Projeto Pessoas
Depoimento de Viviane Ferreira da Cruz
Entrevistada por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 16/04/2018
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV585_Viviane Ferreira da Cruz
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
VIVIANE_T01
P/1 – Eu vou fazer uma ficha, vamos lá. Viviane…
R – Ferreira da Cruz.
P/1 – Acho que CPF e telefone depois eu pego. Data de nascimento.
R – Aí já começa as histórias.
P/1 – Não, só me diz a data. Agora é só uma fichinha.
R – Mas precisa ser a que tá no documento?
P/1 – A que tá no documento.
R – 15 de março de 1985.
P/1 – Nossa! Cidade que você nasceu?
R – Lauro de Freitas.
P/1 – Bahia?
R – Bahia.
P/1 – Onde que você mora agora?
R – Brasília.
P/1 – Me diz aí o endereço. Rua…
R – SQN 410 Bloco N apto 210 – Asa Norte, não me pergunte o CEP.
P/1 – Isso é Brasília, né?
R – Brasília.
P/1 – Religião?
R – Candomblé.
P/1 – Raça?
R – Preta segundo o IBGE.
P/1 – Formação? Você fez universidade, mestrado, é isso?
R – Eu tô no mestrado em Comunicação, graduação em Direito e Cinema Digital.
P/1 – Profissão, como que você…
R – Cineasta. Advogada nas horas vagas.
P/1 – Então, isso aqui é só uma ficha de cadastro. Então, eu vou começar pedindo pra gente fazer um pequeno exercício de chegada, eu vou pedir pra você ficar sentada assim, bem confortável, fechar o olho e sente assim… agora vamos respirar. A medida que você for respirando, vai chegando no seu dia pra trás, hoje, almoço, de manhã, acordou, inspira e vai soprando esse dia, de noite, antes de dormir. E o dia de ontem, as conversas, os exercícios, lembra de algum momento, inspira.
[Silêncio]
P/1 – E anteontem.
[Silêncio]
P/1 – Inspira delicadamente. E expira.
[Silêncio]
P/1 – Inspira. Agora sente esse silêncio daqui.
[Silêncio]
P/1 – Os pequenos ruídos do silêncio.
[Silêncio]
P/1 – Os sons surdos.
[Silêncio]
P/1 – E quando você inspirar de novo, tenta pensar na primeira imagem que você lembra da sua vida.
[Silêncio]
P/1 – E inspira.
[Silêncio]
P/1 – E tenta lembrar, era um lugar, um instante, uma sensação, quais eram os barulhos que tinham nesse momento? Nesse instante dessa imagem? Os cheiros, tinha cheiros? Inspira e deixa esse cheiro, se tiver esse cheiro, entrar em você, passear pelo seu corpo, descer pela garganta e expira.
[Silêncio]
P/1 – Tinha calor, frio, vento, molhado, úmido? Que lugar era esse? Tem algum ruído específico que te leva pra essa imagem? Alguma sensação?
[Silêncio]
P/1 – E passeia por ela, passeia, se for uma sensação, passeia pela sensação, mas não esquece de inspirar com calma e expirar.
[Silêncio]
P/1 – Deixa o cheiro do lugar entrar, a sensação, a cor, a luz, o ruído…
[Silêncio]
P/1 – Na próxima vez que você inspirar, volta pra você hoje, olha você nesse momento que você lembrou e volta para esse lugar e de lá, olha pra você hoje.
[Silêncio]
P/1 – E deixa todo esse lugar invadir o seu sentimento, o seu corpo, o ar que entra e volta para lá. E o lugar passeia a cada respiração por você, passa por seu ombro, passa pelo seu corpo, pela sua barriga, pelo seu pélvis, desce pela perna e volta e esse tempo entra totalmente em você. E quando você tiver bem lá. Vem voltando, voltando e respirando. Imagina você nessa cadeira que você tá, a roupa que você tá, o tempo entre esse momento e hoje e volta pra essa cadeira e presta atenção em todos os ruídos que tem aqui.
[Silêncio]
P/1 – E respira.
[Silêncio]
P/1 – E quando você se sentir bem, pode abrir o olho.
[Silêncio]
P/1 – Então, já que a gente tá aqui, eu vou começar pedindo pra você dizer, de novo, o nome, a data e o lugar que você nasceu. E agora você pode explicar melhor a data.
R – Sou Viviane Ferreira, eu nasci na cidade de Lauro de Freitas no dia 15 de março de 1985, na real, no dia 16 de março de 1985. Minha mãe deu entrada na maternidade no dia 15 e demorou um tempo num processo de trabalho de parto e quando a filha saiu da maternidade, enfim, minha vó foi me registrar, saiu com a data do dia 15, como se eu tivesse nascido no dia 15, mas eu nasci no raiar do sol do dia 16 e aí, a minha vó materna nunca deixou eu comemorar o aniversário no dia 15 como no documento, e aí, eu comemoro o aniversário sempre no dia 16 que foi onde eu nasci e todas às vezes que eu assino uma ficha eu tenho que lembrar que eu tenho que colocar dia 15, senão, eu não existo.
P/1 – Eu queria que a gente começasse desse lugar que você imaginou ou essa sensação, essa primeira coisa que você imaginou agora, que lugar era esse? Que imagem te veio?
R – Era exatamente a frente da casa de minha mãe, que era a casa de minha vó na época e eu tava muito pequena, com cinco anos de idade, no colo de minha mãe e talvez seja um dos dias da infância que eu lembre sempre e me lembre exatamente as imagens daquele dia embora eu não saiba exatamente tudo que se processou naquele dia, mas eu lembro daquela noite, a gente estava em casa, meu tio que era motorista de ônibus chegou, bateu na porta, chamou a minha mãe e falou alguma coisa muito baixinho, que eu não ouvia, mas eu ouvia o sussurro dele falar e aí, aminha mãe me pegou no colo e ficou andando no terreiro, na frente da casa e nessa época lá, a gente não tinha energia elétrica e aí, eu lembro que a minha mãe começou a andar comigo, estava tudo muito escuro e aí, não tinha mais nenhum candeeiro aceso e o meu tio veio de um outro ponto, tipo do bairro caminhando, trazendo o candeeiro pra iluminar onde a gente estava e ela andava comigo de um lado para o outro, não falava nada, tipo, só me apertava e respirava e aí, depois o meu tio chegou, entregou esse candeeiro pra ela, ela continuou andando e eu fiquei olhando um pé de mangueira que tinha no final e ficava brincando só com o olhar, alternando o olhar entre a luz do candeeiro e o pé da mangueira. Muito recente que eu descobri que naquele dia foi… e aquele momento foi quando a minha mãe recebeu a noticia que o meu pai tinha falecido. Mas então, é uma memória que eu sempre tive…
P/1 – Você lembra desse dia?
R – É uma noite que sempre veio, mas antes, eu lembrava muito do lugar de como era bonito ver mesmo, a luz da mangueira em contra a luz do candeeiro e o vai e vem e como eu tava brincando com aquilo, e alternando a imagem com o som da respiração de minha mãe e aí, muito recente, mas eu acho que é coisa de talvez um ano, um ano e pouco que eu soube que aquela noite exatamente foi a noite que a gente recebeu a noticia que o meu pai tinha morrido e eu não tinha noção exatamente do que era aquele momento, mas é um momento que eu lembro sempre.
P/1 – Você quando fez esse passeio, você lembra assim, você lembra dessa sensação de olhar a luz. Você lembra de mais alguma coisa na sua… desse lembrar de como você estava… o quê que te vem de sensação desse momento?
R – Eu me lembro que eu tava tentando entender o que eles estavam conversando quando eu não estava presente e aí, tipo me perdi no sussurro das duas falas e achava engraçado, tipo, meu tio sussurrar mais grave e o meu tio mais agudo e fiquei nessa viagem e depois, lembro muito dessa coisa do ficar alternando o amarelo da manga tipo na noite e a luz meio avermelhada do candeeiro e depois, brincar como se tivesse fazendo clipe de música, com a respiração da minha mãe entre uma imagem e outra, mas era divertido, não era algo pesado, assim. Eu sempre atribui, inclusive, essa imagem a… eu devia estar com dificuldade de dormir, minha mãe saiu comigo para andar de um lado para o outro pra ver se eu ficava cansada.
P/1 – Então me conta o nome da sua mãe.
R – Minha mãe é Valdineia Ferreira da Cruz, mas todo mundo conhece ela como Dadá, não faço ideia de onde vem o apelido. Lá em casa os apelidos são muito estranhos e a origem exata eu não sei, mas sei que ela recebeu esse apelido acompanhando a minha vó quando a minha vó trabalhava na feira, vendendo folha e a minha mãe trabalhava junto com ela e aí, chamavam ela de Dadá, desde muito pequena.
P/1 – Então vamos lá, vamos voltar um pouco. O quê que você conhece, assim, dessa história da sua família. Quem era a sua vó, você teve avô… então, da família da sua mãe.
R – Tá. Eu sei que o meu avô, o pai da minha vó, chegou no Coqueiro Grande, que é onde a nossa família mora até hoje, meio que foi o primeiro a chegar lá, na estrada velha do aeroporto, tinha uma sucessão de quilombos, então era um espaço fechado, tinha muitos quilombos e em um dado momento, o Estado decidiu construir… abrir uma estrada de barro para ter acesso à orla de Salvador e ajudar no processo de combate à invasão holandesa, um rolê meio assim. E a família do meu avô por parte de mãe integrava um desses quilombos e aí, os quilombos precisaram se distribuir, ir mais para o interior da cidade e a estrada acabou passando no centro de um desses quilombos. Então, um quilombo foi mais para a região que hoje em Salvador é o Bairro de Cajazeiras e um outro subiu mais em direção à orla e se aglutinou em torno de onde hoje é o Abaeté, Itapuã e a estrada cortou o quilombo ali no meio. Nesse processo, dois caras ficaram de olheiros na entrada do quilombo e aí um desses caras era o meu tataravô, o pai do pai da minha vó, isso, era o meu tataravô que ficou de um lado e aí, um outro cara, tipo de uma outra família ficou do outro e aí, a missão deles era ficar vigiando de maneira camuflada como estava acontecendo a construção dessa estrada e avisando ao quilombo se precisaria tipo adentrar mais, se tinha alguma ameaça, se as tropas iriam, de alguma maneira, ameaçar a permanência do quilombo ali. E aí, chega um momento que esses quilombos, eles entram cada vez mais, aí eu sei que esse meu tataravô permaneceu ali, onde hoje é o Coqueiro Grande e aí, decidiu permanecer… não sei se decidiu ou se decidiram por ele, mas o fato é que ele ficou ali e constituiu família ali e dali, tipo, o meu bisavô permaneceu, a minha vó nasceu ali e eu sei que o meu bisavô decidiu… ele já tava mais velho, aí decidiu dividir a terra com o pessoal da família Pereira, tipo, a família Pereira eram trecheiros que estavam subindo, ele chamou o mais velho, perguntou se topava tomar conta de uma parte da terra enquanto ele tomava conta da outra parte e é isso. Aí, a minha vó acaba nascendo filha desse meu avô… eu não sei muito sobre a minha bisavó, então, não sei, eu sei que ela morreu muito cedo, mas também não sei exatamente o porque, mas sei que que da união deles nasce a minha vó que era Crispiniana, tia Clementina, que era irmã dela, tio Crispim e o outro tio que eu não sei o nome, tio-avô que eu não sei o nome, tio André, na verdade. E aí, acontece uma treta dessas familiares que dois irmãos homens queriam vender a terra e as duas irmãs não queriam vender, aí eles acabam vendendo depois que o meu bisavô morre, né, eles acabam vendendo à revelia delas, porque eles eram os homens, essas coisas todas, elas entram na justiça contra eles dois e aí, conseguem ganhar na justiça e ficam as duas na terra e hoje assim, o que tem da nossa família no Coqueiro Grande são os filhos da minha vó, de Vó Pina e os filhos de tia Clementina.
P/1 – Isso formou toda a comunidade, o lugar?
R – É. E aí, a partir daí forma toda a comunidade, então assim, do lado, a gente tem os primos e tios da família Pereira que vêm dessa divisão de terra que o meu bisavô fez com o trecheiro num dado momento e durante muito tempo, a comunidade éramos só nós.
P/1 – Mas quem casava com quem, por exemplo? Não tinha…
R – Pois e, aí a gente tem casamentos entre… tem um casamento, por exemplo, entre minha tia Marlene e o meu tio Antônio que é da família Ferreira com a família Pereira. Outros namoricos lá que não viraram casamento, mas desses outros namoricos, nasce a minha prima Arlete, então a interação entre essas duas famílias e aí, com o tempo, numa parte mais distante assim, do bairro, vão chegando outras famílias esporádicas, saca, que vai construindo barracos e vão ficando, vai ficando por ali, aí a comunidade foi crescendo de uma certa forma. Em 1940, a minha bisavó por parte de pai chega na comunidade e aí, ela compra as terras do outro lado da estrada, que tinha ficado com a família do finado Ambrósio, mas assim, era uma faixa de terra e de mata atlântica ainda muito fechada… não era produtiva pra além das árvores frutíferas e aí, eu sei que a família de seu Ambrósio tava lá, mas eles conviviam de uma forma ainda um pouco distantes, tipo sítios enormes e que as pessoas sabem que as famílias existem, mas as relações não são tão próximas, assim. Quando minha bisavó compra as terras em 1940 para fundar o terreiro, então, a gente tem uma outra dinâmica instaurada na comunidade, uma das coisas, o terreiro começa a fornecer água para a comunidade toda porque não tinha água encanada, os lugares de acesso pra pegar água era muito difícil e aí, a fonte mais próxima era a fonte do terreiro, então tem muitas histórias do mutirão que foi pra abrir a fonte de Oxum, formar fonte, a partir dali, as pessoas começaram a ir lá para a fonte para lavar roupa, lavar pratos e a gente carregava a água da fonte para abastecer o outro lado e o processo de alfabetização da família, a minha vó materna por exemplo aprendeu a escrever com a minha bisavó paterna, então só depois de 1940 que a minha vó materna aprende a assinar o próprio nome e isso foi acontecendo com os mais velhos, assim, da geração dela que viviam ali. depois, eu acho que é na fase de final de 70 mais ou menos que tem um processo de expansão imobiliária lá em Salvador e aí, o estado constrói alguns conjuntos habitacionais lá.
P/1 – Do lado desse…?
R – É. E aí, a gente tem um crescimento da comunidade porque chega a fazenda Grande 4 que era um projeto da UBES, uma coisa assim, e aí, algumas chácaras que tinham ali no entorno de pessoas que tinham grana, moravam em outros lugares, mas tinham as chácaras ali na cercania, aí essas pessoas também começam a vender essas chácaras e aí, com a venda dessas chácaras, rola um processo de loteamento e aí, o bairro também vai crescendo a partir do loteamento. Agora, uns três, quatro anos, cresce um pouco mais por conta do processo do Minha Casa, Minha Vida, que o governo federal também comprou algumas chácaras para construir conjuntos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida, aí agora a gente não conhece mais todos os vizinhos.
P/1 – E quando você nasceu, quer dizer, nessa sua infância, você falou que foi a sua bisavó ou vó que fez um terreiro. Qual a diferença, quer dizer, era um quilombo, depois virou um lugar que moravam famílias, duas grandes famílias. O quê que significa ela ter mudado e comprado para fazer um terreiro?
R – Olha, minha bisavó paterna, ela morava no centro da cidade, num retiro e ela era quitandeira também, então ela vendia frutas e diversas coisas numa quitanda e tinha no centro… a minha bisavó tinha li no retiro umas vilinhas de casa que ela vivia de aluguel e lá era muito pequeno, ela foi iniciada, aí chegou o momento que ela precisava assumir as questões religiosas e cuidar das outras pessoas, ela tinha um pavor a misturar as relações profissionais com as relações religiosas e aí, ela já tava recebendo muita gente na quitanda que ia para a quitanda dela não para comprar as coisas, mas porque precisava que ela jogasse ou porque enfim… tinha ali, alguma demanda espiritual. isso deixava ela bem irritada, inclusive. E o espaço que ela tinha em casa era muito pequeno, era um momento também que os terreiros no centro da cidade viviam sendo perseguidos, assim, pela policia, mesmo da época, era um período difícil pra manutenção de terreiro no centro da cidade e aí, foi bem nessa dinâmica que precisava de um lugar afastado, bem afastado do centro que tivesse espaço e aí, ter espaço era que tivesse todas as árvores que ela precisava pros cultos, que tivesse uma fonte porque ela era uma pessoa de Oxum e era uma casa de Oxum, então você não abre um terreiro de Oxum sem ter uma fonte de água no território e aí nesse processo, ela foi pra lá porque o seu Ambrósio que era um senhor que descendia da família do outro quilombola, que ficou do outro lado da rua era cliente dela. Ele produzia carvão e ele levava carvão para… ele fornecia carvão para a quitanda dela e aí, nessa conversa com ele, aí ela falou dessa angustia que precisava de um lugar, que tava buscando em vários lugares e não conseguia achar e não conseguia achar e aí, ele falou que eles estavam vendendo ali aquela parte da terra, quando ela foi ver… aí quando ela chegou lá, Orixá respondeu na hora e disse: “Vou ficar” e ela começou o processo de construção do terreiro e assim, teve também a questão de que… a medida que ela chega com o terreiro para fundar um terreiro lá, as questões espirituais já presentes naquele território independente da existência dela se apresentam, então as pessoas do próprio bairro, da minha família por parte de mãe que tava lá começam a enxergar no terreiro também assim, um espaço e uma alternativa para resolver as suas questões religiosas também.
P/1 – E aí, como que a sua mãe encontrou o seu pai? Você sabe?
R – Sei, sei bastante coisas a esse respeito (risos).
P/1 – Então conta aí.
R – Eles cresceram juntos, tipo minha mãe e o meu pai cresceram juntos como primos. porque é isso assim, chegou um momento que não havia diferença, saca, entre as crianças de um lado e as crianças do outro, ou diferença em que quem era da comunidade, quem integrava o terreiro, o trânsito era muito fluido entre os dois lados, até porque assim, o terreiro é muito grande, a gente tá falando de 43 mil metros quadrados, muitas árvores frutíferas, então muita gente da minha família por parte de mãe trabalhava na feira, vendendo frutas, vendendo folhas e ia pegar no terreiro essas coisas pra vender na feira. E as crianças da família ficavam muito juntas, assim, minha bisavó ficava muito com a minha mãe. Minha mãe era caçula da família, a minha mãe era caçula, então ela ficava muitas vezes no terreiro, enquanto minha vó tava trabalhando, minhas outras tias estavam trabalhando, não tinha quem olhasse, então ela cresceu com o meu pai. Então nesse processo, assim, eles cresceram juntos e acho que bem nessa dinâmica de romance de primos mesmo, se apaixonaram, começaram a namorar, bem às escondidas e com 17 anos, ela engravidou. Então, ela tava com 17, eu acho que o meu pai tinha… agora eu não me lembro qual a diferença de idade deles, mas eu acho que o meu pai devia ter dois anos a mais, devia ter 19, uma coisa assim. Aí, a minha mãe engravidou. E quando a minha mãe engravidou foi aquela coisa absurda, porque minha vó por parte de pai não sabia que eles estavam namorando, os adultos não sabiam o que tava acontecendo, todos os primos sabiam, todas as crianças sabiam e aí virou tensão entre as avós, porque a minha vó por parte de mãe não tinha duvidas, minha mãe estava ali, naquela coisa, com medo de dizer exatamente o que era, minha vó por parte de pai dizia que não tinha sido o filho dela querido, aquela coisa toda e ainda que eles assumissem, elas resolveram as coisas do jeito delas…
P/1 – Que foi?
R – Que foi o meu pai não me registrando, minha vó dizendo que ele não iria assumir uma responsabilidade que não era dele, aí a minha vó por parte de mãe dizendo que não precisava deles para assumir nada, porque ela era mulher, mãe, ela dava conta da filha, da neta e de quantos mais viessem. E aí é isso. Então, o meu pai não me registrou e aí, tem essa questão na família até hoje que foi a contragosto, que ele chorava muito querendo, que a minha vó não deixava, enfim…
P/1 – Você acredita nisso?
