Dalmo de Abreu Dallari
Nascimento: 31/12/1931, Serra Negra
Profissão: Advogado
P/1 – Então professor, eu gostaria que o senhor primeiro nos dissesse seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Bom, Dalmo de Abreu Dallari. Nasci em Serra Negra, no Estado de São Paulo, em 31 de dezembro de 1931.
P/1 – Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a origem da sua família, como os seus pais se conheceram.
R – Eu sou neto de imigrantes italianos. O meu avô, Alfredo Dallari, minha avó Maria Dallari, vieram para o Brasil no final do século XIX e logo se instalaram em Serra Negra e ficaram vivendo ali. Meu avô era sapateiro e meu pai começou também nessa atividade e, depois, abriu uma pequena loja de sapatos e ficou, então, comerciante na cidade de Serra Negra. E minha mãe é de uma antiga família brasileira ligada à família Leme e, antigamente, isso remonta lá século XVIII, XIX, eles tinham sido grandes fazendeiros. Depois, a família foi se desmembrando, foi se dissolvendo de certo modo e já quando chegou a geração de minha mãe, o pai dela tinha um pequeno sítio na cidade de Serra Negra e ela viveu, então, alguns anos no sítio, depois mudaram para a cidade. Ela estudou lá no grupo escolar e tinha uma particularidade curiosa, que talvez se deva a essa origem familiar, ela era culta embora tendo só o grupo escolar, ela conhecia autores clássicos e tinha inclusive uma biblioteca muito interessante, que pra mim foi extremamente útil, assim por exemplo, eu li Camões quando era aluno do grupo escolar porque minha mãe tinha o livro de Camões. E ela influi muito para a definição da minha opção pelo Direito, porque ela, entre outras coisas, falava muito da Faculdade de Direito de São Paulo, conhecia os poetas românticos e inclusive mencionava alguns professores com certa veneração. Isto pesou muito, claro que aí pesou também a própria atitude do meu pai que era de fato um líder, porque a sua pequena loja de sapatos era um ponto de reunião especialmente dos italianos ou filhos de imigrantes que se reuniam lá pra ter notícias sobre o que estava acontecendo no mundo e no Brasil. Meu pai lia jornais, lia e muitas vezes ele lia em voz alta pros outros ouvirem o que que tava acontecendo. E eu desde os 10 anos de idade trabalhei na loja, também vendendo sapatos, então participei muito deste ambiente e vi como o meu pai e a minha mãe tinham uma intensa preocupação com a justiça, com a dignidade da pessoa humana, com o respeito pela pessoa. E isto acabou sendo muito marcante em toda a minha vida.
P/1 – E o senhor sabe como eles se conheceram?
R – Eles se conheceram na cidade de Serra Negra. O meu pai, um jovem filho de imigrantes, além de tudo músico e uma coincidência também meu pai tocava violino, e além disso, era músico da banda de Serra Negra, tocava pistom na banda de Serra Negra e a minha mãe gostava muito de música também e era violinista. É curioso esse aspecto porque os dois eram violinistas, talvez isso tenha exercido alguma influência no sentido da atração recíproca. Mas eles se conheceram em Serra Negra, então se casaram e constituíram família lá.
P/1 – E o senhor teve quantos irmãos, e que profissões que eles seguiram?
R – Eu tenho quatro irmãos, um deles que é o mais velho é medico. Depois, sou eu e em seguida vem uma irmã que, de certo modo, foi vítima das concepções e dos preconceitos da época, porque eu nasci da década de 40 e ela é dois anos mais nova do que eu, naquela época não se considerava necessário que a mulher estudasse, que a mulher fosse além do grupo escolar, que a mulher tivesse uma formação universitário. Então ela também, embora gostando muito de ler, sendo culta, e além de tudo sendo também pianista, porque toda a família acabou sendo influenciada por isso. Eu, por exemplo, fui flautista, estudei solfejo, estudei flauta e minha irmã era pianista, mas nunca seguiu uma carreira universitária. Depois, vem um irmão que também fez o curso de Direito, é professor de Direito, um jurista muito respeitado no Brasil, Adilson Dallari. E por último uma irmã que também optou pela carreira jurídica, hoje é uma advogada militante, também de muito sucesso e também faz parte do conjunto de juristas da família.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre a cidade da sua infância, Serra Negra. Como era essa cidade?
R – Serra Negra era uma pequena cidade, assim, na Serra da Mantiqueira, num cantinho da Serra da Mantiqueira. E famosa por dois motivos, um deles é pelo fato de ter águas radioativas, intensamente radioativas, que tem propriedades medicinais e já quando eu era menino, em Serra Negra, me chamava a atenção a quantidade de pessoas que iam a Serra Negra fazer o tratamento de águas. E eu assistia a isso, nós meninos brincando, brincando perto de uma fonte, verificando e achando engraçado o comportamento das pessoas que iam com uma receita médica para tomar água, e se usava, então, um copo que tinha as medidas e as pessoas marcavam no relógio a cada 15 minutos tantos milímetros de água, e tomavam isso como remédio. E segundo as histórias isso realmente era muito bom especialmente para moléstias renais, para reumatismo, para uma série de coisas por causa da radioatividade. E outro ponto muito positivo da cidade era e continua sendo ainda, a qualidade do ar, até pelo fato de ser uma cidade de montanha, muito arborizada, tem ar de excelente qualidade. E somando-se a isso tudo a beleza natural, porque são montanhas muito suaves, arborizadas, a cidade está ali escondidinha no Vale da Mantiqueira e quando eu era menino a cidade era muito procurada por aquilo que se chamava, então, estação de águas. Então, já naquele tempo, a cidade que era basicamente formada por imigrantes, mas também com razoável contingente de famílias brasileiras tradicionais. Quer dizer, a cidade que tinha base na agricultura, passou a ter a sua base no turismo, turismo de início por causa das águas radioativas e, depois, pela beleza natural, pelo ambiente extremamente agradável, cordial que a cidade propiciava. Então foi aí, nessa cidadezinha que eu nasci, vivi num momento em que ainda era possível jogar futebol na rua, e eu jogava futebol na rua, tinha os meus amigos, colegas e gostava muito de fazer as minhas excursões pelo mato. Eu, muitas vezes, saía ou sozinho ou com um ou dois colegas pegando frutas no mato, vendo passarinhos, nós nunca matamos passarinho mas a gente gostava de ver, ver e tentar identificar, havia uma disputa entre nós de quem é que consegue identificar pela cor, pelo tamanho que passarinho é aquele. E então, isto proporcionava um sistema de vida extremamente agradável, cordial, afetivo. E foi nesse ambiente que eu me formei.
P/1 – Quais são as lembranças mais antigas que o senhor tem de uma casa que o senhor tenha morado?
