Memórias da Zona Norte
Entrevistado: Julio Luciano Domingues
Entrevistado por Fernando Bellini e Rayssa Vitória Silva
São Paulo, dia 09/08/2018
Entrevista ZN-HV02
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Qual o seu nome, o local onde você nasceu e qual bairro você mora?
R - Meu nome, Fernando, é Júlio Luciano Domingues, eu moro na Rua Macedônia 434, que era 258, mudou esses dias, há pouco tempo, então, a gente ainda com aquele número na cabeça de muitos anos. Você queria saber o que mais? Onde eu nasci? Eu nasci em São Paulo, eu nasci no Hospital Casa Verde e morei na Rua 11, aqui no Morro Grande e fui com um ano de idade para a Vila Brasilândia, que era Engenheiro Dário Machado de Campos. Era Rua 3, hoje é Engenheiro Dário Machado de Campos. É uma travessa da estrada do sabão, em frente à escola João Solimeu. Eu vi fazer aquela escola. Era o Galdino Lopes Chagas. Inclusive, antes que era Galdino Lopes Chaga, era de madeira, um barracão, depois que eles fizeram de tijolo e depois fizeram o João Solimeu. Inclusive, até estudei lá também. Estudei no Galdino até terceiro ou quarto ano, depois eu fui para o Solimeu, fiz a primeira e a segunda série. Não cheguei a completar a segunda, mas eu fiz até a segunda série.
P/1 - Júlio, como foi a sua infância?
R - Não foi ruim, foi boa, mas eu com sete anos, logo que eu comecei a estudar, então, eu saia às vezes na rua para trabalhar, meu pai pensava que eu estava fazendo hora na rua, brincando, mas eu estava procurando trabalho. Eu carregava botijão de gás. Tinha uma tapeçaria lá que eles faziam colchão de capim. Eles buscavam capim no mato, secava o capim e fazia colchão de capim, e eu ia levar na Teresinha, Carumbé, Paulistano. Todos esses lados eu conheço, hoje mudou muito, mas eu conheço. Aí eu levava esses colchões para ganhar uma moeda. Inclusive eu tenho até umas moedas lá em casa que eu guardo, eu acho tão legal. Eu não lembro mais se falar o desenho dela, porque a gente esquece, mas eu tenho um monte moedinha que eu guardava porque depois perdeu a validade, mas eu ganhava aquela moedinha para ajudar a casa. Inclusive, chegou uma época que eu juntei tantos trocadinhos lá no bolso do paletó do meu pai, porque meu pai tinha um terno muito bonito, preto, antigamente usava muito terno. E meu pai um dia pegou, eu falei para a minha mãe: “mãe, cadê aquele dinheiro meu que estava dentro do paletó”. Ela falou: “o pai pegou para comprar areia”. Eu cheguei a comprar quase um caminhão de areia. Hoje um caminhão de areia, cinco metros, vai custar 500 reais, que é 100 reais cada metro. Naquela época eu comprei, eu era moleque. Mas aí já foi na condição de acho que dez anos. Os anos vão passando, mas eu comecei a minha vida de sete anos assim, trabalhando, fazendo bico. Tudo quanto era trabalhinho, guardar uma areia para alguém, eu sempre quis trabalhar, nunca gostei muito de estudar. Inclusive, meus irmãos são todos formados. Os meus irmãos, um é professor de raio x, a minha irmã foi professora de matemática no Solimeu, onde ela estudou mesmo, meu irmão também que é o José Domingues, também foi professor de matemática, e ótimo professor. Foi bom mesmo, não é porque era meu irmão, não, que eu vou falar para você que não foi, mas foram bons professores eles. E eu sei que meus irmãos são todos formadas. A minha irmã estudou advocacia também e eu não estudei, porque eu sempre gostei de trabalhar. Mas graças a Deus, eu sempre, de moleque mesmo, trabalhando. Na firma, eu fazia pintura, conserto. Muita coisa eu aprendi sozinho, não tenho curso, mas muita coisa eu aprendi fazer. Eu sempre gostei disso, de trabalhar mesmo, nunca gostei de estudar, mas na minha casa, todos são formados, graças a deus.
P/1 - Júlio, você estudou até que série?
R - Estudei até a sexta, Fernando. Não cheguei a completar a sexta série, eu cheguei a estudar a sexta. Sabe o que acontece, Fernando? Eu arrumei uma namorada, aí ela tomou o meu tempo da escola. É verdade, eu ia namorar, eu saía, queria ficar com ela. Eu já tive várias namoradinhas assim, mas aquela eu gostava muito dela, inclusive ela se chamava Rosinai. Aí eu arrumei uma namorada, ao invés de eu ir para a escola eu saía com ela, passear, andar na rua à toa, porque nem dinheiro, falar a verdade, eu tinha uns trocos, para o ir para o cinema no fim de semana sempre tinha, mas eu não tinha dinheiro para ficar gastando, era mais para ficar andando à toa na rua, aquela namoradinha. Hoje é diferente.
P/1 - Não fez faculdade então, Júlio?
R - Eu não fiz. Na verdade, meu pai sempre apertou a gente para estudar, mas eu nunca quis, eu sempre quis trabalhar. Sempre gostei de trabalhar e ganhar um dinheirinho. Eu sempre quis estar com dinheiro, eu nunca gostei de ficar sem dinheiro, para ajudar em casa, claro, não era para mim, não. Porque eu deixava de comprar as coisas para mim para comprar para os meus irmãos. Eu queria ver todo mundo com as coisas, entendeu? Eu não, eu não me preocupava comigo.
P/1 - Júlio, você tem quantos irmão?
R - Nós somos em seis. Seis irmãos. Nós somos em duas meninas e quatro meninos.
P/1 - E você é o mais velho?
R - Não, eu tenho o José Domingues, que é o meu irmão, que inclusive, ele era professor de matemática e fez curso também na Eletropaulo, ele é eletricista também. Então, eu tenho esse meu irmão. Depois tem minha irmã que é professora de matemática e já aposentada também. Então, o meu irmão José Domingues, que é o mais velho, depois tem a minha irmã e depois sou eu. E depois vem a Irene, que é a minha irmã, que é advogada.
P/1 - E o que os seus pais faziam, Júlio?
R - Meu pai, ele veio de Minas Gerais, de lá para cá, e chegou aqui, ele não tinha onde não tinha onde morar. Aí minha tia trouxe ele de lá para cá e ele veio morar num barraquinho aí no Morro Grande, na Rua 11, onde eu nasci. Veio morar aí. E depois meu pai foi trabalhar na Santa Marina. Ele foi trabalhar na Santa Marina e lá ele trabalhava no forno de fazer garrafa. Só que lá, ele falava para mim, que ele tinha que trabalhar meia hora e descansar meia hora porque era muito quente o forno. Meu pai disse que ele ia de bicicleta, ele tinha uma bicicleta velha, ele ia, porque não tinha condições de pagar condução porque veio de Minas há pouco tempo, até melhorar, começar a conhecer a vida e a vila aqui. Conhecer a vida a gente conhece desde que vai ficando mocinho. Digo assim, conhecer a vila, o lugar, de Minas para São Paulo é meio complicado, você vem aqui, se não tiver um parente, alguém para te ajudar, não consegue. Tem que ter alguém, conhecer alguém. Até amigo, porque existe amigo. Tem amigo, esse mundo tem muito amigo, é só você olhar bem que você acha alguém que dá a mão para você, te ajuda. Então, o que aconteceu, ele foi trabalhar na Santa Marina. Diz ele, ele falava para mim, eu não tenho vergonha de falar, que ele almoçava umas 3:00 da tarde para ficar almoçado e jantado, por causa das condições. Não tinha muito dinheiro assim. Então, ele comprava toicinho, eu não esqueço até hoje, para ficar mistura, o toicinho você mistura o torresmo. Aí ele comprava. Ele esperava, todo mundo comia lá na firma, juntava todo mundo na firma para comprar as coisas para fazer, ele não ajudava, porque ele não tinha condições. Não tinha como ele ajudar. Aí ele ficava esperando dar 3:00 da tarde para ficar almoçado e jantado. Ele comia àquela hora, já reforçava. Porque se ele comesse meio-dia, 11:30, não sei que horário que era lá na época. Hoje a gente almoça 11:30, meio-dia e almoça até a hora que dá vontade. Graças a Deus que hoje é diferente. Antigamente tinha os horários, 11:30. Inclusive, a pedreira lá apitava, aí se sabia, já é hora do almoço. Então, a vida foi assim. Aí, com o tempo, meu pai trabalhando na Santa Marina, a minha madrinha, a Maria Moreira, inclusive, morou perto aqui do Morro Grande, perto da casa da Lúcia, ela criava vaca. Inclusive, ela criando vaca, ela dava leite para todo mundo lá, porque tinha gente que não podia comprar, então, ela dava, ia lá com a garrafinha ela dava. Ela ajudou muita gente aí no Morro Grande, a irmã do meu pai. Aí ela trabalhava na tecelagem do Morro Grande, era uma tecelagem que fazia aqueles panos para lençol, essas coisas. Aí ela ensinou o meu pai a ser urdidor. Urdidor é quem enrola aquelas linhas no carretel, para fazer o tecido. Aí ensinou o meu pai e ele foi trabalhar lá no Bom Retiro, com o seu Barma. Ele foi trabalhar com o seu Barma, era um judeu. Aí ele foi trabalhando, fazendo hora-extra e foi conseguindo um dinheiro. Foi ganhar três vezes mais do que ele ganhava na Santa Marina, porque ele foi urdidor. Para quem faz tecido, é uma profissão muito boa. Aí ele pegou, foi juntando, montou um bar lá na Lázaro Amâncio de Barros, que é hoje é Servidão Pública, que vai parar lá na Terezinha. Ela começa ali na Parapuã, vai até a Terezinha. Aí meu pai montou um bar lá e eu fui de moleque, sempre fazendo bico, trabalhar com ele. Trabalhando no bar não estava dando muito, mas depois ele comprou uma sorveteria. Aí ele comprou uma sorveteria, fazia uma fila para comprar sorvete. Aí foi onde a gente foi conseguindo as coisas, meu pai foi conseguindo. Ele conseguiu um sobrado onde ele estava com o bar, depois conseguiu o outro do lado, que ele vendeu, comprou em Pirituba, que hoje é da minha irmã, porque ele faleceu, hoje ficou para ela. Então, foi assim que a vida nossa foi começando. Só Deus foi abençoando, porque se Deus abençoa, mas foi cada vez mais.
P/1 - E a sua mãe fazia o quê, Júlio?
R - Tadinha da minha mãe. A minha mãe sempre foi dona de casa. Meu pai, conforme ele tinha a sorveteria, vinha muito saco de 60 quilos de açúcar. Ela pegava aqueles sacos, ela cortava ele e fazia paninho de prato e faia aquelas beirinhas no paninho de prato, crochê, e lavava bem lavadinho e vendia para juntar um dinheirinho. Ela comprava cal para pintar, para minha casa ficar bonitinha. Ela pintava direto a casa. Era uma casa muito simplesinha, porque a casinha foi de 1950. Eu vim em 57, que eu vim bebê, mas quando eu comecei a me conhecer, vamos supor que eu tivesse com dez anos, eu estava ali participando, sempre pintando a casinha, sempre arrumando. Mas ela vendia paninho de prato aqui para o Morro Grande, inclusive para a dona Terezinha, aquela que tem ali perto da Niel, a dona Terezinha, ela é viva ainda essa senhora, ela é uma japonesa amiga da minha mãe. Minha mãe vendia muito paninho de prato para ela, porque a minha mãe vendia baratinho. E ela tinha a vendinha, talvez eu acho que ela até revendia, não sei. Só sei que a minha mãe vendia para ela.
P/1 - Júlio, tem algum caso, fato que você não esquece, quando você trabalhava no bar com os seus pais?
R - Fernando, tem sim. Tem um caso que tinha um pessoal, que eu acho que você já ouviu até falar, um tal de que os caras falavam, os irmãos Peixeiros. Esses irmãos Peixeiros um dia ele foi no bar do meu pai e ele queria beber de graça. Aí meu pai falou: “não vai beber”. Aí eles falaram: “se você não deixar eu beber, eu vou fechar”. Aí eles puseram a mão na porta para fechar, meu pai tinha um revólver, meu tio era policial e meu tio comprou para ele, inclusive esse meu tio ele, agora está com problema de saúde, era advogado até aqui na Petrolina, nessa imobiliária do ponto final do Morro Grande. Você conhece, que é o Leonildo. Então, aí meu pai falou assim: “se você pôr a mão na porta eu atiro em você”. Aí eles foram embora e ficou por isso mesmo. E teve um outro problema também que a Lázaro Amâncio de Barros, que hoje é Servidão Pública. Não, hoje é Lázaro Amâncio de Barros, antigamente era Servidão Pública, que tinha as peruas ali que descia e levava o pessoal lá para cima, porque não tinha ônibus. Ali não tinha ônibus, era a perua ou ia a pé, você subia dois metros e voltava 50 para trás, porque você sabe que era um ladeirão cheio de barro. Quando chovia, nossa senhora, era maior difícil para ir para lá. Depois que veio a jardineira, depois que vieram os ônibus, que tem agora asfalto. Aí teve um cara lá que ele arrumou uma confusão com o meu pai e meu pai estava com uma enxada limpando a frente, que era tudo barro aquela rua. Aí o cara pegou e arrumou confusão com o meu pai, negócio de bebida também, esse negócio de querer beber de graça. Aí meu pai não tinha como, não deixava mesmo, às vezes até dava alguma para o cara ir embora para não arrumar confusão, mas nessa vez eu lembro, eu era pequeno, devia ter uns dez anos talvez, mais ou menos isso. Aí meu pai pegou, ficou rolando com ele no chão, tomei a enxada do meu pai, eu era pequeno, tomei a enxada com medo do meu pai matar o cara. Então, foi esse caso que aconteceu também, esse do peixeiro e esse caso do rapaz. Parece que eu estou vendo ele hoje, era um magrinho, moreninho. Aconteceu isso aí, Fernando, no bar. Aquele tempo era muito perigoso ter bar. Não sei como o meu pai arrumou isso aí, foi o que nós adquirimos, conseguimos até hoje, foi através do bar, mas era muito difícil. Hoje toca fácil, era muito perigoso.