R – Não necessariamente, ele fez tantas coisas que ela não deixava, né? Então, não dá… pra mim, não da pra responsabilizar ela por tudo, embora bela tenha me pedido para inserir o nome dele no meu nome acho que um ano antes dela falecer, tipo, assumindo completamente…
P/1 – A sua vó paterna?
R – A minha vó paterna, assumindo toda responsabilidade por isso e dizendo que para ela é importante, que ela não tinha dúvidas, que nunca tinha tido, mas que aquele tempo era outro e essas coisas todas.
P/1 – E aí, quando você começou a crescer, que você lembra desse momento, bom, o primeiro momento que você lembra, ele continuou morando lá, você não o conheceu? Como é que foi essa relação até?
R – Não, eu conheci o meu pai. Conheci o meu pai e ele era muito frequente quando eu nasci, ele ia… tipo, mesmo quando ele tava… minha família por parte de pai não morava no terreiro, eles moravam no caminho de areia que é na cidade baixa em Salvador. Então, eles vinham para o Coqueiro Grande nos finais de semana e nas férias, então tinha aí um tempo de deslocamento e precisava de autorização para deslocamento grande. Mesmo assim, depois que eu nasci, meu pai me visitava sempre, ia para o Coqueiro Grande o tempo todo e ficava lá brincando comigo. Eu lembro que o meu padrinho, o meu tio-avô Vaduca… então assim, o meu tio-avô, ele foi escolhido para ser o meu padrinho porque com ele, o meu pai poderia sair sem precisar dar explicação, então ele saia sempre com o meu tio-avô pra ir lá pra casa, ficava comigo, mas eu não consigo lembrar dele nesse período. Eu convivi com ele quando eu nasci até quando eu tinha cinco anos de idade. Mas eu não tenho memórias dele. A única memória que eu tenho, tipo real, eu só lembro do pulso dele, porque a gente brincava de montar e desmontar relógios e aí, eu lembro muito desse processo da gente brincando e da mão dele me ajudando a montar e a desmontar o relógio e depois, a gente colocando no pulso para ver se o relógio estava funcionando. Mas para além disso, eu não lembro nada, nada e todas as imagens que eu tenho dele, de fato, foram imagens que eu vi em foto.
P/1 – E quem tinha essas fotos?
R – Minha tia, a irmã caçula dele. Quando o meu pai faleceu, a minha tia fez uma limpa em todas as fotos dele e ela tem isso guardado em um baú até hoje como um tesouro. E aí, dessas fotos, eu tenho uma foto e a carteirinha dele do Esporte Clube Bahia porque enfim… acho que a carteirinha, eu roubei mesmo e a foto ela deu (risos). E aí, essa foto, a gente fez réplicas para algumas coisas, aí também eu sai dando para todo mundo, tipo, terreiro não tinha foto dele e ele foi alguém muito importante para o terreiro e aí, não tinha foto dele porque a minha tia achava que ninguém podia ter a foto do irmão dela, porque só ela merecia ter ele todinho, só para ela. Agora, o tempo tá passando, ela tá até mudando de ideia.
P/1 – Aí Vivi, então, a gente volta lá você pequena, você ficou morando nesse lugar que era ou não era… você estava morando no terreiro, então, com a sua mãe ou era a comunidade do lado?
R – Não, é do lado… eu nunca morei…
P/1 – Você nunca morou no terreiro?
R – Eu nunca morei dentro do terreiro.
P/1 – Então, o quê que você lembra desse lugar que você nasceu? Como que era esse período da sua vida? Vamos dizer de cinco anos em diante. Como que era o lugar? Tenta me descrever o lugar onde você morava…
R – Então, é um sitio e aí, as casas são muito próximas umas das outras, então, a primeira casa é a casa da minha mãe, agora, essa casa era a casa da minha vó e aí, que antes de ser a casa da minha vó era casa do meu avô e aí do lado da casa tem a casa de tia Nenga e aí, a tia Nenga sempre foi a nossa tia rica, a casa dela tem dois andares, já tem laje e ela tem um bar.
P/1 – Ela tem o quê?
R – Um bar que foi ampliando. Antes, quando era menor, o bar era só a janela da casa, aí agora já tem uma porta lá do lado e aí do lado do bar de tia Nenga é um vão e ali a gente brincava de tudo, de jogar bola, ali era o nosso campinho, ainda é hoje um campinho e depois desse espaço, aí tem a casa de minha tia Marlene que é irmã de minha mãe, depois tem a casa de minha tia Fiuca e aí vai descendo. A casa dos filhos… primeiro, são os filhos da minha vó, aí depois vem a casa de tia Clementina que era irmã da minha vó e aí, começa as casas dos filhos de tia Clementina. Aí lá no final, tem um curral dos bois, então tem uma configuração, um layout que talvez seria a estrada passando, aí a gente tem uma faixa de terra… terra… não barro vermelho, mas terra mesmo, bem empoeirada na frente, ali uns dez metros, saca? Aí começam as casas e aí, no fundo, a gente tem bastante árvores frutíferas e aí tem uma parte do terreno que é uma descida, assim, parece meio que um vale e aí lá embaixo, é onde a gente tinha bastante coqueiro, a gente… a plantação de coqueiro que é o que dá nome também ao bairro, eram coqueiros muito altos e a gente brincava muito lá embaixo, assim, mas tinha na infância ali uma divisão que era a gente só podia… as meninas precisavam ficar brincando sempre no terreno na frente da casa porque estava mais próximo, todo mundo conseguia visualizar onde a gente estava e pro brejo, que é essa parte lá do fundo, era sempre uma subversão, porque… os meninos poderiam descer, andar de cavalo, fazer todas as coisas, a gente só descia quando era escondido.
P/1 – Por que a questão era as meninas com os meninos ou tinha outros perigos?
R – Não, a questão era… o fato de existir o marido de uma prima de minha mãe mais velha que ficava bulinando as meninas. Então tinha uma questão aí de proteger a gente mesmo de abuso. E assim, a mãe da minha prima já tinha passado por isso. Minha mãe tinha passado por isso, então na nossa geração, ninguém passou exatamente porque elas se tornaram muito vigilantes com a gente.
P/1 – E ele morava no lugar?
R – Ele continua morando lá. A minha vó foi a única que deu queixa dele e aí, virou… esse é, inclusive, um dos motivos pelos quais a irmã da minha vó deixou de falar com ela.
P/1 – Porque ela deu queixa.
R – Porque ela deu queixa. Porque era o marido da filha dela e aí, dar queixa era expor ela e todas as questões. E aí, minha vó deu queixa e aí, virou uma tensão entre elas duas, porque da geração de minha mãe pra cá, não tem tensão por conta disso porque ninguém duvida do fato e todo mundo se sente muito responsável em proteger as crianças e tal. Mas minha vó e a tia Clementina ficaram bem…
P/1 – Estremecidas.
R – Estremecidas. Morreram tensas por conta disso.
P/1 – Então, na sua casa morava você, sua mãe e quem mais?
R – Na minha casa inicialmente, era minha vó, a minha mãe, eu ne o meu irmão do meio.
P/1 – Por que aí a sua mãe teve outros filhos?
R – É.
P/1 – Com o seu pai?
R – Não.
P/1 – Com quem?
R – Com outros homens, o meu irmão do meio tem um outro pai que é Cicero, não faço ideia de como eles se conheceram, também. E o meu irmão mais novo também um outro pai.
P/1 – Mas eles nunca vieram morar com vocês?
R – Não. Isso também nunca foi possível na cabeça de minha mãe, saca? Por exemplo, o pai de Tiago, o meu irmão do meio, até já quis, mas ela dizia que não. Hoje ela fala que na casa dela é ela e os filhos dela. E tinha ali também uma questão que minha mãe morava com a minha vó, então não era a casa dela, então trazer alguém para morar na casa de minha vó era algo que ela não se permitia.
P/1 – Então, deixa eu entender nesse período de criança que estão vocês morando com a sua vó, com a sua mãe, seus irmãos, do quê que vocês viviam? Como é que era a questão assim, da sobrevivência?
R – Da feira.
P/1 – Quem ia à feira?
R – Vovó Pina ia à feira, minha mãe ajudava a vó Pina na feira e era isso.
P/1 – Vocês iam à feira também, não?
R – A gente… eu e o Tiago, a gente chegou a ir, mas não para trabalhar. Eu mesmo ia pra dormir (risos), não pra… a gente não chegou a trabalhar na feira, mas tem histórias de minha vó que já me esqueceu na feira, saca, coisas assim. Mas a gente não chegou a trabalhar com elas, a gente era muito pequenos assim. Mas minha mãe trabalhava com a minha vó e acho que eram elas duas só, porque tia Nenga trabalhava em casa de família, tia Marlene tinha casado, era só minha mãe e minha vó.
P/1 – E a feira, o quê que elas vendiam nessa feira?
R – Folha…
P/1 – Folha de quê?
R – Folha de sacudimento, folhas que são utilizadas nos processos religiosos, ovos e frutas, então tipo, cajá, vó Pina vendia muito cajá, lá no terreiro tem pé de cajá e aí, vó pina vendia cajá, tinha um dado momento que ela vendia bastante banana, tinha um bananal no fundo do quintal e aí, tinha banana de várias qualidades, tinha banana pão, aí depois vinha banana roxa, depois banana prata, banana maçã e por último, banana da terra e aí, essas bananas, elas iam dando por etapas e eu lembro do processo de ajudar a minha vó a colher banana por exemplo, mas não me lembro da gente na feira vendendo banana.
PAUSA
VIVIANE_T02
P/1 – Vi, bora voltar lá porque eu acho que a gente podia retomar agora em quando que você começou a ter a sua, vamos lá, vida religiosa, como é que você foi iniciada, como é que era isso na sua vida?
R – Foi exatamente dois dias depois que eu nasci, mas o que aconteceu? Nasci, ficou lá dois dias na maternidade, aí eu comia direitinho. Minha mãe teve alta rápido, depois de dois dias. Quando minha mãe chegou em casa, chegou na hora de me alimentar, eu não mamava, eu não comia nada, algumas horas assim e segundo ela, eu tava lá, ficava muito seria, só olhando para ela, sem me mover nos braços dela e ela ia de novo pra maternidade. Quando ela chegou na maternidade novamente, aí me passou para o médico, explicou o que tinha acontecido, aí ele falou: “A menina tá com fome”, e me deu de mamar na mamadeira e eu comi. Aí ele disse que tava resolvido, me mandou pra casa, explicou pra ela mais uma vez como ela tinha que me dar a mamadeira ou me dar o peito. E ela chegou em casa, foi fazer do mesmo jeito e eu ficava lá, seria, olhando para ela, sem triscar nem no peito e nem na mamadeira e ela voltou para a maternidade. Sei que ela fez essa ida e volta três vezes, na terceira vez, o médico ficou sem paciência, brigou com ela, disse que se ela não sabia alimentar a própria filha, por que tinha tido? E que ele não tava lá para ser babá, que ela voltasse para casa e aprendesse a me dar de mamá porque eu não tinha problema nenhum. E de fato, na maternidade, eu mamava tudo direitinho, era uma criança muito normal. E aí, ela voltou pra casa comigo daquele jeito, chegou em casa, eu novamente seria, sem mamar e sem olhar e muitas horas. E aí, a minha vó chegou da feira e minha mãe estava chorando e aí, falou pra minha vó o quê que era que tinha acontecido e aí, disse que já tinha ido nos dois dias anteriores, aí a minha vó brigou com ela porque ela não tinha falado antes, essa coisa toda, me pegou no braço, atravessou a rua e me levou no terreiro. E aí, chamou minha bisavó e explicou o que tinha acontecido. Aí, a minha bisavó me levou no quarto do Oxum, rezou alguma coisa lá, imagino eu, eu sei que depois, minha bisavó me devolveu para a minha mãe e disse que eu iria me alimentar normal. Aí, eu comecei… ah, disse que eu ia me alimentar e disse que eu precisava de um irmão de leite. Aí a vizinha, Dona Diana também tinha tido filho no mesmo período, que era o Gilson. Aí todos os dias de manhã, Dona Diana ia lá pra casa, aí Gilson primeiro mamava no peito de minha mãe, depois que já tava no fluxo, ia a preguiçosa, eu e mamava. Aí dava certo. mas eu continuei dando sinais… eu ficava sempre muito séria quando criança, aí não era olhado, já tinha benzido essa menina, não era olhado, o quê que era? Aí, minha vó materna me levou na sessão de Dona Joana do caboclo boiadeiro e aí explicou o que tinha acontecido, aí boiadeiro explicou pra minha vó e para a minha mãe. Aí, minha vó me levou na sessão de Dona Joana, ela trabalhava com o caboclo boiadeiro e aí, o boiadeiro explicou para a minha vó e pra minha mãe o que tava acontecendo e disse que era o Orixá que tava incorporando e que a minha bisavó paterna sabia que tinha tentado dialogar, mas que as coisas precisavam ser feitas e aí, eu lembro de minha mãe me contando essa história, como ela ficou apavorada porque era a sessão, eu era muito bebezinha e aí, o caboclo me pegou, aí dançou comigo, segurando só pelo pé, aí me jogava pra cima, me jogava no meio, de um lado para o outro, ela pensava: meu bebê vai ficar aí depenado e resolver o meu problema que é bom, esse caboclo não vai resolver. E aí depois, me colocou lá no centro, aí todo mundo dançou em volta e cantou algumas coisas e falou pra minha mãe que quando ela voltasse para o Coqueiro Grande precisava procurar a minha bisavó e conversar com a minha bisavó, que o que ele tinha feito iria me deixar uma criança normal, mas que ela precisava entender as coisas que precisariam ser feitas. Aí, minha mãe voltou, conversou com a minha bisavó e eu sei que a minha bisavó fez uma negociação lá com o Orixá, que eu era muito criança e que não tinha necessidade de fazer o santo com aquela idade, com meses de vida, e que era importante eu crescer e decidir o que eu queria, essa coisa toda. não era uma questão de vida ou morte, nem nada, então não havia… ela não via necessidade nisso. Aí, fui pro processo de negociação, mesmo. Aí negociou, fizeram os procedimentos religiosos que eram possíveis serem feitos naquele momento e eu consegui. Acho que desse momento, a única restrição que ficou é que ninguém, além de minha mãe poderia colocar a mão na minha cabeça. Então, diferente das minhas primas, a minha mãe trancava os meu cabelo com muito amor, então não tem as histórias de que alguém puxava o meu cabelo, minha mãe sempre cuidou do meu cabelo com muito carinho, assim, às vezes, até demais. Mas tinha essa coisa de que outra pessoa não podia pegar no meu cabelo, mas eu não sabia disso, então minha mãe tinha essa responsabilidade, mas eu quando criança, não sabia. E aí, passou e aí, eu fiquei, fui pra igreja católica, então fiz catequese, fiz primeira comunhão, fiz crisma, participei de grupo de jovens e tava… e ia para o terreiro também, mas eu ia para o terreiro muito mais na relação: meus primos chegaram. Aí, todos os primos chegavam e a gente ia para o terreiro. “Vai ter festa no terreiro”, e a gente gostava de ajudar a catar as coisas e ficava brincando de ir para a fonte, mas era sempre tudo muito… nessa fase da infância, era tudo muito brincadeira, saca? não tinha obrigações com as questões religiosas…
P/2 – O que você lembra das festas? Tem alguma festa que tenha te marcado?
R – Eu lembro que… eu lembro muito da fase preparatória das festas. Assim, eu gostava muito do sair para ir pegar folha no mato e aí, era uma coisa engraçada porque eu queria ir para o mato pra pegar folha e queria aprender a tirar folha, mas a minha vó sempre aparecia em algum lugar e me mandava fazer uma outra coisa, que não era pegar folha. Eu ficava com uma raiva! Aí depois que as folhas voltavam, aí beleza, aí eu podia ir para o barracão pra ficar lá fazendo aquele trabalho chato de despelar as folhas, mas eu não ia para o mato pra pegar a folha, eu queria ir para o mato. Mas eu lembro muito dessa coisa da gente ficar no barracão, despelando as folhas. Eu achava chato, mas quando o meu padrinho estava não era chato, porque o meu padrinho ensinava a gente exatamente quais eram as folhas e o porque naquela… porque a cada festa é um conjunto de folhas diferentes e aí, eu ficava tipo… a minha pira quando eu era menor era tentar gravar exatamente o conjunto de folhas de cada festa e me exibir depois para os primos, obviamente. Mas eu nunca ia tirar, então eu sabia das folhas que chegavam e às vezes, eu confundia as folhas com as festas e aí, ficava sempre nessa ideia de que se eu fosse tirar, eu ia conseguir saber exatamente quais eram. Mas eu lembro, era massa e a gente ficava numa… e para cada festa, no centro do barracão, a gente fazia um desenho diferente, ainda faz até hoje um desenho diferente com as folhas, porque aí depois, tem um momento de espalhar essas folhas em todo barracão. Tinha uma festa em específico que as folhas já eram espalhadas. Na Festa de Tempo, era a Festa de Tempo ou a Festa de Ogum? A Festa de Ogum, as folhas já eram todas espalhadas antes, então, a gente ficava fazendo chuva de folhas para tudo quanto é lugar, assim. Eu gostava da fase de preparar o terreiro para a festa acontecer. Minha vó chegava… minha bisa já tava morando lá na roça quando eu era menor, porque teve um período em que a minha bisa não morava, mas depois, ela começou a morar lá, aí a minha vó chegava assim, no meio da semana e aí, quando a minha vó chegava era o período que estava ótimo, que tinha silêncio, não tinha um monte de gente. Aí, a gente pintava o portão do atim de tempo para a Festa de Tempo, então eu adorava pintar, arrumar o atim de tempo junto com a minha vó. Porque a gente pintava as quartinhas, aí eu podia escolher qual era a tinta. Era sempre a mesma cor, mas eu escolhia a lata da tinta, mas eu me achava escolhendo a cor da tinta. Agora eu sei que era sempre a mesma cor. E ela me deixava pintar, de boa. Aprendi a fazer laço com a minha vó nos processos preparatórios para as festas, para Festa de Oxum é massa, o processo de preparação também, porque era essa coisa de fazer a massa, entalhar e massar as talhas e aí, decidir… assim, a gente ficava tirando no palitinho ou no zerinho ou um, quem era que ia fazer a talha de cada Orixá. E a gente ficava tentando fazer a talha de acordo com o Orixá da gente, só que a gente não sabia quais eram os nossos Orixás. E a gente perguntava sempre pra minha vó e a minha vó dizia: “Todo mundo é filho de Oxalá”, como é que pode, gente, Oxalá ter tanto filho? Com tanta gente aqui e tanto Orixá, todo mundo é filho de Oxalá? E a, só tinha uma talha de Oxalá, não dava pra todo mundo fazer, e aí, a gente ia escolhendo pelas cores prediletas, assim, mas eu gostava muito desse momento e era um momento também mais silencioso, porque no dia mesmo que a festa ia acontecer, nossa, pra mim era tenebroso, porque era muita gente de lugares inimagináveis, era muita benção pra tomar, tipo, minha lista de tios e tias crescia dez mil vezes, eu não entendia porque aquelas pessoas eram meus tios e minhas tias, eu só sabia que tinha que tomar a benção. Aí saía desenfreadamente, era benção meu tio, benção minha tia, benção meu tio, benção minha tia, mas não fazia ideia de onde surgia tanto tio e tanta tia e era muito chato, porque gente mais velho de candomblé da casa dos outros é um negócio muito chato, porque tinha ali um… hoje eu entendo melhor o que era aquilo, mas eu já não gostava do protocolo, porque no dia da festa, mesmo, a gente precisava se comportar de um jeito… era como se a gente não pudesse errar nada porque tinha um mundo inteiro prestando atenção em tudo que a gente estava fazendo. Então qualquer coisa, a gente estava sob vigilância, que eu não sabia o porque e nem pra que, eu não gostava daquela quantidade toda de gente na casa. Até hoje eu não gosto de terreiro cheio, pra ser bem sincera.
P/1 – Mas você participava como todos os seus primos? Teve algum momento específico que você foi, assim: “Agora você vai ser iniciada no…”?
R – Ah teve! Mas foi a partir da igreja.
P/1 – Da igreja. Então, quem te pôs na igreja?
