conhecimento de muita gente desse grupo.
P – Essa lei. Ela é de quando, mais ou menos?
R – Ela é de 98, mas a história dela é mais antiga. Ela já vem como anteprojeto, como discussão no Congresso Nacional. Porque nós tínhamos uma lei de 73, já defasada. E o mundo mudou muito com as tecnologias. E portanto a utilização da criação intelectual passou a ser mais difícil de controle do ponto de vista do criador. Porque, claro, quanto mais avançam as tecnologias mais distante da criação fica o autor, né? E agora vem aí o tal do copyleft...
P – O que é que é isso?
R – Que é o direito de cópia livre. Com a liberdade de utilização das obras de criação intelectual. É essa é uma discussão que começa a fermentar e começa a ganhar corpo. E exatamente o pano de fundo é de que as tecnologias têm a possibilidade de levar o conhecimento à totalidade de pessoas e portanto, não cabe você manter os pressupostos autorais que vieram do, uma época de Gutenberg, ainda do século XIX.
P – Mas na sua opinião, isso...
R – Não. A minha opinião, eu não comungo com isso não. Eu penso que se você libera essa questão dessa forma, de quê vai viver o autor? Porque se você tem a possibilidade de alguém que possa ir ao teatro e interpretar a sua própria música, você tem aqueles que não vão ao teatro e que apenas compõem e que têm tanto direito quanto o intérprete que enche uma sala de espetáculo que vive disso. É uma questão complicada, ela não é de fácil tratativa, mas é preciso estar atento porque essa onda vai se avolumando, vai crescendo. E eu me filio ainda na posição de que esses direitos têm que ser respeitados. E evidentemente, o autor merece consideração, respeito, e toda vez que se utilizar da sua obra tem que se pagar por isso, porque é disso que ele vive.
P – E no Brasil já não se paga muito, né?
R – Já não. No Brasil você tem que enfrentar dificuldades em torno disso. Então é aquela velha coisa: se essa moda pega, para onde nós iremos? Mas enfim, para parafrasear o presidente: “A luta continua, companheiro.”
P – A luta continua. (risos) E você, não só esse lado... Você estava me contando que você acompanhava o Milton em turnês, em shows, conta...
R – Eu tive esse outro privilégio, né? Eu tive esse privilégio de estar com o Milton na Argentina por duas vezes. Fizemos uma, participei de uma excursão com ele no Brasil. E em outras oportunidades. E inclusive na Missa dos Quilombos em Goiás e em Recife. E foi aí que eu pude assimilar a força que tem Milton Nascimento como artista, como catalisador de sensibilidade das pessoas. Eu ficava muito impressionado. Eu me lembro de um episódio no aeroporto de Brasília em que eu estava junto dele, conversávamos, e tinha um jovem que queria romper a barreira da timidez para pedir a ele um autógrafo. Fica aquela coisa, né? Assim, aquele clima. Isso, a qualquer momento vai ocorrer e é claro que as antenas do Bituca alcançavam isso na mais absoluta precisão. E quando esse jovem rompe a sua barreira pessoal de timidez e chega para ele e pede um autógrafo, diz para ele: “Olha, você precisa vir a Brasília cantar para a gente em Brasília. Brasília precisa lhe assistir.” E ele dá o autógrafo. Mas ele, o jovem, visivelmente emocionado. E quando ele saiu, o Bituca disse assim (tosse): “Ele não tem o direito de fazer isso com a gente. Mexer com a gente assim.” (tosse)
[pausa]
R – Você sabe que o Drummond foi gravar uns poemas. Tem aquele disco gravado.
P – Tem.
R – Uma hora ele começou a pigarrear, pigarrear, pigarrear e não falava. O pessoal do estúdio, preocupado, interromperam a entrevista e trazia: “O senhor quer, poeta, uma bebidinha, qualquer coisa?” “Não, toda vez que eu falo desse poema eu me lembro daquela senhora.” (risos) Bonitinho, né?
P – Que gracinha. (risos)
R – Me lembro daquela senhora.
P – Daquela senhora, e não falou quem é a senhora.
R – Onde é que eu parei? Ah, aquela do menino.
P – Do rapaz, é do menino...