P/2 - Quando você trabalhava, o que você fazia no bar. Você trabalhou com ele?
R - Trabalhei com o meu pai, eu ajudava o meu irmão a fazer sorvete. Esse meu irmão, o José Domingues, nós fazíamos sorvete. Nós levantávamos 4:00 da manhã, nós já dormíamos no bar mesmo. Eu e ele, nós já dormíamos no bar mesmo, nós levantávamos 4:00 da manhã para fazer sorvete porque nós pegamos uma freguesia muito grande, então, fazia fila; nós não vencíamos de fazer sorvete. Tinha o Célio, que eu não sei se você já ouviu falar, Fernando, do Célio, lá do penteado, aonde tinha a olaria, ali na Lázaro Amâncio de Barros, tinha uma olaria lá em baixo; o Célio tinha uma sorveteria lá também. Só que nós estávamos ganhando dele, porque o pessoal gostava de vir comprar conosco. A freguesia era toda dele, mas depois o pessoal começou a vir para nós. E ele se deu bem também porque vendia demais. Antigamente era sorvete naquelas caixas de isopor. Hoje você vai numa sorveteria, tem máquina, tudo. Antigamente era assim, você punha na caixa, saia vendendo nas ruas. E vinha aquele pessoal que vinha comprar também. Então, 4:00 da manhã nós tínhamos que fazer, senão nós não dávamos conta. De vez em quando eu virava a forma de sorvete e aquela água de sal ia para o sorvete, estragava tudo o sorvete.
P/1 - Como que você fazia o sorvete, Júlio?
R - Tinha um balde, a gente tinha uma medida de água, e já vinha aquele vidro com o produto já para a gente colocar. Aí a gente colocava, depois mexia, tinha uma colher de pau grandona, a gente mexia e depois colocava nas formas. De vez em quando eu fazia um sorvetinho de leite para mim que era muito gostoso, mas era mais o liquido que já vinha, o produto já vinha.
P/1 - Faz quanto tempo isso, Júlio?
R - Eu estou com 60 anos, eu tinha mais ou menos uns doze. 48 anos mais ou menos isso daí. Aí depois dali, Fernando, uns dois anos, o meu pai vendeu o bar. Ele trocou numa casa aqui no Morro Grande, perto dessa escola aqui embaixo. Como se chama essa escola aqui no Morro Grande?
P/1 - Clodomiro.
R - Do lado do Clodomiro tem uma casa, meu pai trocou pelo bar. Aí meu pai voltou para a tecelagem, voltou a trabalhar na tecelagem. Ele voltou para a tecelagem, eu fiquei trabalhando em bares, lá no Bar do Tuza, em frente ao Gaudino, fiquei trabalhando por lá. Ali eu já não chupava mais sorvete. No bar eu chupava, mas não era tanto. Lá eu tinha vontade de chupar sorvete e não tinha dinheiro porque o que eu ganhava eu não queria gastar, eu queria (inint) [00:16:25] em casa, aí eu já passei situação difícil também. Mas depois, meu pai trabalhando na Produtex, onde eu trabalhei com ele também, antes de eu ir para a Produtex, depois que eu saí do Tuza, eu fui açougueiro. Trabalhei no açougue do seu Paulinho do lado do bar do Tuza. Depois do lado do bar do Tuza, eu fui trabalhar no bar do senhor Moacir na Lázaro Amâncio de Barros também, que a Servidão Pública que é hoje a Lázaro Amâncio de Barros, onde o meu pai tinha o bar também. E esse salão era do meu pai, que o meu pai alugou para ele. Foi feito do lado do bar, um terreno para cima. Aí, eu trabalhando lá com o seu Moacir, eu trabalhava com colchão, que nem eu já falei. Eu fui trabalhar com o meu pai na Produtex, com 15 anos de idade, e lá eu aprendi tecelão. Vocês sabem o que é tecelão? Fazer tecido também. Meu pai era urdidor, eu era tecelão. O urdidor faz aqueles carreteis, que são grandão mesmo, tem 300 quilos, 200 quilos, depois leva para a máquina do Textima, que é o tear, para bater o tecido. Aí eu fui aprendendo lá. Lá eu trabalhei três anos e meio. Aí o meu chefe ficou doente, ele ficou com icterícia, um amarelão, que dá no fígado, eu não sei bem essa doença. Aí ele foi internado lá na Vila Matilde. A máquina do judeu, chamava seu José Abade e seu Alberto Abade, esse patrão meu, era judeu. Ele era muito bonzinho, só que eles gostavam de pagar muito pingadinho. Vamos dizer, era cruzeiro, “tome cinco cruzeiros”, “tome dois cruzeiros”. Quando você chegava no fim do mês você não tinha nada porque ele ficava só pagando aos pouquinhos. Um dia esse meu chefe foi internado, as máquinas começaram a para, tinham seis máquinas de tear. Eu com o meu pai começamos por para funcionar e ele chegou em mim e falou assim: “Júlio, você sabe trabalhar?”. Ele não sabia que eu sabia trabalhar. O contramestre me ensinava. O contramestre me ensinava a fazer as coisas na máquina, eu estava aprendendo. E eu ensinava o meu contramestre, que é o João Baiano, que Deus abençoa ele que eu não sei onde está, deve estar no Rio de Janeiro, se já morreu também, não sei, nunca mais vi ele. Eu pegava na mão dele para fazer o nome, porque ele chegou até a tirar carta de motorista, eu ensinei ele. Ele era meu chefe, profissional, e eu ensinei ele a fazer lição. Pegava na mão dele João Baiano. É João Piauí, mas chamava de João Baiano, aí ele falava: “onde eu moro é longe demais”. Eu falei: “eu nem sei onde fica isso”. Bom, hoje eu sei, mais ou menos, tenho noção, mas naquela época, eu estava com 15 anos, que eu entrei lá com 15 anos e saí de lá com 18 e uns quebrados. Para mim tirar minha carteira de motorista, eu ficava andando nas máquinas para lá e para cá e lendo o livrinho, quando eu olhava assim, um defeitão desse tamanho no tecido. É que eram homens muito bons os meus patrões. Lá do banco Cidade de São Paulo.
P/1 - Você saiu de tecelão e foi para onde? Trabalhar onde?
R - Eu trabalhei nessa firma lá com 15 anos de idade que eu ganhava salário mínimo vigente, que é um salário, naquela época, menor, hoje não sei como funciona isso aí. Eu comecei com 17 anos estudar o livrinho da autoescola, que meu pai fez autoescola e comprou um fusquinha, tirou a carta e comprou um fusquinha. O meu chefe estava sempre mandando eu lavar o fusquinha dele, era 69, um fusquinha vermelho, eu lembro até hoje. Mas na hora que ele saía para a rua, eu pegava o carro dele, um dia quase bati na parede, eu queria aprender. Inclusive, eu aprendi sozinho porque eu via os outros fazer e fui fazer. Mas ele não sabia que eu fazia isso. Aí com 17, eu peguei o livrinho do meu pai e comecei a estudar. Quando foi com 18 anos, eu tirei a minha habilitação. Eu trabalhei três anos e meio lá, de 15 a 18 anos e meio, e fui para a indústria e comércio Taurus, uma tecelagem também. Cheguei lá e fui trabalhar de tecelão, só que o meu chefe era japonês, seu Nakamura, que Deus abençoe ele que já faleceu, gente boa. Ele falava assim para mim: “vem me ajudar um pouquinho no depósito”. Eu largava das máquinas e ia ajudar ele no depósito e ele acabou ficando comigo no depósito, porque ele gostava de mim. Aí eu fiquei trabalhando com ele no depósito. Aí eu trabalhei cinco anos. Eu fiquei enjoado, cansado porque não tinha de comer, não tinha tempo para nada, aí eu pedi a conta. O dono da firma, que era o seu Denis, um chinês, falou assim para mim: “Júlio, você vai embora? Tem que pagar 40%”. Eu falava: “senhor Denis, se eu não mereço?”. “Não, você merece”. Aí ele me pagava e eu ia embora. Eu ficava dois meses fora fazendo bico, ele me chamava de novo, eu voltava. Eu voltei três vezes na mesma firma. Eu trabalhei 18 anos nessa firma. Três vezes que eu voltei, todas as vezes que ele me chamou, porque um dia eu estava sentado na laje da minha casa, eu já tinha uns 20 e poucos anos, eu olhei para o céu e falei para deus – eu tinha saído dessa firma pela segunda vez. Minha mãe chamando eu para comer, eram quase 5:00 da tarde, a gente comia cedo naquela época, “Júlio, vem comer”. Eu falava: “não, mãe, eu não quero”. Porque eu não queria, eu estava até com fome, mas não queria porque eu estava preocupado em arrumar alguma coisa para eu fazer, trabalhar. Aí eu falei: “não quero”. “Não, vem comer”. Aí chegou um cara lá da firma chamado João, que é João também. Esse chefe meu foi João Baiano e esse João, que era motorista lá, veio me chamar: “a dona Diana está te chamando”. Que é a chinesa, esposa do seu Denis. Eu falei: “João, o que ela quer comigo?”. “Eu acho que ela quer que você volte a trabalhar”. E eu olhando para o céu e falando para Deus assim, estava brigando com Deus: “Deus, você não está me vendo aqui, não? Preciso trabalhar”. Aí Deus preparou naquela hora, eu falando com Deus, olhando para o céu, o trabalho. Aí eu fiquei mais cinco anos, fiquei mais sete anos e depois fiquei mais seis anos. Acho que deu 18, foi cinco, sete e seis. Que eu lembro, 18 anos que eu fiquei nessa mesma firma. Depois eu pedi a conta de novo. Só que nessa firma estava com pouco serviço na última vez que eu fui lá, que tinha um salão para rebocar de mais ou menos uns 400 metros e eu não sou pedreiro, nunca fui pedreiro, nunca fui eletricista, eu nunca fiz curso de nada, mas eu sempre fui fuçador, mexedor e sempre quis fazer. Eu comecei a rebocar. Eu subia três andares para rebocar 400 metros de salão, eu reboquei tudo; tudo torto porque eu nunca fui pedreiro, mas eu consegui rebocar. Aí eu falei: “seu Denis, eu quero ir embora”. Ele falou sim: “mas você quer ir embora de novo?”. Falei: “seu Denis, eu quero ir embora”. Era no mês de fevereiro, que eu lembro, ele foi me mandar no outro mês de fevereiro, quer dizer, ficou um ano para me mandar embora. Eu falei, desculpa, até falei: “eu quero ir embora dessa merda”. Desculpa até falar. “eu quero ir embora, já cansei”. “Então, você quer ir embora mesmo?”. Aí ele me mandou embora e me pagou os 40%; saí de lá sem ele dever nada para mim. E quando eu estava trabalhando com o seu Nakamura, que era o gerente, todo mundo falava para mim: “você está ferrado, esse japonês vai te matar”. Eu tampava a minha marmita e ia ajudar ele, mas ele pegava uma notinha, dobrava e enfiava no meu bolso. “Para você, você merece”. E esses intervalos também que eu saí da firma, que eu pedi a conta, eu comprei uma perua Kombi. Eu vendia fruta na rua, eu vendia agasalho na rua. Eu vendi muita laranja, mexerica; “30 mexericas 1 cruzeiro”, eu lembro até hoje. Eu vendi fruta na rua, eu fiz carreto com perua. E mesmo trabalhando na Taurus, eu sempre fazia bico de pintura, conserto. Então, eu sempre fazia isso. Eu não gosto de ficar em casa, eu quero sempre estar trabalhando.
P/2 - Seu Júlio, porque o senhor queria sair?