R – Todo mundo lá em casa…
P/1 – ia pra igreja?
R – Vai pra catequese e não tem… não existe ali uma hierarquia, as crianças vão para as festas no terreiro e vão pra catequese também porque a gente precisa se ocupar, é como se fosse ir jogar tênis. Ou como se fosse ir para a natação, ou a gente vai para a catequese, vai para as atividades na igreja, todo mundo vai.
P/1 – A igreja é perto? É dentro do…?
R – É perto. E o terreiro tem uma frente que é de frente para a cada se minha mãe, a lateral do terreiro, a outra saída dá de frente para a capela Santo Agostinho, então é muito perto. Tem, inclusive, uma missa que é feita no barracão do terreiro. Tem uma vez por ano, a missa é rezada no barracão do terreiro porque teve uma vez que a capela pegou fogo, inundou, enfim, a capela deixou de existir, agora eu não me lembro se pegou fogo ou se caiu com a chuva e aí, não tinha lugar para fazer a missa. Aí, minha bisavó dialogou com o padre da época e aí, a missa começou a ser feito no barracão lá do terreiro. Aí depois que a capela… fez vaquinha, todas aquelas coisas, aí a capela foi reerguida, as missas voltaram para a capela, aí o pessoal do terreiro ficou sentindo saudades da missa (risos). Aí, uma vez por ano, até hoje, tem a missa lá no barracão, mas…
P/1 – Mas a sua iniciação então foi… você foi pra igreja…
R – Aí eu fui pra igreja, quando eu fiz crisma, depois da crisma, automaticamente, você vai pra uma turma preparatória para você pegar a sua primeira turma de catequese e aí, virar catequista. E foi nesse processo, na semana do inicio da minha preparação para catequista que eu me questionei, falei: “O quê que eu vou fazer lá?”, eu me perguntei o porque eu tava na igreja, assim. Aí, eu gostava de fazer parte do time de baleô, de futebol, da banda da igreja, de todos os processos de socialização da igreja eu adorava, mas todas as minhas tensões dentro da igreja era por conta da liturgia.
P/1 – Mas por que você sentia uma tensão?
R – Eu questionava um monte de coisas.
P/1 – Com que idade nós estamos falando?
R – Treze, 14 anos. Eu questionava um monte de coisa, com 12 anos, eu fui reprovada na catequese, então assim, ainda estou procurando quem tenha sido reprovado na catequese, eu fui reprovada na catequese e aí, tive que ficar mais um ano fazendo para conseguir fazer a primeira comunhão, aí eu fui reprovada em um ano antes da primeira comunhão porque… eu nem me lembro exatamente quais as passagens da Bíblia, uma eu lembro mas eu não me lembro se foi a de antes da primeira comunhão ou antes da crisma, eu ficava questionando a relação com Maria Madalena, por exemplo, porque todo mundo rezava para Maria mãe de Jesus e não rezava para Maria Madalena, essas coisas. E aí, eu tinha orações de castigo por conta disso, porque não era possível a gente dialogar sobre as questões da liturgia. Isso me fez perguntar depois como é que eu ia dar a catequese se eu não conseguia acreditar igual as catequistas naquilo que elas falavam pra gente e eu brigava o tempo todo com as minhas catequistas? Aí eu decidi que eu não iria pra catequese e aí, eu falei: “Mas o que eu vou fazer da vida?”, aí eu disse: “Eu vou fazer o meu santo”, aí fui pra casa e foi desse jeito, assim. Fui pra casa, fui no terreiro, falei com a minha vó, a minha vó tava lá ainda arrumando o altar para reza de Santo Antônio e aí, fui falar: “Minha vó, a senhora pode fazer o meu santo?”, e aí eu tava com 14 anos.
P/1 – E o quê que é fazer o meu santo?
R – Iniciar de fato, raspar, ir para a camarinha, ficar lá três meses e ir para todo no processo de iniciação real. E aí a minha vó disse: “Menina, que negócio de fazer o santo? Não, deixe pra depois, tanta coisa pra fazer na vida, você ainda tá nova”, e aquilo me irritou, eu me senti tão desrespeitada. Eu falei: “Minha vó, eu tô falando sério, eu quero fazer o santo” mas não é você que tem que querer…”, brigou comigo, me mandou pegar um jarro lá de não sei o que para botar no altar e eu me senti extremamente desrespeitada. Eu falei: “Tá bom, se a senhora não quer fazer, tem quem queira”, aí sai, fui pra casa, fiquei em casa irritada durante um tempo. No outro dia, fui no terreiro vizinho que era o terreno de Dona Marlene e cheguei lá e perguntei: “Dona Marlene, a senhora pode ser minha mãe de santo? Eu pedi para a minha vó, mas a minha vó não quer ser, não”, aí ela deixou (risos). Lá em casa é da nação Angola, o terreiro da Dona Marlene é da nação Queto e aí, eu fui, fiquei no terreiro de Dona Marlene durante um tempo e eu não ia lá em casa enquanto eu tava lá no terreiro, eu não ia, ainda que o terreiro de minha bisavó fosse em frente, eu passava direto. Tinha as festas, eu ficava lá lendo. Tem um pé de abiu que fica em frente ao terreiro que é do outro lado da casa de minha mãe, mas fica em frente ao terreiro, então de lá de cima dava pra ver tudo. E a gente subia nesse pé de abiu pra ficar vendo as festas lá embaixo que diziam que a gente não podia ir. Então, aí eu subia no pé de abiu, ficava lá lendo, mas eu não descia pra ir pra festa. Aí também não descia para tomar benção de ninguém, aí virou uma…
P/1 – Isso da sua família?
R – Da minha família. Não descia, não queria fazer o santo, ia fazer o que, lá?
P/1 – Mas e sua mãe? Achava isso normal? Tava de boa?
R – Não, minha mãe ficou muito chateada. Acho que foi a primeira vez que minha mãe, tipo, ficou muito, muito, muito chateada comigo.
P/1 – E como é que foi? Vocês brigaram?
R – Ela tentou se impor como mãe: “Você vai sair de lá”, aquela coisa toda “Na minha vida quem manda sou eu, eu vou ficar lá mesmo, lá eu me sinto bem”, aquela coisa toda. E Dona Marlene assim, lidava com as coisas com muita tranquilidade e aí, ao mesmo tempo que permitia que eu vivenciasse as coisas lá no terreiro dela como filha de santo, sem distinção entre os outros, refletia muito comigo a importância de me manter conectada com o terreiro de minha vó, que naquela época eu chamava de o terreiro de minha vó. Não é mais o meu terreiro, assim. Aí, chegou um momento, com 16, acho que uns dois anos depois, eu passei no CEFET e aí…
P/1 – CEFET, explica!
R – A escola técnica federal da Bahia, então eu estudava na escola pública perto da casa de minha mãe e aí, ia pro primeiro ano do ensino médio e tava me preparando para o CEFET e aí, passei no CEFET. Quando eu passei no CEFET, eu fui ficar mais tempo no centro da cidade porque o CEFET é no Barbalho, é muito longe. E esse processo de conviver mais no centro da cidade e ir mais para a biblioteca central pra estudar e minha vó trabalhava na biblioteca central, eu comecei a sentir saudades de conversar mais com a minha vó. E nessa coisa de sentir saudade de conversar mais com ela outras coisas, coisas da escola e de livros, outras questões, eu comecei a achar desinteressante ficar na casa de Dona Marlene e aí, nesse processo… aí, dentro de casa, meu irmão não falava comigo, meus dois irmãos não estavam falando comigo porque a minha mãe estava chateada comigo porque eu estava na casa de Dona Marlene e aí, lá em casa era um inferninho instaurado e aí, eles não conseguiam entender que eu só tava lá porque a minha vó disse que não ia fazer o meu santo e eu tinha decidido que eu queria fazer naquele período. Nessa confusão toda, eu fiquei doente. Assim, muito, muito, muito doente, tipo emagreci muito e aí, entrei num processo que eu desmaiava o tempo todo, eu tava na sala de aula, desmaiava de cansaço, aí eu não conseguia comer novamente e aí, fui ficando muito doente, aí minha mãe… eu passava mal na escola, aí os amigos tinham que ligar lá pra casa, aí a minha mãe saia de lá do Coqueiro Grande, ia para o centro da cidade pra me buscar no Hospital da Liberdade, que era o que tinha mais próximo do colégio pra voltar pra casa…
P/1 – Mas deixa eu entender, quando você tava na escola, você morava onde?
R – No Coqueiro Grande.
P/1 – Na escola? Você falou que ficava mais no centro da cidade…
R – É porque eu saía do Coqueiro Grande cinco horas da manhã e ia pro colégio, assim, a aula começa as sete horas, pra eu conseguir chegar para a aula das sete, eu tinha que pegar o ônibus das cinco. Aí eu ficava no colégio o dia inteiro, assim, ficava no centro o dia inteiro, porque eu ia para o colégio de manhã, aí à tarde, eu ia para o CEAFRO, então tinha tardes que eu tava no CEAFRO, tardes que eu tava na CIPO, eu voltava para o Coqueiro Grande só tarde da noite.
P/1 – E aí, você chegava em casa… na casa de sua mãe?
R – Aí, eu chegava na casa de minha mãe.
P/1 – Aí, os seus irmão não falavam com você e sua mãe?
R – Minha mãe estava lá chateada, também, era conversas muito protocolares. Era aquela coisa: “Cadê o dinheiro do transporte de amanhã?” “Lavou sua farda? Não lavou sua farda?” “Já comeu? Tem comida no … vai levar não sei o que para a sua tia”, eram conversas muito protocolares, o que não é comum lá em casa. E aí, eu fiquei nesse processo todo assim, muito doente, aí a alternativa… eu lembro que eu fiquei… teve uma vez… a última vez, na real, que eu desmaiei e aí fiquei muito mal, a minha mãe foi me buscar com a minha tia Jandira. Aí, Iansã de minha tia Jandira respondeu na hora que elas estavam me tirando do hospital e elas me levaram direto para casa de minha vó no caminho de areia, que era onde a minha vó morava, a casa dela mesmo, no terreiro. Aí, eu voltei a morar com a minha vó, que eu morei com a minha vó tipo, dois anos da vida. Aí eu voltei a morar com a minha vó naquele período, aí eu ficava mais próxima do colégio.
P/1 – Mas a ideia era que você tava doente por quê?
R – Não sei. No final das contas, a ideia é que eu tava doente por questões espirituais, porque aí, eu fui morar na casa de minha vó, aí minha vó fez algumas coisas, eu lembro que eu tava lá na cama, aí alguns Orixás responderam lá, ficaram conversando lá na sala, estava minha mãe, minha vó, minha\ tia, aí a Iansã de minha tia Jandira tava lá e aí, a conclusão de tudo isso era que eu precisava ficar na casa de minha vó um tempo e aí, só depois, eu podia voltar lá para a casa de minha mãe. Nesse processo… quando eu sai da casa de minha vó, eu fui direto para o terreiro, aí foi quando eu fiz o meu primeiro Bori. O Bori, de fato, é a cerimonia de iniciação, né, antes de você fazer o santo, raspar a cabeça e tal, coce faz o Bori. E aí foi quando eu fiz o meu primeiro Bori lá em casa…
P/1 – Que é exatamente?
R – Que é uma cerimonia de… é como se fosse um batismo. Acho que essa é a analogia mais direta, não é necessariamente o batismo, mas é como se fosse um batismo. Aí, eu fiz o meu primeiro Bori lá em casa, aí as coisas voltaram ao normal, sai gordinha. Eu lembro que essa coisa do sair gordinha foi bem emblemática porque eu tinha emagrecido muito. Eu não tinha noção, inclusive do quanto eu tinha emagrecido e tinha uma dieta que eu tinha que seguir enquanto tava lá dentro, assim. Até hoje, eu gosto bastante daquele mingau. E minha tia-avó na época, que é a minha mãe de santo agora, ela era a pessoa responsável para dar conta de me alimentar em todos os horários, direitinho e a gente conversava muito. E aí, eu sai mais gordinha e tal e voltei pra casa e tudo se resolveu. Todo mundo voltou a falar comigo normal, eu também estava falando normal, eu já estava lá em casa, mesmo. Aí pronto.
P/1 – E aí, dentro da sua vida, você já estava envolvida com um monte de atividades, como é que foi essa passagem? Você, então, estudava, fazia… que outras atividades você fazia, além dessa parte espiritual?
R – Eu sempre estive envolvida em muitas atividades. Nesse período específico, que é quando eu saio do padre Palmeira e vou para o CEFET. Quando eu tava no Padre Palmeira, aí é oitava série, tipo, eu era da fanfarra do time de futebol do Padre, aí tava fazendo… eu estudava no Padre à tarde, aí eu estudava na Escola de Cadetes Mirins de manhã, aí na Escola de Cadetes Mirins, eu era da orquestra de cavaquinho e do time de futebol de lá também. Aí, eu fazia Cadetes Mirins de manhã dois dias na semana e os outros dois dias da semana, eu fazia teatro no CEAFRO, então da sexta a oitava série, era mais ou menos isso. Aí quando eu fui para o CEFET, quando eu passei no CEFET, eu pedi para a minha mãe para sair da Escola de Cadetes, porque embora eu gostasse bastante da orquestra de cavaquinho, foi o período que a escola…os professores da escola militar começaram a dar aula na Escola de Cadetes , antes a gente tinha toda a formação pela Aeronáutica, pela galera da Aeronáutica e era mais leve, fisicamente, falando. E aí, eu lembro do capitão Neves que era insuportável e ele gostava bastante de castigo. Então eu tava num ano em que eu levava muito castigo na escola de cadetes porque sei lá, todos os dias, a gente precisava jurar bandeira. Então, estava jurando a bandeira, ficava lá todo mundo cobrindo seis e meia da manhã, todo mundo no pátio cobrindo e aí, cantava todos os hinos: o do Brasil. o Hino da Bandeira, o Hino do Estado da Bahia, depois o hino da escola e o da Aeronáutica antes e depois o hino da escola, o braço cansa. Então, o Capitao Neves, se um adolescente se o braço descia um pouquinho, ele vinha lá, batia com o trocinho e aí, fazia a gente voltar e cantar todos os hinos novamente. Então assim, tinha dias que dava 11 horas do dia, a gente continuava lá, cantando o hino. Algumas vezes, eu simplesmente abaixava o braço e aí, era aquela coisa: “Ferreira, a gente tá cobrindo…” Já fiz a minha parte, Senhor, já cantei todos os hinos”, aí eu ia para o pátio e aí, ficava cantando uma musiquinha que era: [cantando] “Minha vovozinha dá setenta voltas dessas, eu que sou cadete não vou ficar fora dessa”, e aí, ia depender de quantas infrações a agente já tinha cometido em um dado período, essas voltas aumentavam, né, o número. E aquele ano, eu já tinha dado voltas demais, eu não suportava mais aquilo…
P/1 – Volta onde?
R – No pátio, tipo, aberto, sol quente, aquela farda quente, mas eu preferia dar volta do que ficar lá vendo ele ficar com aquela varinha batendo na ponta dos dedos dos outros. E aí, eu pedi para a minha mãe me tirar da Escola de Cadetes, ela não entendia muito o porque, porque era isso, né, eu queria estar na Escola de Cadetes porque ou eu queria ficar na orquestra de cavaquinho ou queria aprender a ser piloto. Tinha a possibilidade de ser piloto da Aeronáutica. Eu queria, mas a minha mãe queria que eu entrasse na Escola de Aeromoça, Aí, eu dizia pra ela que isso não ia dar certo (risos), mas ela nunca acreditou em mim. E aí, pra ela eu sair da Escola de Cadetes era eu abandonar a escola de aeromoça, a possibilidade de eu ser aeromoça. Mas quando eu passei no CEFET, tipo, foi a minha libertação. Primeiro, quando eu comecei a estudar para o CEFET sozinha, eu falei pra ela que eu ia estudar para passar no CEFET, ela não entendia muito bem o quê que era o CEFET, qual era a qualidade da escola, essas coisas todas e achou que eu só estava inventando mais arte, só tava querendo mais uma atividade para ficar subindo e descendo na cidade. E aí brigou comigo. E a minha mãe é manicure e nesse período, ela trabalhava em Vilas do Atlântico e atendia à domicilio várias dondocas de Vilas e aí, ela chegou na casa de uma das clientes dela exatamente no dia que a mulher estava pagando, assim, um absurdo para um cursinho para o filho dela fazer o cursinho preparatório para entrar no CEFET. Aí, ela chegou em casa acabando comigo: “Você tá estudando para esse negócio de CEFET? Essa coisa de CEFET é coisa seria, você que não me passe” “Uai, nem queria! Agora vai ficar aqui querendo me dizer como que eu vou estudar, como que eu não vou estudar. Aí eu quase desisti, mas eu queria muito sair da Escola de Cadetes Mirins, aí beleza, aí quando eu passei no CEFET, ela já sabia a dimensão da escola, então como trocar seis por meia-dúzia, saca? Ainda que eu não fosse ser aeromoça lá no CEFET. Aí, nesse período, quando eu já tava no CEFET foi quando a gente fez o Bori. Nesse período, eu tinha o CEFET, dentro do CEFET, o grupo de estudantes negros, aí eu permanecia no CEAFRO, fazendo teatro dois dias e os outros dois dias da semana, eu substitui pela CIPÓ que aí, eu fui fazer Cine, TV e Vídeo na CIPÓ e aí, era isso.
P/1 – Me conta uma coisa, no CEFET tinha, então, o grupo de estudantes negros. Tinha a maioria no CEFET de estudantes brancos ou negros? Como era isso aí?
R – No meu período, era a maioria de estudantes brancos.
P/1 – Brancos?
R – Brancos.
P/1 – E na escola que você estudava antes, que era a Escola de Cadetes…
R – Na Escola de Cadetes, a gente era a maioria negros.
P/1 – Então, como foi a primeira vez assim, da sua relação, porque no terreiro eu imagino que a maior parte das pessoas eram negras, né? Provavelmente, todo mundo?
R – Não, não é todo mundo, não. A gente tem duas tias cotas lá.
P/1 – Então, e mais ou menos isso. Então, você entrou, a primeira vez que você entrou num lugar onde a maioria não era negra foi no CEFET?
R – Não foi.
P/1 – Foi onde?
R – Acho que foi indo com a minha mãe para o trabalho dela…
P/1 – Que ela trabalhava não na feira?
R – Não. Aí minha mãe trabalhava em Vilas do Atlântico em um salão de beleza…
P/1 – Manicure.
R – É. E quando eu tinha… quantos anos quando a minha mãe fez aquele curso, meu Deus? Acho que com 12 anos, eu fiz o curso de manicure no SESI e minha mãe me colocou para fazer o curso de manicure, era bem aquela coisa: “Se você não der para nada que preste nessa vida, se nada mais der certo, você pelo menos, vai ter a minha profissão. Então, vai fazer o curso de manicure”, aí eu fiz o curso de manicure e nas minhas férias, depois daquele ano, assim, todas as minhas férias, até 18 anos, mais ou menos, eu ia trabalhar com a minha mãe no salão…
P/1 – Você fazia unha efetivamente?
R – Ahãm. Aí eu ia junto com ela e foi nesse… acho que nesse lugar onde… acho que talvez, o primeiro lugar que eu convivi de maioria branca, assim.
P/1 – E o que te parecia não você agora, na época? Você lembra se você percebeu alguma coisa de estranho nessa relação que tinha um monte de gente branca? O quê que você lembra daquele momento? Você vendo isso.
