Essa cachorrinha não vai embora, repetia meu colega de trabalho. Ela não vai embora. Eu não a vi ainda, eu dizia. O cenário não era azul, não era claro, talvez fosse escuro. Talvez fosse sempre quase noite. Podia ser aberto. Um corredor, um pequeno gramado entre edificações, uma loja sem portas. Ela não quer ir embora, ele dizia. Uma pequena sala de estar, a entrada de uma casa, eu afastava uma cortina e olhava através da janela. Eu não a vi ainda. Até que a vi. Ele dizia um nome. Eu não lembro qual. Ela não era grande e estava se afastando. Seu corpo era largo, quadrado. Os pelos pretos e encaracolados, o rabo cortado. Ela olhava para trás e o seu olhar era o de um humano. Eu estava ali, só eu. Por que eu não estava trabalhando com os outros? Ele dizia novamente que a cachorrinha não queria sair de lá. Mas eu não estava lá. Estava em outro lugar, separada. Agora eu a vi, contei, mas ela não está mais aqui. Rua, eu estava num espaço que era como o de uma loja de rua. Sem portas, paredes amarronzadas, vazio e triste. Agora eu via a cachorrinha, mas era outra. Os pelos caíam sobre o seu rostinho, que tinha uma configuração inusitada. Deitada, encostada numa parede, ela lambia as patas e de repente olhou para mim. Então os pelos que tapavam seu rosto ficaram curtos. Agora eu via o focinho, via melhor o rosto, mas não via os olhos. Onde estavam os olhos? Ela não quer ir embora, ele dizia. Eu vou ficar com ela. E pegava o celular para ligar. A cachorrinha é de uma menininha. Onde ela está? Está por aí. Ela também não vai embora. A menina aparece, e some. Indago duas mulheres que passam na frente da loja a respeito da menina. Mulheres que um dia foram personagens do cenário da praça da minha infância. Sim, nós a conhecemos. Onde ela está? E então o dia estava claro, estávamos ali ao lado, eu sobre a calçada, olhando para as três. Quantos anos você tem? A garotinha responde, três. E ela se parece com a primeira cachorrinha do...
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Essa cachorrinha não vai embora, repetia meu colega de trabalho. Ela não vai embora. Eu não a vi ainda, eu dizia. O cenário não era azul, não era claro, talvez fosse escuro. Talvez fosse sempre quase noite. Podia ser aberto. Um corredor, um pequeno gramado entre edificações, uma loja sem portas. Ela não quer ir embora, ele dizia. Uma pequena sala de estar, a entrada de uma casa, eu afastava uma cortina e olhava através da janela. Eu não a vi ainda. Até que a vi. Ele dizia um nome. Eu não lembro qual. Ela não era grande e estava se afastando. Seu corpo era largo, quadrado. Os pelos pretos e encaracolados, o rabo cortado. Ela olhava para trás e o seu olhar era o de um humano. Eu estava ali, só eu. Por que eu não estava trabalhando com os outros? Ele dizia novamente que a cachorrinha não queria sair de lá. Mas eu não estava lá. Estava em outro lugar, separada. Agora eu a vi, contei, mas ela não está mais aqui. Rua, eu estava num espaço que era como o de uma loja de rua. Sem portas, paredes amarronzadas, vazio e triste. Agora eu via a cachorrinha, mas era outra. Os pelos caíam sobre o seu rostinho, que tinha uma configuração inusitada. Deitada, encostada numa parede, ela lambia as patas e de repente olhou para mim. Então os pelos que tapavam seu rosto ficaram curtos. Agora eu via o focinho, via melhor o rosto, mas não via os olhos. Onde estavam os olhos? Ela não quer ir embora, ele dizia. Eu vou ficar com ela. E pegava o celular para ligar. A cachorrinha é de uma menininha. Onde ela está? Está por aí. Ela também não vai embora. A menina aparece, e some. Indago duas mulheres que passam na frente da loja a respeito da menina. Mulheres que um dia foram personagens do cenário da praça da minha infância. Sim, nós a conhecemos. Onde ela está? E então o dia estava claro, estávamos ali ao lado, eu sobre a calçada, olhando para as três. Quantos anos você tem? A garotinha responde, três. E ela se parece com a primeira cachorrinha do sonho.
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Associo meu sonho à intensificação da sensação de desamparo causada pela pandemia e pelo isolamento. O sonho me mostra isolada de meus colegas de trabalho, a cachorrinha que lambe as patas talvez represente a minha cachorrinha que morreu no ano passado e que era um grande amparo para mim. As duas mulheres do fim do sonho talvez representem minha mãe e minha avó, duas figuras muito fortes na minha vida, sendo que minha avó também morreu no último ano. A menina talvez seja eu mesma. Mas o contexto do sonho é o desamparo. O mais absoluto desamparo. Observação: publiquei este sonho no meu blog e ele também foi publicado no Instagram do coletivo Estação Psicanálise, de forma que ele não é anônimo. Estou informando por não saber se isso se constitui num problema para vocês. O sonho foi publicado por mim em http://pensamentosinadequados.blogspot.com/2020/03/sonhos-da-quarentena.html?m=1
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