R - Eu ficava cansado. Vamos supor que eu estivesse cortando tecido para alguém ou servindo alguém, porque eu comecei a trabalhar na expedição, eu começava a cortar, nem acabava uma pessoa já chamava outra. Eu não tinha tempo nem de ir ao banheiro, quando ia ao banheiro já estava apertado, passando da hora. Para comer era a mesma coisa. Eu começava a ficar irritado, aí eu pedi a conta. “Não quero mais fica aqui nessa porcaria”. Um dia até um colega meu falou para mim: “poxa, você falou que é porcaria e voltou?”. Eu falei: “eu voltei por causa da precisão e que eles me chamaram, eu não vim aqui pedir emprego”. Ele veio querer gozar de mim, eu falei para ele. Eu falei, sim, só que eu me arrependi de ter falado, porque se eu não tivesse arrependido eu não teria voltado. Então, voltei porque eu estava precisando. Primeiro que eu voltei porque estava precisando e era uma coisa que eu gostava também, só que tinha hora que eu me irritava. Tinha as senhoras lá que eu falava: “eu gosto de mulher, só que um por vez, por favor, para eu atender”. Desculpa eu falar assim, mas eu escamava as mulheres, eu ficava brigando. Não pode ficar brigando com mulher, mas eu brigava porque elas vinham todas querendo ser atendidas ao mesmo tempo. Eu falei: “uma por vez, depois que eu atender ela eu atendo você, depois é você”. Aí eu ia encaixando direitinho, aquela que chegou primeiro. Eu ficava nervoso. E mesmo assim as mulheres gostavam de mim, só queriam que eu atendesse, porque eu era rápido. E eu tinha uma direção para cortar, você precisa de ver, eu fazia certinho. Eu gostava daquela profissão, estava acostumado mesmo naquela coisa porque para mim eu tirava de letra. E para fazer pacote no fim do ano então? Quando era para fazer presente, eu embrulhava, fazia aquelas dobrinhas, todo mundo queria que eu fizesse pacote, então, era legal, eu gostava, mas eu saía porque eu ficava cansado. Eu ficava cansado, ficava nervoso. Quando eu ia comer, não dava para comer. Mas dinheiro, quando eu comecei a ganhar caixinha, as coisas começaram a melhorar cada vez mais. Teve vez que o meu patrão me deu décimo-terceiro, décimo-quarto e gratificação. O chinês, o seu Denis, que eu não sei se ele é vivo até hoje, mas ele me deu. Então, eu comecei a ganhar caixinha do japonês também, os caras todos querendo brigar comigo, ainda pagava as coisas para os caras no bar, eles faziam isso. Lá tinha confecção também do lado, nós fazíamos exportação também para os Estados Unidos. Aquelas blusas roxas, só cor forte, aquelas blusas de poliéster quente, que eu não aguento aquilo. Eu estou com essa aqui, mas eu não aguento, eu sou calorento. Eu via e falava: “nossa, como é que esses caras usam essas roupas?”. Mas só usava poliéster, que era o Jersey e Nylon, não tinha algodão, porque o algodão que é o fresquinho. Naquela época, com as caixinhas que eu ganhava, com os bicos que eu fazia, só estava melhorando. Eu pagava lanche para as meninas. As meninas às vezes sentavam lá fora, ficavam todas sentadas lá, eu falava: “você não vai almoçar? Você não vai comer?”. Porque não tinha. Às vezes eu falava: “vai lá para o Português, pode comprar fiado lá que eu pago”. E o Português vendia para mim, “para o Júlio eu vendo”. Então, era legal.
P/2 - O senhor falou que ganhava e queria comprar sempre as coisas para os seus irmãos.
R - Eu comprava em casa. Primeiro eu queria ver todo mundo lá em casa.
P/2 - O senhor lembra qual era a primeira coisa que o senhor comprou para você mesmo? Você lembra assim “eu queria muito isso” e comprou?
R - De querer muito não foi. É o que eu comprava normal: roupa, um sapato simples, que eram tipo uns tênis, uma lona azul, aqueles bem simplesinhos, logo que começou a sair. Eu, quando eu não trabalhava em firma, que eu fazia bicos, essas coisas, eu comprei duas bolsinhas. Você sabe aquelas bolsinhas de Nylon, que parece esses panos de mesa, é plástico, não tinha uma alcinha de arame que parece um canudinho enfiado no arame, sabe? Eu comprei duas, uma para mim e uma para minha irmã. Aí nós fomos para a escola, porque nós íamos com o caderno de baixo do braço, aí eu comprei uma para mim e para ela. Aquilo lá era feio, viu. Eu comprei para mim com ela. Era a única coisa que eu quis comprar assim, mas depois que eu fiquei adulto não. Eu era normal assim. Eu gostava muito de sair, de ir no cinema, passear às vezes com a minha namorada. Eu tinha o cabelo grande, as meninas só ficavam assim na sala de aula, até a professora. Eu tinha uma raiva daquilo lá; eu não gostava. As meninas eu não ligava, mas a professora ficava tirando sarro.
P/1 - Você lembra da sua primeira namorada?
R - Não é que eu tive várias namoradas, eu tive várias pretendentes. Só que eu era meio bobão. Antigamente, tinha bastante. A primeira namorada minha de verdade mesmo, que eu gostei mesmo, não vou dizer “amei” porque... sei lá. Eu não ficava sem ela, foi a Rosinai. E minha mãe fazia tudo para eu largar dela. Minha mãe não queria que eu ficasse com ela, porque ela não era menina boa de ficar em casa, ela era muito rueira, vira e mexe ela estava na rua, então, minha mãe não queria. Minha mãe acho que até fez promessa, não sei para quem lá, para eu largar dela, mas eu gostava muito dela.
P/1 - Você chegou a ir com ela no cinema?
R - Eu levava. Teve um tempo que eu namorei quando eu era bem mais novo na escola, de primário, que eu estava trabalhando de açougue, e eu lavava a minha calça daqui para baixo porque ficava suja de coisa de carne, porque eu não tinha dinheiro, na verdade, para ficar comprando roupa, porque eu comprava mais para os meus irmãos, como eu falei. Eu ajudava mais em casa, aí não me preocupava muito comigo de comprar, mas claro que eu gostava de andar... Aí eu pegava o dinheiro do cinema, sempre levava ela no cinema, aquele cinema que tinha lá na Parapuã, do Babau, não sei se é vivo até hoje, mora na rua da igreja; não sei se ainda mora lá, nunca mais vi ele. Acho que já faleceu. Então, eu gostava muito de ir ao cinema levar a minha namorada. E no cinema mesmo sempre tinha as menininhas que mexiam comigo também. Eu tive bastante namorada assim, mas namoradinha de inocente. Hoje os namorados são perigosos, eles abraçam apertado. Eu abraçava assim meio de longe, sabe? É, acontecia isso.
P/2 - E o lanterninha vinha?
R - O lanterninha estava sempre ali. Mas não acontecia nada demais, não, a gente era muito inocente naquela época. Hoje a molecada é diferente. Não estou desfazendo de ninguém, tudo tem sua época, seu tempo. No meu tempo eu não ouvia muito falar em... eu não sabia o que era dor de cabeça, eu vim saber dor de cabeça com 29 anos de idade, quando eu casei. Eu nunca tive dor de cabeça. Eu acho que dor de cabeça é muita preocupação com as coisas, correria, luta. A gente sempre fica com dor de cabeça, mas não tinha dor de cabeça. Então, naquela época a gente não tinha aqueles pensamentos de coisa errada. Tinha muita coisa errada no mundo, mas a gente não tinha. Hoje, até com a sombra a gente fica com medo.
P/1 - Júlio, você morava de aluguel, porque criança, juventude, tudo trabalhando para ajudar a família. Você morava de aluguel?
R - Não, nós saímos do Morro Grande, que nem minha tia ajudou o meu pai, que é a irmã do meu pai, já falecida, minha tinha Olivia. Ela ajudou o meu pai no barraquinho e depois meu pai comprou uma casa na Rua 11, aqui mesmo perto do Morro Grande, pertinho de onde eu morava. Na Rua 11, não, numa rua que atravessa a Rua 11, eu não sei falar agora o nome da rua, eu não lembro, que é dessa rua da feira, acho que Avenida 1. Meu pai comprou uma casa ali, só que água lá era muito ruim, não dava para beber a água, tinha problema na água, acho que é por causa das pedreiras lá em cima, então, a minha vinha lá de cima, contaminava a água. Aí ele vendeu aqui e comprou na Brasilândia. Lá ele comprou em 57, logo que eu nasci. 58, que eu fui com um ano para lá. Ele comprou lá e tinha que pagar a casa, então, era difícil. Agora, depois que eu fui ficando mocinho, eu ajudava em casa. Para fazer lá na Servidão, que é Lázaro Amâncio de Barros, para fazer aquele salão eu ajudei a comprar areia, com o dinheiro que eu guardava no paletó do meu pai. Eu engraxava sapato, carreto na feira, eu carregava botijão de gás, eu carregava colchão; minha infância foi isso daí. Agora, para eu brincar, a única coisa que eu ia era no cinema, que eu gostava. Nossa, como eu gostava de filme. Até na época daquele lá, não sei quantos anos fazem, eu lembro hoje, tinha o Roberto Carlos, Diamante Cor de Rosa, sabe? Então, eu assisti aquele filme. Eu era moleque também naquela época. Não sei a data, mas era. E eu gostava daqueles filmes lá. Filme do Mazzaropi, aqueles filmes. Depois, o cinema acabou, veio o salão do José Fortuna. Você conheceu o José Fortuna? Você conheceu o José Fortuna?
P/2 - Não lembro.
R - Vocês são bebês então, vocês são jovens. Aí veio o salão dele de baile, acabou o cinema. O meu passeio, a minha curtição de jovem, era sempre em cinema. Eu gostava de assistir aqueles filmes do Bruce Lee, então, os meus filmes eram essas coisas. Um dia, até a moça falou para mim “qual é o seu lazer?”. O meu lazer, pode até ser esquisito, mas eu gosto muito de ir em loja ficar vendo o preço das coisas, ficar olhando, nem que eu não comprava, mas eu gosto de ficar vendo, eu acho legal. Eu passava meu domingo às vezes, quando eu não ia no cinema, assim, em lojas, passeando, olhando as coisas.
P/2 - O cinema tinha nome? Esse que fechou.
R - Eu conhecia como o “Cinema do Babau”. Eu conhecia assim, mas devia ser Cinema da Brasilândia, não sei se era.
P/1 - Ficava aonde?
R - Ali onde é hoje aquela loja de calçado... como é o nome daquela loja?
P/1 - Taca-taca.
R - Taca-taca, aquela loja de calçados, para baixo da igreja um pouquinho, a igreja Santo Antônio, que era do padre João. Conheci aquele padre há muitos anos, ele já era velho naquela época. Eu ia muito na igreja também, que eu ganhava cartãozinho para ganhar presente, eu cheguei a ganhar um calçado lá, um sapato. Esse aqui é velho, feio. Era um sapato assim, sem cadarço. Eu cheguei a ganhar de tanto ganhar cartãozinho. Se eu não me engano, eram 40 vezes que ia na missa, cada vez que ia ganhava um cartãozinho. Eu cheguei a ir um mês e mais uns dez dias lá. Parece que eram 40 cartõezinhos que juntava para ganhar um presente e eu ganhei um sapato, eu lembro até hoje que era mais ou menos igual a esse.
P/1 - Mas você ia com os seus pais para a igreja?
R - Eu ia às vezes sozinho. Ia com o meu pai, com o meu irmão. Meu irmão era muito católico, inclusive ele é até hoje, o José Domingues. Meu irmão é católico até hoje. Ele e minha mãe. Eu, sabe o que acontece que eu fugi da igreja? Eu fui na igreja, aí eu fui atravessar o banco da igreja tinha um vidro, eu não vi e quebrei o vidro. Aí ela foi atrás de mim, a mulher que limpava a igreja, foi lá e o meu pai me bateu naquele dia, porque eu quebrei o vidro da igreja. Mas não foi porque eu quis, eu não vi o vidro. Eu passei direto e o vidro foi junto. Quebrou o vidro. As mulheres da igreja falaram: “não, não tem problema, não faz mal”. Só que ela foi me seguindo até achar a minha casa, aí daquele dia eu não fui mais na igreja. Depois que eu fiquei moço, eu comecei a ir na igreja Assembleia de Deus, aí depois eu não fui mais. Até estava aprendendo umas coisas lá, umas cantorias de hino da igreja, depois não fui mais. Hoje, tudo mundo na minha casa é da Assembleia de Deus e é muito bom para eles porque eu não sou nada, mas para eles é bom. É muito legal para eles, eu acho bacana. Agora, eu não sou nada, nem crente nem católico, mas nasci católico.
P/1 - Mas tem fé?
R - Tenho fé em Deus, bastante, mas não vou na igreja. Quem sabe amanhã ou depois ou um dia. Mas eu nasci católico.
P/1 - Você é casado e tem filhos Júlio?
R - Sou casado, tenho dois filhos.
P/1 - Há quanto tempo você é casado?
R - Eu casei com 29, eu estou com 61, então, faz 32 anos. Eu tenho a Juliana e o Rodrigo. O Rodrigo tem 30 e a Juliana tem 25, 26 ou 27. Eu não guardo muito, eu esqueço um pouco, mas é mais ou menos isso. E tenho duas netas também, que é a Ana Júlia e Manuela, que nós chamamos Manu e a Ana Júlia.
P/1 - Quantos anos tem as suas netas?
R - A Ana Júlia tem 3 e meio, mais ou menos, e a Manuela tem 3. É diferença pouquinha. A Manuela é do Rodrigo, o meu filho, e a Ana Júlia é da Juliana. Eu pus Juliana. Eu sou Júlio, pus na minha filha Juliana. E ela pôs na filha dela Ana Júlia. Agora, você pergunta para mim “por que Juliana?”. Porque eu conhecia uma Ana. Então, para não por Ana, eu pus Juliana. Se ela souber ela me mata, joga meus trem na rua. Ela já jogou três vezes os meus trem na rua, só que eu fui lá e peguei.