R – Eu lembro que tinham algumas casas que eu não gostava de ir com a minha mãe. E aí, sem racionalizar, eu não sabia, exatamente, porque eu não gostava, mas tinham lugares que eu não gostava de ir com ela. Tinham pessoas que eu me sentia muito incomodada de minha mãe precisar fazer a unha, assim. Já me sentia… chamava elas só de nojentas, mesmo. Tinham pessoas muito, muito… mas tinham outras pessoas que eu gostava muito, eu adorava, por exemplo, ir para a casa de Dona Eimar, era uma família toda branca, a gente chamava a “Família dos gordinhos”, era todo mundo gordinho, galera comia bem lá, acho que a primeira vez que eu vi leitão na mesa com aquela maçã lá na boca, saca? Então, a casa de Dona Eimar era massa, tinha sempre muita comida e minha mãe trabalhava lá todos os domingos e aí, minha mãe trabalhava todos os domingos porque ela fazia a unha da família toda e era muita gente, sei lá, umas 15 pessoas que ela atendia num domingo. E a gente não se via final de semana, a gente lá em casa tirou o negócio de greve desde muito criança, então chegou o momento em que a gente começou a parar de falar com a minha mãe quando ela chegava porque no final de semana, a gente não tinha visto ela. Ela negociou na casa de Dona Eimar pra levara agente um domingo sim e um domingo não. E aí era massa, tipo, não sentia nenhum problema de conviver com a família, a gente brincava, ficava lá na piscina e comia todo mundo junto…
P/1 – Comia todo mundo na mesma mesa?
R – Todo mundo na mesma mesa, não tinha… tinha lugares, por exemplo, que eu percebia que a gente… eu tô aqui me dando conta, eu particularmente, nunca comi na cozinha, não. Mas eu percebia que minha mãe, às vezes, comia na cozinha. E aí, tinha essas tensões do… eu não tinha muito essa noção de limites pra mim no espaço, então eu sempre fui muito educada. Eu nunca fui uma criança espevitada, que gerasse preocupação, no sentido de quebrar as coisas dos outros, sempre fui muito tranquila. Então, o fato de… acho que até o fato de ser muito tranquila, eu não tinha problema em transitar, eu sabia o que era conversa de adulto, o que não era conversa de adulto, então sempre fui… sempre sentei, ficava escutando…
P/1 – Mas você sentava assim, na sala, no meio dos adultos? Não tinha problema?
R – Não. Em alguns lugares, não. Lá em casa tinha problema, mas quando a minha mãe estava trabalhando, por exemplo, não tinha problema, eu sentava lá e ficava.
P/1 – Então, esse foi o primeiro momento. O segundo, então, foi quando você entrou no CEFET? Tô querendo entender em que momentos você foi saindo desse lugar e vendo…
R – É, talvez. Eu não tenho… eu acho que na igreja… na capela, a gente não era de maioria negra lá na capela, mas não era uma convivência conflituosa, por exemplo, assim. No CEFET, a convivência já era bem mais conflituosa…
P/1 – O que era uma convivência conflituosa?
R – Perceber que os estudantes negros que estavam no CEFET… a gente ficava o dia inteiro na escola e assim, tinha dias que a gente… e não era porque naquele período o ensino era integral, assim, eu já sou da turma em que o ensino era só meio período e você fazia o técnico se quisesse, o que era comum, 90% não querer, mas ainda assim, as disciplinas de exatas, elas sempre foram muito pesadas, então era comum a gente ficar tendo aula de manhã e à tarde, estar sempre em plantões. A galera tipo branca do colégio conseguia comer nos restaurantes em torno, tipo, a gente partilhava sanduiche, então essas coisas já eram mais visíveis, assim. E as piadas… no CEFET já era mais presente.
P/1 – Você tinha amigos brancos?
R – Sim, a gente tinha, inclusive, amigos brancos no coletivo de estudantes negros (risos). A gente tinha.
P/1 – Mas você em algum momento lembra se você se sentia mais pobre, menos bonita ou era super ok? Qual era a sua relação com essa…
R – Não, pra mim… eu… pra mim era ok, eu conseguia compreender o todo, mas não era individualmente. Acho que só teve uma história que pode ter tido uma relação individual, mas eu cheguei na sala e eu nem percebi que era comigo. Eu lembro que eu cheguei na sala e eram todos brancos e eles estavam fazendo tipo, aquele concurso de menina mais bonita. Era um período que eu usava trança. na minha sala tinha eu, Juliana, Cintia, todo mundo usava trança. E aí, tinha uma categoria lá que era nem de quem é feia, nem… era isso, era de quem é feia, tipo horrível, bonita. Aí tinha uma categoria lá que era tipo, bonita mas Medusa e as tranças no cabelo. Mas eu nem sabia que se tratava de mim e aí, depois, no rolê, nos burburinhos: “Jessé te acha bonita, se você tirasse as tranças, Jessé ia te querer” “Eu nem quero Jessé”, até porque ele era bem feio, inclusive. Mas já naquele momento… e eu acho que até por fazer parte do coletivo de estudantes, eu racionalizei, tipo, muito rápido o que tava acontecendo. Então, eu não vivi essa… esses efeitos, assim, tipo direto individualmente, porque no Coqueiro Grande, eu era a Barbie preta, então assim, o meu apelido até hoje é de Barbie preta. Na escola, no Padre Palmeira, assim, entre as colegas e tal, eu acho que eu fui uma das meninas que mais namorei. Então, tipo, essas histórias de tensão, de dor mais individual eu não consigo… não tenho mesmo. Consegui não ter. Acho que o que me pega mais nesse sentido era perceber e aí, eu não consigo nem verbalizar, era perceber formas de que a minha mãe era tratada no processo de trabalho, sabe, então tem um negócio que é muito sutil. Assim, eu lembro que com alguns clientes, eu desconhecia a minha mãe, porque ela precisava se colocar num lugar tão… a minha mãe falava até mais baixo, saca? Ela precisava falar até mais baixo em alguns momentos para fazer a unha de alguém e eu ficava imaginando: simplesmente não faz, vai fazer unha de Gilca que é mais legal, a gente chega lá, conversa, troca ideia, eu podia levar o jornal da casa dela, era muito mais tranquilo. E aí, racionalizando, aí eu sei que era um… que tinha a ver com essas questões raciais, assim e consequentemente, eram lugares em que as clientes não gostavam de me ver, que me achavam com o olhar petulante demais. Tinha uma cliente de minha mãe que disse pra ela que não era mais pra me levar não, que o meu olhar era muito petulante e que lá não estava pronta para aquilo.
P/1 – E você sabe dessa história como?
R – Porque a minha mãe me contou porque eu não ia mais lá. Mas também me contou rindo, falou: “Vê se pode, ela me disse que você não pode mais ir na casa dela, não que o seu olhar é muito petulante. Vê se pode Barbie.”, aí eu falei: “É bom que ela tenha medo de mim, mesmo”. Eu nunca vi graça nas coisas, minha mãe sempre partilhou coisas, situações que ela viveu, porque para mim são tensas no trabalho de um lugar de graça. Eu nunca vi graça, desde pequena. Nunca, nunca vi graça naquilo, continuo sem ver, inclusive.
P/1 – Bora voltar para o CEFET. Você tá lá, você tá no CIPÓ, você tá… por que você entrou no CIPÓ?
R – Na CIPÓ? Porque eu estava assistindo Sessão Da Tarde e aí, passou “A Lagoa Azul”, e naquela semana, a gente tinha lavado o tanque da casa de tia Nenga com anil, saca, e depois que lava o tanque, bota lá anil e o anil deixava água muito, muito azul. Tava lá de boa assistindo “A Lagoa Azul” e aquela lagoa era tão azul quanto o tanque de tia Nenga e aí eu fiquei pensando: será que no cinema eles usam anil? porque a cor do mar da “A Lagoa Azul” não era igual a cor do mar de Salvador, e aí, eu fiquei nessa pira: quanto de anil eles precisaram usar no filme. E aí, eu falei pra minha mãe: “Quero fazer filme” ‘Pra quê?” “Pra aprender como que se faz mar com anil, acho que pode ser massa esse negocio”, e aí, lá em casa a gente teve essa coisa, né, tudo que a gente disse que queria ser minha mãe deu um jeito de colocar ferramenta na mão da gente, saca? Aí, um dia, ela chegou em casa com um folhetinho e falou: “Na Pituba, tá tendo uma seleção aí pra jovens que querem fazer cinema. Você ainda quer fazer mar com azul anil?” “Quero!” “Então passe na seleção”, aí me inscreveu, aí eu fui lá, foram três dias de seleção, passei e comecei a fazer a CIPÓ mais nessa pira, não aprendi a fazer mar com anil lá não, mas aprendi a fazer bastante coisa (risos), e foi assim que eu cheguei na CIPÓ assim. E aí foi, mas foi muito… foi um lugar muito mágico de alguma forma, porque foi num momento em que eu estava na crise com o teatro, que já fazia teatro há mais tempo lá no CEAFRO, só que tinha uma parada… eu lembro que a gente tinha feito naquele mesmo ano a nossa primeira apresentação no teatro Miguel Santana. A gente tinha passado o ano inteirinho ensaiando aquilo. Aí, tinham os combinados, todo mundo tinha que levar saia, tipo os figurinos, as coisas. Minha mãe ficou trançando o meu cabelo durante três madrugadas pra eu ficar com o cabelo do jeito que precisava ser para a peça. Ela só podia trançar o meu cabelo à noite, porque ela trabalha o tempo todo, então, ela ficou tipo três dias trançando o meu cabelo. E ela começou trançando tipo circular, aí quando a gente parava de manhã, ela prendia assim, ficava tipo um coqueiro e eu ia pro colégio, ela ia trabalhar, quando ela chegava do trabalho, ela continuou trancando, aí fechava de novo e a gente ia, no terceiro dia, ela terminou. E já era um dia antes da apresentação. Então assim, foi muito trabalho, muito esforço no processo. Aí, minha bisavó me emprestou a saia que a gente precisava levar, era uma peça sobre as rendeiras e aí, eu lembro de pedir para ela mais quatro saias, porque eu tinha certeza que alguém ia esquecer. Aí, ela me deu as saias, eu levei, mas eu lembro que eu ficava no ônibus rezando: tomara que ninguém esqueça, tomara que ninguém esqueça, mesmo eu levando as saias. Aí, era dito e certo, esqueceram, mais gente do que saia, inclusive, esqueceram o figurino, eu fiquei muito irritada com aquilo. Não só isso, mas na hora da peça, esqueceram fala, então a gente precisou improvisar muita coisa e a gente já tinha passado um ano trabalhando naquilo. E aí, depois que tudo acabou, a plateia aplaudiu e tal, eu tava muito irritada e aí, as pessoas que esqueceram, fala, que esqueceram figurino estavam lá tipo, sorrindo pra plateia, chorando de emoção, indo dar entrevista para o Jornal da Tarde, falei: “Como é que pode um negócio desse?”, eu tava bem na crise, bem, bem na crise com o teatro. E aí, já tinha decidido que não iria mais fazer parte do grupo de teatro, só precisava descobrir como é que eu ia falar isso pra minha mãe. Minha mãe não gostava que deixasse as coisas. E aí, chegou… quando eu fui para a CIPÓ, eu tava no céu porque era tudo planejado, era tudo muito planejado, se você tava responsável pela câmera, você tinha que um dia antes botar a bateria para carregar, se a bateria chegasse descarregada, a responsabilidade era sua, todo mundo sabia que a responsabilidade era sua. Isso não significava dizer que eu não poderia te lembrar de carregar a bateria. Então assim, o processo de divisão de responsabilidade, assim, tipo me deixou muito, muito confortável. E aí depois, aí eu lembro da nossa aula de câmera que eu me senti mexendo na câmera como se eu mexesse em relógio, sabe? Pudesse dixavar ela todinha e aí, eu fiquei tipo, muito encantada. Eu lembro que eu falei para o Vinicius Drummond que era da mesma turma, falei assim: “Vini, acho que é isso, é por aqui. Acho que dá para falar com o mundo, cinema vai ser fantástico”. E aí, a gente começou a fazer as coisas. Nosso primeiro filme na CIPÓ foi “Impressões do Candomblé”, e a gente gravou lá no terreiro porque Sami era um outro colega, um menino negro, inclusive, Sami era evangélico e aí, eu chegava na CIPÓ, todas às vezes que eu chegava, Sami tinha uma piadinha de Jesus vai prender Exu, meu Deus que menino chato. “Cuidado vocês que passam por aí porque existe alguém aqui que dorme com Exu”, todo dia era uma piadinha de Sami. Um dia eu não aguentei e dei um murro nele, mas bati, cacetei ele todo, aí foi um problema! Aí, a gente foi parar onde? Na sala de Mario Travazo e Ana Pinheiro. Aí, eu lá muito séria, aí: “Por que eu tinha batido? A gente não podia resolver as coisas na violência” “Mas ele foi violento primeiro” ”Não, mas violência física” “Pra mim não tem diferença entre violência física e violência verbal, ele apanhou porque ele mereceu”, mas a gente tinha que resolver de uma forma amigável, né? Aí, deram pra gente a missão de fazer um seminário. Aí, a gente foi fazer um seminário onde todos os jovens precisavam expor sobre a sua religião, aí eu fui falar sobre o Candomblé, ele falou sobre a igreja evangélica. o Juraci dos Anjos falou sobre a igreja católica, aquela coisa toda e a, acho que no final daquela semana, a gente precisava… era a etapa da gente definir sobre o que seria o nosso trabalho de conclusão daquela etapa do processo de formação. Aí, todo mundo decidiu que queria fazer um filme sobre impressões do Candomblé, que era o titulo da minha exposição. E aí, a gente foi fazer o filme, tipo, todo mundo junto e aí, esse clipe acabou sendo gravado lá em casa, depois foi aquela etapa de negociar com a minha vó pra gravar lá, aí foi muito massa, porque… aí a minha mãe cozinhou pra todo mundo e os meus primos se envolveram pra carregar as coisas, pra construir as coisas que a gente precisava, aí várias coisas que a gente pensou num roteiro não dava pra fazer, aí a gente precisou rever o roteiro enquanto a gente estava lá. A gente foi pegando os meus primos pequenos, colocando no roteiro, o meu irmão pequeno colocando no roteiro e aí, foi muito massa. Fiquei até amiga de Sami depois do filme (risos).
P/1 – E foi ali que você decidiu, então, que você queria fazer cinema?
R – Sim.
P/1 – Ali foi o seu momento?
R – Ali eu não tinha mais dúvida.
P/2 – E a faculdade de Direito, ela vem nesse momento ou vem depois da CIPÓ?
R – É meio tudo junto ali porque estava nessa fase de decidir o quê que ia fazer, eu lembro que eu cheguei em casa e falei pra minha mãe que eu ia fazer Antropologia, que eu ia fazer Ciências Sociais para me especializar depois em Antropologia. Aí a minha mãe me perguntou: “Você conhece algum antropólogo rico?”, eu falei: “Eu não conheço nem antropólogo, quem dirá rico”, e aí aquilo ficou: poxa, não vai poder ser Antropologia. Mas eu queria mesmo fazer Cinema, já. Mas não tinha na UFBA e na UFBA só tinha Comunicação e eu já entendia que Comunicação e Cinema não era a mesma coisa e que iria me levar para outros caminhos, mas eu gostava muito da ideia de fazer Ciências Sociais e gostava muito de Antropologia mesmo. Aí, chegou um período em que a gente tava no CEAFRO organizando as coisas para pró-cotas nas universidades e aí, lá no Jonegra… nossa, é tanta coisa, Viviane. Tinha um coletivo de jovens negro do CEAFRO que era o Jonegra que é diferente do coletivo de estudantes negros no CEFET. No Jonegra, a gente estava muito ativo nas atividade pró-cotas nas universidades e a gente estava estudando muito sobre ações afirmativas e naquele momento, o principal impasse era provar para o Brasil que ações afirmativas era uma questão constitucional e aí, eu comecei a pensar… uma galera naquela geração, a gente começou a pensar que era importante que a gente ocupasse o sistema de justiça para conseguir provar aquelas coisas que a gente acreditava. E aí, eu lembro que eu, o Henrique, Diogo, a gente decidiu que a gente iria fazer Direito e aí, quando eu voltei para casa e falei pra minha mãe: Quer saber? não vou fazer Antropologia, não, vou fazer Direito” “E minha filha, desse jeito que se pensa, faz Direito mesmo, acho bom. Já até pensei em ser advogada um dia também. Se você for, eu já estou feliz”, e aí não teve conflito, né, entre o fazer Direito. Mas o startup para o Direito pra mim foi a partir do refletir ações afirmativas, saca? Aí depois disso… isso falando com 16 anos, por aí. Aí, eu já tava na CIPÓ, aí fiquei na CIPÓ até 17 e meio, aí eu já tinha muita certeza que já era Cinema e Direito pra mim era a segunda opção, porque não tinha possibilidade de ser Cinema em Salvador porque não tinha na UFBA, não tinha na UNEB, que eram as públicas e na FTC que era onde tinha… era a única universidade que tinha na época era extremamente caro, mas era muito caro, assim, e não tinha um sistema de Bolsa, nada que fosse possível imaginar estudar na FTC naquele contexto assim, da vida. E aí, eu comecei a estudar junto com os colegas do CEFET pra passar na UFBA e fazer Direito na UFBA. Aí, tudo aconteceu (risos).
P/1 – O que aconteceu?