R – Eu tenho lembranças até muito antigas, não da casa aonde eu nasci, mas da casa aonde eu passei a morar, pela informação que eu tenho, quando eu tinha três anos de idade. Eu tenho lembranças desta casa, de alguns fatos ocorridos nesta casa. Tenho lembrança de que minha mãe tinha uma horta e ela cuidava desta horta, esta horta ainda durou muitos anos. Tinha plantas medicinais, mas tinha também um pouquinho de flores, mas na maioria eram verduras e plantas medicinais, porque se usava muito o chá, usavam certas plantas para determinadas doenças e a gente tinha em casa, então, essas plantas. E, além disso tudo, o ambiente da pequena loja de meu pai, primeiro uma sapataria e depois se converteu numa loja de sapatos nessa mesma casa, onde eu morei desde os três anos de idade. Então foi muito marcante este momento, ficou muito gravado na minha memória.
P/1 – Agora, eu imagino que na sua infância, a cidade de Serra Negra, só tivesse mais ou menos o primário, né, o curso primário? Como é que o senhor conseguiu prosseguir nos estudos?
R – É, na minha infância Serra Negra só tinha o grupo escolar, naquela época, depois de terminado o grupo escolar as pessoas iam para o ginásio, que durava quatro anos, depois tinha um curso médio, que era clássico e científico e em seguida ia para a universidade. Serra Negra só tinha o grupo escolar. Então, eu terminei o grupo escolar pouco antes de fazer 10 anos de idade, tinha 9 anos, e fiquei trabalhando na loja de meu pai, eu era o menino da loja que atendia também a freguesia que aparecia, levava sapato nas casas das clientes, havia aquela freguesia, assim, da aristocracia local em que as moças iam lá, escolhiam os sapatos mas queriam experimentar em casa, então, era meu serviço levar o sapato em casa. E eu fiquei fazendo isso dos 9 aos 15 anos e aí por influência de minha mãe, por persistência mesmo de minha mãe, meu pai com muito pesar, porque ele ia deixar os seus amigos, o seu pais, o seu ambiente em Serra Negra, mas ele acabou fazendo isso e toda a família se mudou para São Paulo. E então, chegando em São Paulo, isso foi em 1947, com 15 anos de idade, através de um tio que era motorista de táxi eu consegui, eu e meu irmão mais velho conseguimos um emprego no laboratório de indústria farmacêutica, onde eu comecei como office-boy do departamento de faturamento, depois eu fui progredindo, virei arquivista. E sempre estudando a noite porque um tio, irmão de meu pai, já tinha feito um curso de madureza e ele tinha falado a respeito disso e meu irmão mais velho, Élcio o médico, descobriu os cursos de madureza, nós tínhamos uma lembrança disso, mas ele descobriu que na Praça da Sé havia um cursinho de madureza. O curso de madureza não era um curso oficial, madureza era um nome que se dava ao Exame, era uma espécie de supletivo. Quer dizer, qualquer estudante poderia se inscrever para fazer o exame no ginásio estadual, e a matéria deste exame era toda a matéria dos quatro anos do ginásio. Então, o aluno tinha que estudar muito, tinha que se preparar muito bem para se submeter a um Exame, esse Exame durava um mês mas abrangia a matéria de quatro anos do ginásio, de todas as matérias. Então, este cursinho da Praça da Sé ajudava nesta preparação, eu e meu irmão nos matriculamos lá e é uma lembrança muito interessante que eu tenho também, porque São Paulo ainda era uma cidade pequena, pouco mais de 1 milhão de habitantes, e era ainda a cidade da garoa mas também a cidade de muita neblina, durante alguns meses de inverno caía uma neblina muito espessa e a gente saía do cursinho da Praça da Sé às 10 horas da noite e ia tomar o bonde na Praça João Mendes, nós morávamos na Vila Mariana e a gente saía tranqüilamente, saía o grupo de amigos, colegas, conversando, batendo papo com absoluta despreocupação e sem nenhum medo de andar na rua nesta hora e com aquela neblina espessa. E isto foi também muito marcante, muito importante pra mim porque a maioria dos colegas já eram mais velhos, era exatamente gente que tinha passado da idade de fazer ginásio e que buscava compensar isso através do exame madureza, como foi o meu caso, ter ficado parado depois do grupo escolar até os 15 anos de idade. Então, eu fui fazer o curso de madureza. Mas neste curso de madureza eu tive um professor de português e latim, Alfredo Galo Júnior, era advogado, muito culto e que exerceu muita influência sobre mim também. Um homem extremamente sério, estudioso, lia muito, recomendava livros e nós nos entendemos perfeitamente porque eu tinha enorme interesse também por estas coisas. Então, logo chamou a atenção do professor Alfredo Galo Júnior este aluno que era, estava entre os mais jovens da turma e que lia tanto, tinha tanto interesse. Então, isto pesou para que ele me iniciasse na advocacia. Mas um dado importante, que também foi de extrema importância na minha formação, é que através dos colegas do madureza eu descobri que na Biblioteca Municipal de São Paulo havia uma seção circulante onde era possível retirar quatro livros por vez, ficando com os livros durante 15 dias. E eu, então, estabeleci esta rotina, a cada 15 dias eu lia quatro livros. E isto foi extremamente útil, por exemplo pra, tanto pra conhecimento da literatura, mas conhecimento da história e enriquecimento de vocabulário. Quer dizer, eu posso dizer, eu tenho, é o fato e a minha carreira docente comprova isso, uma facilidade grande de expressão, eu consigo me expressar e tratar de questões complicadas, muito complexas usando o vocabulário simples, mas isto tudo graças a esta leitura extremamente intensa dos livros da biblioteca circulante municipal. Então, deste modo, eu fiz o curso de madureza e acabei sendo aprovado no Ginásio Estadual Alexandre de Gusmão no Bairro do Ipiranga. Aí eu ganhei, então, o diploma de ginásio e com isto o direito de fazer o curso clássico. Mas como eu tinha sido aprovado no ginásio estadual da cidade de São Paulo, eu consegui vaga num colégio estadual, então fui fazer um curso clássico no colégio estadual Presidente Roosevelt na Rua São Joaquim. Havia naquela época o curso clássico e o curso científico. Quem ia pra Letras, pra Direito, para Ciências Humanas fazia o curso clássico, quem queria Engenharia, Medicina, Farmácia, Ciências Exatas, ia para o curso cientifico. E eu, então, fiz três anos de curso clássico. Esse também foi um momento muito interessante, importante na minha formação porque, através dos meus colegas de curso de madureza, eu já tinha sido despertado pro problema nacionalista, e achando que os Estados Unidos exploravam o Brasil, tratavam o Brasil como colônia e isto pesou muito na escolha das disciplinas que eu fui cursar no colégio estadual porque havia a obrigação de fazer três línguas estrangeiras, e eu acabei optando por espanhol, francês e grego, eu estudei grego, estudei grego para não estudar inglês. Eu achava que o inglês era a língua do dominador e que eu não devia me subordinar a isso. Então estudei grego, foi extremamente importante porque através do estudo da língua eu mergulhei na filosofia grega, já num curso clássico de história, filosofia e isto tudo na minha formação, formação jurídica inclusive, teve extrema importância. Na verdade a raiz do pensamento ocidental é a Grécia. E através do grego, e também eu tinha muito interesse pelo latim, me empenhei muito, estudei, fui um dos bons alunos de latim, eu consegui acumular conhecimentos que são extremamente importantes em termos de etimologia, em termos de conseguir o sentido preciso das expressões, além do conhecimento da História e Filosofia. E isto foi, foi muito bom e realmente não prejudicou em nada, porque o inglês é uma língua tão simples, é uma língua precária, é uma língua com pouquíssimos recursos, eu costumo dizer que o inglês a gente aprende até sem querer. Quer dizer, ele está tão penetrado na linguagem corrente dos brasileiros que a gente fala inglês uma porção de vezes sem a gente perceber que está falando inglês. E a gramática é tão simples, e eu exagero um pouco, mas digo isso, “a gente aprende inglês no botequim da esquina”. Quer dizer, não é preciso conhecer aquela complexidade que existe, por exemplo, no alemão ou próprio francês que é muito mais complexo, ou o próprio espanhol que é cheio de traições porque tem raiz latina, é parecido com o português, mas tem suas peculiaridades e tem também uma gramática muito complexa. Então, por tudo isto, foi uma coisa ótima que eu fiz ter optado pelo grego, deixando de lado o inglês, e depois eu aprendi inglês, já dei aulas nos Estados Unidos, já fiz trabalhos para a comissão internacional de juristas na Índia, na Indonésia, falando inglês sem nenhuma dificuldade, de maneira que isto tudo foi parte da minha formação.