P/1 - Por quê?
R - Eu pego de volta. Vou lá e pego porque eu quero ficar com ela.
P/1 - Mas por que ela joga?
R - É brincadeira. Fernando, pode contar? Um dia ela queria que eu lavasse louça com avental de bolinha, eu não quis, aí ela me mandou para a delegacia. Chegou lá, a delegada falou assim: “o seu marido tem razão, em vez dele lavar a louça, molhar a barriga, ficar resfriado e a senhora quer dar avental de bolinha para ele”. Aí ela mandou embora para casa, fui liberado. Além de lavar a louça ainda querer lavar com avental de bolinha, florzinha, não dá certo. Mas por isso que ela joga meus trem na rua, porque eu não quero lavar a louça. Mas agora estou lavando tudinho, continuo lavando até hoje. Porque ela tem as duas netinhas para cuidar, então, de manhã eu lavo. O dia que eu não lavo eu fico pensando, depois fica muita coisa para ela.
P/1 - O que é ser avô para você?
R - Avô é muito bom, sabe por que, Fernando? Porque eu não fui um pai de ficar ali direto porque eu sempre quis trabalhar. Fui buscar na escola, brincar, parquinho, tudo isso eu já fiz com o meu filho, mas não fui aquele que eu queria ser mais hoje, como eu conheço tudo como é, que a criança precisa. Crianças, precisa estar do lado. Então, minhas netas, coisa fora do comum.
P/2 - Como é com as suas netas? O que você faz?
R - Vamos supor que eu vá embora agora, chegar em casa, “oi, vô” uns 10 metros até chegar no portão, ela já está gritando “vô, vô”. Eu chego, ela me conta história, fala que vai maquiar, tem balé: “olha, vô, balé”, aí ela começa a torcer tudo lá. E passou maquiagem no meu olho, passou até batom em mim já, então, são essas coisas assim. E ela tem uma boneca lá que vira e mexe ela fala: “vô, vou deixar com você para você dormir com ela”. “Pode deixar ela aqui que eu vou cuidar dela”. Essas coisas, brincadeira, sabe? Mas é muito legal. Às vezes eu compro alguma coisa diferente para elas, falam assim: “vô, obrigada, você comprar as coisas para nós”. Quer dizer, isso aí mata a gente, não é? É muito legal. Eu queria ser mais com os meus filhos, mas não deu tempo, por causa do trabalho. Eu queria comprar uma casa, eu queria fazer dinheiro. Que nem eu falei, sábado e domingo eu pinto casa, um me chama para uma coisa ou outra. Eu sempre ofereci para trabalhar, quando eu fico parado eu ofereço. E esse dia que eu pedi para Deus para arrumar um trabalho para mim, eu fiquei pedindo, procurando alguma coisa. Eu tive uma perua Kombi que eu vendia fruta na rua, mas não testava dando. Eu estava trocando muita moeda e fazer carreto também não estava dando. Então, eu queria voltar para a firma, trabalhar registrado, todo o mês ali. E esse gerente foi muito legal comigo, que me ajudou demais. Eu pintava casa dele, eu pintava casa do parente dele, ele me dava caixinha na hora do almoço. Eu cheguei a até chorar na época, porque os colegas meus ficavam falando: “você é puxa-saco”; “o japonês vai te matar”. Me matar que eles querem dizer é de tanto eu trabalhar, porque eu estava comendo e corria. Na hora de ir embora, todo mundo ia embora e eu ia ajudar a descarregar caminhão. Eu era fortão, hoje eu não sou mais por causa da idade, mas quando eu era mais novo, tinha cara muito mais forte que eu lá: “não aguento, eu não aguento”. Eu pegava caixa e fazia assim. 50 quilos, 60 quilos para mim era brincadeira. Hoje não, mas antigamente era. Eu era forte. Magro, mas forte.
P/1 - Júlio, chegava a passar fome a sua família?
R - Fome, não, Fernando, mas situação difícil. Antigamente tinha negócio de comprar meia bengala, meio litro de leite, emprestar um pouquinho de pó de café do vizinho numa latinha de manteiga que eu lembro até hoje. Ia na venda comprar meio litro de óleo, o cara virava aquele tambor lá. Era uma manivela que subia do tambor, não era latinha de óleo. Mas também, vamos supor, você emprestava um pouquinho de pó de café, depois devolvia. Outro pedia uma cebola. É mais ou menos assim. Mas fome não. Graças a Deus, não. Porque também meu pai tinha a irmã dele que ajudou ele. Foi assim, a família é muito unida nessa parte de ajudar, foi muito legal. Igualmente, nós somos na minha casa: um irmão ajuda o outro. Inclusive, essa perua Kombi que eu tinha, meus irmãos ajudaram eu comprar. Não foi só uma, não, duas peruas Kombi que eu tive, que eu já tive três, meu irmão me ajudou comprar. Sempre tive carrinho velho, graças a Deus. Não me esforcei para comprar o novo porque eu não quero. Eu quero fazer o telhado na minha casa, quero arrumar as coisas, penso mais assim, em arrumar as coisas em casa. Não que a minha casa seja linda, minha casa não é, está faltando um monte de coisa, mas tudo tem seu tempo e a hora. Enquanto eu estou vivo e com saúde, estou indo, estou pensando.
P/2 - Quando você tirou a carta, a primeira vez que você dirigiu, você lembra?
R - Na primeira vez que eu dirigi, que eu saí na rua, quando eu não tinha carta, ninguém falava nada. O dia que eu peguei a minha habilitação, subindo ali perto do Galdino, aquela ladeira que vem do Morro Grande subindo aqui, a ROTA me parou. Aí eu estava com a habilitação. Acho que é porque eu assustei, eu vi ela e fiz alguma coisa e ela me pegou. Eu fui para a estrada velha de Campinas, Francisco Morato, meu tio comprou uma chácara lá, que é o Zé (Chumbo) [00:42:12]. Era muito legal esse meu tio, que era casado com a irmã do meu pai, que é essa Olívia, que nos ajudou, que ele ajudou também. Aí eu fui para a chácara dele, quando eu vim com o fusquinha, que o meu pai comprou um fusquinha 75 na época, vermelho, eu vim barbeirando na estrada. Aí teve um cara que parou, acho que nem era policial, nos parou e pediu a habilitação e a gente, inexperiente, deu para ele. Ele falou: “está bem, mas ele está barbeirando”. Eu falei: “é por causa do carro”. O carro estava com jogo no volante, o fusca. Mas foi a primeira vez que eu dirigi mais ou menos foi o da ROTA e foi esse aí que eu fui para Francisco Morato, que eu quis trazer o carro.
P/1 - Júlio, há quanto tempo você mora aqui no bairro, na Brasilândia?
R - Então, na verdade eu moro há 60 anos porque é 61 anos que eu tenho, mas eu nasci aqui no Morro Grande, na Brasilândia há 60 anos. Antigamente era Rua 4, hoje é Dário Machado de Campos, aí eu fui para a Roberto Zwicker, que é uma travessa da Parapuã também, paralela à Eurídice Bueno, que sobe o ônibus na contramão, sabe ali? Então, eu morava ali. Antes, solteiro que eu fui para ali, talvez com uns 20 anos que eu fui para ali. Brasilândia, é tudo Brasilândia ali, só mudei de rua.
P/1 - Como era o bairro antigamente, Julio?
R - Antigamente, que nem eu falei para você, tinha o grupo de madeiram, que logo que eu fui me conhecendo como menino, criança, que eu fui conhecendo as coisas, tinha um barraco, era uma escola de madeira. Depois teve o Galdino. Depois eles asfaltaram a Estrada do Sabão; não tinha asfalto. Depois foi a Dário Machado de Campos, que ali era tudo barro. Essas decidas do Morro Grande, tudo barro. Então, nessa época aí, talvez 12 anos, que foi asfaltando isso daí. Tinha uma venda lá que só abria a tampa na frente, não era igual porta de aço, era uma venda que chama. Então, a gente comprava as coisas do lado de fora, na rua, sempre pedia para o cara. Depois tinha o Barbosa, que era uma venda em frente também. Mas ali era tudo sem asfalto. Tinha aquele DKV que levava a gente para o médico, que tinha aquele médico ali em Itaberaba, aquele posto de saúde. Hoje eles tratam daquela doença lá, infecciosa. A Brasilândia era desse jeito. O ônibus tinha da Itaberaba para frente. Era muito DKV que tinha de taxi e fusquinha também, sem banco, que levava a gente até o ônibus.
P/1 - Já existia a empresa Vega-Sopave ali, Julio?
R - Já, já existia.
P/1 - Você nunca pensou em trabalhar na Vega?
R - Não, nunca. Nunca passou pela minha cabeça trabalhar. Eu não gostava muito daquele barulho, eu não gosto de barulho. Inclusive, eu falo muito alto e a minha filha é fonoaudióloga, aí ela fala assim: “pai, você fala muito alto porque você não escuta”. Eu não escuto muito bem, eu não sou muito bom de audição”. As máquinas que eu trabalhava também eram muitos barulhentas, então, acho que tudo isso aí me envolveu a não gostar. A pedreira, a firma que eu trabalhei, é muito barulho, e eu sou bagunceiro, você sabe.
P/1 - Em qual colégio você estudou? Você estudou no Galdino?
R - Estudei só lá no Galdino Lopes Chagas, depois fui para o Solimeu. Inclusive, em frente ao Galdino, tinham dois salões, que é uma decida lá que hoje não tem mais porque o metrô tirou, era alugado também para a escola, que o Galdino não suportava muita criança, muito aluno, então, eles alugaram aqueles dois salõezinhos, na descidinha, e era do lado da minha casa. Só que eu não cheguei a estudar no salãozinho, eu estudava mesmo no Galdino.
P/1 - Campo do Vega, frequentou?
R - Eu ia só para assistir jogo, nunca consegui jogar bola. Eu nunca joguei bolinha, nunca empinei papagaio; brincar, eu nunca fui de. Às vezes, eu tinha até vontade, mas bola eu não conseguia, eu ia jogar bola, eu era maior bobão para jogar bola. Ficava com vergonha, era ruim demais. Que eu sou canhoto, então, não sei se influi nisso aí de jogar bola. Eu não sei, eu acho que não, não tem nada a ver.
P/1 - Foi jogar e desistiu?
R - Não, jogava. Teve gente que achava eu meio ruim, ruim de tudo mesmo, que eu acho que não me incentivou a ficar jogando. Quando você começa a jogar, a pessoa fala alguma coisa, você acaba não se interessando mais, você acaba ficando de lado. Mas vontade de empinar papagaio. Andar de carrinho de rolimã eu andei um pouco na descida da Dário Machado de Campos, mas era barro ali. E o carrinho era do meu irmão também, quando eu pegava, ele queria brigar comigo. Mas eu andava de carrinho.
P/1 - Você chegou a disputar corrida lá no Paulistano?
R - No Paulistano já assisti, assistia muito. Ali morreu gente, machucava gente ali demais. Eu cheguei a assistir, mas a disputar não, nunca. Eu tenho medo, eu tinha medo. Nem que me chamasse para sentar no carrinho de rolimã. Descer aquelas ladeiras lá, muita curva, ali era muito perigoso, eu tinha medo. Então, eu nunca, mas eu vi muita gente se arrebentar ali. Quando eu começava a ver muita coisa, que eu nunca fui de ver, vamos dizer, desgraça, eu nunca gostei de ver essas coisas. Quando eu vejo um negócio, televisão, começo a ver um negócio que me entristece, um animalzinho, querer judiar, eu desligo ou eu mudo de canal, eu não gosto de ver injustiça. Coisa errada eu não gosto de ver. Então, eu via aquelas batidas, aquelas coisas perigosas, eu começava a não ir mais, aí acabava não indo mais, escolhia outras coisas.
P/1 - Júlio, você falou de animal, por que você gosta tanto de cachorro?