R – O que aconteceu? O integral fez um parceria com o Sistema Elite de Ensino que é uma rede de educação aqui de São Paulo, aí eles foram pra lá para levar os cursinhos by formato Anglo e o outro é… esses cursinhos by Anglo daqui de São Paulo e foram para o CEFET para fazer a divulgação. Aí no processo de divulgação, eles tinham uma prova que era o seguinte, você ia fazer a prova e se você acertasse 100% da prova, você tinha 100% de Bolsa, tipo no CEFET, a gente se achava todo mundo extremamente inteligente, então a gente fechou uma galera, decidiu fazer a prova e era todo mundo da área de humanas,. porque era dividido, né, você tinha a prova para turma de exatas e a prova para a turma de humanas. Eu fiquei um pouco em dúvida se eu ia fazer para de exatas ou de humanas porque quando eu tava na Escola de Cadetes, em algum momento, eu pensei em prestar o ITA porque eu ficaria mais próxima do rolê lá de ser piloto. Aí eu fiquei em dúvida: aqui poderia ser uma chance de entrar no ITA. Mas todo mundo ia fazer humanas e eu queria fazer Direito, aí eu fiz a prova pra turma de humanas. Eu lembro que eu acertei 85% da prova, aí eu tinha 85% de Bolsa no cursinho, mas tinha que pagar 15. Aí, 15 na época era um valor em torno de 360 reais, uma coisa assim. Era impossível para a minha mãe pagar. Aí, eu propus para eles esse trabalho: “Olha, 85 já tá garantido, falta 15%, eu posso trabalhar para vocês no processo de divulgação, eu conheço muita gente na cidade, tô envolvida em vários movimentos, então eu posso falar muito do cursinho e colocar o cursinho em outras redes e vocês me liberam dos 15%”, aí o coordenador topou. Depois de duas semanas, ele falou assim: “Esquece esse negócio de divulgação, você pode ficar focada só estudando”. Aí, eu tava no paraíso! Aí, a gente ficava lá, eu saía do CEFET… esse foi o único período onde eu me liberei de todas as outras atividades, aí ia para o CEFET de manhã, ia para o integral à tarde e aí ficava nesse bate-bola entre o CEFET e o integral e quando chegou no mês de junho, nas férias de São João, rolou uma reunião no cursinho de que a turma de humanas não se pagava, então eles iam fechar a turma de humanas, íam permanecer só com a turma de exatas porque era uma turma com muito bolsista, mais da metade do CEFET, então não pagava os custos dos professores, eles não estavam conseguindo manter e aí, eu fiquei bem chateada, porque eles me transfeririam ou para… para outras escolas do mesmo nível, na cidade, ou Mendel ou Sartre, mas indo para lá, eu teria que mudar de negociação, né, então eu iria pra lá com 85% da Bolsa e os 15% eu teria que pagar para o Sartre ou para o Mendel e eu não tinha esses 15%. Aí eu fui conversar com eles juridicamente. Falei assim: “Seguinte, a gente tem um contrato aqui, vocês chegaram, vocês prometeram isso, eu fiz a minha parte. Agora vocês precisam entregar porque senão, vocês estão acabando com a minha vida e eu posso processar vocês”, aí conversei com Samuel Vida que é um advogado lá em Salvador. Samuel disse que eu tinha razão, aí perguntei se eu poderia contar com ele, caso eu precisasse entrar com ação, ele disse que sim, mas ele nunca foi a nenhuma reunião lá no integral comigo (risos) e aí, nesse processo, o coordenador me perguntou qual era a alternativa, então, pra gente não precisar ir para essa seara judicial. Aí, eu falei: “Vocês têm uma outra unidade que é a matriz que é lá em São Paulo, me manda pra lá, eu vou pra lá estudar”, aí eu lembro de André, ele ficou extremamente horrorizado, falou: “Menina, não tem condições de você ir para São Paulo. Como é que você vai se manter lá?” “E só vocês me darem Bolsa integral lá” “Mas como, vou dar Bolsa integral pra você lá, você vai viver como naquela cidade?” “Os 15% que eu deveria te pagar, você me paga e eu vivo lá” (risos). Eles toparam e aí, eu só tinha uma outra etapa que era convencer minha mãe de tudo isso. Ele falou: “Tudo bem, mas e sua família, concorda?” “Minha família não sabe, mas vai saber, vai concordar” “Então tá bom, sua família tem que vir aqui para conversar com a gente, a gente faz o contrato tudo direitinho, você vai para a unidade de São Paulo, mas você vai para Campinas, para a capital não” “Tá bom. Aí fui pra casa, falei primeiro com a minha tia Marlene, que a minha tia Marlene é a irmã mais velha de minha mãe, então a minha mãe tem que obedecer. Aí falei: “Minha tia, surgiu uma oportunidade, fiz uma prova lá no cursinho e aí, era uma prova para uma Bolsa de estudos lá em São Paulo, só os melhores vão para lá. E acredite, eu passei em primeiro lugar nessa prova”, aí a minha tia falou: “Aí minha filha, que legal e agora?” “Minha tia, agora eu vou ter que me mudar, né?” “mas como é que a gente vai te manter em São Paulo?” “Não tem problema, eles vão me dar a Bolsa e mais um dinheiro para eu viver lá” “Ótimo, não tem problema” “Tem que avisar para a mamãe” “Mas sua mãe vai deixar, o que é isso? É o seu sonho, a gente não pode cortar a sua sorte” Eu posso contar a ela na sua casa?” “Pode”. Aí de noite, minha mãe chegou do trabalho, eu tava na casa de minha tia Marlene assistindo novela, aí minha mãe veio pra casa de minha tia, aí chegou toda feliz, minha mãe é toda espalhafatosa, aí chegou lá toda feliz contando várias coisas e eu tensa, tensa, muito tensa. Aí minha tia lá passando roupa: “Barbie, não vai falar pra ela, não?, aí minha mãe: “O que foi? O que foi que você aprontou? Você bateu em alguém, Viviane?”, eu batia muito nas pessoas. “Você bateu em alguém Viviane?” “Não minha mãe, não bati em ninguém” “O que foi?” “Não minha mãe, e que aconteceu uma coisa muito legal lá no cursinho”, aí repeti a história, né? Uma oportunidade, fiz uma prova, passei em primeiro lugar e ganhei um prêmio, vou para São Paulo” Vai pra onde?” “Pra São Paulo, minha mãe”, ela quase quebrou a casa de minha tia inteira: “Você não vai para lugar nenhum, você acha que eu sou sua pareceira. Vou deixar você se despencar daqui para São Paulo sozinha? Você não é dona de sua vida! Você só vai fazer 19 anos, Viviane!” “Mas minha mãe, é para estudar” “Vai estudar quando tiver na sala e quando tiver fora da sala, vai fazer o quê?” “Vou estudar também”. E aí, foi uma confusão. Ela quase quebrou a casa toda, falou, falou, bradou, bradou, bradou até que a minha tia fez: “Psiu, cale a boca. Pare de tremer, presta atenção. Alguém aqui já cortou a sua sorte? Por que vai cortar a sorte da menina? Se ela quer ir, lá vai, vai estudar, se ficar com saudades, volta. Se não der certo, volta também. Algum aqui tá em pau de arara? Não tá indo de pau de arara e nem nada!”. A minha mãe ficou com muita raiva e eu lá tensa, já tinha feito a minha parte. Agora era a vez de minha tia, aí a minha tia fez a parte dela direitinho de irmã mais velha, minha mãe ficou um tempão no silêncio, tremia desesperadamente. Aí: “Me conte aí como é que é essa história, que prova foi essa? mas me conte com todos os detalhes. Que dia você foi fazer essa prova?”, eu digo: “Meu Deus do céu”, eu tinha que lembrar o que eu tinha dito pra ela dos dias anteriores. Aí falei pra ela o dia que tinha sido: “Foi antes do São Joao” “Quando antes do São João?” “Dois dias antes” E o resultado saiu quando?” “Agora, a gente voltou de férias, na segunda-feira” “E por que você não falou nada? Você sempre chega falando, pede para rezar e tudo.” “Porque eu não tinha tanta certeza, era todo mundo muito bom, eu tava achando que eu não era tão inteligente assim pra passar”, aí enfim, aí expliquei pra ela, aí: “E quando é essa viagem?” “A gente tem que planejar, mas eu tenho que chegar lá até agosto, porque é quando começa as aulas” “Tá bom, eles já emitiram a sua passagem e tudo, sem eu assinar?” “Não, o diretor tá esperando a senhora ir lá, quando a senhora chegar lá, vai conversar tudo direitinho, mas eu só vou se a senhora quiser, se a senhora não quiser, eu fico aqui”, aí ela foi comigo depois lá no integral, aí conversou com o coordenador André, ele explicou tudo direitinho e eu morria de medo dele contar exatamente como a gente tinha chegado nessa conclusão. Mas ele não contou, não, ele só falou que ia fechar, e que alguns alunos estavam sendo distribuídos em outras escolas e que eu era uma ótima aluna, que poderia vir para a matriz e não sei o que… aí, a minha mãe entendeu e aí, foi nessa reunião que ela descobriu que a gente teria que dar conta das passagens, né, porque eu tinha ganhado uma Bolsa, mas as passagens… viajar, pero no mucho. Aí, a gente voltou para casa, ficou pensando ela processando assim, eu lembro que foi muito difícil pra minha mãe processar que eu tava pedindo pra sair de casa, porque a gente nunca tinha falado nessa possibilidade, nunca tinha sido algo aventado, tipo, sair de Salvador para estudar em outro lugar. Não era algo assim, eu lembro de pegar o mapa da USP e falar pra minha mãe: “Olha aqui mãe, eu vou morara aqui na Cidade Universitária, é nesse lugar que fica o CRUSP, é nesse lugar o prédio da ECA, então assim, vai estar tudo tranquilo, tá vendo quantas arvores? Tem até um laguinho ali” “Mas você tem certeza? Mas daqui até aqui você vai andar como?” “Minha mãe, tem os transportes internos, lá é tudo muito organizado, eu não vou sair desse perímetro, não vou nem… esse mundo todo que é São Paulo, eu não vou nem chegar perto, eu vou ficar lá, dentro da Cidade Universitária”, essa conversa olhando para o mapa da USP a gente teve algumas vezes, assim. E aí, quando… a gente foi organizar as coisas para viajar e aí, nesse processo de organizar para viajar, eu fui falar com a minha vó, aí minha vó topou de primeira, só me pediu pra chegar aqui e ter cuidado com os parques, porque ela sabia que o maníaco do parque estava solto, então não queria que eu visitasse parque aqui sozinha. Aí, quando o meu tio, irmão do meu pai ficou sabendo ficou desesperado, aí foi lá em casa, chamou a minha mãe de irresponsável, como que ela ia me deixar vim sozinha pra São Paulo, foi o único que fez um micro escandalozinho. Mas aí, a minha mãe colocou logo ele no lugar dele , ela disse que ela que era a minha mãe e que ele cuidasse da filha dele, que da filha dela ela que dava linha. parecia até que ela tinha tido a ideia e eu vim para São Paulo…
P/1 – E aí, ela arrumou o dinheiro para você vim?
R – E aí… não, aí o processo para vim, eu era do coletivo do CEAFRO, e aí, lembro de ter falado para a Luiza Barrios que eu viria pra cá e explicado todo o processo e a Rede de Mulheres Negras, assim, promoveram algumas reuniões para organizar e ajudar nesse meu processo de vinda, então Luiza conseguiu as minhas passagens de avião, por exemplo. E as passagens porque eu tava muito de boa, achando que tudo ia dar muito certo, então eu só queria a passagem de vinda, aí eu lembro de Luiza conversar comigo no Pelourinho e falar: “Olha guria…”, Luiza era de Porto Alegre, vicia em Salvador, disse: “Olha guria, você não vai sair daqui só com passagem de ida, não. Você só vai se for com passagem de ida e volta, porque você precisa saber que você tem para onde voltar. São Paulo não é o lugar mais simples do mundo, você quer ir, tudo bem, mas você precisa saber que você tem para onde voltar”. Aí, elas abriram uma poupança pra mim, minha mãe e a minha tia Marlene abriram uma poupança, aí a Rede de Mulheres Negras e outros militantes também, porque tinham professores lá do CEFET, Professor Jaime Sodré que era meu professor, Professora Lucia que era esposa de Professor Jaime e era minha professora de Desenho. Algumas reuniões foram, inclusive, na casa deles dois. Então, o movimento negro, assim, de alguma maneira se mobilizou e eu lembro que eu cheguei aqui em São Paulo com…
P/1 – O movimento lá tinha alguma relação, tinha movimento aqui que era correspondente?
R – Aí sim, aí o que aconteceu nesse processo? Eu cheguei aqui eu acho que com uma poupança de dois mil reais, 2004, que eu não podia mexer, que era a minha segurança, saca? E aí, recebia do cursinho 402 reais por mês, minha tia Marlene… a minha poupança era junto com a minha tia Marlene, que aí ela conseguia visualizar de lá os gastos nessa conta e inicialmente, eu ia para Campinas, aí o que aconteceu? Já estava tudo certo, passagem pra Campinas, tudo organizado, aí eu encontrei na internet uma pensão pra estudante. Era a pensão de Dona Zazá, uma coisa assim. Aí, minha mãe e minha tia inventaram de ligar para a Dona Zazá. Aí, elas ficaram nesse telefone conversando com a Dona Zazá por umas três horas, aí desligaram com o diagnóstico: “É um prostíbulo, você não vai para lá, não” “Minha mãe, estava lá na internet, é uma pensão de estudantes, pelo amor de Deus” “Não Viviane, é prostíbulo, aquilo é prostíbulo, pra lá você não vai, não. A gente vai ter que ver uma outra coisa”, e eu viajaria no dia nove de agosto e no dia dez de agosto lá em casa, lá no terreiro, é a Festa de Tempo. Aí, o tempo de minha bisavó chegou no dia sete, por aí e deu o recado que eu não podia viajar antes da festa dele. Aí começou toda uma movimentação para mudar a minha passagem, porque eu já tava com a passagem comprada para o dia nove. Aí, essa passagem foi modificada para o dia 14 de agosto e aí, ela foi modificada para São Paulo porque André entrou em contato dizendo que a vaga que tinha sido direcionada incialmente para campinas já não existia mais, aí a vaga tinha surgido aqui em São Paulo e foi bem nesse período que a gente precisava mudar a data, aí André tinha esse problema que não tinha mais a vaga de Campinas, aí a gente aproveitou, mudou a data e o destino da passagem, e aí, a gente tinha um problema que era onde é que eu ia ficar. Porque a gente já tinha conseguido uma outra pensão que para a minha mãe e a minha tia não era prostíbulo, já que a de Dona Zazá era e tinham poucos dias para resolver a vinda para capital. Aí, Luiza lembrou que aqui na capital morava a Doutora Maria da Penha, que era advogada também, de Pernambuco e já morava aqui em São Paulo há uns 40 anos, era do movimento negro também e aí, a Doutora Penha, ela tem uma casa aqui na Vila Madalena e o quarto… quando ela comprou a casa já com edícula, essa coisa toda, então o quarto que era edícula, ela transformou em quarto de estudante, então ela sempre alugou esse quarto da casa para estudantes negros e aí, só para estudantes negros, porque era a forma que ela achava que podia contribuir pra galera que passava na USP ou morava muito distante, na própria cidade e aí, poderia morar mais próximo e pagando muito mais barato do que morar na Vila Madalena ou para quem vinha de fora. E aí, esse quarto tava vago nesse período, então eu fui pra casa da Penha. inicialmente, eu nem iria ficar no primeiro dia que eu cheguei na casa da Penha, eu ia visitar o quarto, eram uns quatro dias depois, então eu ia para a casa de Meire Cazumbá que é uma outra advogada negra, ela é descendente de Quilombola, veio pra cá com a família, tipo, muito cedo e aí, ela tinha… ela era amiga de Raimundo lá de Salvador, que é do movimento, também e de Toninho, aí eles entraram em contato com ela e pediram pra eu ficar uma semana na casa dela e aí, pra ela ir me pegar no aeroporto, ficar na casa dela, ela conhecia a Doutora Penha também, aí depois, me levar na casa da Penha para conhecer o quarto, ver se dava para ficar lá. Aí, de alguma maneira, eu tava na rede, já, assim, do movimento. Mas aí, Meire me esqueceu no aeroporto. Aí, eu cheguei no aeroporto: “Cadê Meire?”, não tava lá. Liguei pra ela, ela tinha esquecido que eu chegava naquele dia, já comecei a gastar o meu dinheirinho, porque aí, ela me pediu para pegar um taxi em São Paulo, não fazia ideia de quão caro era taxi na vida. Mas peguei o taxi e era para encontrar ela exatamente na casa de Doutora Maria da Penha. Aí, eu cheguei na casa da Penha, aí lá falou assim: “Eu ia arrumar o quarto, limpar o quarto para você, mas já veio pra aqui mesmo, você é baiana, não vai se importar com isso. vai lá ver, vê se você gosta”, um mofo, mas tinha tanta coisa fora do lugar, ela me perguntou: “Você quer o quê? Você quer ficar aí arrumando o quarto ou você quer sair para tomar cerveja com a gente?”, eu preferi sair para tomar cerveja (risos). E aí pronto, aí eu fiquei morando na casa da Penha desde então.
P/2 – Qual foi a sua impressão chegando aqui em São Paulo, assim, seu primeiro…
R – Eu tava bem preocupada com aquele taxímetro, tô sendo bem sincera. Aquele numerozinho ia crescendo rápido demais, e aí, eu estava lá olhando para ele fixamente. E aí, rezando para que o dinheiro de bolso desse pra pagar aquele taxi, porque se ultrapassasse o dinheiro de bolso, ia ficar bem irritada de ter que sacar dinheiro pra pagar o taxi. Mas eu lembro muito dessa tensão com o taxímetro, muito. E aí, era tudo muito… as vias com muito trânsito, eu ficava pensando: cara, e se esse cara não estiver me levando para o lugar certo? O que é que eu vou fazer? Não dava para resolver as coisas com… tipo, o meu celular da época era um tijolão do Nokia, saca? SMS, não dava para resolver as coisas do jeito que a gente resolve hoje mandando a foto do Uber pelo whatsapp. Mas eu fiquei muito preocupada com o taxímetro. Era isso. Mas lembro do cheiro quando eu cheguei na Vila Madalena, sim, porque me lembrava um cheiro lá de casa também, que lá em casa, na porta lá de casa tem um pé de jasmim, e aí, na frente tem um pé de jasmim e perto do pé de jasmim tinha muito pé de pitanga, então tinha muita folha de pitanga, então o cheiro de jasmim, ele é um pouco doce e a pitanga é mais cítrica e o cruzamento disso dá um negócio bem diferente, assim, o encontro do cítrico com o doce do jasmim. E eu gostava muito. E na casa da penha… assim, quando eu cheguei na casa da Penha tem um pé de flor que não é jasmim. Na frente da casa e na casa da vizinha, assim, do outro lado tem um outro pé de árvore que dá, eu não sei que fruto é aquele, uma dessas coisas que não se come, mas que é mais cítrico e aí, dá o mesmo cruzamento, tipo, não é o cheiro do jasmim, mas é um floral com cítrico e aí, eu lembro que quando eu cheguei, que eu desci daquele carro, que eu gostei bastante de sentir aquele cheiro. E a casa era laranja e aí, eu já achei a casa bonita, porque era laranja e branca, achava massa assim. Aí, tem uma outra coisa que eu lembro da casa quando eu cheguei, a gente saiu, foi tomar cerveja, voltou e tem uma escada caracol na casa, aí eu fui pra cozinha. Aí, eu entrei na cozinha, acendia luz, aí eu poderia ir para o meu quarto ou pela cozinha ou por fora, porque tem uma entrada e saída independente. Aí, eu fui por dentro, subi com a Penha, ela tava bebinha (risos), aí subi com a penha, deixei ela no quarto e a, fui pela cozinha, aí acendi a luz pra passar e quando eu tava na segunda porta de saída da cozinha, aí a Penha falou: “Apaga a luz da cozinha”, aí eu voltei para apagar no lugar que eu tinha ascendido. Aí, ela tava em pé no corredor, ela falou assim: “mas tá besta? Por que voltou pra apagar a luz se pode apagar lá?”, eu fiquei assim: como assim? E aí, eu lembro de falar para a minha mãe pelo telefone: “Nossa, o sistema elétrico aqui é massa, você ascende a luz em um porta e apaga na outra, minha mãe”, tipo, não precisa ficar voltando e voltar tropeçando no escuro não. E eu lembro muito dessa coisa do pensar o sistema elétrico da casa, que foi muito no primeiro dia que eu cheguei assim. Aí, subi, dormi, arrumei só a cama e fiquei lá.
P/1 – E aí, Vivi, você entrou no cursinho, o que aconteceu depois desse cursinho? Você entrou no cursinho?