P/1 – Já no Direito, como é que o senhor foi focando nas suas preocupações a questão da Teoria Geral do Estado e dos Direitos Humanos?
R – Desde o tempo de curso clássico eu me interessei muito pela questão política, e ao mesmo tempo já tinha esta idéia, que trouxe de Serra Negra por influência de minha mãe, de fazer o curso de Direito. E eu queria alguma coisa que associasse as duas coisas, que fizesse a conjugação de Direito e Política. E quando iniciei o meu curso jurídico, eu tive no primeiro ano aula de Introdução à Ciência do Direito, com o professor Golfredo da Silva Telles, um professor extraordinário, um homem muito culto, mas dotado de uma didática excepcional, os alunos se empolgavam com o Direito ensinado pelo professor Golfredo e pela maneira como ele ensinava. Mas ao mesmo tempo eu tive também aula de Teoria Geral do Estado com o professor Ataliba Nogueira e foi aí que eu descobri que a Teoria Geral do Estado fazia a ponte entre o Direito e a Política, e que a Teoria Geral do Estado era, na verdade, uma iniciação ao Direito Constitucional. Nós estudávamos Teoria Geral do Estado no primeiro ano e Direito Constitucional no segundo. E também havia naturalmente a iniciação em Direito Civil, como havia também uma disciplina de Economia Política. Mas neste conjunto todo o que me empolgou mais, me atraiu mais, foi a Teoria Geral do Estado. Declaro aí que a Introdução, o que se chamaria de Introdução à Ciência do Direito foi muito importante para a percepção das noções básicas de Direito. Mas conjugando isso com a Teoria do Estado foi que eu percebi a aplicação do Direito, os efeitos sociais do Direito, os efeitos do Direito sobre a vida das pessoas, os relacionamentos das pessoas, a convivência, a organização política e social. Então, percebendo como é que o Direito tem uma importância fundamental para as pessoas, os grupos sociais e os povos. Então, eu mergulhei fundamente na área da Teoria do Estado.
P/1 – E como que foi manter a defesa dos Direitos Humanos na época do Regime Militar?
R – Foi um período extremamente difícil porque, já como professor da Faculdade de Direito, e tendo essa preocupação com a questão social eu discutia estas questões com os meus alunos, inclusive uma característica que sempre foi ressaltada na minha atividade docente, foi esta aproximação entre a teoria e a prática. E eu discutia, então, com os alunos as questões políticas e sociais que aconteciam no mundo e com a percepção de tremendas injustiças que aconteciam, e tremendas injustiças que aconteciam no Brasil. A percepção dos desníveis sociais, das marginalizações, das discriminações, percebendo já o problema, por exemplo, da discriminação do negro, discriminação contra o índio, e também o problema da criança abandonada que me comovia muito, eu percebi isto logo cedo. Então, por estas razões eu já tinha uma posição, pode-se dizer uma posição política, não político-partidária, mas uma posição política a favor da justiça social. E com o conhecimento teórico tinha também a conclusão de que se houvesse uma opção capitalismo x socialismo, a minha opção seria o socialismo. O que não significava, nunca significou para mim, uma adesão ao comunismo ou a sovietismo, eu nunca fui comunista, eu nunca fui sovietista, mas sempre fui influenciado pelos fundamentos do socialismo. O fundamento do socialismo por suas várias correntes, o marxismo é uma delas, mas as várias correntes socialistas que se afirmaram na França, depois, se desenvolveram muitas vezes não se chamando socialismo, mas com influência do pensamento socialista sim, por exemplo, um autor francês da nossa época, hoje já falecido, mas que exerceu muita influência, Maurice Duverger me trouxe aí uma percepção muito importante desta ligação entre os princípios do socialismo que conjugam o direito à liberdade, e o direito à igualdade, mas não o direito à igualdade, à liberdade como simples afirmações formais mas como realidade. Então, como realizar efetivamente, como efetivar no plano concreto das pessoas e da sociedade o direito à liberdade, o direito à sociedade? Então, eu tinha toda esta formação e na Faculdade de Direito, eu já tinha percebido que havia um distanciamento muito grande entre o que muitos professores diziam e aquilo que faziam e que apoiavam na prática. E aí pra mim ficou clara a existência de professores que já poderiam ser classificados como homens da direita, que tinham uma opção pela direita, que faziam belos discursos, escreviam livros falando do Liberalismo, mas que apoiavam totalmente o capitalismo com toda a sua cadeia de efeitos negativos, especialmente a discriminação, discriminação econômica e social. Eu tava vivendo esse ambiente muito atento a isto e, de certo modo, já começando a ter problemas na Faculdade de Direito porque eu era já então visto, por alguns professores, como um rebelde. E foi, então, que eu pude assistir de perto um aspecto da preparação do Golpe de 64. Professores da Faculdade de Direito, aí vem o Professor Gama e Silva, que foi o autor do AI-5, professor Ernesto Leme, o professor Miguel Reali, Moacir Amaral Santos, tinham intensa participação nas articulações que resultaram no Golpe de 64, e eu me lembro muito, foi um momento muito marcante que me causou enorme indignação. Lembro do dia em que nós estávamos na sala dos professores conversando informalmente e tomando café quando chegou o professor Ernesto Leme exultante para dizer: “derrubamos o Jango, derrubamos o Jango!” O Jango era o João Goulart, o presidente constitucional da República que tinha chegado à presidência eleito pelo povo. E o professor Ernesto Leme disse: “o Jango fugiu, então, na verdade não houve nenhuma ilegalidade, sem um arranhão” - eu me lembro muito bem dessa expressão que me agrediu muito - “sem nenhum arranhão na Constituição, nos livramos do Jango!” O que era mentira! O Jango teve que sair do Brasil para não se preso, e na verdade ele foi deposto, mas eu assisti a estas coisas, de certo modo, dos bastidores, vendo de dentro e depois teve todo o desdobramento. E isso acabou também tendo conseqüência porque desde o primeiro momento, embora o movimento se apresentasse como a Revolução de Março, eu dizia aos alunos: “houve um golpe de Estado no Brasil, isso é inconstitucional, o presidente foi deposto”, e isto eu dizia nas minhas aulas e naturalmente isto chegou ao conhecimento dos eminentes catedráticos, eu era livre-docente na ocasião, e uma das conseqüências disso é que eu cheguei a ser proibido de dar aulas, e esta proibição foi decidida pela congregação a partir de uma proposta formal do presidente Ataliba Nogueira, se disse isso, foi o que se disse na proposta, a congregação acolheu que eu era um rebelde com tendência comunista e muito perigoso aos alunos, por isso eu deveria ser proibido