R – Que ele falou: “Mas ele não tem direito de fazer isso com a gente.” Aí eu disse para ele: “E você, tem o direito de fazer o que você faz com eles?” Aí ele ficou em silêncio. E eu percebi porque eu estava do lado dele, ele estava visivelmente emocionado. Então essas manifestações, eu pude presenciar várias. E aí, você verifica essa força interior que um artista da expressão de Milton Nascimento provoca nas pessoas, nos seus fãs e nos seus admiradores, e é uma coisa absolutamente natural. De certa feita, também estávamos Bituca, Chico Buarque e eu. Fomos assistir um show do MPB4 no Rio. Aí, juntou um batalhão de um lado e os dois do lado de cá e é claro que eles comentavam assim: “Qualquer hora rompe o cordão.” E não deu outra coisa, e veio aquele monte. Mas então, você presencia esse carinho que essa manifestação... Eu olhava aquilo tudo espantado e ao mesmo tempo, ficava extremamente feliz de compreender porque é que em um determinado momento eu tinha em relação ao Milton o mesmo tipo de reação. Eu tinha em relação ao Bituca um certo, não é constrangimento, mas uma barreira que eu precisava quebrar para chegar mais perto dele e isso foi feito. E aí, eu comecei a compreender isso do lado das pessoas, quer dizer, porque evidentemente quando você admira a pessoa você, às vezes, não tem a condição de falar com ela como você gostaria. Isso causa um certo constrangimento. Então, eu aprendi muito com isso: assistindo a algumas manifestações dessa ordem. E guardo também na lembrança, de uma maneira muito feliz e muito plena um show que Bituca fez com Mercedes Sosa e o León Gieco em Buenos Aires, no estádio do Vélez Sarsfield, aquele clube argentino. Quando León Gieco voltava do exílio e eles fizeram o show, em que inclusive iam estender a mão e a ajuda ao próprio León Gieco que voltava depois de alguns anos fora do país, mas foi um show tão maravilhoso e o público argentino recepcionou o Milton de tal forma que era absolutamente comovente. E antes do show, teve uma outra passagem que foi absolutamente inesquecível, porque Fernando Brant estava lá e não conhecia Mercedes Sosa. E nós fomos ao camarim, que era um vestiário. Ela estava sentada e me reconheceu porque eu tinha estado com ela e assisti à gravação de Volver a Los Diecisiete no Rio. E foi muito engraçado esse fato porque eu tinha, eu ganhei em Goiás um anel de uma liderança indígena. E eu portava esse anel e tirei para mostrar para a Mercedes, e ela entendeu que eu estava lhe presenteando com o anel, me disse: “Muchas gracias.” E colocou o anel no dedo e eu dei o fato como consumado. Confesso que aquilo me doeu um pouco, porque foi um presente muito carinhoso de uma liderança indígena, mas eu achei que estava muito bem no dedo dela. Foi no dia dessa gravação, depois que nós fomos almoçar, almoçamos juntos, mas ela estava portanto no camarim quando eu cheguei e ela levantou-se. Nós nos abraçamos, nos beijamos. O Sinval Itacarambi também estava presente. Deu à ela um livro do Roberto Drummond, que o Roberto pediu que lhe entregasse o livro. E o Fernando de lado assim, se não me engano, estava presente também o Marcos (Kilser?). Eu não posso, eu não me lembro, mas tenho impressão que estava. E aí, o Fernando disse assim: “Mercedes, eu sou Fernando Brant.” Ela foi tomada por uma emoção e esse camarim virou um local assim, ungido, porque ela punha as mãos e dizia assim: “Mas, Fernando Brant, eu canto as suas canções e não te conheço.” E o Fernando, profundamente emocionado. Quer dizer, se abraçaram e aquilo ali ficou assim uma emoção monumental. Maior do que o próprio camarim. E é claro que eu também fiquei emocionado. Eu costumo dizer que ultimamente eu choro até com receita de bolo.
P – (risos)
R - Você imagina um fato dessa ordem, né? Mais do que isso, inauguração de linha de eletrodomésticos. Então, o que é que acontece? Foi aquele momento e depois fomos para o show. Então era dose cavalar de emoção. Uma overdose de emoção absolutamente inesquecível e me recordo também de um momento muito bonito em que estávamos em Havana, no Teatro Nacional de Havana, em que Milton faz um show com o Chico e o Pablo Milanés. Olha, eu chorava igual bebê. E o cubano, eu tive a impressão [que] ele é muito machão e achava assim estranho um sujeito chorar daquele jeito, mas eu devia estar dando vexame.