R – Isso, aí eu entrei no cursinho, aí eu vim pra cá… aí a fase do cursinho foi massa, assim, era um cursinho árabe aqui… era na rua Estela, no Paraiso e aí, eu cheguei no cursinho e era uma das coisas mais doidas, porque eu achei que ia continuar estudando coma galera branca mais descolada que tinha no CEFET, que tinha no integral também e que tava muito tranquila, eu me sentia muito confortável, saca, não tinha problema. Caramba, mas aqui no Alferes, o Alferes era todo mundo árabe, então eu não sei o que eu tava fazendo lá, a gente tava tendo aula, aí tem uns horários específicos para as orações e a gente interrompia a aula porque a galera esticava o tapetinho, ia lá e fazia as orações. Aí, eu ficava junto, eu e os poucos tipo brancos não árabes que estudavam lá esperando o rolê, então tinha o período do Ramadã, por exemplo, acho que triplica os horários de oração, nossa senhora, quantas voltas a gente ia dar no posto de gasolina e voltava. Aí lembro que os colegas iam fumar, eu não fumo, o meu vicio era Mentos. Aí, eu ia pro posto, aí comprava Mentos e voltava, ia pro posto, comprava Mentos e voltava. Mas foi o período também que tipo, aprendi a comer comida árabe, era massa sair com os meninos e dançar. Aí, tinha que ligar que no período do ramadã, a gente não podia abraçar os meninos e foi massa, assim, o processo de convivência. No Alferes, eu entendi que não ia rolar ir para a turma de exatas porque a gente ficava fazendo disputa de equação no quadro, nossa senhora, no CEFET eu ganhava, mas no Alferes, não dava, os caras eram muito, muito feras. E foi um período massa. Mas aí, no primeiro ano, 2004, no final de 2004 eu prestei para ECA, fiz o vestibular e tal de boa, prestei ECA, FAAP, me inscrevi na PUC, mas eu esqueci o dia da prova da PUC, aí eu não fiz a prova da PUC, aí eu fiz FAAP, aí a ECA eu não passei por conta de um ponto na primeira fase, aí foi um desespero. Aí eu passei na FAAP, mas a FAAP era mais cara do que a FTC lá em Salvador, então não faço nem ideia do porquê que eu fui fazer aquele vestibular. Que ideia estapafúrdia, mas fiz (risos). Aí, não passei na ECA, aí era aquela coisa, tipo, eu não teria mais a Bolsa do cursinho, nem a grana do cursinho e tinha uma passagem de volta pra casa. Aí, demorei um tempo para falar pra minha mãe, falei que não ia voltar para o Natal aquele ano, aí depois eu expliquei que eu não tinha passado, aí ela falou assim: “Então tudo bem, então você vai voltar. Não passou, tem uma passagem, vai voltar para casa, não tem nada não, minha filha, faz um vestibular aqui, entra na UFBA mesmo e tá tudo certo” “Pois é minha mãe, mas eu decidi que eu não vou voltar, não”, aí ela ficou tensa: “Você já falou com a sua avó?”, aí já era um período em que eu dialogava muito os processos de decisão com minha avó, assim, e aí eu falei: “Eu já liguei pra minha avó e já tomei a benção, eu já falei pra ela que eu não quero voltar, ela me disse que eu só preciso dizer pra ela como é que eu vou permanecer, se eu convencer de como é que eu vou permanecer, eu posso ficar” “Eu não concordo” “Se a senhora não concordar, eu não vou poder permanecer, porque a intenção não é fazer nada que a senhora não queira”. Aí, eu não sei quem conversou lá, se foi minha tia, minha vó, quando eu falei com ela numa outra ligação, aí ela falou: “Olha, se você acha que faz sentido, e você quer permanecer, então tudo bem, você quer permanecer, mas eu quero saber como é que você vai permanecer” “Tá bom, eu ainda tenho o dinheiro da poupança, eu não mexi em nada lá “Tudo bem, mas isso você não consegue viver três meses ai” “Mas nesse período, eu vou conseguir encontrar alguma coisa pra fazer e aí, eu vou conseguir viver os outros meses”, aí fui pra casa, a gente ficou nessa conversa. Aí, eu fui pra casa, conversei com a Penha e eu pagava no quarto da casa da Penha 120 reais, só hoje eu sei que aquilo não era aluguel, de verdade. Era tão difícil eu tirar da minha bolsa 120 reais. Aí, falei pra ela e fui negociar com ela, perguntar se eu poderia ter uma carência ali de uns quatro meses sem pagar o aluguel, porque eu não tinha passado, mas queria permanecer aqui, aí ela disse que tudo bem, mas que eram quatro meses, eu falei: “Tá certo”, e aí, comecei a ir para os classificados do jornal, que era a única coisa que eu podia fazer e diferente de como era a minha dinâmica em Salvador, quando eu cheguei aqui, eu não fui buscar uma rede, fazer outras coisas, eu fiquei muito fechada nas atividades do cursinho, o tempo todo. Então, não tinha, tipo, outras relações para além da gente de dentro de casa e as relações do cursinho, que um monte de gente não passou, inclusive, agora lembrando que a gente saía e ficava numa dinâmica do: “E agora que nós não passamos? o que faremos de nossas vidas?”. E aí, eu encontrei um anuncio do Data Folha pedindo pesquisadora de mercado. Aí, eu fui para a seleção do data Folha e passei na seleção, liguei pra casa e falei: “Eu tenho um emprego, então eu vou ficar em São Paulo porque eu tenho um emprego”, aí expliquei o que era, falei que era no Data Folha, aí todo mundo: “Nossa, data Folha, Folha de São Paulo, é um lugar sério, tá tudo bem, então você pode ficar”, aí eu fiquei nessa dinâmica, trabalhando durante o dia, aí eu fazia pesquisa durante o dia inteiro e aí, eu preferia fazer pesquisa presencial do que fazer por telefone, porque tem as dificuldades do bater à porta e tal, convencer a pessoa a responder, mas eu achava mais fácil pra mim do que ficar convencendo por telefone alguém que eu não tava vendo, achava muito chato fazer a pesquisa por telefone e aí, dava mais trabalho fazer a pesquisa presencialmente, assim, porque a gente aí para cada lugar… aí eu conheci São Paulo de verdade, porque foi Heliópolis, Cidade Tiradentes, não sei o que, a gente ia para muitos lugares pra fazer pesquisa. Eu trabalhava o dia inteiro e aí, à noite, eu ia para o cursinho. E aí, nesse ano, a unidade do Alferes fechou e aí, ficamos novamente ao Deus dará com essa rede de ensino. Aí, a unidade do Alferes fechou e eu fui pro Anglo da Consolação. Aí, eu ficava, fazia pesquisa durante o dia inteiro e de noite, ia pro Anglo estudar. Aí, prestei para ECA de novo, passei? Não, só que dessa vez, eu não passei para a segunda fase por dois pontos. Aí, eu falei: “Gente, não é possível, se eu tentar a terceira vez, vai ser por três, até ser por dez…”, aí eu lembro que eu falei com Luiza, muito desesperada, quando eu não consegui passar no vestibular pela segunda vez e eu lembro que eu tava fazendo a prova, chegou um momento que eu tava muito cansada, aí eu falei: “Eu tô muito cansada, eu acho que eu vou dormir um pouco e aí, depois, eu volto”, aí fiz lá, cronometrei, dormi 15 minutos, voltei, fiz a prova inteira, de verdade. Aí, quando saiu o resultado, fiquei na nóia: se eu não tivesse dormido! Foram duas questões. Ou se eu tivesse dormido mais cedo! As duas questões que eu errei foram aquelas que eu fiz quando eu estava cansada. essas coisas todas. E aí, nesse processo, aí eu liguei para a Luiza e falei pra ela: “Luiza, não sei o que fazer agora, como é que… minha mãe não vai me deixar ficar aqui mais um ano estudando e eu não passei de novo para a segunda fase”, aí Luiza me perguntou: “Guria, você quer estudar Cinema, ou você quer estudar na ECA? Porque são duas coisas diferentes”, e eu bem dramática: “Eu não vou conseguir fazer Cinema nunca mais, eu não consigo passar nesse vestibular”, e ela repetindo: “Mas você quer fazer Cinema ou você quer estudar na ECA? Porque se você quer estudar na ECA, você fica aí insistindo quantas vezes forem necessárias para você passar nesse vestibular, mas se você quer estudar Cinema, você vai ter que começar a pensar outras alternativas para fazer isso e aí em São Paulo tem outras alternativas”, e aí foi nesse processo que eu comecei a pesquisar outras escolas, outras escolas aqui além da FAAP que eu não ia ter dinheiro, mesmo, né, prestei a FAAP de novo, passei de novo(risos), aí não ia ter dinheiro mesmo, aí vi a Escola de Cinema, o Instituto Stanislavsky que tava com seleção aberta e aí, tinha o mesmo sistema do cursinho. Então, se você acertasse 50%, você tinha 50% de Bolsa… aí, a gente tinha que chegar lá e tinha que escolher qual era a área que a gente queria fazer a prova, se era para fotografia, se era para roteiro. Eu queria fazer de roteiro, aí eles me perguntaram se eu sabia quem era Syd Field, eu respondi: “Quem não conhece Syd Field, menino? Todo mundo sabe quem é Syd Field”, eu sabia? Não, nunca tinha ouvido falar no cara, para ser bem sincera (risos), mas não podia dizer, estava me inscrevendo e era pré-requisito conhecer o cabra, então eu conhecia desde criancinha. Aí, sai da escola com a missão de que tinha que voltar na data da prova para fazer a prova de roteiro e Syd Field era bibliografia básica. Aí, eu liguei para um amigo que tinha passado na PUC, falei assim: “Maurício, velho, vê o que tem na biblioteca da PUC aí desse cara”, aí ele viu lá: “Os Exercícios do Roteirista”, “Manual do Roteirista”, e aí conseguiu pegar pra mim, a gente pegou esses livros, aí conversou com o Vicentinho, aí a Doutora Maria da Penha conhecia Vicentinho, a gente foi no gabinete do Vicentinho na Assembleia Legislativa, aí xerocamos o livro todo, devolvemos para a biblioteca da PUC e aí, eu fiquei internada lendo Syd Field, entendendo quem ele era. Aí, quando eu fui fazer a prova, acertei 100% da prova, aí eu tinha 100% de Bolsa de novo, aí eu liguei para a minha mãe: “Uhuu, passei, vou estudar Cinema”, aí não precisava voltar para casa. Mas foi tudo muito rápido, assim, muito próximo do resultado do vestibular e aí, minha mãe demorou um tempo pra entender que eu não estava estudando na ECA, que era outra escola, embora eu tivesse dado a informação, não com tanta ênfase que era outra escola (risos), então ela não podia dizer que não sabia, mas ela demorou um tempo para entender que era outra escola e tudo bem que era outra escola, e que eu não tava, embora não tivesse morando na Cidade Universitária, eu tava morando em um lugar seguro. Porque nunca foi uma questão de: qual é a universidade? O lugar que você vai estar esse tempo todo na vida é seguro? Aí tinha todo o mito que eu tinha vendido da segurança, da prefeitura, da própria Cidade Universitária, da guarda da Cidade Universitária, ela se sentiu bem segura, aí eu ia pra outra escola que era um prédio no meio da cidade, ela começou… aí ela ficou muito preocupada fazendo essas comparações: “Essa outra escola é dentro da Cidade Universitária?” “Não minha mãe, mas é dentro de São Paulo”, enfim, vários trocadilhos nessa direção e aí, eu entrei nessa escola e entendi como era o sistema, são aquelas graduações de dois anos em meio e aí, falei: “Cara, é pouco demais e se isso não der certo?”. Aí, quando eu comecei a estudar lá na Escola de Cinema, a escola tinha uma dinâmica que as turmas só poderiam ter no máximo 15 alunos e aí, a minha turma iniciou com dez. Éramos dez alunos e os meus colegas eram as figuras que vinham de Alphaville, que o pai tinha mansão não sei onde e tinha numa sala de cinema na casa do cara com a tecnologia ray, saca, que recebia o sinal via satélite e ali, talvez, tenha sido o universo mais chocante do ponto de vista racial e de classe que eu vivi até hoje, assim, era impressionante como naqueles roteiros tinha… sei lá, e aí vem não sei quem com três limusines, aí ficava: “Como é que a gente vai produzir três limusines?” “Eu pego a do meu tio, eu pego a do meu primo, meu padrinho pode emprestar”, eu dizia: “Mas gente, de onde é que vem essas famílias?”, e quando a gente, eventualmente, fazia trabalhos nas casas dos outros, não, na minha casa ninguém ia (risos), quando a gente ia para a casa deles, assim, era um… é de fato um outro universo, assim, uma outra são Paulo que não é visível pra gente todo dia, saca? E aí, eu comecei a ficar muito assustada em como é que eu iria conseguir me manter nesse espaço que era o Cinema se eu não tinha aquelas mesmas possibilidades, depois que terminasse a escola, eu iria fazer o quê? Aí, eu fui, prestei o vestibular para Direito na UNIP, aí entrei em Direito via PROUNI e aí, fiquei estudando Cinema à noite e Direito de manhã, aí à tarde, eu sai do Data Folha… se bem que eu sai do Data Folha antes, nessa época eu já tava trabalhando acho que na Marplan, eram outras empresas de pesquisa também, mas parei de fazer pesquisa e fui trabalhar com a Doutor penha no escritório dela. Aí, eu ia pra faculdade de Direito de manhã, estagiava com a Penha à tarde e ia pra Escola de Cinema à noite. Aí, nos finais de semana, a gente sempre tinha coisas que a gente estava gravando o tempo todo, era um speed que a cada 15 dias, agente precisava gravar uma coisa diferente, então a gente estava o tempo todo produzindo, o tempo todo gravando. Então, os finais de semana eram assim, todos muito, muito, muito lotados, coisa de maluco.
PAUSA
VIVIANE_T03
P/1 – Então, o que eu queria era assim, você deu um panorama assim, da sua grande chegada e como você acabou se alinhando aí no Direito e no Cinema, e aí, eu queria dar um salto e entender assim, como foi a sua realmente entrada no mundo do Cinema de trabalho, e você dizer esse primeiro momento seu ou como você se tornou documentarista que eu acho que…
R – Tá. Quando eu estava na Escola de Cinema, a escola tem um sistema que era os alunos laureados, aqueles que sempre tirou as melhores notas, nunca faltou e bla, bla, bla, poderia ser escolhido para entrar como sócio na franquia, que a escola era uma franquia de um instituto norte-americano aqui, e aí, os caras ficavam lá se estapeando para receber o convite para serem sócios da escola. Obviamente, eu não via isso como possibilidade, porque para ser sócio, precisa ter capital, eu não tinha capital, então eu não tava na corrida do ouro nesse sentido. E eventualmente, faltava por conta das atividades do Direito e porque eu dormia, também. E aí, quando terminou o… quando a gente estava terminando a escola, eu já tava juntando grana naquele último ano que era para comprar a minha primeira ilha de edição, porque eu tinha entendido que uma possibilidade era começar a ganhar dinheiro montando coisas, porque era a ilha, eu no meu quarto, tava tudo resolvido. Foi bem engraçado nesse período porque eu estava paquerando uma garota e aí, a gente conversando, eu falei pra ela: “Nossa, a gente vai no Belas Artes, eu prefiro ir lá ver cinema…”, e depois, a gente ia comer pizza na Micheluccio, “…e vai ser isso, porque eu não posso gastar muito dinheiro não, porque eu tenho que comprar uma ilha”, e só falei: “tenho que comprar uma ilha”, ela era psicóloga, tipo eu no cinema e aí, ela voltou pra casa pensando: “Mas como assim, essa menina diz que não tem dinheiro, mas vai comprar uma ilha?”, e aí, ficou com isso durante muito tempo e aí, quando eu comprei a ilha, eu falei assim: “Nossa Elce… vai ser hoje, eu consegui juntar toda a grana, eu tô indo lá na Santa Ifigênia, eu vou montar a minha ilha e tal e Tiara vai comigo”, que era o meu professor da escola de Cinema, “Ele vai comigo, eu vou conseguir um processador Quadi…”, eu falando e ela: “Viviane, você não falou que ia comprar uma ilha?” “Sim” “Viviane, a ilha que eu conheço é um monte de terra cercada de água por todos os lados, até hoje eu não tinha entendido como que você ia comprar uma ilha, mas você disse que ia comprar, eu entendi. mas não sei, nunca soube que ilha tinha processador”, e aí eu ti muito e falei assim: “Não, ilha é um computador com duas telas, uma ilha de montagem, uma ilha de edição”, e até hoje, a gente ri muito disso, porque ela fala assim: “A Viviane me conquistou me enganando, dizendo que ia ter uma ilha, que a gente ia morar nessa ilha deserta e não sei o que e quando eu vi, era um computador com duas telas que ela não saía da frente”. Mas foi pela montagem que eu vi mesmo a possibilidade de trabalhar com o cinema e aí, quando terminou o curso, eu fui surpreendida porque os meus professores que eram sócios da escola me chamaram lá na salinha e me perguntaram se eu queria ser sócia da escola e entrar com o trabalho. E aí, naquele momento, assim, de um lado eu fiquei feliz, mas de outro, me subiu um alerta tão grande que aí, eu comecei a pensar na autonomia, assim, a gente tava lá, tipo, eu Vania, Tiara, eles fizeram a proposta e aí, eu fiquei muito feliz, porque eu nem imaginei que poderia ser uma possibilidade para mim, entrar na sociedade da escola, mas tinha aquela coisa, é com o trabalho. Aí eu falei: “Eu nunca vou sair daqui, se eu entrar com o trabalho, daqui que eu consiga acumular coisas e estabelecer relações para além das relações da escola, eu vou ficar refém e aí, mulher preta refém é escravidão de novo, eu não vou me permitir, não. Aí, eu falei pra ela que eu não topava ser sócia da escola, não, mas que eu topava dividir, compartilhar o espaço, se eu pudesse levar a minha ilha de edição para a escola e os clientes que eu trouxessem, eles teriam porcentagem naquilo que eu fizesse, tudo bem, mas que eu não topava ficar integralmente trabalhando pra escola, ainda que fosse no lugar de sócia. E aí, a gente fechou dessa forma, então eu fiquei durante os primeiros meses lá na escola, mas o que começou a acontecer? Eu tava na faculdade de Direito, eu estagiava no escritório, eu só conseguia editar, de fato, de madrugada e aí, eu comecei a ficar num processo de ficar muitas madrugadas virando na escola, tipo, editando e ia pra faculdade virada e a faculdade, eu estudava no campus da UNIP que era muito perto da casa da Penha que era onde eu morava, tipo, eu ia de bicicleta e quando eu tinha que voltar de lá do centro, era bem mais distante e aí, eu comecei a fazer as contas, aí eu chegava, o meu HD tava lotado de coisas dos outros, eu passava um tempo na madrugada fazendo backup de material dos outros que estavam usando a minha ilha durante o dia inteirinho e aí, eu acabava editando as minhas coisas, de fato, duas, três horas na madrugada e eu entendi que o próprio negócio que eu tinha proposto era um mau negócio pra mim. Aí, retirei a ilha da escola, voltei, levei lá para casa, mesmo, tipo, montei num quarto e aí, a gente ficou com uma relação tipo de parceria, então, às vezes, eu tinha clientes e precisava de coisas da escola, então eu locava lá coisas mais baratas, precisava de gente para trabalhar, aí ia e encontrava colegas lá para trabalhar, a gente tinha esse intercâmbio, a gente tem esse diálogo de parceria, inclusive, até hoje, mas não vingou permanecer lá. Nunca me foi possibilidade ir trabalhar em outras produtoras. Na dinâmica lá da escola, a gente entendia muito rápido como o cinema funcionava, então assim, eu lembro que eu trabalhei… eu estudei com uma galera que era filhas dos donos da Conspiração, por exemplo, então a galera tava lá estudando já sabia exatamente onde ia trabalhar depois. A gente tinha a dinâmica de escrever os roteiros e as produtoras não toparem produzir esses roteiros, nem os deles. Aí, eu sempre imaginava: imagina os meus! Então, observar o processo da relação, tipo, de pessoas que do ponto de vista financeiro ou socialmente estavam bem melhores colocados do que eu, a dificuldade para eles dialogarem com as produtoras já estabelecidas já era grande. Pra mim, era quase impossível. E eu tava fazendo Direito, né? Então, a única coisa que eu não poderia ter medo era da burocracia. Aí, eu propus para a minha namorada da época para ela ser a minha sócia e a gente abrir a nossa própria produtora. Então assim, ela tinha histórias já com produção cultural do Teatro do Oprimido e aí, a gente tinha muita experiência com processo de formação em desenvolvimentos sociais e aí, a gente decidiu abrir a produtora que iria trabalhar com produção e com formação. Então, até hoje, assim, tudo o que eu fiz no audiovisual foi tudo dentro da minha produtora, tudo, tudo! E é real. O primeiro trabalho que eu faço fora da Odun é agora com a Casa Redonda. Então, nesses anos todos, nunca tive… não vivenciei o processo de ir bater na porta de outras produtoras para pedir trabalho, pra oferecer trabalho, porque eu entendi naquele contexto da dinâmica, entendi que tinha que criar, mesmo um outro espaço e criar um outro campo.
P/1 – Eu queria retomar então daí, agora e pegar um pouco mais assim, você falou que tinha uma namorada, outra namorada. Como foi essa sua vida amorosa, com namoradas…
R – Outra série animada (risos).
P/1 – Pra pegar um pouquinho disso, né? E até essa relação de você ter namorada e se isso teve algum conflito, alguma relação na questão com a sua família sobre isso, né?