de dar aula, diziam que eu estava “anarquizando o curso de Direito”. Fui proibido de dar aulas. O diretor, então, era Luis Eulálio Vidigal, eu estudei o assunto e resolvi agir com habilidade de advogado, quer dizer, em vez de uma ação contra a congregação, a Faculdade, de ir ao Judiciário reclamar os meus direitos, porque eu tinha, tinha direitos, eu era concursado, livre-docente, era nomeado e um dos direitos do professor era dar aulas. Então o que eu fiz? Eu sabia que o professor Ataliba Nogueira tinha uma situação de acumulação ilegal de vencimentos, ele era promotor em indisponibilidade e ganhava como promotor e há muitos não trabalhava como promotor, na Faculdade de Direito ele ganhava pelo curso noturno e outro salário pelo curso diurno, ganhava outro salário por curso de pós-graduação, e que no conjunto ele tinha cinco salários e isso era absolutamente ilegal. Então eu resolvi pegar por aí. Fiz um requerimento ao reitor da universidade perguntando isto: “é legal um professor acumular todas estas remunerações?” E obviamente isto ia contra o catedrático. Então preparei isto, era uma consulta ao reitor, era um direito meu, estava na constituição obter informações junto às autoridades e eu fundamentei neste direito constitucional. E fui entregar este requerimento ao diretor Luis Eulálio Vidigal, que era um homem cordial, um empresário, mas um empresário civilizado, não radical, de direita, nada disso, era um respeitador das pessoas, respeitador do direito. E quando o professor Vidigal me recebeu e leu e viu o teor do meu documento disse: “mas você está louco, com este documento você está declarando guerra à congregação porque você está denunciando a situação de um catedrático e há outros na mesma situação”, e o professor Vidigal disse: “se você fizer isto acabou a sua carreira docente”, né? E eu disse: “professor, um professor que já está proibido de dar aula não tem carreira, minha carreira já acabou de maneira que eu não tenho o que perder” e ele disse: “mas então você insiste em mandar essa consulta ao reitor?” “Eu insisto sim, isto é um direito meu e estou pedindo ao diretor que encaminhe”. Porque a regra legal é esta, eu não podia me dirigir diretamente ao reitor, tinha que ser através do diretor, e o diretor Luis Eulálio Vidigal disse: “então deixe esse documento comigo, eu vou estudar”. Dias depois ele me chamou disse: “eu conversei com o professor Ataliba, com outros professores e eles estão de acordo em que você volte a dar aulas, mas só no curso noturno. E eu concordei, eu queria é dar aula, voltar a ter atividade docente, pra isso eu tinha feito o concurso de livre-docência. E eu entendi bem o porquê disto, é porque na concepção deles o aluno do curso diurno era da classe dominante, era filho de empresários, de pessoas da elite social, e os do diurno, então, estavam sendo preparados para comandar o país, eram os dirigentes do país e era perigoso que eu falasse a esses alunos e infundisse idéias socialistas, idéias de justiça social. Ao passo que os alunos do curso noturno eram pobres, eram pessoas que estavam lutando para abrir um caminho, para conseguir uma afirmação social e que não seriam, pressupostamente, os dirigentes do país, então, não era importante, não era tão perigoso que eu falasse aos alunos do curso noturno, e por isso eu passei a dar aulas no curso noturno. Mas aí eu continuei a falar contra o Golpe Militar, a denunciar a Ditadura e recebi um convite, que me veio através do professor Fábio Comparato, um convite para um encontro com o Dom Paulo Evaristo Arns. Fábio, um grande amigo, companheiro de faculdade, me disse: “o Dom Paulo, que era então o Arcebispo, está querendo conversar com você” e eu fui. Aí o Dom Paulo me disse: “eu tenho recebido muitos pedidos de perseguidos políticos, de familiares de presos, gente desaparecida, que está sendo procurada” e eu pensei: “como é que eu vou dar uma ajuda, dar um apoio a esta gente?” E Dom Paulo, figura excepcional da história brasileira, da história da Igreja, da história da humanidade, Dom Paulo sempre praticou efetivamente o cristianismo, a fraternidade cristã, o dever de solidariedade, ele jamais perguntou a um perseguido, a um familiar de perseguido, se era católico, se ia missa, se comungava, era um ser humano que estava sofrendo violência e tinha que ser protegido, tinha que ter apoio. Então, Dom Paulo pediu ao Papa Paulo VI, com quem ele tinha um bom relacionamento pessoal, que criasse em São Paulo a Comissão Pontifícia Justiça e Paz. O Papa tinha criado no Vaticano a Comissão Pontifícia Justiça e Paz com a intenção de criar comissões semelhantes nos países onde houvesse violência contra os direitos humanos, para que nos países onde a violência ocorresse houvesse um grupo localizando as situações de violência, denunciando e encaminhando estas informações ao Vaticano. E então, Dom Paulo pediu que se criasse em São Paulo uma Comissão Pontifícia Justiça e Paz, essa comissão foi criada e Dom Paulo me chamou, para me convidar, para que fosse o presidente desta comissão. Eu imediatamente compreendi o objetivo, vi que havia absoluta coincidência com aquilo que eu queria e acreditei que pudesse ser útil neste trabalho tremendo assumido por Dom Paulo, e fiquei então presidente da Comissão de Justiça e Paz. Anos depois, Dom Paulo me confessou que antes de mim ele tinha convidado cinco pessoas e todos os cinco o recusaram, porque era uma posição extremamente perigosa, ostensiva contra a Ditadura e por isso outros disseram: “não, estou de acordo, eu também acho isso mas eu tenho família, não posso assumir”, não quiseram assumir. Eu assumi muito tranqüilamente, não tive a mínima dúvida. E tive grandes companheiros, o Hélio Bicudo foi o meu vice-presidente, Margarida Genevois, uma mulher excepcional, corajosa, muito ativa e que trabalhou muito na linha de frente protegendo os perseguidos políticos. Mário Simas, um advogado notável que também assumiu os riscos e outros companheiros que eu gostaria de mencionar: o Valdemar Rossi, o operário, um líder operário de formação católica que assumiu os riscos, o Valdemar Rossi foi preso, foi torturado mas nunca teve medo, nunca se omitiu. Então, desta maneira, eu acabei me integrando e me colocando, posso dizer isso, na linha de frente da resistência democrática, da luta contra a Ditadura. E isto eu fui fazendo, a Comissão Justiça e Paz existe ainda hoje, eu fiquei durante quase dez anos na presidência da Comissão, atravessei os períodos mais duros da repressão política da Ditadura Militar, especialmente o período Médici. E tive um episódio marcante quando o Papa veio ao Brasil, em 1980, e foi celebrar uma missa no Campo de Marte, eu tinha sido convidado para fazer umas leituras na missa e seria de manhã, na véspera, sete horas da noite quando