P – (risos)
R – Devia estar chamando atenção.
P – Dando um escândalo. (risos)
R – Um escândalo, verdadeiro, de passar rodo.
P – Compulsivamente.
R – É, de passar rodo.
P – Se jogando no chão.
R – Aquela coisa assim: inundei o Teatro de Havana. Mas não é fácil você reunir três artistas dessa expressão e ter o privilégio de vê-los cantar. Não só para o público que lá estava presente, né? Mas na verdade, é um momento que transcende a qualquer comentário. Quer dizer, é de uma beleza ímpar. E me lembro também de uma outra cena em Havana em que o filho do Prestes esteve conosco. Eu até levei para ele uma encomenda do, para sua mulher, a Marina, que era filha de dois amigos exilados, mas que já tinham voltado ao Brasil e pediram que eu levasse para eles lá uma encomenda. Eu levei para o Pedro e para a Marina, e eles foram para o show. E o Pablo Milanez fez questão de receber-nos depois em uma leitoa à pururuca na casa dele, porque ele tinha uma admiração muito grande pelo Prestes, e disse isso a mim. Porque eu dei conta para ele que estava no teatro o Pedro e a Marina. Pedro, filho do Prestes. E depois da... No hotel, o Pedro disse ao Chico o seguinte: “Olha, ô, Chico, você precisa visitar o papai no Rio. O papai adora a sua música, adora você como artista, como compositor, como pessoa e ele ficará muito feliz se você, e até mesmo para você falar coisas para ele.” E aí é esse outro momento bonito da vida que eu guardo como a grande lição que eu recebi do Chico Buarque. Ele foi e disse assim: “Ô Pedro, eu posso até visitar o seu pai e farei isso em uma oportunidade qualquer, mas eu quero te dizer uma coisa: eu não tenho nada para dizer a seu pai. Seu pai, eu ouço.” Aquilo me bateu assim como adaga no coração, furou meu coração. Você vê que coisa bonita, um artista da projeção do Chico...
P – Essa humildade.
R – Essa humildade, né? E não é uma coisa artificial. Muito pelo contrário. Dito com a mais profunda verdade e sinceridade, porque ele é isso. E eu aprendi essa lição só pelo, só pelo estar junto. O privilégio de viver esse momento.
P – Durante toda essa sua trajetória com eles, você acompanhava nesses...
R – Em várias circunstâncias estivemos juntos. A partir de um determinado momento não mais porque o Marcinho assumiu essa condição de conduzir o processo musical do Bituca. E eventualmente naquilo que precisasse eu falava e tal. Até depois me afastei profissionalmente da vida do Milton, porque não tinha também muito mais razão de ser o fato que o Bituca já tinha uma carreira já solidificada e já cercado por uma experiência, uma vivência que dava a ele a clareza de determinados rumos. Mas é claro que ele sempre teve a partir daí pessoas decentes que começaram a trabalhar com ele no sentido de cuidar da vida artística dele. Realização, promoções, shows e... Mas é, eu fico, e aqui me lembro também de um outro fato também muito engraçado que um dia eu saía da casa dele com ele e ele deu a volta assim para entrar no carro. E eu estava no lado do carona. E aí eu disse assim: “Lá, lá, ri, ri, ri, lá, na Glória.” Aí ele arregalou o olho assim para mim, eu disse para ele: “Que foi, Bituca? Eu por acaso desafinei?” E ele disse: “Não, Hildebrando, você não desafinou. Até porque para que você pudesse desafinar você tinha que pelo menos afinar uma nota.” (risos)
P – (risos)