R – Cheguemos lá. Quando eu cheguei em São Paulo em 2004, eu tinha terminado o namoro… na verdade, não fui eu que tinha terminado, não, foi Manuel que tinha terminado comigo. Ainda cheguei tipo, superapaixonada por ele, ele tinha terminado porque eu me envolvia demais com essas questões politicas, então eu passava mais tempo em reunião do que namorando, aí um dia ele chegou no CEFET e falou: “Eu ou a politica?” “Gato, não tem dúvidas”, ele sorriu, eu falei: “A politica”, aí a gente tretou, mas eu gostava muito dele assim e ele também. Aí nesse processo… aí eu vim para São Paulo, ele decidiu prestar vestibular para fora de Salvador que ele achou que eu ia permanecer em Salvador e aconteceu que no dia da minha festa de despedida, foi a festa de despedida dele, também e foi na… eu fiz na casa de uma amiga, Tricia e ele morava no mesmo bairro, então tava rolando a despedida na casa dele e na casa de Tricia tava rolando a minha despedida e a gente ficou lá naquela coisa de vai, não vai, vai, não vai… mas a gente não se viu nesse dia. Quando eu cheguei aqui, eu tava muito impactada ainda com essa relação. E a filha de Doutora Maria da Penha rinha terminado um noivado na época e aí, a gente se conheceu e tal e ficou nessa trocando muita ideia, eu falava de Manuel, e ela falava do noivado e essa coisa toda… rolou ali uma identificação. Um dia… ah, eu quando eu cheguei aqui, eu tinha que ligar para a minha mãe todos os dias. Todos os dias eu ligava pra casa, todos os dias eu ligava pra casa e chegou uma sexta-feira, eu tava em casa estudando, e aí, eu não liguei no horário. Quando eu liguei umas dez horas da noite já, nossa, a minha mãe quase derrubou o mundo, falou, falou mais do que a boca, brigou comigo, mas disse tanta coisa: “Hoje é sexta-feira, você acha que eu não sei o que acontece em dia de sexta-feira?” “Mas não acontece nada dia de sexta-feira, eu tava lá no quarto, encima daqueles módulos todos”, e ela não conseguia acreditar, e não adiantava, eu falava e a minha mãe não acreditava. Aí, a gente discutiu e eu falei: “Olha mãe, a partir de hoje, a senhora acredite que eu estou aqui estudando, não vou mais ligar toda hora que a senhora quer, eu vou ligar quando der”, e discuti e desliguei o telefone, mas aí, eu desliguei o telefone e eu tava acabada, chorava, chorava, chorava… aí, a Pietra falou: “Bora pra balada? Já que ela acha que você tá na balada mesmo, a gente pode ir para a balada” “Bora pra balada”, aí a gente foi para o Dolores na Vila Madalena, e aí, nesse rolê lá no Dolores, dancei muito, aí foi isso mesmo, aí beijei um cara, aí beijei outro cara, aí beijei o terceiro cara, a gente ficou tipo nessa, aí meu Deus, por que eu tô falando essas coisas? mas aí, chegou o momento que eu fui para o banheiro e aí, um desses caras veio pro banheiro e achou que poderia ser algo além. O que aconteceu? Levou porrada, porque eu tava de boa e a gente foi expulsa do Dolores porque eu bati nos caras e (risos) e fui acabar no Empanadas e a gente ficou lá no Empanadas, comendo empanadas e bebendo cerveja sem música, porque pra mim, a pira sempre foi dançar, nunca foi necessariamente sair pra beber só, sei lá, beber e comer, eu gosto de sair para dançar e aí, lá no Empanadas não tinha música, mas a gente ficou lá rindo dos caras que tinham apanhado e aí nesse dia, a gente… já tava amanhecendo, a gente tava voltando para casa a pé… porque a casa é ali, perto na Natingui, já voltando para a casa a pé, aí ela me falou assim: “Você gosta de rio?” “Gosto” “Aqui tem riozinho perto de casa”, “De boa“, aquilo não é um rio, gente, aquilo é um córrego” (risos), aquilo já foi rio um dia, mas eu acreditei e fomos lá ver o bendito do rio (risos), sentamos, aquela pracinha ali na Vila das Corujas, aí a gente sentou ali, na Vila das Corujas, eu fiquei olhando para aquilo, mas eu nunca vi rio encanado (risos), aí a gente começou a conversar sobre o processo de canalização aqui em São Paulo, aí em algum momento, a gente se beijou. Eu, de fato, não sei… e a gente nunca soube quem beijou quem. Mas a gente começou a se beijar e ficou lá e fomos interrompidas por quem? Pelo cara da guarita, não tem aqueles negocinhos lá daquelas placas de ferro, sei lá, que os caras ficam lá tomando conta do nada? Aí, o cara abre a janelinha e fala: “Hummm, aí tá bom, hein? Também quero”, a gente se assustou, obviamente, e fomos pra casa. Tava, inclusive, muito perto. Aí, a gente foi pra casa, aí continuamos ficando lá no meu quarto, eu tinha aula sábado de manhã, aí acordei no horário, fui pra aula, aí voltei… isso ainda foi no meu primeiro ano do cursinho aqui, eu cheguei em agosto, a gente tá falando de outubro de 2004, ainda. Aí, fui pro cursinho, obviamente naquele dia, eu não prestei atenção na aula. E aí fiquei rezando assim: meu deus, quando eu chegar lá, será que ela vai estar em casa? Porque ela já não morava mais com a Penha, já morava sozinha e como eu tinha chegado, então eu era o evento naquela casa, né? Aí, a gente começou a conversar muito, então ela voltava muito pra casa da mãe dela naquele período. E aí, eu falei assim: “Nossa, será que ela foi embora, será que ela vai voltar? Aí meu Deus, o que foi que eu fiz?”, aí liguei pra Tricia que era a minha amiga lá de salvador: “Tricia, alguma coisa tá acontecendo”, Tricia não conseguia entender, eu não conseguia dizer o quê que era, mas eu voltei pra casa e ela estava lá, do mesmo jeito. A gente continuou ficando e aí foi, a gente continuou ficando, ficando, ficando e a gente entendeu que tava namorando assim, muito rápido. Aí, a Penha me chamou pra conversar depois que entendeu que a gente tava namorando e falou assim: “Olha, você precisa encerrar esse negocio” “Mas por que eu tenho que encerrar?” “Porque isso não vai dar certo” “Se não vai dar certo, mande na sua filha porque em mim, minha mãe manda”, então eu falei bem assim. Aí ela: “Você precisa me ouvir, isso não vai dar certo. Pietra tem alguns problemas, você tá aqui pra estudar, você não pode se preocupar com essas coisas”, e ela não me dizia quais eram os problemas. E eu dizia: “O problema é homofobia, não é dela, é seu. Então assim, se você acha que a gente tem que terminar, você vai e conversa com a sua filha, eu não vou terminar”. A Pietra tinha 29, eu tinha 19 e ainda assim… e pra mim era um absurdo ela achar que eu ainda tinha que decidir terminar alguma coisa. Mas beleza, aí petulante desse jeito, a gente conversou, aquela coisa toda, aí Pietra ficou com muito ódio. Aí, eu decidi que eu ia embora da casa dela, fui procurar (risos) casa para alugar com 120 reais na Vila Madalena (risos). Aí, a gente andou muito. Eu lembro que chegou na imobiliária, tinha uma casa, o número 133 que é do lado lá de casa (risos), só que é uma casa caindo aos pedaços, era a única casa possível da gente alugar, não tinha nem porta aquilo. A gente riu muito, a gente ainda andou muito atrás dessa casa só para depois, entender que o endereço era do lado lá de casa, exatamente. Mas aí, nesse processo, eu sai da casa da Penha, eu fui morar com a Pietra no apartamento e aí, qual era a questão? Pietra tinha transtorno bipolar e aí, obviamente, eu nunca tinha ouvido falar sobre isso, não fazia ideia do que vinha a ser. E durante… assim, tipo muito tempo, a gente ficou nesse processo, ela tinha muitas crises e aí eu ficava tentando dar conta emocionalmente dessas crises e nesse processo. Aí, ela tentou suicídio algumas vezes, eu saía para ir para a aula de música… teve uma vez que eu sai para ir para a aula de música, quando eu voltei, ela tava na janela, a gente morava no sétimo andar. Ela tava na janela já com o corpo todo pra fora e aí, quando eu entrei no quarto, o único ímpeto, obviamente, era puxar, trazer de volta e aí, eu sei que enquanto… naquele primeiro ano, enquanto eu tava aqui, pelo menos por duas vezes, ela tinha tentado se matar e eu tinha interferido de alguma forma. Aí, eu falei pra minha vó o que tava acontecendo, aí a minha vó pediu pra gente ir para Salvador no natal para jogar e para entender espiritualmente o que era aquilo, porque tinha tido um dia que eu não tinha conseguido acordar, eu tava lá deitada e aí, fiquei queimando de febre com mais de 40 graus, eu ainda estava na casa da Penha e a Pietra estava no apartamento, aí foi depois desse dia que eu fui morar com ela no apartamento. Aí, queimando de febre, 40 graus e não levantei pra ir para a aula, aí o Ian Felipe que era o irmão da Pietra foi me chamar, aí avisou pra mãe dele: “Acho que Vivi tá doente, ela tá muito quente”, quando a Penha chegou, aí Oxum me pegou e falou pra ela que ela precisava sair da vila mais rápido possível e ir para o Campo Limpo, que era onde Pietra morava, senão, ela ia perder a filha dela. E aí, ela não entendia, ficou lá debatendo com o santo, o santo falou assim: “Olha, a minha filha não vai ficar aqui… o corpo da minha filha não vai ficar aqui durante tanto tempo segurando a vida da sua, então você precisa ir”, aí ela pegou, chamou um taxi, a gente foi todo mundo num taxi e aí, quando chegou lá foi isso, foi a primeira vez que Pietra tava na janela, aí aquela coisa toda, lá embaixo, os vizinhos gritando… e ela sem ouvir, ai a gente tinha a chave, a Penha tinha a chave, a gente entrou, aí conseguiu puxar ela pra dentro. Aí nesse processo, aí eu decidi ir morar com ela no apartamento, penha era contra, achava que ela tinha que voltar para casa, mas ela não queria voltar e tinha as questões da relação lá delas duas que era difícil, aí eu decidi ir morar no apartamento, quando eu decidi morar no apartamento, aí minha vó falou pra mim: “Então se você vai morar com essa menina, vocês vão precisar vir para Salvador porque não dá para você ficar morando com ela sem a gente entender o quê que é isso”. Aí, a gente foi pra Salvador no final do ano, que já era muito perto, a gente começou a ficar em outubro, aí novembro tudo isso aconteceu, dezembro a gente foi pra Salvador. Pegou um ônibus e foi pra Salvador, porque eu não podia gastar a minha passagem de avião por isso, isso era a determinação minha. A gente foi pra salvador de ônibus e aí, lá em Salvador, minha vó jogou pra ela, ela precisou fazer um Bori, aí a minha vó falou assim: “Não vai resolver a questão. Existe uma esfera espiritual na vida dessa menina que precisa ser resolvida, mas não é aqui, não é na nossa nação, é com a família dela, então precisa ver quem é… ela tem uma pessoa mais velha na família que ainda tá viva e que pode resolver as coisas”, e aí, se entendeu que era a tia dela, a tia Geraldina, que era uma pessoa que era mãe de santo lá em Pernambuco e aí, desde criança, mas chegou um momento na vida que desistiu de tudo, jogou tudo fora, enfim, disse que não estava mais a fim e parou de cuidar das coisas. E aí, ela precisaria retomar as coisas para conseguir ajudar a Pietra e aí, ela tinha decidido já que ela não iria retomar por nada desse mundo e aí ficou ali esse impasse lá na família dela. Aí, minha vó sentou comigo no quarto do Oxum, me explicou que não era responsabilidade nossa e eu muito naquela coisa de: se ela não vai fazer e a gente tem um terreiro, por que a gente não resolve? Pra mim era muito prático o negócio. E aí, foi quando eu entendi que as coisas não eram tão práticas assim, que tinha a ver com vertentes, que tinha a ver com raízes, que tinha conexões outras e que o máximo que a gente poderia fazer era dar suporte, mas que a gente não conseguiria resolver a questão. E aí, eu lembrei de minha vó falar muito que o que estava sendo feito lá em casa daria para ela ali em média, meses ou ano, que era o tempo da tia dela fazer o que precisava ser feito definitivamente, assim. E aí, a gente voltou para são Paulo e massa, parecia que ela não tinha problema nenhum mais. Aí depois, as crises começaram a retornar com mais violência, com o espaço, com os outros, ela só não me agredia, mas no geral, o irmão dela, a mãe dela, todo mundo. Aí a Penha conversou comigo e falou assim: “Acho que vocês precisam voltar a morar aqui em casa porque eu não tô conseguindo dormir com a ideia de que você tá sozinha lá no apartamento com a Pietra. E ela só vai topar voltar pra casa se você convencê-la a voltar para a casa”, aí eu falei: “De boa”, aí convenci ela e a gente voltou a morar com a Penha em 2005. E aí, nesse processo, quando a gente voltou, as coisas estavam mais tranquilas, aí ela teve tipo, uma crise ou outra, mas as coisas estavam bem tranquilas, estava se tratando com uma medicina chinesa e aí, tinham umas pílulas chinesas massa que ela tomava e aí, um dia, que foi o dia que de fato, ela se suicidou, foi um dia bem tranquilo pra gente como um todo porque Ian Felipe tinha o teste de teatro, e aí, a gente acordou cedo, estava todo mundo nessa coisa de como preparar o Ian para o teste e aí, a gente foi, levou o Ian para o teste, fomos eu, ela e um amigo do Ian, Daniel, fui eu, Pietra e Daniel, a gente levou o Ian, o Ian fez o teste tudo direitinho e a gente voltou pra casa e eu tinha comprado uma bicicleta, tinha decidido que eu ia fazer o caminho do trabalho pra casa de bicicleta e do cursinho pra casa de bicicleta e aí, a gente tinha combinado que todo mundo ia fazer o caminho Heitor Penteado, Consolação juntos que era para eu saber, mais ou menos, como é que era. Aí, a gente voltou pra casa, aí fez chocolate, estava no período da novela “Chocolate com Pimenta”, então a gente fez várias coisas de chocolate com pimenta, aí cozinhou todo mundo junto, comeu todo mundo junto, na hora de ir para a pedalada, ela falou que preferia não ir porque ela queria ficar com a mãe dela assistindo filme, aí a gente achou massa, porque ela nunca queria ficar com a mãe dela, então querer ficar era massa. Aí, saímos eu, o Daniel e o Ian, a gente foi até o centro, voltamos, quando a gente estava chegando ali perto do metrô Vila Madalena, o Daniel sofreu um acidente na bicicleta, ele foi subir no meio-fio e aí, caiu da bicicleta, a gente precisou chamar a ambulância, aquela coisa toda. E aí, eu me lembro muito quando a gente chegou em casa, o Daniel estava machucado, ela ficou muito irritada porque o Daniel tava machucado, que ele não poderia fazer aquilo com ela, naquele dia, não, e não sei o que… aí, a gente chamou a mãe do Daniel, a mãe do Daniel foi lá buscar Daniel e aí, à noite acabou meio assim, todo mundo meio… eu e o Ian se sentindo responsável porque Daniel tinha sofrido acidente, ele nem precisaria, necessariamente, pedalar naquele dia e não naquele lugar e aí, ela brigando com a gente, perguntando se a gente estava disputando corrida que era o que a gente fazia no Vila Lobos o tempo todo e enfim, a gente estava naquele clima meio down. Aí, ela falou assim: “Tudo bem, vão tomar um chá, vocês têm aula amanhã, aí fez um chá pra todo mundo, aí a gente tomou esse chá e dormiu. No dia seguinte, umas seis horas, o Ian acordava nesse horário e ele tem aquele despertador até hoje que é um sapinho de ferro que fica “trrrtrrrr”, aquilo atormenta incrível no juízo, então é impossível não acordar com o despertador do Ian, aí o Ian acordou e subiu pra pegar a farda dele pra ir para o colégio. Aí o Ian subiu, aí voltou, passou no meu quarto e me acordou e falou: “Vi, você pode ir lá em cima comigo, eu não sei o que aconteceu, mas Pi tá pendurada”, aí ele me acordou, eu levantei, olhei, ela não tava do meu lado, aí sai e aí, de fato, ela tava enforcada na grade e aí ficamos os dois meio sem saber muito bem o que fazer, aí eu falei: “Beleza Ian, então você pega a faca, eu vou suspender e a gente salva”, acho que foram as únicas palavras que a gente trocou, aí ele subiu, cortou a corda, ela caiu aqui no meu ombro e a gente trouxe o corpo dela para a cozinha, mas aí ela já tava morta, de fato, então, a gente não sabe nem exatamente que horas da noite ela saiu do quarto, foi e fez todas as coisas. E foi bem tenso, assim, que a gente ficou bem desesperado assim, tentando… todas as coisas que a gente vê, inclusive em filmes, naquele período, eu não tinha passado por nenhum lugar que eu tivesse feito curso de primeiros socorros, mas a gente tentou todo o processo de massagear, tudo. Aí, a Penha acordou por conta da nossa movimentação e a gente ainda tava numa movimentação muito silenciosa, assim, pra ela não chegar lá… eu, inclusive, acreditava que a gente ia conseguir resolver as coisas, ainda. Aí a Penha entrou na cozinha, viu a situação, aí pegou nós dois, levou a gente pro quarto e falou: “Tudo bem, vai ficar tudo bem”, ligou pra tia Clarinha e aí falou: “Clarinha, venha pra cá, eu não consigo resolver mais nada, eu vou ficar com os meninos e Pietra decidiu fazer a passagem”. Aí a casa virou um inferno, aí chegou um monte de gente, aí chegou policia, não sei o que, tinha que dar aqueles depoimentos absurdos do jeito que tem que ser. Enfim, aí foi um período bem tenso, assim, depois, porque eu não conseguia dormir, era um negócio muito difícil,. acho que eu fiquei uns quatro dias direto, sem dormir, aí o médico dava calmante, não sei o que, mas eu não conseguia dormir, de jeito nenhum. Eu sei que era um conjunto lá de três remédios que era possível para dormir, eu nem me lembro quais eram e aí, fomos eu e o Ian para a terapia e a Penha foi muito precisa assim, com a gente durante o processo assim, na semana seguinte, ela sentou com os dois e falou assim: “Vocês vão…, primeiro, a gente não conseguia dormir, então a gente ficava no mesmo quarto o tempo inteiro. Aí, ela chegou e falou assim: “Olha, cada um tem uma vida, cada um vai voltar a dormir nos seus próprios quartos, como se tivéssemos cinco anos de idade, de novo. Aí beleza. Aí, a gente ficou a primeira semana, cada um voltou para os seus quartos. Aí, ela falou assim: “Agora vão todos os dois para a terapia, vão fazer terapia”, aí eu comecei a fazer terapia com a Ana Maria nesse período e aí, foi massa o processo da terapia, eu lembro que teve uma vez que sai para ir a uma feira ali na Bela Cintra no Colégio São Luiz, era uma feira de produtos naturais, umas coisas assim, aí tinha marcado com uma amiga do cursinho pra ir lá, ela era de Salvador e estava aqui, também. Aí, a gente foi nessa feira de produtos naturais e no meio da feira, tinha um cara jogando uma parada lá, aí eu parei, fiquei olhando e ele perguntou: “Você quer jogar?” “Quero”. Eu gosto muito de jogo, naturalmente. Aí, ele explicou o que era o jogo, na minha cabeça era só um jogo de dado e nada mais, aí era o Lila que é o jogo do autoconhecimento hindu e você não joga o Lila para ganhar, mas eu era a única pessoa que estava jogando o Lila ali sem saber que eu tava jogando o Lila, então tava muito nessa dinâmica do “Vamos ganhar o jogo”, né? E aí, você vai jogando e o dado vai caindo e sua peça vai para as casas e aas casas têm um significado, tipo que tá na carta, então se você sabe quando… você olha para a casa e aí, você fala preá roda o que aquela casa significa para você, aí se o significado que você dá à casa de acordo com a sua vida bate com o que tá na carta, você joga de novo. E aí, vai avançando, porque a dinâmica é: quanto mais você se conhece, mais longe você consegue ir no jogo. E aí, a gente começou a jogar umas quatro horas da tarde, nove horas da noite, a gente estava lá jogando e eu avançando. Aí, faltavam três casas pra eu conseguir terminar todo o percurso e aí, o Cadira que era a figura que tava conduzindo ali o jogo ficou muito assustado e encerrou o jogo: “A gente não vai mis jogar, tá bom por hoje”, e eu naquela coisa: “Mas só faltam três para ganhar” “Tá aqui o meu cartão, me liga amanhã e a gente conversa. Eu acho que vai ser… eu tô muito feliz de ter te conhecido”, e ele morava perto da gente, aqui na Vila Madalena. E eu liguei pra ele no outro dia, fui na casa dele e aí, ele me convidou para fazer