P/1- Vai ser bem tranquilo, você pode se expressar da maneira que você quiser, pode olhar pra mim, pode olhar pra câmera, não tem problema. As primeiras informações que a gente quer saber é que você diga o seu nome completo e a data e o local do seu nascimento.
R- Do RG ou não?
P/1- Você gostaria de falar o seu nome do RG?
R- Na verdade eu prefiro o outro, uma coisa pública, que o RG, deixa quieto lá, né?
P/1- Tá. Então, você pode falar o seu nome, o local e a data do seu nascimento, por favor.
R- Helena Silvestre, nasci dia dez de agosto de mil novecentos e oitenta e quatro, na cidade de Mauá, região metropolitana de São Paulo.
P/1- Muito bem. Qual é o nome do seu pai e da sua mãe?
R- Meu pai se chama Ângelo. Inteiro?
P/1- Pode ser.
R- Ângelo de Fátima Damasceno e a minha mãe se chama Alda Rodrigues da Silva Damasceno.
P/1- O que os seus pais faziam?
R- Minha mãe dona de casa, trabalhava muito, sem receber muito por isso, e o meu pai é funileiro, também trabalhava muito sem receber muito por isso, no caso, né, menos que a minha mãe.
P/1- Hoje eles também trabalham com isso?
R- Mesma coisa.
P/1- Quando você era pequena, você gostava de escutar histórias, eles te contavam histórias?
R- Sempre gostei de histórias, mas meus pais não tinham muito como contar histórias, sabe? Nós somos em seis filhos. Então, eu não sei nem como é que eles estavam de pé, né, quem dirá contando histórias, coitados. Mas a gente tinha a minha avó, sobretudo, quem mais contava história, que é minha avó materna, que é uma figura muito importante, assim, na minha criação, na minha vida, ela era a contadora de história.
P/1- Você sabe da origem da sua família?
R- Sei, mais que tudo da família da minha mãe, que é justamente por essa relação com a família materna, que sempre foi forte. É, a minha avó é indígena de Catolé do Rocha, que é uma cidade no sertão da Paraíba. O meu avô materno eu não conheço...
Continuar leituraP/1- Vai ser bem tranquilo, você pode se expressar da maneira que você quiser, pode olhar pra mim, pode olhar pra câmera, não tem problema. As primeiras informações que a gente quer saber é que você diga o seu nome completo e a data e o local do seu nascimento.
R- Do RG ou não?
P/1- Você gostaria de falar o seu nome do RG?
R- Na verdade eu prefiro o outro, uma coisa pública, que o RG, deixa quieto lá, né?
P/1- Tá. Então, você pode falar o seu nome, o local e a data do seu nascimento, por favor.
R- Helena Silvestre, nasci dia dez de agosto de mil novecentos e oitenta e quatro, na cidade de Mauá, região metropolitana de São Paulo.
P/1- Muito bem. Qual é o nome do seu pai e da sua mãe?
R- Meu pai se chama Ângelo. Inteiro?
P/1- Pode ser.
R- Ângelo de Fátima Damasceno e a minha mãe se chama Alda Rodrigues da Silva Damasceno.
P/1- O que os seus pais faziam?
R- Minha mãe dona de casa, trabalhava muito, sem receber muito por isso, e o meu pai é funileiro, também trabalhava muito sem receber muito por isso, no caso, né, menos que a minha mãe.
P/1- Hoje eles também trabalham com isso?
R- Mesma coisa.
P/1- Quando você era pequena, você gostava de escutar histórias, eles te contavam histórias?
R- Sempre gostei de histórias, mas meus pais não tinham muito como contar histórias, sabe? Nós somos em seis filhos. Então, eu não sei nem como é que eles estavam de pé, né, quem dirá contando histórias, coitados. Mas a gente tinha a minha avó, sobretudo, quem mais contava história, que é minha avó materna, que é uma figura muito importante, assim, na minha criação, na minha vida, ela era a contadora de história.