R - Fernando, eu não gostava de cachorro. Não era que eu não gostava, eu não queria pegar cachorro para cuidar até a minha filha completar 15 anos, mas um dia ela falou: “pai, pega, eu cuido”. “Filha, eu não queria pegar para não cuidar porque eu pego amor, depois morre, fica doente”. Eu sofro para caramba, por isso que eu não queria, mas eu sempre gostei de animal, só que eu não queria pegar para a minha casa. Inclusive, eu peguei uma que ela saiu dois, isso há um ano já faz. Ela saiu dois minutos para fora assim, eu desconfio de uma mulher lá perto da minha casa que levou embora, só que a casa dela é meio chácara, não dá para ir lá ver. Mas eu acho que ela levou, porque ela não gosta muito de mim. Não é que ninguém não gosta, 99% gosta de mim. O problema é que ela não gosta de mim porque eu não gosto dela, do jeito dela, o que eu já soube da vida dela, com o filho dela que já aprontou. Então, não gosto, eu não quero me misturar com ela, então, não cumprimento ela. Então, eu acho que ela ficou com bronca de mim e pegou a minha cachorrinha. Eu queria ela de volta, mas infelizmente. Agora, eu estou com outra cachorrinha, que a minha mulher pegou. Trouxe para ficar um mês na minha casa, já faz uns 5 anos que está lá. A mulher mandou ela ficar um pouquinho lá. “Deixa a cachorrinha aí um pouquinho, depois eu venho buscar”, uma irmã da igreja dela. Só que agora eu não devolvo mais, a cachorrinha é minha, acabou, e ela me adora. Eu gosto de cachorro assim, não é que eu não gostava de animal, eu gosto, é que não pode cuidar, não pode ter para judiar do bichinho. Eles gostam tanto da gente. Eu falo para você, eu posso até ser ignorante, mas eu acho que o animalzinho vale mais que muita gente. Eu acho. A minha mulher fala: “poxa vida, você fica comparando animal com gente?”. Eu falo: “eu comparo”. Eu não brigo com animal, eu não judio de animal, cuido de animal. Eu pego as coisas, mistura, coisa que sobra, eu ponho no saquinho, carrego na perua, levo para tratar dos cachorrinhos na rua. Na minha casa, se tem um arroz, uma coisa que sobra, eu falo: “não joga fora, não, deixa aí para a gente dar para os cachorrinhos na rua”. Tem tanto cachorrinho passando fome. Eu levo daqui em Itaquaquecetuba, que é o terreno do meu irmão, eu tenho um terreno lá também. Eu levo daqui lá para tratar dos cachorros lá. Inclusive, eu fiz uma madeira assim e deixei o cachorrinho ficando lá; eu tenho uma dó daquela cachorrinha. Meu irmão: “você vai cuidar do cachorro?”. Eu falei: “eu vou. Essa cachorrinha vai dar sorte para nós, você vai ver. Se Deus quiser logo vai alugar tua casa, vai alugar minha casa”. Eu tenho uma casa lá. “As coisas vão melhorar, essa cachorrinha vai ajudar nós, você vai ver”. Fim de semana que eu vou para lá, que é difícil fim de semana que eu não vou para lá, vira e mexe eu vou e levo comidinha para ela. Quando não tenho, se eu comprar uma coxinha, eu dou uma mordida e dou o resto para ela. Eu gosto de animal. Animal para mim é importante porque animal nunca me maltratou, nunca faz nada demais para mim. Claro que cachorro já me mordeu, sim, mas mordeu porque ele não sabe, se ele soubesse quem eu sou ele não mordia porque eu trato dele, eu cuido dele. É que ele não sabe, coitado, não é gente. Porque a gente faz coisa errada, mas sabe, o animal não sabe.
P/1 - Júlio, o que você lembra mais aqui do bairro de antigamente, que marcou época para você? Que antigamente tinha os desfiles do Rosas de Ouro.
R - O Rosas de Ouro ele nasceu em frente ao Vile. Ele nasceu ali, depois veio para o Freguesia do Ó, então, isso me marcou porque eu gostava de ver as brincadeiras do carnaval. Aí saiu o carnaval da Rosas de Ouro na Parapuã, eu fiquei encostado na grade de uma casa de um japonês, onde é o Vile lá, aí o cachorro mordeu as minhas costas, furou a minha blusa, aí o japonês falou assim para mim: “quem mandou você encostar aí?”. Eu falei para ele: “o cachorro me mordeu”. Falei para amarrar ele. Aí ele falou: “quem mandou você encostar aí?”. É onde é o Vile agora. Vi a Rosas de Ouro nascer lá, então, isso daí me lembra muito.
P/1 - O antigo Malocão. Você nunca desfilou na Rosas?
R - Nunca. Eu já frequentei de ficar assistindo, de ficar por ali, mas de sair na escola, essas coisas, eu tenho vergonha, eu nunca gostei.
P/1 - Como era a escola de samba, Júlio? A Rosas de Ouro.
R - Era mais simples, as roupas simples. Era fantasia, mas era simples. Tinha aquela seringa, mas era mais coisa de rua. Eles eram aqueles batuquinhos, aquelas coisas assim, tudo como agora, mais simples, bem simplesinhos. Tudo coisa simplesinha, o que eu lembro é isso.
P/2 - Tinha seringa?
R - Tinha seringa. Um monte de enfeitinho, aquelas coisas todas, mas era tudo simplesinho, coisinha baratinha. Hoje tem coisa que, Deus me livre, muito legal. Tinha gente que desfilava sem fantasia, sem nada, porque não tinha condições também de desfilar. Porque esse pessoal que entrava assim, tipo eu, de blusa preta encostado na grade, levando uma mordida de cachorro, mas foi legal, não foi nada.
P/1 - Júlio, tem algo que você sente saudade do bairro? Tinha e não tem? Na Brasilândia tinha aquilo e faz falta hoje, que você lembra para nós?
R - Eu tenho, Fernando, um pouquinho de saudade da igreja Santo Antônio, que ali todo fim de semana ficava um monte de gente. Era o povo da Terezinha, Carumbé, Guarani, Paulistano, eles vinham tudo para ali. Aquela rua ficava cheia, então, a gente ficava por ali. De vez em quando tinha uns parquinhos por ali também, ali na Rodolfo Bardella, perto da igreja ali, onde é o negócio de material de construção, elétrico e hidráulica, ali também tinha um parquinho. Quando não era para baixo, era no terreno de cima. A gente ficava por ali, então, isso era muito legal, era gostoso. Inclusive, um dia eu peguei uma camisa do meu irmão, estampada, nossa senhora, era o mais bonito do parque. Era muito legal. Antigamente se usava aquelas camisas muito estampadas. Eu tinha uma camisa de Volta ao Mundo. Eu acabava de lavar, colocava no varal, ela já secava e eu vestia de novo, porque só tinha uma.
P/2 - Como é que era?
P/1 - A gente lavava ela, colocava no varal, dois minutos secava, porque aquele tecido de Volta ao Mundo ele seca muito rápido, é tipo um Nylon. Secava muito rápido, então, era a camisa que não era muito, mas era o que eu tinha para sair. Então, eu sempre me arrumava mais ou menos e ia para ali. Então, eu tenho saudades, sim, era muito legal ali, naquela igreja do padre João.
P/1 - Rolava o que lá, Júlio?
R - Colegas, namoro, bate-papo. Dinheiro para comprar pipoca, que nem eu te falava, sempre tinha um troquinho, mas não era muito. Eu ajudava em casa, então, não sobrava para ficar gastando. Tinha uns troquinhos que eu pagava quando eu tinha a minha namorada. Eu até andava no ônibus da Tusa. Eu andava só para andar lá para a Lapa e voltar. Tinha uma época que tinha cavalaria na Lapa. Quando eu trabalhava na Produtex tinha cavalaria. Para entrar no ônibus, porque o povo invadia. Acho que eram poucos ônibus, o povo invadia. Se deixasse, o cavalo passava por cima da gente. O cavalo não, o povo passava por cima do cavalo, porque o povo não respeitava para pegar. Eu vinha pendurado na porta da Santa Marina para estudar. Quando eu vinha da Produtex, até a sexta série, eu vinha de lá para estudar. Eu vinha pendurado na porta, não tinha ônibus. Tudo isso daí lembra. E isso eu não gostava.
P/1 - Era Tusa?
R - Era Tusa Transporte Urbano e tinha a Gato Preto também.
P/2 - Era Gatusa?
R - Não, tinha a Gatusa, mas era Tusa. Tusa Transporte Urbano, Gatusa e tinha a Gato Preto também, que tem até hoje. Agora tem a Santa Brígida, mas naquela época era mais conhecida a Tusa.
P/1 - Você é da época da CMTC?
R - Eu sou da época da CMTC, sim. Tinha CMTC também, aqueles ônibus azuis. Hoje ainda tem na cidade, aqueles que andam naquele cabo, ônibus elétrico. Sou daquela época. Só que elétrico era só para o lado do Bom Retiro para lá, no centro, aqueles lados lá, aqui era o normal, à gasolina, era óleo diesel. Acho que era óleo diesel, não lembro. Sei que eram aqueles monoblocos. Monoblocos, não, aqueles que era com aquela alavanca, era bem antigão, tipo uma jardineira, bem feião.
P/1 - Você chegou a pular pela porta de trás do ônibus?
R - Pular não, mas eu cheguei a chocar ônibus. Eu já cheguei a chocar ônibus, não sei porque.
P/2 - Como era?
R - Perdurava no ônibus e andava um pouco com ele. Vamos supor, de um ponto até o outro pendurado no ônibus. Depois descia, voltava para trás de novo, mas isso pouco tempo, porque eu não tinha tempo para essas coisas. É que você via os outros fazendo, dava vontade e você ia, mas eu nunca tive tempo para isso porque a minha intenção sempre foi essa.
P/1 - Você tinha algum apelido, Júlio?
R - Eu já tive vários apelidos. Eu já tive o apelido de “Cabelinho”, sabe por quê? O meu cabelo se eu cortar muito ele arrepia e os caras colocavam o apelido de “Cabelinho”. E o meu apelido mesmo, na verdade era “Mineiro”. “ô, Mineiro”. Não era Júlio, era “Mineiro”, porque meu pai é mineiro, então, eles chamavam: “ô, mineiro”. Então, o meu nome sempre, na Brasilândia, era “Mineiro”. Eu já tive apelido de “Zenon” também, porque eu tinha bigode. Inclusive, eu acho que tenho foto de bigode e o cabelo igual o do Zenon, sabe? Zenon tem o cabelo tampando a orelha. Então, eu tinha o apelido de “Zenon”, o Zenon do Corinthians. E “Cabelinho” porque o meu cabelo cortou muito, ele arrepia. Já me colocaram o apelido de Zé Bettio, porque dizem que eu falo muito. Já me colocaram o apelido de Zé Bettio também.
P/1 - E quando seu cabelo era longo, como que era o seu apelido?
R - Quando o meu cabelo era longo eu não tinha apelido, eu só sei que as professoras ficavam passando a mão no meu cabelo, principalmente a professora de artes. Ela ia lá na minha cadeira e ficava fazendo assim e eu me sentia mal com aquilo, timidez, vergonha. Eu ficava com vergonha. As meninas gostavam de passar a mão no meu cabelo. As meninas eu não ligava muito porque eram do meu tamanho. A molecada não liga, eles se entrosam ali, mas adulto você ficava meio com vergonha. Mas eu era bonito, não era feio, não. Inclusive, eu vou trazer uma foto para você ver, você vai falar: “nossa, o cara era lindo mesmo”. Hoje, a turma pensa que eu faço academia por causa da beleza.
P/1 - Você parecia o Ronnie Von?
R - O Ronnie Von não, eu era mais para o Odair José. Você conheceu o cantor Odair José? Lá, onde eu trabalhava, na Taurus, que eu trabalhei lá 18 anos, o meu nome lá não era Júlio, era Odair José. As meninas todas puseram apelido. Lá era exportação para o Estados Unidos, então, é muita menina lá, muita gente. Puseram apelido porque eu usava franjinha e tinha o cabelo igual ele, tampando a orelha. Elas me chamavam de Odair José. Até o gerente, que era o seu Nakamura, “Odair, Odair”. Ninguém me chamava por Júlio. Até o dono da firma, o seu Denis, falava “tudo bem, Odair?”. Um dia eu estava telefonando, que a minha irmã tinha ligado para mim porque ela estava com problema, aí o gerente chegou para mim e falou assim: “Denis não gosta muito de ficar no telefone”. Era o seu Nakamura, um amor de pessoa, só porque aconteceu isso, ele ficou com medo eu acho do homem, alguma coisa aconteceu. Eu falei: “seu Denis, o seu Nakamura está achando ruim aqui comigo que eu estou telefonando, mas foi a minha irmã que ligou, não estou gastando telefone”. Ele falou assim: “eu não estava ligando para você, eu gosto de você, você 100%”. O dono da firma falou para mim, o seu Denis, que Deus abençoe ele que eu não sei por onde ele anda.
P/1 - O que você acha do bairro em que você mora? Aqui em Morro Grande, lá em Brasilândia.
R - Eu falo para você, não tenho nada de reclamar porque a minha vida foi tudo aqui. Eu comecei aqui, estou aqui até hoje, não pretendo mudar. Se me der uma casa no Morumbi eu não quero, eu quero ficar onde eu estou. Vamos supor, eu posso até arrumar uma casa melhor, mas na vila. Mas falar assim: “você quer ir para o Morumbi? Você quer ir para os Estados Unidos? Você quer ir para lugar?”. Não quero, eu quero ficar aqui mesmo, eu gosto daqui. Apesar que já vi muita violência, muita coisa errada, inclusive está tendo ainda. Deu uma melhorada, agora parece que está começando de nono. Mas eu gosto daqui. Acho que eu não me sinto bem se eu for para outro lugar.
P/1 - Tem alguma coisa que aconteceu que está na sua mente até hoje, você não esquece, do bairro?
R - Quando eu era moleque acontecia muita coisa. Naquela época daquela turma do Cabo Verde. Vocês já ouviram falar, Cabo Verde?
P/2 - O que era?
R - Ele era matador, ele mandava matar. Tipo o bandido da luz vermelha, naquela época, eu ouvia falar dele. Inclusive, ele morreu na cadeia, não é? Não tenho certeza, mas eu acho que ele morou na rua da feira de terça-feira, perto da Parapuã, lá perto da Okada, onde tinha o supermercado Okada, que foi um dos primeiros mercados que teve lá. O Okada, ele dominava Brasilândia inteira, Carumbé, Damasceno. Depois foi indo que até acabou. Começou a aparecer o Fred, aí foram aparecendo os outros mercados. Mas eu lembro dele, ele morava ali na rua da feira o Cabo Verde. E tinha o bandido da luz vermelha que eles falavam. Então, isso aí marcou da época de moleque, que eu lembro desses caras aí.