eu cheguei a minha casa, um grupo armado me cercou quando eu ia entrar em casa, me empurrou para dentro do carro, me levou para um terreno baldio e ali eu fui espancado violentamente com socos, pontapés, coronhadas até que eu caí no chão, aí eles saíram correndo, foram embora. Era um terreno baldio, um lugar escuro onde hoje tem a Avenida Juscelino Kubitschek e eu tive forças, força que vem de dentro, eu acredito nesta força espiritual e me levantei, tava todo arrebentado, sangrando, e consegui caminhar até a avenida que ainda não tinha nem iluminação, mas os carros passavam de farol aceso, já era noite, e as pessoas não paravam porque tava aquela figura ali toda ensangüentada, ninguém queria se mover, era evidente que tinha ocorrido alguma violência. Até que uma pessoa parou e perguntou o que tinha acontecido, eu disse: “eu fui assaltado, o senhor me leve até em casa que não é longe daqui”. E essa pessoa que já era generosa, corajosa, porque tinha parado, disse isso: “mas eu tô com muita pressa”, “não mas você me leva, deixa na porta de casa e vai embora, não precisa nem esperar”. E ele fez isso, até hoje não sei quem foi esse benemérito. Mas o fato é que a partir daí, então, eu entrei em casa, falei com minha mulher: “eu tenho que ir na missa amanhã fazer essa leitura de qualquer maneira” porque eu percebi que era um ato político, a agressão que eu recebi era um ato político, eu tinha que dar uma resposta política, mostrar que aquilo não me intimidava, que aquilo não me calava, nem que seja a última coisa da minha vida eu tenho que ir a esta missa. Aí a minha mulher, que tinha bom relacionamento, ela tinha tido formação em enfermagem, depois saúde pública, tinha bom relacionamento com jovens médicos, me levou ao Hospital Sírio-Libanês. Aí um grupo de médicos muito jovens que já me conheciam de nome, me atendeu aí eu fiz esse pedido: “me coloque em condições de ir a esta missa”. E eu fui, fui de cadeira de rodas e acabei fazendo a leitura na missa. E até foi um fato político importante porque àquela altura era a missa do Papa no Brasil, a televisão do mundo inteiro estava filmando aquilo e o padre que dirigia as cerimônias contou à multidão lá quem eu era o que tinha acontecido. Eu fui super aplaudido e a televisão transmitiu isso para o mundo inteiro. Eu fico impressionado ainda hoje. Às vezes eu vou, me aconteceu na Alemanha, na Itália, França, pessoas que se lembram: “ah, você que teve aquele episódio quando o Papa chegou”. Então realmente teve um peso político enorme, além do peso político interno. Acho que foi sim um momento de afirmação política extremamente importante. Foi um dos episódios da resistência à Ditadura, da resistência em favor do direito e da dignidade humana.
P/1 – No caso específico do Sateré-Mawé, com o processo contra a Elf Aquitaine, quem procurou o senhor e como é que foi essa disputa?
R – Eu já tinha escrito artigos, feito palestras em favor dos índios, dos direitos dos índios, denunciando a discriminação de que eles eram vítimas, até chamando a atenção pra isso: eles são os piores discriminados, marginalizados porque a maioria deles nem fala português. E também já denunciando, era o período da Ditadura Militar, as concessões que a Ditadura vinha fazendo a grandes grupos econômicos estrangeiros, a grupos multinacionais, entregando áreas indígenas, sem nenhum respeito à pessoa do índio, pelos direitos dos índios que já estavam na Constituição. E foi nesse ambiente que eu fui procurado por uma antropóloga, uma figura notável, a Sônia Lorenz, que me contou que numa tribo do Amazonas estava havendo uma situação extremamente grave, trágica mesmo, porque o governo brasileiro tinha autorizado uma multinacional do Petróleo, baseada na França, Elf Aquitaine a pesquisar petróleo dentro da área Sateré-Mawé. É interessante porque Sateré-Mawé quer dizer, o senhor do guaraná, na verdade foram os índios que descobriram o guaraná. E os índios Sateré-Mawé viviam lá, ocupavam uma área na Amazônia, quando chegou lá a equipe técnica da Elf Aquitaine, invadiu lá, invadiu com equipamento pesado, equipamento de prospecção e derrubou muitas árvores, abriu uma porção de clareiras, foram perto de 40 clareiras abertas dentro do território Sateré-Mawé. E começou a prospecção que era feita através do uso de explosivos, que consistia nisso: enterrar o explosivo e com fios que chegavam até a superfície e provocar explosão subterrânea, e lá em cima um sismógrafo fazia um registro, pela leitura desse registro se saberia se havia petróleo ou não naquele lugar. E eram cerca de 20 explosões por dia, obviamente acabou a caça na região, além dos índios ficarem apavorados com aquelas explosões. E houve mais um fator que pesou bastante na reação que depois aconteceu, é que em muitos lugares a Elf provocava a explosão e, depois, chegava a conclusão de que aquele lugar não havia petróleo, mas deixava lá o explosivo, o resto dos explosivos, os fios, e os índios, então, quando já não estava lá o branco fazendo esse trabalho, essas explosões, o índio ia lá e verificava aqueles fios, puxava, e os índios tiraram muitos explosivos, o pó explosivo que estava no subsolo e levaram para a aldeia, e mulheres Sateré-Mawé descobriram que aquele pózinho matava formiga e começaram a espalhar aquilo na aldeia. E vários índios morreram, e crianças especialmente morreram pela curiosidade porque punham na boca aquele explosivo. E foi criada esta situação. Então quando a Sonia Lorenz e o grupo de antropólogos que trabalhavam com ela me procuraram para relatar isso e pediu apoio. Eu, então, estudei a situação, não tive dúvida de que havia absoluta ilegalidade, inconstitucionalidade porque era área indígena. Então, comecei a fazer um trabalho num sentido de que a Elf saísse da área, inclusive, publicando artigos a respeito do assunto. Quando então, a Elf teve notícia desse meu trabalho junto com os antropólogos, e resolveu que não era conveniente para a imagem da empresa, e talvez também porque tivesse concluído que não havia petróleo, ou grande petróleo naquele lugar, resolveram que era melhor ir embora mas em boas condições, porque eu já tinha mencionado que iria entrar com processos judiciais para a expulsão da Elf, para cobrar indenizações e para a responsabilidade criminal pela matança das crianças índias. Então, fizemos uma reunião em Manaus com representantes da Elf, representantes dos índios, eu estava lá com um colega amazonense defendendo os interesses dos índios, e curiosamente participou da reunião o índio, então deputado, Mário Juruna. O Juruna era deputado federal lá, participou, ouviu, e uma porção de índios. O índio Sateré-Mawé é um índio de estatura menor e tem os olhos muito pretos e isso me impressionou porque o auditório estava cheio desses índios, e nós discutíamos