P/1- Você sabe da origem da sua família?
R- Sei, mais que tudo da família da minha mãe, que é justamente por essa relação com a família materna, que sempre foi forte. É, a minha avó é indígena de Catolé do Rocha, que é uma cidade no sertão da Paraíba. O meu avô materno eu não conheço porque ele deixou a minha avó antes de eu nascer, e são... é isso, uma família de paraibanos, ela, enfim, indígena, a mãe dela também indígena, essas histórias das indígenas que eram pegas no laço, que é tão comum, né? E a família do meu pai eu sei um pouco menos, porque a gente tinha muito menos relação, assim, com a família paterna, mas são, uma parte de Minas Gerais, minha avó, e o meu avô paterno do interior de São Paulo. Camponeses, assim, os dois.
P/1- E você tem irmãos? Sua família é grande?
R- Cinco irmãos mais novos, é grande, eu sou a mais velha de seis filhos.
P/1- Como é que você descreveria a sua família?
R- Uma família amorosa e contraditória.
P/1- Como que é a relação que você tem com a sua família?
R- Eu não tenho relação com a minha família hoje, né? Eu fugi de casa com dezesseis anos por causa da militância, eu já era militante e os meus pais, quando eu tinha uns catorze anos, eles passaram a ser religiosos, de uma religião que tem um rechaço forte com a participação política, e isso começou a ser um tema de conflito permanente, porque eu já tinha atividades e me envolvia nos grupos do bairro, e aí eu fugi de casa com dezessete anos, dezesseis para dezessete anos. Então, dessa época pra cá, a minha relação com a minha família é muito pouca. Ela sempre foi, se manteve em relação à minha avó. Em relação aos meus pais é isso, é uma distância muito grande, a gente não se vê, eles preferem não me ver também, eles têm as crenças dele, né, então eles acham que estão vendo um defunto quando está me vendo, pessoa irrecuperável que vai pro inferno. Mas ao longo desses anos, né, tiveram momentos de maior aproximação, menor, geralmente quando, enfim, acontecem coisas, né? Então, minha mãe esteve doente um período, aí eu me aproximei, fiquei muito próxima, poucos anos atrás meu irmão teve uns problemas, aí eu me aproximei de novo, fiquei próxima. Mas sempre nesses momentos mais difíceis. Uma relação contínua, assim, a gente não tem há muitos anos. E em grande medida por isso, porque eu acho que é um sofrimento grande pra eles, assim.
P/1- Entendo. Eu queria que você contasse um pouquinho sobre a sua infância, a história da sua infância, se você lembra como era a casa onde você morava.
R- Eu lembro de tudo.
P/1- Quando era pequena. Eu queria que você contasse um pouquinho pra gente.