P/2 - Era daqui o bandido da luz vermelha?
R - Daqui da vila. Que eu me lembre, não tenho muita certeza, era da rua da feira, da Parapuã. Agora, o Cabo Verde, o Peixeiro, tudo gente perigosa, que a gente tinha medo. Eu ficava com medo quando falava nesses caras.
P/1 - Júlio, você falou do Fred, você chegou a frequentar a quermesse do Fred?
R - A quermesse eu não cheguei, eu cheguei a trabalhar no Fred, nesses intervalos que eu saía da firma. Eu trabalhei com a minha perua lá, fazendo carreto. Às vezes, 5:00 da manhã eu já estava andando nas ruas para fazer carreto, porque não vencia. A dona da casa que comprou, sabia que 5:00 já estava carregando; 6:00, 7:00 já estava no portão entregando com a minha perua. Depois não começou a dar muito dinheiro, comecei a dar prejuízo, estava quebrando muito a perua. O dinheiro que eu ganhava estava empatando muito no conserto. Aí eu trabalhei com o caminhão deles, que era um 608. Um mercedinho 608 azul.
P/2 - O que eles vendiam?
R - Era supermercado. Abastecia as casas, então, todo esse pessoal, Guarani, Carumbé, andava na terra, ali não tinha asfalto, não tinha nada. Você andava ali, era triste para conduzir um carro naquelas ruas. Tinha vezes que você não saía de lá. Teve caminhão do Fred que chegou a voltar na ladeira, arrebentar casa.
P/1 - Você chegou a tirar foto no Pita para tirar documento?
R - No Pita? Nossa, o Pita foi um dos primeiros. Primeiro era o Murata, você lembra do Murata? Depois foi o Pita. Cheguei. O Pita está até doente. Mas tirei foto com o Pita, sim.
P/1 - Quem não tirou na Brasilândia, não é?
P/2 - Conta para a gente o que é o Pita.
R - O Pita quando eu conheci ele era solteiro. Ele era ajudante, eu não tenho certeza, eu acho que ele trabalhou no Murata de fotógrafo, depois ele montou a Foto Guarani na esquina da Eurídice Bueno, entre a Roberto Zwicker e a Eurídice Bueno, uma travessinha da Parapuã, ele morou ali, ele montou ali para ele. Quem fala que não gosta do Pita, eu vou falar para você, está mentindo. Depois do Murata, era o Pita o fotógrafo.
P/2 - Você foi alguma vez tirar foto lá?
R - Sim. Acho que todo mundo só sabia que existia Pita. Antes do Murata, que eu acho que ele trabalhou no Murata, não tenho certeza. Não sei se o Fernando sabe disso. Aí depois ele montou esse Foto Guarani. Todo mundo: “onde você vai tirar foto?”; “no Pita”. Então, era só o Pita mesmo na Brasilândia há muitos anos.
P/2 - Você tirou alguma foto lá?
R - Tirei várias vezes. Todas as fotos que eu tinha que tirar era lá mesmo, todas. Agora, de uns tempos para cá, que o Pita ficou doente, nem sei como ele está agora, acho que só está em casa, então, não sei nem como está a fotografia, eu não sei se o irmão dele está tocando. O irmão dele estava tocando, agora não sei se está.
P/1 - Você chegou a comprar móveis no Moisés?
R - Cheguei a comprar móveis no Moisés. Não só no Moisés, quanto no seu Horácio. Você lembra da padaria lá em cima, aquela padaria 24 horas? Ali tinha seu Horácio, ele ganhou no Talão da Fortuna. Eu não tenho certeza. Ele ganhou no Talão da Fortuna. Inclusive, o Horácio, não vai passar isso para ele, ele casou com a empregada dele. Era uma casa de imóveis ali, em frente ao Gaudino. Em frente ao Gaudino, tinha uma casa de móveis, ali onde é a padaria. Inclusive, aquela padaria não era ali, a padaria era na Eurídice Bueno, no finalzinho, que vai subir a Domingos Veiga. Era ali na esquina, era do Horácio. Ele montou a padaria ali e depois passou para frente. Esse seu Horácio, ele tinha uma casa de móveis. De vez em quando, quando ia levar um móvel, eu pegava uma carona com ele. Ele tinha uma caminhonete Ford F100 verde, eu lembro até hoje. E essas ruas que vinha entregar aqui no Morro Grande era (bambuzal) [01:06:21] dos lados, então, passava caminhonetinha ali, a gente gostava. De vez em quando, quando dava, porque não era toda hora que estavam me chamando para carregar areia ou outra coisa, sempre tinha uma folguinha. Quando eu não trabalhava, eu pegava uma carona com ele. Eu comprei no Moisés e comprei mais no seu Horácio.
P/1 - Consertou carro no Batata?
R - Consertei carro no Batata, sim. Um dia eu cheguei no Batata e falei: “Batata, eu tenho um Chevette e eu queria fazer o motor de arranque, o que será que pode ser?”. Ele falou para mim: “pode ser uma resistência”. Aí eu falei: “quanto que fica?”. Ele falou: “160”. Aí eu comprei 40 reais de peças, fui lá no japonês ali no Iracema. Eu comprei três peças e falei para ele: “qual que pode ser?”. Ele falou para mim: “você tem que procurar um mecânico. Eu não sei te falar, você tem que procurar um mecânico”. Eu queria que ele me desse uma dica. Aí eu peguei o esmalte da minha mulher e risquei as pecinhas que eu tirei. Se você perguntar das três qual que é, eu não sei te falar, só sei que o carro funcionou e eu gastei 40 reais, entendeu? Eu ia gastar 160 no Batata, que é auto elétrico.
P/1 - Você falou tanto da Estrada do Sabão, como você vê a Estrada do Sabão hoje parecendo um cemitério por causa do progresso que diz que vai chegar à Brasilândia? E ter tirado a casa, o seu pai também foi desapropriado, e está lá parecendo um cemitério. Como você vê isso hoje?
R - Fernando, quando eu passo lá eu até choro, sabe por quê? A minha vida foi ali e quando saía a molecada da escola, iam tudo para a rua, não passava carro, não. Um dia até passou um carro lá, largando o pau, porque a polícia estava atrás, se fosse dois minutos tinha matado todo mundo porque lotava a rua, não dava nem para você se mexer. Uma coisa que eu não gostava, que tinha a sorveteria do bar do Tusa, que aqueles que não podia comprar sorvete catava da mão do outro que estava chupando. Eu tinha vontade de comprar sorvete, mas não fazia isso. Eu não aprendi a fazer isso. Eu chupei muito sorvete também, porque tinha a sorveteria, mas não era aquela coisa. Parece que quando você não tem mais, você tem vontade de chupar. Às vezes vem um prato aqui, um bolo especial, que nem está aquele bolo ali, “não quero”, mas daqui a pouco dá vontade de comer, ou amanhã ou depois. Lotava esse pessoal e a mulher gritava o preço do sorvete, não lembro bem. Era a dona Cotinha, até trabalhei com ela, já falecida, que era irmã da mãe do Célio, que tinha a sorveteria lá perto do meu pai. Então, eu lembro dali que era muito movimentado, muito lotado. Era tipo um centro ali, de movimentação de pessoal, de comprar as coisas porque tinha aquela Cohab, (não é Cohab, é Copi) [01:08:59] que chama, levanta a madeira e comprava as coisas “me dá um quilo de arroz, um feijão”, ele ia pegar lá dentro. Não é como você chegar no supermercado, igual agora, enche o carrinho, passa no caixa e vai embora. Era uma venda.
P/2 - O que aconteceu com a rua? Conta essa história para a gente.
P/1 - Como é passar hoje na Estrada do Sabão e ver ela como um cemitério, Júlio?
R - Como eu conheci a Estrada do Sabão, hoje para mim ela é deserta, é morta, não tem nada na Estrada do Sabão. Só aquele trânsito que está ruim, não está legal, porque quando fecha o farol lá em cima, para tudo lá embaixo, quer dizer, ali tem coisa errada. O que precisa fazer eu não sei, eu não entendo, eu sei que ali não está certo e antigamente o que aconteceu na Estrada do Sabão, aquela vez que eu falei para você, dois minutos antes, porque lotava ali, veio um carro, acho que era até um Impala. Naquela época era Aero Willys, Opala, Impala. Eu lembro até hoje que era um Impala e a polícia correndo atrás. Eu que estava na calçada, até pulei. Eu lembro, eu era moleque, até pulei.
P/2 - Mas o que aconteceu com a rua que ficou agora assim? O que aconteceu?
R - Eu acho que é por causa do metrô. Desapropriou inclusive a casa do meu pai também e ficou parado. Eles mexeram lá e ficou parado, agora está juntando um monte de lixo lá.
P/2 - O que vocês sentiram, como foi para vocês quando desapropriou a casa?
R - Que nem eu te falei, para mim foi triste. Para mim foi muito ruim porque a minha vida foi lá, tudo lá. Eu mudei só de rua, mas ali sempre foi a minha vida. Até hoje eu passo lá... Tem coisas boas e coisas difíceis que a gente passou naquela casinha lá, então, eu estou vendo ela. Onde eu trabalhei, que eu trabalhei naquela rua, ali foi a minha vida; meu pedacinho ali. Então, eu tenho tristeza, eu não queria que tivesse acabado, mas a vida da gente é assim, tudo se acaba. A gente lembra, fica triste. Eu não gosto muito de passar lá, mas eu passo. Eu lembro que eu ficava sentado na escada do açougue e ficava olhando para a casa da minha namorada, que era a Rosinai. Ficava olhando ela sair porque eu tinha medo do irmão dela e medo do pai também. Eu tenho medo deles brigarem comigo. Hoje, talvez, eu sendo moleque, eu iria lá falar com o pai dela, com a coragem que eu tenho, o que eu já passei na vida. Eu ia lá falar com o pai dela, com a mãe dela, falava lá. A única coisa que eu dava conselho para ela, eu falava: “não fica andando na rua, não”. Porque às vezes ela saía e não voltava. “Vai ajudar a sua mãe, fica cuidando lá”, porque eu gostava dela, eu queria o bem dela, o melhor dela. Só que ela não deu valor em mim. Eu podia ter casado com ela, sei lá, porque a vida começa, quem sabe. Eu gostava dela mesmo, eu não sei se é porque é a primeira namorada, porque as primeiras são difíceis. Mas já esqueci. Hoje, se ela vier pintada de ouro, eu não quero mais ela, mas eu gostei muito dela. Inclusive, a escadinha do açougue está lá ainda. Aí eu sentei um dia desses lá, fiquei sentando lá só pensando. Deus me livre, minha mulher joga os meus trem na rua de novo, terceira vez já. Se ela souber que eu sentei na escadinha do açougue, fiquei lembrando da casa da Rosinai, ela pagava aluguel, ela morava lá.
P/2 - Como você conheceu a sua esposa? Como você começou a namorar?
R - A minha esposa, você sabe como eu conheci ela? Ela é minha concunhada, ela era irmã do marido da minha irmã, que já faleceu. Aí ela veio no casamento, eu conheci ela. Tinha duas, ela e mais uma vizinha dela. A mulher brincou comigo: “olha, todas são bonitas, você pode escolher”. Aí deu certo de eu ir passear lá na casa dela, comecei a passear lá, me interessar de passear sempre lá e acabei conversando com ela. Deu certo de a gente começar a namorar e, enfim, até casamos.
P/2 - E você foi falar com o pai dela?
R - Falei com o pai dela. O dia que eu falei com o pai dela, o pai dela tomava uns goró, então, eu fiquei com maior vergonha porque você fala e você fica meio dependendo. Aí eu comecei a conversar com ele, deu tudo certo, comecei a namorar ela.
P/1 - Você falou o que para ele?
R - Eu falei que eu gostava muito dela, que eu estava interessado em ficar com ela para casar, que não era um passatempo, não era uma coisa de ficar namorando, porque eu já não estava mais com a idade de ficar namorando com ninguém. O meu negócio era certo. Eu já estava beirando 27, por aí, que eu namorei com ela no máximo dois anos, que eu me casei com 29. Então, eu falei umas coisas para ele, mas hoje eu tenho certeza que ele me adora, me ama, porque ele sabe quem eu sou, ele me conheceu, ele viu quem eu sou. Eu cuido bem da filha dele. Não vou dizer que sou 100%, eu não sou mesmo. Eu não sou 100%, não, poderia fazer melhor, mas eu acho que a pessoa tem que fazer também. Não estou falando mal de ninguém, nem da minha esposa, nem nada, mas se a gente não se sente assim, a gente às vezes nem liga. Mas graças a Deus a gente está aí. 30 anos e uns quebrados, não é brincadeira. E a gente não fica sem também, porque a gente já acostumou com a pessoa, a gente quer ficar com a pessoa. Ver a pessoa doente, a gente fica também, qualquer um da família fica. Até um colega fica, imagina quem está ali toda a hora.
P/1 - Você trabalha no bairro, Júlio?