então, eu fazendo as acusações: “vocês fizeram isso, vocês mataram, vocês são responsáveis”. E o representante da Elf, então, respondeu isso, que eles se instalaram lá com autorização do governo brasileiro, por isso eles supunham que fosse legal o trabalho que eles estavam fazendo, mas que pela minha exposição, e por tudo que eu já tinha escrito, eles tinham lido também, eles tinham chegado à conclusão de que era realmente inconstitucional, ilegal, e tinham decido ir embora. E se propunham a pagar uma indenização aos índios, pelos danos causados. Então, foi feita uma interrupção na discussão pra que se trocasse idéias, e trocassem idéias e eles viessem, então, com uma proposta efetiva, formal de indenização. Aí aconteceram duas coisas curiosas, uma delas foi que o Juruna que era um índio enorme, um Xavante, assim, monumental, assim que foi interrompida a discussão se aproximou do representante da Elf, um francês muito cordial, muito bem educado, um senhor de alguma idade e aquele indião enorme se aproximou do francês e disse: “vocês tem que pagar e tem que ir embora se não você vai preso”. Aí o francês ficou assustadíssimo, aquele indião enorme, deputado, dizendo “você vai preso”, o francês disse: “não, mas não é o caso, não tem motivo”. Aí virou o seu Juruna com toda a simplicidade dele: “você quer apostar que você vai preso?” Aí o francês bateu em retirada disse: “não, não, vamos estudar uma proposta, não é?” Aí reaberta a seção estavam lá, tinha toda uma bancada da Elf, né, geólogo, advogado, tudo isso. E o representante, então, apresentou então a proposta de uma indenização que eu achei absolutamente ridícula, e eu reagi, reagi na hora e todos os índios lá ouvindo a nossa discussão, mas eu com certa dúvida, “será que os índios estão conseguindo acompanhar esta discussão, os argumentos, tudo?” E quando o francês apresentou a proposta, que eu achei ridícula e indignado e logo disse: “eu quero que vocês saibam que os índios não vieram aqui pedir esmolas, vieram reivindicar direitos”. Quando eu disse isso os índios todos aplaudiram, então, eles estavam acompanhando sim, eles sabiam exatamente o sentido da discussão, e o sentido do que eu tinha dito. E então, isso causou uma celeuma, um tumulto, aí o francês pediu novamente interrupção da discussão e depois voltou com uma resposta muito mais positiva, elevou muito a indenização aos índios. E aí acabamos fazendo acordo e a Elf, realmente, foi embora. Daí foi decisivo, sem dúvida alguma, o trabalho dos antropólogos, eu ressalto mais uma vez, especialmente, a Sônia Lorenz que foi de linha de frente e foi quem fez a aproximação para que eu pudesse entrar no caso.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouco do seu título de Sateré-Mawé.
R – É, isso teve conseqüências muito bonitas, muito interessantes também porque é, como eu já disse, o Sateré-Mawé estava acompanhando perfeitamente o que acontecia. E foi, então, que eles decidiram me conceder o título de membro honorário da tribo Sateré-Mawé. Na verdade, é o membro de índio honorário e fizeram uma cerimônia muito bonita, em que o chefe Sateré-Mawé fez um discursinho dizendo isso, que reconhecimento e gratidão pelo meu trabalho a partir dali eles me consideravam membro da tribo e eu fiquei índio Sateré-Mawé. Anos mais tarde eu fiquei índio de uma outra tribo também dos Gaviões da Montanha, no Estado Pará, foi quando se construiu a usina, a hidroelétrica de Tucuruí. Lá também eu fui procurado por antropólogos que me contaram da situação, quer dizer, estavam construindo a usina, já tinham invadido área indígena também prejudicando caça e pesca. Mas o pior de tudo é que tinham planejado uma linha de transmissão, um “linhão”, que ia conduzir pra longe a energia produzida em Tucuruí, tinham planejado de tal maneira que o “linhão” ia passar exatamente no meio da tribo indígena, isto era malicioso, isto era de má fé, pra dizer: “olha, que pena, nós temos que expulsar os índios daqui porque o projeto obriga a passagem da linha na área, ou dentro da aldeia”. Então, eu fui lá também, discutimos a situação e eles ficaram de estudar. E eu voltei pra São Paulo e aí aconteceu também uma coisa extremamente interessante: um dia eu fui avisado pelos antropólogos que estava chegando à São Paulo um grupo de índios Gaviões da Montanha que vinham conversar comigo, tinham vindo num pequeno Jipe do Estado do Pará até São Paulo e estavam acampados na Mata do Morumbi. Aí nós fizemos uma reunião na Mata do Morumbi discutindo direito, discutindo os direitos dos índios e eles me contando a situação e dizendo que eles estavam assustadíssimos porque tinham visto lá uma movimentação de equipamento, que tinham a impressão de que a usina hidroelétrica, que no caso era a Eletro Norte, estava já preparado a invasão da aldeia. E eu disse a eles: “olha, é muito importante que vocês impeçam a invasão da aldeia, não deixem de maneira alguma invadir a aldeia, porque se invadir aí eu vou ter que entrar com ação judicial, com reintegração de posse e isto pode demorar, de maneira que, se vocês puderem impedir isto é melhor porque aí o problema é deles, eles que tem que pedir uma ação judicial para invadir a aldeia”. E marcamos uma nova reunião pro dia seguinte. E uma coisa que me impressionou e nunca soube exatamente como isto se passou, os índios acampados na Mata do Morumbi tinham se comunicado com os índios que estavam lá no Pará na sua aldeia, na aldeia dos Gaviões da Montanha. E então, o índio que estava chefiando o grupo me disse: “fique sossegado porque eu já falei com os meus irmãos lá e eles não vão deixar entrar não, tá tranqüilo, a gente vai voltar e eles não vão”. E realmente aconteceu. Eu não sei qual foi o meio que ele utilizou, ele não tinha rádio, como é que ele se comunicou, mas ele me disse com tanta segurança que eu fique tranqüilo, realmente ele se comunicou. E aí isto aconteceu, não houve a invasão, houve afinal o acordo, mudou-se o traçado da linha de transmissão e aí os índios me convidaram para uma reunião lá no Pará para contarem como a coisa havia sido decidida e pra discutir os termos finais do acordo e eu fui. E ali foi muito interessante porque um índio, que era uma espécie, assim, de ministro, primeiro-ministro da tribo, fez um pequeno discurso também dizendo: “a maior homenagem que um índio pode prestar a uma pessoa é entregar a sua própria arma, e o nosso cacique quer dar pra você a sua própria arma, e com isso você fica membro da nossa tribo, a partir daqui você é também um Gavião da Montanha”. E ali, com toda a solenidade eu recebi o arco e a flecha do cacique Gavião da Montanha e tenho isso na minha biblioteca num lugar de honra, é motivo de muito orgulho pra mim. Eu tenho, então, a cidadania índia, eu sou Sateré-Mawé e sou também Gavião da Montanha.