R- Eu lembro de tudo isso. Bom, é isso, eu morava numa favela, Favela do Macuco, no Jardim Zaíra, em Mauá. Muitos dos meus parentes, todos da Paraíba vieram e eles ficaram morando tudo no mesmo lugar, que era na beira de um córrego, que foi ocupando _____________ [6:09], foi todo mundo morar em volta, então era quase uma colônia paraibana em São Paulo, né, e sempre famílias grandes. Então, é isso, minha mãe tem seis filhos; um tio meu, irmão da minha mãe, meu tio Armando, tem doze filhos; minha tia Araci, irmã da minha mãe, tem quatro; meu tio Ailton tem quatro, e assim, cada um tinha um lote de filho, então a gente era uma nuvem de gafanhoto, sei lá, um monte de criança. Minha rua era terra, na minha infância primeira, assim, até uns dez anos, eu acho que foi uma rua de terra. E, além de nós, tinham os nossos vizinhos, né, que eram famílias também muito parecidas, todos nordestinos, todo mundo vindo de algum lugar, todo mundo com meio mundo de filho, todo mundo. E a gente viveu essa infância muito na rua assim. Então, a casa era uma casa muito precária, a casa que a gente morava, até os meus catorze anos, que foi também quando a gente conseguiu, os meus pais conseguiram construir uma primeira parte da casa que hoje eles moram, no quintal da casa que a gente morava, mas era uma casa mais baixa que o nível da rua, então toda vez que chovia, alagava a casa, era uma casa que tinha essas coisas, né, de casa muito pobre, muito lascada, água por cima , água por baixo. E uma casa também... assim, eu gostava da casa, na verdade, essas memórias afetivas são isso, né? Eu lembro do chão da casa que era tudo de vermelhão, aquele chão de vermelhão, então a gente encerava, a minha mãe encerava o chão e a gente ficava umas duas horas brincando de escorregar, pra lustrar o chão e o rabo vermelho, né, porque as roupas eram tudo da cor da cera, que ficava depois. Uma casa muito simples, uma casa pequena, isso era um quarto pra meus pais e todos nós, uma sala, uma cozinha, um banheiro e um quintal, que era um quintal, assim, grande até, mas ele se confundia um pouco, né, com a rua de terra que era do lado de fora, então, você não tem muito essa coisa do quintal, assim. A gente nunca teve chave em casa, isso também é uma outra lembrança que eu tenho muito. Depois a gente fica grande e aí tem essas histórias de alguém falar assim: “Ai, mas , você tem a sua chave?”. Eu achava tão bonito ver as pessoas falando assim: “Essa é minha chave de casa”, porque na minha casa não tinha chave, nunca ia ter alguma, nunca ia ter a casa sem ninguém, porque era gente que não acabava mais. E a gente tinha uma tramela, sabe o que é tramela? Que é um pedacinho de pau que prega, assim, do lado de cá da porta, que você gira, assim. Então, o que era em casa era tramela e um barbante, uma cordinha de varal que era pra abrir a tramela pelo lado de fora. (risos) Então, eu lembro muito dessa casa e dessa infância que eu vivi numa periferia, mas que era uma periferia em expansão. Então a gente tinha um pouco essa coisa meio roça, meio cidade, sabe, de ainda ter tramela e ao mesmo tempo ter chacina, porque isso também é os anos noventa, né, muita violência, também tenho memórias dessa violência, né, a gente cedo descobriu o que era um lençol no meio da rua. Mas a gente brincava demais, ave maria, demais, e era isso, a nossa vida era rua e era a melhor coisa que tinha. Não tinha, aliás não tinha muito esse negócio de dar uma proteção, também, por que como é que você vai ficar protegendo seis filhos, né? Só se você endoidar, aliás, _____________ [10:08] às vezes já endoida. E a gente tinha muito essa coisa da rua, dos vizinhos, dos primos. Então era pipa, rolimã, futebol. Rolimã veio quando puseram asfalto, né, mas todas essas coisas a gente fazia demais. A gente entrava dentro do córrego pra caçar rato, óia, não acredito, eu morro de medo de rato, não sei como que eu caçava rato na época. Mas a gente tinha isso, tinha estilingue, tinha muito pé de árvore, então a gente subia, tinha uma árvore de jambo, tinha uma árvore de _____________ [10:42], tinha um abacateiro, tinha de ameixa, tinha essas coisas, era meio que pra onde você olhava tinha gente fazendo casa, tijolo baiano pra, né, até o teto da favela. Mas tinha rua de terra, tinha mato, tinha o córrego, que era aquela coisa que já era um córrego, né, então tinha esgoto, não sei o que, mas ao mesmo tempo também, quando vinha chuva, o bicho enchia, lavava tudo, nós ‘era’ loucão, pulava tudo dentro do córrego, não estava nem aí. E assim era, que as nossas mães ‘ficava’ doida, né? Foi uma boa infância, eu acho, eu gosto da minha infância, muito.
P/1- O que você mais gostava de fazer, na sua infância?