meditação ativa, aí ele me explicou o que era o Lila, me explicou dentro da filosofia hindu, falou que aquelas pessoas que estavam lá estavam jogando o mesmo jogo há seis meses e que são rodas que ele marca com grupos específicos e o mesmo grupo vai seguindo em lugares diferentes e que todo mundo tinha ficado muito impactado com o fato de na primeira sentada eu ter conseguido fazer todo aquele percurso e que não era comum, mas que também não era impossível e a gente começou a fazer meditação ativa nesse processo e trocar muita ideia. E aí, eu fazia meditação ativa com o Cadira todos os dias e fazia terapia com a Ana Maria duas vezes por semana assim, nesse período. E aí, era massa, aí na meditação com o Cadira, a gente discutia a relação com o poder, essas coisas todas em relação à espiritualidade e com a Ana Maria muito mais essa coisa da relação com o mundo e aí, chegou o momento que ela me perguntou se eu não tava namorando. Pra responder a sua pergunta (risos), se eu não tava namorando e aí, eu não tava e a gente começou… ela começou a fazer um joguinho comigo. Eu tinha que sair da terapia, aí eu tinha que voltar e teria que ter beijado uma pessoa, aí depois, eu tinha que ter beijado duas pessoas, aí tinha que ter beijado um menino e uma menina, aí chegou um momento que eu tinha que voltar com tantos beijos e transas realizadas que eu falei assim: “Não, chega, tá dando confusão, a galera tá brigando lá fora e a gente fica aqui jogando no consultório e não tá rolando”, aí nesse processo todo foi quando eu conheci a Elcimar, que foi minha segunda namorada e que foi a guria lá da ilha, que acreditou que eu ia comprar uma ilha. E aí, quando eu conheci a Elcimar, aí de fato, a gente ficou muito apaixonada, eu falei pra Ana Maria que não dava mais para ficar no jogo que eu batizei de jogo de periguete, que precisava voltar a ser uma pessoa direitinha. Aí, comecei a namorar com Elci, minha mãe não sabia, minha mãe também não sabia que eu namorava a Pietra, só a minha vó sabia. Lá em casa, só minha vó sabia e o meu irmão mais novo, que para o meu irmão mais novo eu tinha contado. Comecei a namorar com Elci, a gente ficou quatro anos e sete meses juntas e aí depois, a gente terminou, minha mãe também não sabia que a gente namorava, aí quando eu terminei com Elci, eu comecei a namorar com Veluma que era a menina de Salvador e aí, era de Salvador, era muito perto, aí Veluma saiu de Salvador, veio pra São Paulo para morar comigo, aí eu achei que eu precisava contar para a minha mãe, porque a minha mãe tinha me feito passar por uma situação bem delicada. Inventou uma festa surpresa no meu aniversário, convidou Elcimar e Veluma. E aí, ficou aquela situação tenebrosa, ela não sabia o que ela tinha feito, mas ficou desconfortável ali, um sorvete de climão na sala e aí, naquele dia, eu falei assim: “É o meu aniversário, eu vou contar logo para a minha mãe porque é meu aniversário e ela vai entender”, né? Ledo engano. Aí, contei para ela na madrugada, a gente tinha… eu tenho a dinâmica de contar as coisas pra minha mãe de madrugada e aí, eu sempre acordava ela no meio da noite, contava as coisas ou pedia as coisas pra ela. Aí, eu contei pra ela de noite, nossa, ela fez um escândalo, que era a vergonha da família, a vergonha dos irmãos, a vergonha da minha avó, a vergonha do terreiro, que o mundo inteiro ia acabar, enfim, aí eu falei assim: “Minha vó já sabe, meus irmãos já sabem e para eles, tudo bem”, aí o problema virou que ela era a última a saber de tudo, aí eu lembro que foi bem difícil a conversa com a minha mãe nesse dia. Aí, eu fui para o meu quarto, que antes de contar pra ela, eu avisei para o meu irmão do meio que eu ia conversar com ela, aí o meu irmão falou: “de boa, vai lá e eu vou ficar aqui no seu quarto te esperando, quando você voltar, a gente vê qual vai ser a reação”, aí, eu voltei para o meu quarto depois de minha mãe ter surtado e pela primeira e única vez, ter me pedido para sair do quarto dela, aí eu fui para o meu quarto, chorei, chorei, me acabei chorando no colo de meu irmão e aí, o meu irmão: “Eu vou lá, vou falar com ela” “Não vai, vai ficar aqui”, aí fiquei à noite toda com ele, aí amanheceu, arrumei minhas coisas e fui pro hotel, eu já morava aqui, eu só tava lá porque eu tinha ido trabalhar em Salvador, tinha ido cobrir um seminário, uma coisa assim. Aí, fui para o hotel, depois voltei direto para São Paulo, aí eu ligava pra ela todos os dias para tomar benção, ela não atendia e isso se perdurou 17 dias. Até que o meu irmão surtou em casa, brigou com ela, falou um monte de coisa, eu nem tava lá para ouvir, nem sei exatamente o que, mas eu sei que brigou, falou um monte de coisa, eu tava numa reunião aqui na casa que a gente tinha no Bexiga, meu irmão liga, quando eu atendi… era o número lá de casa, meu irmão estava gritando muito: “Fale coma sua filha e não sei o que…”, e aí, eu fiquei desesperada: “O que você tá fazendo com minha mãe? Eu vou te matar, você tá batendo em minha mãe? Você tá maluco? deixe minha mãe em paz”, aí minha mãe pegou o telefone, foi aquela coisa: “Eu te amo, nada importa” “Mãe, ele te machucou?”, enfim, depois falei com ele, ele tava muito nervoso, mas foi dessa forma que a minha mãe, enfim, voltou a falar comigo depois de saber que eu namorava meninas e tal. Aí, eu voltei para Salvador dali a dois meses porque a minha vó faleceu. Aí, eu tive que ir, não foi nem dois meses, foi menos do que isso. Aí, a minha mãe me ligou, falou que a minha vó tinha falecido, aí organizei as coisas, comprei a passagem e fui pra lá. Quando eu cheguei, minha mãe foi me pegar no aeroporto, mas ela foi me pegar naquela coisa do: Olha, a gente não precisa mais falar sobre isso, tá tudo certo, você é minha filha, eu te amo do jeito que você é, mas não precisa ficar falando sobre isso com ninguém, não, tá?”, foi muito isso. Aí, a gente chegou em casa, foi o processo, minha vó tinha partido e era um rolê muito difícil minha vó ter partido, foi exatamente um ano depois da minha iniciação, de fato, no terreiro, então eu tava com muita expectativa de continuar aprendendo muitas coisas com ela e não ia rolar mais. E ela tava sorrindo no caixão. Eu cheguei lá no caixão de minha vó, eu não sabia se eu sofria ou se eu ficava com raiva, porque alguém que morre vai sorrindo, como é que pode uma coisa dessa? Mas enfim… a gente conversa sobre isso um dia (risos), mas foi nesse contexto.
P/1 – Vivi, sabe o que eu vou te pedir? Pra você dar uma olhada nessas fotos que a gente tem de você e escolher duas, as mais significativas…
R – Que difícil!
P/1 – Depois a gente vai ver as outras, mas agora, eu quero que você escolha duas que você acha assim, as mais significativas pra você, na sua vida.
[Silêncio – ela escolhendo as fotos]
P/1 – Me mostra a primeira. Quem são essas pessoas que estão aí?
R – Aqui tem a minha mãe, eu, aí aqui… ih, tá na ordem, olha! Minha mãe é a irmã caçula, aí depois vem a minha tia Fiuca que é irmã de minha mãe e nasceu antes dela, aí vem minha tia Marlene que é a irmã mais velha que elas duas e depois minha tia Nenga que são as quatro irmãs, filhas de vó Pina. Aí, tem o meu primo Aguinaldo, me ensinou dar umas porradinhas (risos), minha prima Arlete, por conta de Arlete, eu fui pra escola mais cedo. Jeniffer que foi a primeira criancinha da geração que a gente tinha que tomar conta que nasceu e eu.
P/1 – Quando é essa foto?
R – Essa foto é em 2006, quando eu voltei para Salvador, eu fui lá para fazer a apresentação de um artigo num congresso, foi o primeiro artigo do Direito e aí, todo mundo tinha se organizado para ir lá ver a apresentação, e a gente tinha acabado de chegar da apresentação e eu ia para o aeroporto depois pra voltar pra cá.
P/1 – E onde vocês estavam?
R – Aqui, a gente tá na frente da casa de minha tia Marlene, no terreiro…
P/1 – Lá no Coqueiro…
R – No Coqueiro Grande. Do outro lado.
P/1 – Então depois dessa apresentação, vocês foram?
R – Isso.
P/1 – E tiraram essa foto por que você ia embora?
R – É, porque eu ia embora.
P/2 – A família toda foi na apresentação?
R – Foi.
P/1 – E por quê que essa foto é tão importante pra você?
R – Porque eu acho que ela é o que é possível sintetizar exatamente o que é o Coqueiro Grande e a minha família por parte de mãe, saca? Além de ter as quatro irmãs juntas na mesma foto, assim, pra mim é muito significativa.
P/1 – E ela sintetiza o que, exatamente?
R – Esteio, mesmo. Eu não consigo me enxergar no mundo sem elas, não consigo me ver distante da ideia de que sou resultado da interação delas, saca? Acho que não consigo ver o Coqueiro Grande sem elas. Eu acho que a gente só existe porque elas conseguem dialogar sobre a nossa existência e aí, quando eu falo nossa, é a minha e a dos meus primos de uma maneira muito fluida e muito positiva pra gente. A minha mãe é uma pessoa mais explosiva, por exemplo, e aí… mas a minha tia Marlene é muito tranquila, é a figura mais tranquila que você possa imaginar, não tem nada que a minha tia Marlene ensine que qualquer pessoa não aprenda. Eu lembro quando a gente era menor e muito menor do que isso, talvez, eu tivesse o tamanho de Jeniffer na época, mas minha tia foi explicar pra gente porque a gente não podia chegar perto de drogas e aí, eu tenho uma prima que é policial militar e ela levou pra casa uma amostra de maconha, aí minha tia chegou no passeio do fundo da casa dela, queimou um pouco de maconha, colocou todos nós assim, em fila indiana, eu era das menores, que eu venho depois de Arlete e aí, estava eu, Arlete, Aguinaldo, Ronaldo, Valdir, todos os primos, ela tocou lá a maconha e colocou e a gente ficou lá cheirando aquele negócio. E ela ficou: “Guardem esse cheiro. Peguem aí e sintam, não quero vocês perto disso. Isso é droga, onde vocês sentirem esse cheiro, corram. Onde vocês sentirem esse cheiro não é um ambiente bom pra vocês. Onde vocês virem esse negócio amassadinho desse jeito, alguém pediu pra vocês levarem e entregarem… não levem. Digam: ‘É seu, levem você’. Pô branco, não quero vocês com negócio de pó branco, quem gosta de pó brando é professora, pô branco é giz amassado, dá alergia, não quero, e aí, a minha tia era muito didática para falar de perigos iminentes pra gente, saca? Eu me lembro muito dessa relação com a maconha, por exemplo. E lembro de ter saído espirrando muito dessa conversa, os primos mais velhos permaneceram, ouviram mais coisas, mas eu comecei a espirrar muito e aí, eu sou alérgica a maconha, então minha tia talvez, nem precisasse ter esse trabalho todo. E minha tia Fiuca tem uma coisa assim… minha tia Fiuca, ela consegue ter uma relação mais afetiva com a gente, com os sobrinhos, de abraçar, de dar beijo, de dar carinho, mas ela não consegue ter essa relação com as filhas dela. E todo mundo sabe, todo mundo fala sobre isso e ela não consegue. Minha mãe vai e resolve esse problema. Minha mãe vai, beija minhas primas, abraça as minhas primas, então assim, eu sei que elas têm uma… tem aí uma responsabilidade compartilhada com a existência de todo mundo, assim, naquele lugar e uma responsabilidade com o espaço, sabe, pra elas é muito importante a gente entender que o Coqueiro Grande só existe porque vó Pina e titia Clementina brigaram para que existisse, senão, a gente poderia ser uma família que viveria na rua pedindo e sem teto, então, a gente não pode lidar com aquela terra e lidar com aquele espaço distante da ideia de responsabilidade e de que é de todo mundo, saca? De todo mundo que nasça dessa família. Pensar em vender ou sabe, dispor daquela terra é algo que não passa pela nossa cabeça unanimemente, sempre tem uns idiotas que aparecem com umas ideias ou outras, mas tia Nenga ainda está viva. Tem um história que é muito massa, quando começaram a vender os sítios no entorno primeiro pra Alphaville e depois, pra Minha Casa, Minha Vida, fizeram uma proposta de comprar lá o Sítio Santo Antônio e aí, uns tios, primos de minha mãe acharam que ok, bora vender, a gente vai ganhar um dinheiro bom, aí tia Nenga falou: “Tudo bem, quer vender? Então, bora fazer uma reunião de família”, eu já morava aqui em São Paulo, quando eu fiquei sabendo da história eu fiquei puta, irritada, mas vamos para Salvador para tal reunião de família. Chegou lá, tia Nenga começou a fazer os cálculos, né: “Então, tudo bem, eu tenho Valdir e Ronaldo, Dadá tem três filhos, Marlene tem cinco, Fiuca tem três, vamos tirar a média por três, então, da nossa geração, a nossa cota é x, os nossos filhos têm direito a x, cada um dos nossos filhos podem ter mais três filhos, cada um dos filhos dos filhos podem ter mais três…”, eu sei que ela fez uma conta lá de três em três guri que no final das contas dava mil, 500 reis para cada se vendesse o terreno (risos), que a galera desistiu assim. E eu tinha ido para a reunião muito tensa, dramática, fui chorando e pensando: meu Deus, não é possível que a gente vai perder o Coqueiro Grande. E eu falava com Arlete e Arlete dizia: “Mas Vivi, é só o Sitio Anto Antônio, o Coqueiro Grande é muito mais do que o sitio” “Mas o Coqueiro Grande era só a gente, tranquilo chegar mais pessoas, massa gente ter que sair daqui? Não faz sentido, a gente precisa dar um jeito nessa reunião. Tia Nenga tá ficando maluca se ela tá concordando com isso”, e a gente chegou lá, tia Nenga deu um chapéu em todo mundo, eu sou muito fã de tia Nenga.
P/1 – Me mostra a outra, agora.
VIVIANE_T04
R – E essa aqui é minha bisavó, minha bisavó paterna. E ela é muito importante pra mim porque ela dá régua e compasso a todo o meu processo espiritual, saca, assim, não só com o fato de ter criado o terreiro, mas a gente compartilha as mesmas energias espiritualmente, assim, ela era uma mulher de Oxum com Ogum e eu também sou de Oxum com Ogum e com os orixás da mesma… a gente fala da mesma qualidade que a dela, então cada qual com suas especificidades, mas se a gente pudesse colocar num lugar de sei lá, xerox ou copia, a constituição espiritual é muito igual, assim, o que me diferencia da constituição espiritual dela é aquilo que eu herdo da minha vó materna, tem essa energia que eu herdo da minha vó materna. E isso pra mim é muito forte, é muito significativo porque nesses anos todos, assim, de 1940 até agora, os espaços que conseguem preservar lugares muito importantes dentro do Coqueiro Grande é o sitio Santo Antônio que é onde tá a minha família por parte de mãe e o terreiro que é o fundado por minha bisavó. Na relação entre essas duas famílias, eu sou a única pessoa que nasci. Então, eu me sinto muito ponte nesse processo. Horas, eu fico rezando para que nasça logo outro alguém, saca, mas ainda não aconteceu. E é isso, eu acho que espiritualmente assim, a existência dela fala muito da minha existência e da forma como eu sou no mundo e às vezes, é até assustador descobrir o quão a gente é parecida, o quão as escolhas que eu faço sem saber de escolhas que ela já fez ou de coisas que ela já fez em outros momentos da vida são tão iguais. Às vezes, é assustador. Eu pergunto pouco sobre a minha bisavó porque eu tenho muito medo de descobrir que eu não fiz nada de diferente nessa vida, que tudo o que eu fiz tô repetindo o que ela já fez, saca?
P/1 – Posso olhar? Como que era o nome dela, mesmo?
R – Zumira.
P/1 – E aqui, ela tá onde? No terreiro?
R – Ela tá no terreiro.
P/1 – Você assim, com que idade, em que ano foi isso?
R – Essa… deixa eu descobrir pelo barracão… acho que é final de 90, deve ser por volta de 98, deve ser por esse período porque a pintura do barracão era antiga. Quando virou para 2000, aí trocou a pintura do barracão.
P/1 – Vivi, pra gente dar uma sintetizada na sua vida que a gente nem cobriu toda, mas essas tintas, o quê que você hoje que passou por tantos momentos, agora sentindo, lembrando de tudo, seus avós, sua vida em pequenos momentos, o quê que você tá sentindo agora? O quê que você percebe de ter contado a sua história um pouco, agora, de ter feito esse resumo? Não é bem um resumo, você narrou muitas coisas da sua vida.
R – Eu tô preocupada com o que vai acontecer com os próximos 33 anos, porque eu disse que eu vou quebrar o recorde lá de casa, minha bisavó faleceu com 113, a tia Catu faleceu, que era irmã de minha bisavó, com 120, eu falei que eu vou com 121, de boa, quebrar recorde. Só que agora contando, assim, gente, foi tanta coisa já que eu já poderia ter 121 agora que tava de boa, mas ainda não quero ter 121 agora, então eu tô preocupada o que vai acontecer daqui pra frente.
P/1 – Você tem um sonho daqui pra frente?
R – Sim.
P/1 – Qual é?
R – Muitos inclusive. De… eu tenho um processo de planejar a vida dez anos, eu tenho planos sempre, o que eu vou fazer em dez anos, aí reduzi para cinco e vou fazendo. E decidi que eu vou construir no Coqueiro Grande uma escola de cinema e tenho trabalhado assim, os últimos anos muito nessa direção. Tenho consciência da minha responsabilidade com demandas espirituais dentro do terreiro, tô nesse processo de aprendizado, de preparação e isso não me assusta, não me inquieta, então nesse momento, o meu sonho é só conseguir harmonizar as duas coisas. E vejo como possível, eu acho que vou conseguir retornar para Salvador, dar conta de fazer as coisas que precisam ser feitas por mim no terreiro, mas ao mesmo tempo, continuar me comunicando com o mundo e com as outras pessoas e ajudando no processo de formação e existência de outras pessoas por meio do cinema. Tudo dali, do Coqueiro Grande, mesmo. Acho que esse é o sonho.
P/1 – E agora, uma última pergunta, esse é o seu primeiro filme que você vai fazer fora da sua produtora, né, que te convidaram, o quê que você espera de fazer? O quê que você sente em fazer?
R – Olha, que esse negócio de criar não é a coisa mais simples do mundo, porque eu já passei por várias ideias, assim, eu lembro que nesse nosso processo de imersão e de fato, a metodologia é uma coisa que pra mim é muito importante, porque é isso, a vida é feita de métodos, saca? Eu acho que no Coqueiro Grande, existe um método de criar as pessoas e que eu vejo se reproduzindo para os meus primos mais novos, por exemplo, assim, que se eu não aprender isso, certamente, eu não vou conseguir contribuir com a criação de outros mais novos que vão nascer de mim ou não, necessariamente. Mas existe ali um método de criar as pessoas e a metodologia do Museu me pega muito e eu tenho refletido muito como é que a gente torna isso orgânico, como é que a gente torna isso corpo, sabe, como a gente torna visível, mas a parte da existência, aí eu tenho refletido muito como obviamente, olhando ali, tem alguns desenhos de produção propostos pela Minon e aí, guiada por aqueles desenhos, eu comecei a pensar inicialmente em como trazer um corpo feminino pra dentro do estúdio e compor e decompor esse corpo e entender esse corpo como método, saca? Chamar esse corpo de metodologia por ser, exatamente, a metodologia, por ser feminino, por ser mãe, saca? Por gerir, por manter, assim… e aí, eu tenho pensado em como fazer isso e em como deixar esse corpo fluido no trânsito entre as histórias, como esse corpo metodológico pode, de alguma maneira, costurar essas histórias e tornar essas histórias incríveis por serem histórias pra gente, saca? Mas acho que é importante materializar essa coisa que mexe, que busca, que compõem essas histórias, que pra mim é a metodologia e que eu acho que é possível explicita-la a partir de uma relação luz, câmera, tipo, movimento e essa relação com o corpo feminino. Então, o meu processo criativo tá muito nessa direção, assim. não sei se é por aí que a gente vai continuar, mas que é daí que eu tô partindo, isso é (risos).
P/2 – Que lindo! Obrigada.
P/1 – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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