P/1 – Eu queria saber o seguinte, na época em que aconteceu a questão do Sateré-Mawé, ainda era o finalzinho da Ditadura Militar, mas ainda era Ditadura Militar, existiam organismos ligados ao governo federal envolvidos, a FUNAI, a Petrobrás, isso era um problema adicional?
R – Isto era um problema porque teoricamente, legalmente a FUNAI deveria se opor a qualquer invasão de área indígena, e no entanto isso não estava acontecendo. Quer dizer, faltou este apoio da FUNAI, mas pior do que isto, a FUNAI não reagia, a FUNAI falando em nome dos índios concordava. E houve até um fato interessante que aconteceu no caso dos Gaviões da Montanha, quando eu cheguei lá um índio mostrou que a Eletro Norte tinha obtido uma autorização escrita dos índios escrita para passar com a linha de transmissão pelo meio da aldeia. Mas aí ele me explicou isto, que estavam lá e estava inclusive um grupo da FUNAI e aí alguém disse isso: “mas não basta a concordância do índio sem que a FUNAI também se manifeste de acordo”. Evidentemente eles devem ter mentido, deve ter enganado, o índio não sabia ler português, ou não sabia interpretar o que estava escrito e acabou assinando o documento. E o que eu descobri, e que foi extremamente importante, é que quem tinha assinado pela FUNAI era um dentista da FUNAI, que não tinha nenhuma competência legal para falar em nome da FUNAI. Então, que a FUNAI estava alegando, e a Eletro Norte alegava era que houve já concordância, e não tinha nenhum valor legal. Era um documento assinado por um funcionário da FUNAI é que não podia falar pela FUNAI. Isso também acabou pesando muito pra que se resolvesse em termos de um bom acordo a favor dos índios.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouco só sobre a sua experiência como secretário na Prefeitura de São Paulo, isso já na década de 90.
R – Eu fui secretário da prefeita Luísa Erundina durante dois anos. Eu fui secretário de 88 a 90. Eu era, então, diretor da Faculdade de Direito da USP, o Secretário de Negócios Jurídicos, da Luísa Erundina, era o Hélio Bicudo. E um dia o Hélio me disse: “olha, eu vou deixar a secretaria para ser candidato a deputado e eu gostaria muito que você me substituísse na Secretaria”. E aí eu ponderei: “mas estou agora eu como diretor da Faculdade de Direito, eu não quero, eu gosto muito da Faculdade”, estava fazendo um trabalho que achava importante, inclusive, construindo um prédio anexo para ter mais espaço, para ter a oportunidade de ter seminários, a Faculdade não tinha nada disso, porque o seminário é para um envolvimento maior de alunos e professor e eu não queria abandonar esse trabalho. O Hélio disse, “bom, a prefeita vai formalizar esse convite”. Realmente Luísa Erundina me chamou, formalizou o convite e eu expliquei: “olha, existe esta situação, eu não quero abandonar o meu mandato de ‘deputado’ [diretor], e o mandato ia acabar ainda dentro de seis meses ou coisa assim”. Então, fizemos um acordo pelo qual desde logo aceitaria assumir assim que terminasse o meu mandato de, aliás esclarecendo bem, eu fui secretário de 90 a 92, porque em 90 foi que terminou o meu mandato de diretor. E eu então, combinei isso com a Luísa Erundina, quando terminasse o meu mandato de diretor eu assumiria a secretaria e aí iria ficar ainda dois anos como secretário. Mas combinamos uma outra coisa também que o Hélio precisava se afastar antes da secretaria e o que combinamos foi isso: eu já faria a escolha do meu chefe de gabinete, eu escolhi o professor Walter Piva, o meu colega da Faculdade de Direito, uma pessoa excepcional e recentemente nomeado Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, e também com muita sensibilidade social, absolutamente afinado com o meu pensamento jurídico e a minha linha de ação, e um homem corretíssimo, competente. Eu disse: “eu vou convidar o Walter Piva pra ser o meu chefe de gabinete”. Então, o Piva assume a secretaria interinamente até que termine o meu mandato de diretor. E isto foi feito, o Hélio Bicudo se afastou, o Piva assumiu a secretaria, e assim que eu terminei o mandato de diretor eu assumi. Foi um período também extremamente importante, eu aprendi muito em termos de administração pública, mas tive também a oportunidade de dar alguma contribuição. O que eu considero mais importante como minha contribuição foi a preparação de um projeto para a criação de um serviço de apoio jurídico a população pobre da cidade de São Paulo. O serviço se chamou exatamente isso: Serviço de Apoio Jurídico, o SAJ. E a idéia era esta: criar 20 escritórios nos mais diversos pontos na cidade de São Paulo, escritórios que seriam chefiados por um procurador municipal, mas com estagiários de Direito, Psicologia e Serviço Social, porque pelo meu relacionamento com as populações mais pobres, grupos comunitários, eu sabia que muitos dos problemas que aparentemente eram jurídicos, na verdade eram problemas ou de pobreza ou de falta de educação, falta de preparo para a convivência, briga entre vizinhos que na verdade deviam se resolver com um bom entendimento e não com ação judicial. E assim obtive a concordância da prefeita, preparei o projeto, a prefeita enviou à Câmara Municipal e eu passei vários dias fazendo lobby na Câmara Municipal, eu ia lá todos os dias conversar com as diferentes bancadas para explicar o projeto. Eu quero ressaltar, fazer justiça que foi muito importante o apoio dado pelo então vereador Arnaldo Madeira. Arnaldo Madeira era um vereador de oposição, muito ativo, mas quando eu expliquei o projeto, os objetivos sociais, ele imediatamente concordou, achou: “não, eu acho que é bom pra cidade, é justo e eu vou dar o meu apoio”. E aí o próprio PSDB apoiou o projeto. E desta maneira o projeto foi aprovado, converteu-se em lei e nós chegamos a instalar alguns escritórios do Serviço de Apoio Jurídico e tivemos um resultado muito positivo desde o começo. Entretanto, terminado o mandato da prefeita Luísa Erundina, o sucessor Paulo Maluf desativou os escritórios e sepultou o Serviço de Apoio Jurídico o que foi muito ruim. Mas de qualquer maneira foi uma experiência importante e agora mesmo eu estou trabalhando no sentido de ressuscitar o Serviço de Apoio Jurídico, porque de fato é extremamente importante para que se dê a eficácia social ao Direito, é uma expressão, essa expressão é usada pelo professor Miguel Reali dizendo isso: “não basta ter eficácia jurídica, é preciso ter eficácia social, se não o Direito não é uma realidade”. Então, eu estou trabalhando nesse sentido, mas eu aprendi muito durante o período que fui secretário de Luísa Erundina, inclusive, eu aprendi a admirar a prefeita, é uma pessoa excepcional, com uma sensibilidade enorme pela questão social, corretíssima, jamais faria um acordo que não fosse em termos rigorosamente éticos e é, sem dúvida alguma, uma das grandes figuras da política brasileira.