R- Ficar na rua. Meu Deus do céu! Claro, ficar na rua era fazer tudo isso, né? Era brincar, correr, a gente tinha esse espaço, né? Tinha carro, mas não tinha carro igual tem hoje, não era todo mundo que tinha carro, então, já era menos. É, esse limiar do quintal e da vida privada com a vida pública também era meio, era mais dissolvido, porque as casas eram muito precárias, então, as pessoas não aguentavam viver a vida enfurnada dentro de casa e isso provocava que todo mundo vivia muito mais junto, né? Então, a rua era esse lugar. Então, as mulheres estavam na rua, botavam cadeira na rua e ficavam. Parece um pouco uma coisa meio de interior, mas era em São Paulo e no meio de toda contradição e loucura também dos anos 90. Mas eu gostava mais de ficar na rua, e eu gostava, a gente tinha uma coisa com histórias, isso a gente tinha, não era tanto dos meus pais contarem, mas a gente tinha, que a gente fazia histórias, então a gente fazia histórias e a gente era os protagonistas das histórias. Então, a gente ia e inventava os trajetos aonde eu morava, assim, isso eu lembro. Então, tinha um lugar que empoçava água, tinha um rio que enchia, tinha o pé de árvore, tinha um lugar que a gente sabia que tinha ovo de lagartixa, tinha não sei o quê. Aí, a gente inventava alguma história que a gente era pessoas mágicas nesse lugar, entendeu? (risos) Então a gente, coitada das lagartixas, a gente ia, a gente era o... sei lá, a fada ou o mágico que ia lá e a gente estourava os ovos da lagartixa, as lagartixas saíam correndo. A gente tinha uma coisa também, que tinha um pedaço de um muro que tinha uns ‘buracos’. Nem sei porque que tinha aquele pedaço de muro, na verdade era um terreno baldio, e a gente tinha uma coisa também da história dos invisíveis. Então a gente ficava atrás do muro olhando as pessoas que passavam na rua, e, quando as pessoas passavam na rua, a gente começava a mexer com as pessoas, pra ficar vendo as pessoas procurando alguém (risos). Ah, coisa de abestado, né, mas isso era uma coisa que eu gostava muito porque era um jeito que a gente, sei lá, juntava as coisas que a gente descobria nos lugares que a gente vivia, com o nosso movimento em cima desse chão aí. E eu colecionava pedras, eu colecionava pedras, eu colecionei pedras muito tempo, até a minha mãe falar: “Olha, quando você tiver a sua casa você vai colecionar pedra, porque não tem mais onde enfiar pedra dentro dessa casa”. Mas que também era parte dessas histórias, porque aí eu era uma pessoa que andava procurando pedra, então eu fazia expedição na rua de terra, e aí a gente andava e quando eu via alguma pedra, eu ia lá e cavava a pedra, às vezes a pedra era desse tamanho, às vezes era uma pedra pequena. Então, a gente fazia histórias no lugar que a gente morava, ficava brincando dentro das histórias.
P/1- E era sempre você e seus irmãos?
R- Na verdade, era eu e a torcida do Flamengo, porque era muita criança. Meus irmãos, assim, alguns sim, outros não, porque a gente é uma escada de dois em dois anos até a quarta, aí depois tem um espaçamento maior, vem o quinto, que é meu irmão e depois um espaçamento maior e tem a raspa do tacho, que é Julia, minha irmã, que vai fazer dezoito anos. Então, alguns, sei lá, desses irmãos meus foram participando, né? Eu vivia na rua, sei lá, desde os cinco anos, então aí, o outro tinha três, daí já não vai muito, né, mas vai crescendo e aí, cada vez que vai ganhando um pouquinho de idade, é mais um que está ali no meio do rolê também, na rua. Mas era muita criança, muita criança, então a gente vivia com o vizinho, a gente tinha os amigos, e aí tem o melhor amigo da rua, a melhor amiga da rua. E a gente não ia pra escola, né, que tinha isso também, a coisa de creche, se até hoje creche não tem, na época menos ainda e, na região metropolitana de São Paulo, menos ainda do que na capital. Então, a gente não foi pra creche, a gente viveu a infância até os sete anos, que foi quando eu fui pra escola, na rua. E todo mundo era assim. Então, você tinha meio mundo de criança na rua e todo mundo, e era isso. Minha mãe tirava piolho da cabeça de todo mundo, quando ia tirar piolho da nossa cabeça era trinta pessoas pra tirar piolho e assim eram os amigos da rua, que era como a gente chamava, aliás, ‘os amigos da rua’.