R – A partir desse fato eu fiquei até sem cantar no banheiro, (risos) que eu eventualmente começava essa aventura de cantar debaixo do chuveiro e ele ria muito. E eu também, foi uma passagem divertida. E depois estive com ele. Aqui eu queria também registrar o fato de que quando eu comecei a conviver mais intimamente com eles, tanto mais com o Bituca e Fernando, eu percebia que a trajetória do que veio a ser chamado hoje de Clube da Esquina, não só estava selada como definida do ponto de vista de projeção nacional e internacional. Isso já se dava. E mais do que isso, é que o trabalho artístico deles constituía-se sempre em um salto qualitativo. Um disco do Bituca era um disco sempre esperado porque imaginava-se que ele viria um ponto à frente da esteira em que se encontrava a MPB nacional. E de fato isso ocorria. Eu pessoalmente penso que O Milagre dos Peixes, gravado ao vivo em São Paulo é o maior disco da carreira de Milton Nascimento. Isso é uma eleição pessoal. É claro que muita gente pode discordar disso, mas... E significou para mim de uma importância tremenda o Tambores de Minas. O Tambores de Minas teve para mim uma, um significado especial do ponto de vista da trajetória desse grupo porque o cabeça do grupo estava sendo malbaratado e maltratado pela imprensa brasileira de uma forma desrespeitosa e absolutamente indigna. Tanto que eu me encontrava na Europa, mais ou menos por volta dessa crise que Bituca suportou, e quando eu falei com o Brasil, eu falei com minha mulher e ela disse o seguinte: “Qualquer notícia que você ouvir a respeito aí do Milton você não dê atenção a isso que é coisa da imprensa.” E eu saí de Genebra com escala em Frankfurt e me lembro perfeitamente de quando eu entrei no avião da Varig, no primeiro banco da cadeira do avião tinha uma capa, eu não sei se da revista Veja ou Isto É, do Bituca. Onde essa fotografia realçava, e aquilo me provocou um mal estar profundo. Eu peguei a revista, não vi nem de quem que era e sentei no avião e li aquilo. Foi exatamente nesse momento que eu compreendi essa vilania que se praticava contra a pessoa dele. E quando eu fui assistir Tambores de Minas, e que ele lê aquele texto que antecede ao show, é que eu percebi e também acabei envolvido naquele próprio texto onde ele colocava a sua indignação. E fazia a sua afirmação no momento que eu achava que ele nunca mais poderia resgatar essa defesa e ele a faz dessa forma, de uma forma contundente e belíssima. E após o fato desenvolvesse e desenrola o show, e esse show também ao meu ver representou mais um salto qualitativo dentro da estrutura musical do Milton Nascimento. Então, Bituca está nesse show absolutamente divino, à vontade. E eu outro dia mesmo revi, porque eu comprei o DVD, e eu revi esse show com um dos meus filhos e um convidado que estava lá em casa. E realmente fiquei e fico sempre muito emocionado quando eu vejo esse espetáculo. Porque na verdade, e eu tive ainda a oportunidade de assistir no Rio, em que pese o DVD ter sido fixado em São Paulo, mas de qualquer forma não altera a magnitude que o show atinge, a grandeza que ele... Mas ele é representativo para mim é, desse ponto de vista. Quer dizer, eu entendo que talvez, porque eu acompanhei parte dessa trajetória. Eu faço liame, faço mentalmente a ligação e emocionalmente, a ligação do ponto de vista desse caminho. E foi com muita alegria e com muita felicidade que eu o recepcionei, tive a oportunidade disso. E, aliás, estive com ele no camarim e ele me disse uma coisa que eu guardo até hoje: “Você finalmente veio, né?” E nos abraçamos. Eu não sabia se ia ver o show, mas acabei indo, tive a oportunidade de vê-lo. Fui com Márcia, minha mulher, e fiquei. Saí do teatro absolutamente gratificado. Em estado de graça, com a alma em estado de graça.
P – Você então, a gente poderia dizer que Tambores de Minas é onde ele... É a força da resposta dele?