P/1 – Agora, já chegando ao final. O senhor tem escrito, mais recentemente, que a gente tá chegando no fim de uma era do Direito que começa lá na Revolução Francesa em que a lei é um pouco indiscutível, o que tá na lei é um pouco indiscutível, e que hoje já se aponta a possibilidade de, por exemplo, a lei não poder se sobrepor aos Direitos Humanos, por exemplo. Como o senhor vê a perspectiva desse novo Direito?
R – É, na verdade desde a Revolução Francesa, e aí foi muito importante o período de Napoleão Bonaparte, a França fez a primeira Constituição em 1791, mas o que predominava era burguesia, os interesses burgueses e a visão burguesa de sociedade: ultra-individualista, não admitindo qualquer interferência do poder público na sociedade e aceitando a desigualdade como um fato natural decorrente do regime de liberdade. Na verdade, a proclamação da Revolução Francesa foi “liberdade, igualdade e fraternidade”. Mas a partir da ascensão política da burguesia já não se fala mais em igualdade, se fala em liberdade, mas era a liberdade para cada individuo, a liberdade econômica. E nesta linha foi que se fez, então, o Código Civil Francês de 1804 e a partir daí a afirmação de que o Código Civil era a lei superior da sociedade. A Constituição passa a ser tratada como um simples manifesto político, não tem nenhuma força jurídica, e o Código Civil ultra-individualista e formalista. E então, foi que se afirmou que o direito é a lei. O direito é a lei não importa se é justo ou injusto, é a lei, então, é o direito. Não existe direito fora da lei, a lei é todo o direito. E isto nós temos até hoje porque a partir de então o ensino de Direito passou a ser o ensino da lei, o que é curioso a França nunca teve Filosofia do Direito no seu currículo jurídico, no Brasil nós tivemos, mas com um legalismo exagerado, um positivismo jurídico que dá absoluta supremacia a formalidade. A formalidade é mais importante do que o conteúdo, mais importante que a justiça. Eu mesmo tive experiências assim, situação por exemplo conversando com um juiz amigo, tinha proferido uma decisão que eu considerava injusta, disse lealmente, e a resposta dele foi esta: “justiça não é o meu problema, o meu problema é a legalidade, justiça é problema pro filósofo”. E isto foi o Direito brasileiro e em parte ainda é. Mas a partir da publicação oficial da Declaração de Direitos, a afirmação dos Direitos Humanos começa uma nova era na história da humanidade. Então se faz a afirmação, e hoje quase que o mundo inteiro reconhece, que o ser humano tem direitos que independem da lei, que são mais antigos que a lei, que precedem o próprio Estado, que precedem o próprio governo, são direitos que nascem com as pessoas. Se é que o artigo primeiro da Declaração Universal diz isso: “todos os seres humanos” – e vejam que é ‘todos’, sem nenhuma discriminação – “todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e dignidade”. Então, são atributos inerentes à condição humana, que nascem com a pessoa humana, são direitos naturais, naturais porque fazem parte da natureza humana. E a partir daí é que se começa a superar aquela visão formalista, positivista e individualista do Direito e que, além de tudo, é profundamente egoísta e colocando objetivos econômicos acima da própria pessoa humana. Então isso tudo vem caminhando, é o novo Direito que está se afirmando, a Declaração Universal é de 1948, durante a segunda metade do século XX houve muita resistência, mas os direitos humanos avançaram muito. E agora, nesse limiar do século XXI nós podemos afirmar que já se caminhou muito, muita gente no mundo já assumiu a consciência de que esses direitos são direitos naturais da pessoa humana. E um dado que é importante, hoje já não é possível uma situação de violência contra os direitos humanos que logo não seja denunciada ao mundo e que não seja objeto de algum tipo de reação. Mas um dado positivo é que no campo jurídico a mentalidade está se modificando, então hoje nós temos, por exemplo, muitos juízes que são defensores dos direitos humanos, que na aplicação da lei não se limitam a verificar as formalidades legais mas procuram a aplicação justa. E um ponto que é importante para dar sustentação a isso é uma renovação do constitucionalismo, quer dizer, o que se tem hoje é um novo constitucionalismo que tem dois pontos básicos: um deles a afirmação da constituição como norma jurídica superior, já a Constituição não é mais um manifesto político, manifesto com valor moral apenas, pode ser isso também, é isso também, mas é a lei superior, é a lei que se sobrepõe à todas as outras, é norma jurídica de eficácia superior. E além disso, já desde o final da Segunda Guerra Mundial começaram a surgir novas constituições que consagram princípios como norma jurídica, assim, para trocar isto em miúdos, a atual constituição diz que são fundamentos da República Brasileira, a dignidade da pessoa humana, além de outros, a dignidade da pessoa humana, isso significa que eu tenho direito à dignidade, é um direito assegurado pela constituição. Se houver uma lei que agrida a dignidade humana ela é inconstitucional, uma decisão judicial, um contrato, qualquer ato que ofenda a dignidade humana é inconstitucional. E isto é princípio constitucional, aceito, tratado como norma jurídica superior. Então por tudo isto é que se está definindo no mundo um novo Direito a partir dos direitos humanos. E isto também é altamente positivo para toda a humanidade porque é este o caminho para a correção das injustiças sociais, o efetivo respeito da dignidade humana, o mundo já tá cheio de exemplo de que a pretensão de corrigir injustiças por meio violento acaba produzindo efeitos negativos porque suscita mais violência, acaba sendo um conflito entre violências. O caminho está numa ação, ação determinada, ação constante, ação permanente, sem temor, sem concessões, sem preferências, em favor da justiça e da dignidade da pessoa humana. E o direito atual está alinhado exatamente com este compromisso.
P/1 – Por fim, eu queria saber o que o senhor achou de contar essa história.
R – Não, eu acho importante rever um pouco a própria história. Quer dizer, eu tenho procurado viver da melhor maneira possível, segundo os meus princípios, segundo a minha consciência, com uma preocupação de ser útil, de ser fraterno, de jamais agredir as pessoas, mas de vez em quando é bom a gente fazer um pouco o inventário da própria história, “será que realmente eu tenho sido coerente, eu tenho feito isso, quais as minhas determinantes?” Mas, de fato, não me preocupa anunciar isso, contar para os outros o que eu fiz, o que eu tenho feito. O que me importa fundamentalmente é seguir nesta linha, ser coerente, e evidentemente eu acredito que o exemplo do que eu tenho feito pode ser útil para convencer muita gente de que é este o melhor caminho, eu falo muito aos jovens, falo muito aos estudantes infundindo o otimismo, mas infundindo também esta consciência da responsabilidade social. Então, neste sentido eu acho que este depoimento poderá ser útil para que se perceba isto, que partindo de uma origem muito humilde e sem nunca ter feito concessões às injustiças, ao egoísmo, foi possível crescer, crescer intelectualmente, crescer socialmente. Eu estou muito feliz com a minha vida, tenho uma família maravilhosa em termos de posição intelectual, social, estou mais do que feliz, mais do que satisfeito, nunca tive ambição de riqueza, ambição de poder e não vivo na miséria, muito longe disso, vivo em absoluto conforto sem ter feito concessões, e é isto que eu quero que, sobretudo, os jovens percebam.
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