R- E aí você comentou sobre a escola. Como é que foi quando você foi pra escola? Qual é a primeira lembrança que você tem, quando você foi pra escola?
R- É ruim, é ruim. Eu fui pra escola com sete anos. Eu sou de agosto, né, então isso me obrigou a entrar um pouco atrasada na escola, que é uma coisa bizarra, né, do ensino, de como é que funciona ‘os trens’. Mas eu tinha muita curiosidade de ler, então eu ficava torrando o saco do meu pai pra ele ler as coisas pra mim, que estava no jornal. Ele sempre comprava o jornal, dia de domingo, e dentro do jornal, que era o Diário do Grande ABC, vinha um suplemento infantil que chamava Diarinho, sei lá, alguma coisa assim, (risos) e eu queria muito ler aquilo, mas não tinha escola, não sabia ler e aí eu fui, e praticamente obriguei o meu pai a me ensinar a ler, e aí eu aprendi a ler com cinco anos. Então, eu fui pra escola sabendo ler. E aí, na escola, isso era uma coisa um pouco diferente, porque a maioria das pessoas não tinha conseguido nem esse tempo, né, com a família pra poder aprender a ler em casa. E aí a escola era uma coisa legal, assim, porque era muita gente, mas tinha muita gente que eu já conhecia, porque todo mundo morava no mesmo lugar, a escola era ali, e tudo, tal. Tinha umas coisas estranhas, né, nessa época, a gente cantava o Hino Nacional. Eu sou nova, né, mas cantava o Hino Nacional ainda, na época. Eu sei que a gente não ligava muito. Tinha um negócio de fila indiana que a gente tinha que ficar, que era uma coisa bem estúpida, assim. Eu lembro de ter professor, eu lembro das minhas professoras. Como os professores são importantes, né? Incrível. Eu tinha sete anos e eu lembro o nome da mulher que me deu aula! Margarida, professora Margarida, uma senhorinha, boa gente, cuidando de um monte de criança, né? E aí, tal. E aí, os relatos mais, assim, da escola, que eu tenho, são difíceis. Eu lembro da primeira vez que choveu e eu estava na escola, que aí eu chorava, porque, eu não sei porque, minha casa enchia d’água sempre e toda vez que chovia, mas eu achava que só porque eu não estava lá, todo mundo ia morrer afogado. E aí foi um inferno porque não parava de chover, eu não parava de chorar, ninguém tinha telefone, porque não tinha telefone também, essa época, um telefone era o preço de um carro, né? Eu sei que aí eu tive que ficar assim, que eu não parava de chorar, me levaram lá pra sala da diretoria, lá e falou: “Ó, fica aqui um pouco”. Eu fiquei tipo umas duas horas chorando, até a hora de ir embora. Essa é uma memória da escola. E tem uma outra memória que eu tenho da escola, muito forte, que na verdade é mais ou menos da escola, né, que foi a primeira vez que eu fui na casa de uma amiga da escola, porque daí começou a ter, além dos amigos da rua, os amigos da escola. E eu lembro o nome da menina também, que era Aline. E eu fui na casa dela porque era pra gente fazer um trabalho, “esses trens” de colar feijão em algum papel e lã, alguma dessas coisas assim. E a mãe dela não estava e aí, por isso que eu pedi pra minha mãe deixar eu ir, era a poucas quadras da minha casa, porque a mãe dela não ficava em casa e ela tinha uma irmã menor, a mãe dela não ficava em casa porque tinha que trabalhar, então ela ficava com a irmã. Então ela tinha sete anos e ficava com a irmã, tipo de cinco, e não tinha como sair depois da escola porque tinha que ficar com a irmã. E eu fui pra lá fazer esse trabalho da escola, e eu fui pegar um copo de água, e eu fui abrir a torneira pra pegar água e a torneira tinha muita pressão, sabe, e eu dei um grito, e quando