R – Eu penso que não só a força da resposta dele, e na verdade, um salto qualitativo diante do trabalho dele. Porque é aquela coisa que as pessoas sempre dizem: “Mas o artista não é o mesmo como era antes.” Isso é óbvio, porque a vida nos leva em uma esteira em que se você teve uma pujança, uma determinada força, um determinado momento. Por certo que você não vai manter isso o mesmo o tempo todo. E outra coisa, você tem que se permitir também a isso. Quer dizer, a vida é isso. Então querer exigir das pessoas que ela tenha o mesmo comportamento de 15, 20, 30 anos atrás é uma, com dizem os espanhóis, uma tonteria, não é isso? Então, na verdade, o que eu penso que ocorre é que cada qual vai cumprindo a sua trajetória e vão produzindo aquilo que podem e devem produzir no momento em que se apresentam na vida. E nem por isso, isso significa perda de beleza ou perda de densidade criativa. Apenas é uma resposta em um determinado momento, e várias canções que são hoje produzidas, e me refiro especificamente ao Clube da Esquina, você percebe nelas a maturidade dos seus integrantes. Se a fase foi uma fase assim em uma determinada época, hoje é essa. E nem por isso ela perde em densidade e beleza.
P – Não tenho dúvida. Nós estamos estourando o nosso tempo aí, né? E... Tem mais tempo?
P/1 – Não, fica à vontade.
P – Mais alguma coisa que a gente não tenha colocado que você ache importante a gente registrar?
R – Não, eu penso que se alguma coisa... E é claro que as coisas que eu aqui disse, foram as coisas que me pareceram mais significativas. Porque certamente algumas escaparam e não cabe aqui também, você estar fazendo um esforço de memória para buscar coisa no baú, né?
P – Hum, hum.
R – Mas essas questões que eu pude, ou esses fatos sobre os quais que eu pude aqui depor, eles foram fatos por mim vivenciados e que refletem hoje – e eu posso ver isso com muita tranquilidade – toda essa oportunidade que eu tive, esse privilégio de em um determinado momento da minha vida, e da minha história pessoal cruzar com essas pessoas, conviver com elas de uma maneira afetuosa, prazerosa e amiga. Manter essa amizade até hoje e esse respeito do ponto de vista que tenho por eles, a criação que eles exercem, os artistas que são. E é claro, prosseguir juntos até quando nós tivermos condição de estarmos aí nesse mundão de Deus e das coisas, não é isso?
P – É verdade. Então está bom, nós agradecemos muito ao senhor.
[pausa]
P – Como é que passa para você essa iniciativa do Márcio Borges recuperar essa memória do Clube da Esquina, fazer esse museu?
R – Olha, o Márcio já havia se revelado um memorialista no Os Sonhos Não Envelhecem. Mas realmente o museu é uma iniciativa extremamente feliz, ao meu ver, do Márcio. Do Marcinho. Porque é mais do que importante, é mais do que fundamental, é mais do que isso: é necessário que Minas tenha esse registro de um grupo que enriqueceu a sua história cultural e artística e que, evidentemente, isso não pode passar batido. Então é com muita simpatia, um prazer imenso, alegria imensa e com a certeza que esse Clube vai deixar para a posteridade um registro fundamental do ponto de vista da formação cultural da gente mineira. E evidentemente, de reflexo nacional e internacional. Eu me refiro a isso com muita tranquilidade, porque eu sempre faço, tenho em mente, por exemplo, a música baiana. Que os baianos tão bem souberam comercializar e colocar isso no mundo de uma maneira flagrante e indiscutível. Eu penso que Minas, no silêncio em que pese ter construído com a mesma ou uma pujança muito maior, muito mais vigorosa do ponto de vista musical – é uma contribuição nacional – tem menos projeção do que parte de uma música baiana que não me agrada. E que não vejo razões, a não ser por uma questão de marketing, que essa música tenha projeção que tem. Então, eu penso que esse registro ele é fundamental, ele é básico. E veja bem, é importante porque antes da ideia do museu só existe o museu, porque tem material para exibir. Essa é a minha reflexão. Eu não sei se qualquer estado da Federação do Brasil pode fazer isso do ponto de vista cultural. Mas eu tenho certeza que Minas pode e vai fazer, e está fazendo. Quer dizer, não se pode negar a projeção da contribuição artística, musical, lítero-musical de Minas Gerais na construção do processo cultural nacional e internacional. E esse registro local, nacional, é muito feliz. Eu cumprimento o Márcio por isso. Já tinha dito a ele pessoalmente na ida lá do lançamento [do livro] e penso que esse museu trará em pouco tempo muitos bons frutos. E que seja bem-vindo, e que seja abençoado.
P – Amém. (risos) Obrigada.
Fim do depoimento.
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