R - Eu trabalho praticamente no bairro porque aqui Morro Grande e Brasilândia é um bairro que é paralelo.
P/1 - É bom trabalhar no bairro ou não?
R - Para mim é bom, é ótimo. Você não sabe o quanto eu sofri pegando ônibus, tudo. É que chegou um tempo também que eu estava trabalhando que eu comecei a ter carro. Eu tinha um fusquinha que tinha uma antena, todo mundo pagava para ele porque era muito bonito. Eu tinha um fusquinha verde com uma antena gradona assim, virada, com a rodinha larga, volantinho pequenininho, era muito da hora. Dava carona para todo mundo, nunca regulei carona, não, sempre fui amigo.
P/1 - Como se chama a empresa que você trabalha e onde fica?
R - Hoje eu trabalho na Promoções Humanas Eugênio de Mazenod, na Rua Afonso de Carvalho, número 16, Morro Grande. Vila Progresso e Morro Grande são paralelos; Vila Progresso está aqui, Morro Grande está aqui. Acho que é Vila Progresso que está registrado. Então, trabalho aqui.
P/1 - Quanto tempo?
R - Faz tempo. Eu comecei a trabalhar na Promoções Humanas quando ela era aquela da Vila Regina e aqui, era um nome só, Promoções Humanas. Lá eu trabalhava três dias e trabalhava dois aqui, então, eu trabalhava lá e aqui. Eu fazia manutenção lá e manutenção aqui. Aí ficava aquela briga: “hoje você fica três dias aqui”, queria que eu ficasse três dias lá, eles ficavam disputando comigo. Mas é muito legal eu acho. A chefe falava assim para as meninas: “eu fico sem comer, mas o seu Júlio não, não deixo o seu Júlio sem comer”. Isso eu fico feliz de falar e sempre lembrar. Fico feliz, porque o chefe preocupava comigo e é legal a pessoa se preocupar com a gente, é tão bacana. Eu me sinto feliz, eu gosto.
P/1 - Como você chegou?
R - Eu acho que foi 95, mais ou menos. Eu saí em 94 da firma. 94 eu trabalhei numa transportadora Transcentral, trabalhei, eu acho, uns seis meses, que foi a época que teve a Juliana, o meu segundo filho, tem o Rodrigo e depois a Juliana e um perdeu. Não chegou a gerar, deu um problema nas trompas e teve que tirar. Eu trabalhei com o meu irmão numa construção dele na rua Ziba, lá na travessa da Parapuã, quase chegando lá em Itaberaba, numa construção. Ele fez uma casa lá bem grandona. Não sei se você já passou lá e viu, já viu? Eu ajudei ele a fazer uma casa, inclusive eu fiz até a garagem dele. Os outros olham, “mas você que fez?”. Eu não sou pedreiro e eu que fiz. Eu com o meu pai, meu pai me ajudou também. Já mais de idade, meio devagarzinho, mas ele ia me ensinando, porque o meu pai era muito inteligente. Deus tenha ele. Saindo de lá, o tio Irineu, que era irmão do meu pai, me chamou, falou para mim: “tem uma casa para desmanchar o estuque lá”. É difícil de desmanchar, aqueles que tem aqueles ferros tipo uma tela, você dá uma marreta lá e cai tudo, aquele pó. Eu passei mal com aquilo lá. Desmanchei o forro da casa dele todinho. Três caçambas eu caçambei sozinho com a marreta. Depois de lá, o Sérgio me chamou, falou: “Júlio, vai lá na ONG na Vila Regina, tem umas válvulas para consertar”. Eu falei: “Sérgio, eu não entendo de válvula, eu não sei consertar válvula”. Aí ele falou assim: “vai lá, você consegue sim”. Aí eu desmontei a válvula do banheiro do meu pai para eu ver como era dentro. Inclusive eu não precisava. Hoje eu sei que se você pegar o manual dá para ver de que jeito que vai as molinhas e tudo. Eu desmontei e falei para o meu pai: “pai, deixa eu desmontar”. Ele ficou meio assim e eu desmontei e montei. Fui lá, tinha umas cinco ou seis válvulas todas quebradas, eu pus tudo para funcionar. Diz que tinha válvula lá de cinco ou seis anos que não funcionava, que era do banheirinho lá de cima. E lá em cima não usava porque era bebê lá em cima, embaixo que eram os menininhos, que eu não sei quantos anos, eu acho que era menos de sete, mas todos pequenos. De sete anos vem para cá. Eu trabalhava dois dias lá, três dias lá, dois dias aqui. Eles gostaram de mim e eu fui ficando. Até tinha o seu Pedro lá, ele pensou que eu ia pegar o lugar dele. O seu Pedro veio colocar um parafuso ali, ele colocava desse tamanho, ficava aquela metade para fora. Ele viu que eu comecei a consertar direitinho, ele pensou que eu fosse pegar o lugar dele, mas eu não ia porque ele era vigia no portão. O meu negócio era manutenção, só que ele não entendia. Ele achava que eu ia pegar o lugar dele. Depois ele ficou meu amigo. Tinha uma horta, que ele fazia uma horta lá, começou a me dar couve, me dar umas coisas e ficou meu amigo. Mas foi onde eu comecei a conhecer a Promoções foi nessa época que eu fui trabalhar para o Sérgio, desmanchei o forro lá, tinha muito cupim, aí ele mandou eu vim ver a válvula e eu vim. Um dia, ele mandou eu vir aqui. Não sei se pode falar, mas eu vou falar. Ele mandou eu vir aqui pintar. E eu sempre fui curioso de tudo, de fazer as coisas. Eu pinto, nunca fiz curso, mas eu faço umas pinturas. Inclusive, muita coisa pintada aqui, que vocês veem, fui eu que pintei. Muitas, não é, Fernando? Eu vim pintar. Cheguei aqui, tinha duas latas de tinta daquela ruim mesmo. A Sabá falou assim para mim, que era a diretora. Ela não era diretora naquela época, era o Sérgio. “Só tem essa, não tem outra. Só tem essa, tem que pintar com essa”. Aí eu falei: “mas não dá para pintar, estava geleia”. A tinta estragou, ficou dura, aí eu falei: “não dá para pintar”. E fui embora. Eu vim da Brasilândia aqui com a minha escada, o trabalho para trazer a pé com as ferramentas. Aí ela falou assim para mim: “então, já que você não vai pintar, arruma, pelo menos, a válvula”. Eu falei: “não vou arrumar nada”. Fiquei nervoso, aí fui embora. No outro dia o Sérgio Antenor, que é do Pampa, ligou para mim e falou: “Julinho, vem pintar”, que eles me chamam de Julinho porque a minha minha tia, a mãe do Sérgio, me chamava de Julinho. Aí falava: “Julinho, vem pintar que vai trocar a tinta”. Eu vim, comecei a pintar, fiquei conhecendo ela, ela ficou me conhecendo. Eu fiz a calçada da frente, que era tudo quebrada, era muito lixão aí. Eu fiz a calçada aí, ela foi me conhecendo, eu fui ficando. Depois eu saí por dois anos porque a direção aqui mudou. Depois, o diretor daqui foi embora, o Sérgio assumiu de novo, falou: “Julinho, você me ajuda lá a tocar lá de novo porque a situação não está muito boa, está muito difícil ir lá, está até para fechar porque está muito difícil”. Inclusive, quando você veio, você viu a situação que era difícil. Aí eu voltei e estou aqui até hoje. Juntando tudo, já dá uns 20.
P/1 - O que mais marcou para você aqui, Júlio, no Tijolinho? Em matéria de funcionário. Quer falar da Maria José?
R - Eu falo da Maria José, brincando, tudo. A Maria José foi uma boa amiga da gente. Eu gostava muito dela, ela era muito legal. Uma coisa aquela baianinha tinha, que eu sempre acho legal, uma coisa que você tem também: não deixa ninguém falando sozinho. Tipo assim, você está comendo, o outro também come com você. Igual, eu não deixo ninguém falando sozinho. Se eu tiver um dinheiro ali, nós comemos junto. Um dia eu trabalhei na transportadora Transcentral, eu trabalhei lá eu acho que só seis meses, eu não lembro bem. Eu não tinha serviço para mim, eu era motorista da Kombi, fazia entrega, pegava coleta. Eu saí com ele. Muito legal esse chefe meu, pouco tempo que eu conheci ele, mas ótima pessoa. Eu falei: “seu Marciano, deixa eu ir com ele porque eu não quero ficar aqui à toa. Deixa eu ir de ajudante com ele”. Aí eu fui num caminhão junto com ele. Ele chegou num bar lá no Brás. Não, não foi Brás, é São Bernardo no Campo, no calçadão, acho que tem até hoje lá. Não dava para entrar caminhão. Aí eu levava cinco caixas até ali, voltava, ficava olhando as caixas para ninguém roubar, depois levava mais cinco e ele ficou em cima do caminhão. Depois ele chegou num bar e falou para o cara: “me dá um guaraná”. O cara deu um guaraná para ele e eu pedi água, porque eu não tinha dinheiro. Ele não me deu um gole de guaraná, um copinho de guaraná, aí eu bebi água. Aí eu andei dois metros, eu vomitei tudo aquela água. A portuguesa estava regulando água para mim. Era uma portuguesa. Não tenho nada contra português porque eu já trabalhei num açougue com português e ele era muito legal, a Dona Vanda e o seu Chico. Esse português que vendia fiado para mim lá na Santa Marina. Se eu pegar aquele cara, eu abraço ele, para mim era um pai. É um senhor já, eu era novo e ele já era velho. Ele não ofereceu guaraná para mim. Eu queria, claro; se ele oferecesse eu bebia um gole. A portuguesa ainda falou para mim, tipo assim, “toma guaraná”. “Por que ele vai tomar e você não toma?”. Eu não tinha dinheiro, como é que eu ia tomar? Eu tinha casado, era a época da Juliana. A Juliana nasceu, a minha mulher tinha que compra roupinha, um monte de coisa. E eu não ganhava muito, não, eu ganhava um salário baixo e ganhava um ticket que era VR, eu lembro até hoje. Tinha que inteirar para comer, às vezes tinha que procurar bar para comer porque daquele não dava. Tinha outro motorista que saía comigo, porque eu saía de ajudante. Eu era motorista registrado, na carteira, só que eu saía às vezes com os caras para não ficar lá à toa, porque eu esperava o meu horário de coleta, cada um tinha um setor, o meu setor era Barra Funda. Coriolano, Lapa, Barra Funda, Alameda Glete, Duque de Caxias. E eu só andava assim, eu falava: “rapaz, se eu não fizer isso, eu não consigo”. Inclusive, eu até perdi uma coleta. Uma vez eu perdi uma coleta e o meu chefe viu outro. Não era meu chefe, era um cara que arrumava mercadoria para transportadora, veio gritando comigo, eu falei: “se você gritar, você não vai saber”. Até hoje ele não sabe, porque ele gritou comigo. “Você perdeu a coleta”. Eu perdi a coleta porque todo lugar que eu ia era 6:00, como é que eu vou fazer dez lugares 6:00? 6:00 dá uma vez só. Dá no outro dia, dá depois, mas na hora ali não dava 6:00 toda hora. Aí eu queimei a coleta e ele deu para outra transportadora, aí o homem não veio perguntar para mim porque brigou comigo, aí eu também não respondi para ele. E esse negócio do guaraná eu fiquei muito triste porque eu fui ajudar o cara de graça, não tinha obrigação, podia ficar dormindo na transportadora, porque não era meu setor e não era a minha hora de trabalhar. Porque eu tinha as horas de (ponhar) [01:24:59], não adiantava eu ir qualquer hora na firma porque o cara tinha que separar os pedidos, deixar ali, a hora que eu chegava ele dava a nota e eu... Então, eu fiquei triste por causa disso aí, essas coisas que já aconteceram comigo na minha vida. E aconteceu um negócio também, que eu fui entregar uma caixinha na Lapa, o guarda não queria deixar, já era depois das 6:00 também, quase que eu perco essa coleta. Eu falei para o cara: “não posso ir embora sem entregar essa mercadoria”. Era uma caixinha pequenininha, uma peça de trator, e ela ia para o Rio de Janeiro. Eu fiquei insistindo com o guarda aí o guarda chamou um cara lá de cima, que eu não sei quem que é, deveria ser chefe, gerente, alguma coisa lá. Eu entrei na sala dele, subi lá em cima. “O homem está mandando você subir lá em cima”. Aí eu subi lá, ele falou assim para mim: “você continua sendo sempre insistente na vida, porque sem essa caixa aqui, está parando a máquina lá”. Era uma pecinha de trator, eu não sei, lá no Rio de Janeiro. Estava parando a máquina. E eu entrei lá, era um tapete vermelho que eu fiquei até com vergonha. E pensei que ele me chamou para dar uma caixinha, mas não era, era só para me agradecer. Eu pensei na caixinha, eu ganhava pouquinho, se desse uma caixinha era bom. Ele falou para mim: “continua sendo sempre assim na vida”. Me cumprimentou, eu agradeci o guarda e fui embora. Mas eu insisti, porque eu falei: “eu tenho que entregar”. A caixinha desse tamanho. Foi isso que aconteceu.
P/1 - E a Maria José?