eu dei um grito, assim, de susto com a pressão da água, essa menina começou a chorar, e essa menina chorou acho que uma hora. E eu não entendia nada, e eu comecei a chorar também e era tipo uma pá de criança dentro de uma casa, sem nenhum adulto, chorando, ninguém sabia pelo que porque, na verdade, era o negócio de abrir a torneira. E aí, depois ela me explicou, quando ela se acalmou, porque a mãe dela vivia só porque o pai dela tinha sido muito violento e ela não aguentava ouvir grito, porque ela lembrava do pai tentando matar a mãe dentro de casa. Olha pra você ver, a coisa! Com sete anos! E aí essa ficou sendo minha grande amiga da escola, a Aline, figura também. A escola é difícil, né, a escola é bem difícil, a escola é um lugar que a gente conhece muita gente boa, mas é muito difícil, eu acho.
P/1- O que foi tão difícil pra você na escola?
R- A escola é um espaço de disciplinamento, né? A escola não tem como, na configuração que existe hoje, estar atenta ao que é cada pessoa, de onde vem cada pessoa. Ela cria a ideia de que existe uma pessoa universal (risos) e ela age com todas aquelas histórias tão diferentes do mesmo jeito, né? Então, era isso, né, a escola. É isso, eu cresci num lugar muito pobre, nos anos 90, e a escola era um misto de lugar que a gente tinha que ir, porque precisava de uma certa liberdade, porque é o primeiro lugar que você está e que você não é o filho de sicrano, nem de beltrano, que você é você, né? Eu não era Helena, filha da Dona Alda, Helena, filha do Seu Pardal. Não, era Helena, Helena, sou, é a chamada, são os seus amigos ali. Então, era esse espaço de liberdade, mas era muita violência, todo mundo sofria muito a violência. E essa violência todo mundo também expressava de algum jeito. Então, era um monte de criança nervosa, tudo virado no Jiraya. Claro, a gente era bagunceiro demais, né, assim. E é isso, você doido pra extravasar, você doido pra correr pra todo lado, a gente vivia correndo pra todo lado, então, era um pouco civilizar os selvagens da rua, entendeu, porque a gente vivia na rua. (risos) E aí você tem que sentar, e aí tem as coisas também de ser menina, né, que é pior ainda, porque daí eu lembro que todo dia era um negócio de: “Senta com as pernas fechadas”, não sei o que, não sei o que, e a gente antes era na rua, ninguém ficava... nem estava vendo como você estava sentando, cada um tem cinco filhos, ia ficar olhando como que o outro estava sentando, não dava nem tempo de ver nem se comeu. E essa, pra mim, é uma grande dificuldade da escola, na verdade, até hoje. Que parece que, pra você conseguir acompanhar o que a escola pede e espera de você, você tem que apagar tudo o que você é e se enquadrar naquela ideia de pessoa universal que não existe. E, no meio desse processo, muita gente boa. Mas é isso, uma escola que, gente, foi muita violência, assim, sabe? Então eu lembro, sabe, quando o inspetor da escola morreu e aí vai todo mundo no velório, que era na escola, porque não tinha esse negócio de velório municipal, sei lá, não tinha essas coisas, a gente velava as pessoas em casa, eu lembro de velar meus vizinho em casa ainda. E, sabe, de ter tiroteio, de ninguém poder sair da escola, de ter que esperar, de ficar um monte de mulher do lado de fora desesperada, de um monte de criança do lado de dentro desesperado, ninguém pode sair, ninguém pode entrar, porque do lado de fora o couro estava comendo. Então, essas coisas de estar na escola, né, que aí eu acho que também não é só a escola, mas é esse contexto que faz a escola, né? Difícil, difícil.