R - A Maria José foi uma boa amiga. A Maria José é uma pessoa, que eu não sei se ela veio do interior que nem a minha família do interior, situação difícil que eu passei ela também passava, que ela não deixava, se ela tivesse um pedaço de bolo, se ela tivesse alguma coisa, se você sentasse para comer, você comia ali. Sempre se preocupou com as pessoas comer, então, eu gostava da Maria José. Sempre admirei isso nela porque eu sempre fui assim também. Quando eu trabalhava na Taurus, tinha um Neguinho lá, que nós chamávamos ele de Neguinho porque era neguinho mesmo e o apelido dele era Neguinho, e saquinho também porque ele enchia o saco. Mas eu me dava tanto com ele que a minha mãe cortava meio pão, meia bengala a minha mãe cortava e dava metade para ele. Ele tinha a comida dele, a minha mãe colocava muito e eu não aguentava comer, eu colocava na marmita dele, comia também. Então, eu sempre fui assim, igual a Maria José. Sempre me preocupei em ver as pessoas comer também, não gosto de ver ninguém comer alguma coisa e o outro ficar olhando, eu nunca gostei disso, eu sempre fui assim. E ela era igual a mim, por isso que eu sempre lembro dela e falo dela.
P/1 - Primeira perua, você e o seu Jaime?
R - Aquela perua, eu ia passando na avenida, eu vi a perua, parece que era 1 mil e 600 reais, ou 1 mil e 600 cruzeiros, não lembro. A moeda mudou com o Fernando Henrique, então, não lembro. Eu vi a perua lá e falei para o Sérgio: “Sérgio, compra para nós”. O Sérgio foi lá olhar e trouxe. A perua estava num bagaço, quase não conseguia dirigir ela de tão ruim que estava. Mas aos pouquinhos ela foi arrumando, ela foi ficando boa. Depois que ficou boa, passou para o seu Wilson, aí o Sérgio falou: “nossa, se eu soubesse que o seu Wilson ia jogar a perua fora eu tinha te dado”. Porque eu estava trabalhando sem registro, sem nada. Eu estava trabalhando como amigo. Claro que estava ganhando, mas era assim. Eles não podiam me pagar, porque a situação é difícil da ONG também. Era mais as coisas que eu vendia, papelão e ferro velho, e doação que pegava no supermercado. Chegava no supermercado Paulo Ferreira, que Deus abençoe eles, eles davam tudo que tinha na banca, limpinho, fresquinho; enchia os caixotes. Depois eu pegava a perua, saía na rua e dava para os outros também. Sobrava, eu dava, eu tinha autorização para isso. Eu dava para os outros, parava perto da igreja, levava para fulano de tal. Hoje não, hoje é menos coisas que eles dão, porque a condição vai mudando. Aquela perua foi assim, comprou ela num bagaço danado, fui arrumando ela e pegando doação, pegando as coisas. Às vezes davam uma geladeira, uma coisa, a gente vendia, pegava um dinheirinho. Eu já cheguei a vender papelão lá na outra ONG para comprar um Limpol. Porque antigamente era difícil a verba da prefeitura, hoje está um pouco melhor, mas era mais difícil. Eles não dão dinheiro para tudo, não. Inclusive, hoje também não dá, hoje é mais para pagar os funcionários e comer, reforma assim é complicado, é uma vez ou outra. Acho que dá no fim do ano.
P/1 - Quais são as coisas mais importantes para você hoje, na sua vida?
R - Eu agradeço a Deus pela minha saúde, porque eu quero saúde para mim e para todos. O mais importante para mim é saúde, eu quero saúde. Eu tendo saúde o resto... Eu ainda vou conseguir mais ainda do que, graças a Deus, Deus já me deu até agora eu quero mais ainda... Quero, sim, porque o que eu luto é para isso. Eu quero fazer um telhado na minha casa, quero arrumar lá, quero deixar tudo arrumadinho. Não penso em carro novo. Um dia eu posso até ter um carro, mas tenho velho, graças a Deus, está bom. Nem ando, fica lá porque eu canso de ficar andando com a perua, fico andando de carro. Então, para mim o que é importante é ver minhas netas bem. Eu me preocupo em ajudar o máximo que eu puder enquanto Deus me der vida e saúde para mais tarde elas serem alguma coisa, uma escola. Aprender para ficar sofrendo assim, isso que eu penso. Para mim, isso é importante. Quero ver elas bem. Se eu pudesse guardar um dinheiro para falar “esse aqui mais tarde ela vai fazer a faculdade dela, ela vai ter as coisas dela”, eu fazia. Mas ainda vou fazer, eu estou vivo. Eu quero saúde, primeiro. Se você me der 500 contos e eu estiver doente, eu não quero, Fernando, fica para você. O que eu quero com 500 contos? Para quê? E se eu for fazer um favor para você também, se eu falar que não é nada e você querer me dar 500 reais, você vai ficar com os seus 500 reais porque eu falei que não é nada. Eu sou um cara assim, se eu falei. Você vê o meu gênio como é? Eu gosto de todo mundo, mas se eu ficar de mal com alguém é difícil de eu voltar a falar com a pessoa. Eu sou assim. O homem ali falou para mim: “dá para você levar esses dois saquinhos de entulho para mim?”. Eu falei: “dá”. Aí ele veio querer me falar “quanto que é?”, eu falei: “nada. Se você me der 500 reais, eu não quero. Eu vou levar para você”. Se eu vou para fazer uma coisa para a pessoa e falar que não vou cobrar, eu não vou cobrar. Agora, se eu não tiver ganhando, vamos supor pintar a casa, eu faço até um preço melhor para você, dependendo da condição, porque eu vou tirar trabalho meu, dia. Alguma coisa assim, eu faço até um preço especial. Mas se eu também chegar e falar para você “vou pintar e não é nada”, não é nada. Que, inclusive, eu pintei a casa de um colega meu, ele ia casar, eu falei para ele “fica de presente para você”. Eu pintei em um dia, dentro e fora, numa mão de tinta só, foi só uma mão, e eles ajudando, fazendo churrasco e bebendo, e eu não gosto disso. Quando está trabalhando não fica com essas graças, é para ajudar. Eu fiz isso. Quando eu falo não vou cobrar, não vou cobrar.
P/1 - Realizou todos os seus sonhos, Júlio?
R - Estão todos realizados, está tudo bem. O que eu quero, Fernando, com a idade que eu estou, daqui para frente, é saúde para todos; da minha casa, para todo mundo. E claro que eu ainda quero realizar, eu ainda tenho uma coisa que eu quero realizar: eu quero arrumar um terreno para o meu filho para ele montar a oficina dele, que ele mexe com mecânica. Eu quero montar uma oficina para ele e fazer uma casa para ele e uma para a Juliana, separados da minha casa, porque a minha casa é embaixo. Eu não queria que ficasse ali embaixo, eu queria que ficasse num lugar melhor, mais arejado, e é meio desajeitado. Ainda quero, em nome de Jesus. Não estou zoiando a herança do meu pai, mas o que o meu pai deixou foi muita luta minha e dos meus irmãos também. Então, a gente vai vender e se der para dar entrada e ele pagar, que nem ele paga aluguel 1 mil e 200 reais, se ele puder pagar ele paga o terreno. Eu dou uma entrada e ele paga. Isso eu ainda quero fazer. Se for possível eu vou fazer, sim. Porque eu tenho certeza que ainda vai acontecer.
P/1 - Júlio, como foi contar a sua história? Como foi participar dessa entrevista hoje?
R - É muito legal, foi muito bom, só que tem muita coisa que a já passou na vida e esquece, não lembra. Às vezes conta até errado, às vezes até mente. Pode ser que eu menti. Pode ser, não sei. Eu falo muito rápido, eu sou apavorado. É o meu jeito, eu sempre fui assim, então, pode ser. Mas foi muito bom, foi muito legal. É legal a gente lembrar um pouco. A gente fica um pouco triste porque você fica lembrando das coisas que passou, mas, graças a Deus, Deus deu sempre o de comer para a gente e saúde, está bom. Eu acho que está bom, foi muito bom. E foi legal participar com vocês, foi muito bom mesmo. Rayssa? Rayssa.
P/1 - Obrigado.
P/2 - Foi ótimo.
R - Quer perguntar alguma coisa, filha? Não? Eu falei demais, não deu nem tempo de você falar. Desculpa. É que o que você queria perguntar o Fernando perguntou e acabou. Mas obrigado também, eu agradeço de coração. Foi muito legal. Eu sou um cara envergonhado, eu não estou acostumado com esses negócios todos, mas eu fiz mais o possível pela amizade, pela consideração que a gente tem por vocês, pelas promoções. Que nem a menina perguntou, “por que você está aqui até hoje?”. Eu estou aqui até hoje porque eles gostam de mim e eu gosto deles, porque se eu não gostasse eu estava no olho da rua. É a verdade, se eu estou aqui é porque eles gostam de mim e eu gosto deles, por isso que eu estou ficando. E já estou a há 20 anos.
P/1 - Para finalizar, canta aquela música.
R - Qual? A musiquinha que eu fiz para os molequinhos? E eu vou conseguir? “Devagar, devagarinho; cada um no seu cantinho; sentado no quadradinho; sem brigar com o amiguinho. Pegando um caderninho; para fazer um desenhinho; para mostrar para o tio Fernando; qual que foi o mais bonitinho; ganhar um presentinho. Ha-ha, ho-ho”. Quer outra também? Essa outra eu fiz porque a situação estava meio difícil aqui, graças a Deus agora está tudo bem, tenho que só agradecer a todo mundo que corre atrás, a diretoria. Tinha uma musiquinha, porque eles falaram para mim “quem quiser procurar um serviço, pode ir porque a situação não está muito boa, não vai dar para ficar com todo mundo”. Claro, os principais, sim. Conserto faz se dá, para pintar parede, faz se dá, se não dá mantém ela limpinha, cuida, mas se não der para pintar, não pinta. Então, como eu sou da manutenção, eu ia sair, aí eu fiz a musiquinha para as crianças, mas não sei se eu vou lembrar muito bem, mas é mais ou menos assim. “Colega, coleguinha, gosto muito de vocês; tio Júlio tá indo embora, não me pergunte porque; desculpa alguma coisa que eu não pude fazer; um beijo para todos, um dia a gente se vê. Ha-ha, ho-ho”. Aí um molequinho perguntou para mim assim: “tio, porque ha-ha, ho-ho?”. Eu falei: “porque eu não achei ainda um outro final”. Por isso que é “ha-ha, ho-ho”. Eu falei: “qualquer dia eu vou inventar outro”. Tem vezes que eu acordo, fico tentando inventar, mas se eu não escrever eu me perco.
P/1 - Do circo, como você falava?
R - Eu trabalhei num circo também. Eu trabalhava lá e o cara falava: “parque de diversões Cátia, é o divertimento da garotada; de um lado leva você e do outro leva aquele alguém que você quer tanto bem. Balança que vai, balança que vem”. Era mais ou menos assim. O cara pôs Cátia porque ele tinha duas esposas, que eu acho, eu era moleque, mas eu acho. E eu virava aquela roda gigante numa cordinha puxando, não tinha motor. Aí ele pôs Cátia, depois era parque de diversões Catanduva. “Parque de diversões Catanduva, é o divertimento da garotada...”, era mais ou menos igual. E era Cátia e Catanduva. Eu falava mais: “parque de diversões Catanduva, é o divertimento da garotada”. Era mais ou menos isso. E eu puxava com a chupeta na boca, para brincar com as crianças. Eu sempre fui criança e animal, só que eu nunca tive animal por causa de cuidar. Porque um dia morreu um gato meu, um dia morreu um passarinho e eu chorei para caramba. Então, você vê, eu não quero ter animal por causa disso. Quando essa minha cachorrinha morrer, eu não vou querer mais, porque que eu sinto muito. Eu gosto demais de animal.
P/2 - Quer dizer que você puxava a... conta isso aí.
R - Eu puxava a cordinha do dang, aquelas balanças. É dang que chama? Eu puxava com a cordinha. Era só criança, então, eu aguentava puxar. E com a chupeta na boca para brincar com as crianças. Eu lembro. Eu punha a chupeta e ficava brincando.
P/1 - Júlio, tem alguma pergunta que nós não fizemos que você queria responder?
R - Não, foi tudo tranquilo. O que eu quero, é que nem eu falei para vocês, que Deus dê saúde para mim, para mim poder fazer o máximo que eu puder para a minha família. Se eu puder fazer alguma coisa para alguém, você me conhece, você sabe que se eu puder eu faço mesmo, não deixo ninguém falando e nunca deixei. Não gosto de ninguém passando precisão, falta das coisas, situação difícil, isso eu não gosto mesmo. Isso eu não gosto mesmo, você sabe, eu não estou inventando e nem contando história, porque eu nunca participei de nada disso, estou falando que eu sou e você sabe. Você conhece eu há pouco tempo, não é, Fernando?
P/1 - Bastante tempo.
R - Mas eu acho que já deu para ver quem eu sou, não é? Então, eu sou mais ou menos assim.
P/2 - Muito bom. Parabéns pela tua história, foi ótimo.
R - Desculpa alguma coisa.
P/2 - Não, foi ótimo.
R - A gente fala demais.
P/1 - Foi ótimo.
P/2 - Obrigada.
R - De nada. Mais ou menos isso.
Recolher