P/1- E, além da primeira professora que você comentou, que você lembra o nome dela, teve algum outro professor que te marcou, durante a escola?
R- Durante a escola toda? Ah, teve um bocado.
P/1- Você poderia contar sobre um especifico, assim, que tenha te marcado mais?
R- Eu acho que a Raquel, que foi a professora que me levou pra militância. Foi uma professora. Já eu estava na quinta série, eu tinha mudado da escola, porque teve um processo de reorganização do Estado, essas coisas que ninguém nem sabe o que é. A gente é móvel, né? Então, você está lá estudando e de repente falam: “Agora, aqui na escola, não vai mais ter o ginásio. Agora ginásio e colegial vai ser na outra escola, que é tal”.
(toca um alarme)
R- Desculpa, gente!
P/1- É o seu celular?
R- Não, isso não é um celular, é um alarme! Por isso que eu não tirei, menina. Porque eu achei, porque eu deixei o celular carregando lá fora, né?
P/1- Tudo bem.
R- Então, eu vou falar de novo da professora.
P/1- Tá.
R- Uma professora na quinta série. Chamava Raquel, Raquel Quintino, eu lembro até o sobrenome da mulher. E, na verdade, é isso: eu mudei de escola, eu estudava numa escola até a quarta série, aí aconteceu uma reorganização, da cabeça de algum bendito governador, que separou o ginásio e o colégio numa escola e os de primeiro ao quarto ano, né, o primário numas outras escolas. Então, quando eu cheguei na quarta série, eu tinha que mudar de escola e eu era a primeira turma que ia mudar de escola, assim, né, que ia sair da quarta série e já ir pra outra escola. E aí eu fui pra uma escola que era muito maior, que era um pouco mais longe da minha casa, que era o Zairão. (risos) E aí já tinha um monte de mudanças, né, porque daí você sai dessa parte primeira do ensino fundamental e vai pra outra, aí você tem um monte de professor, né, que antes a gente só tinha um, cada ano era uma pessoa que te dava aula, depois eram vários que tinha as matérias que tinha, a escola era muito maior, era outra escola, juntou gente de várias escolas, que também aconteceram isso. E tinha muitas dificuldades com os professores, porque faltava professores, não tinha mesmo professor suficiente, enfim. E eu caí numa sala, que era a quinta série E, que era uma sala dos repetentes, sabe? Que tinha essas coisas também, né, ainda? Não tem mais isso, né, eu acho, mas espero que não tenha. Mas que era como que uma classificação assim dos alunos, por rendimento, nota, comportamento, sei lá o que, e eu que vinha de outra escola acabei, por osmose, caindo aí, que foi excelente porque era uma turma, pensa, do pessoal que metia o louco porque, você imagina, eu estudava com gente que tinha dezoito anos, gente, na quinta série, no meio da quebrada! Era uma loucura a escola. E aí uma das professoras tirou uma licença e veio uma professora substituir, ela era uma professora eventual que assumiu as aulas, e que era essa professora Raquel, e ela entrou na sala de aula e ela começou a fazer uns exercícios muitos diferentes com a gente, falar de poesia, ela trouxe umas poesias, eu lembro até hoje, ela trouxe uma poesia do Maiakovski. E aí eu fiquei assim meio intrigada, né, enfim: “Quem que é essa mulher estranha, hein?” E aí eu comecei a conversar com ela um pouco. Eu era terrível, bem terrível. Então eu comecei a conversar com ela de um jeito bem terrível: “Por que você fica passando essas coisas esquisitas, aí? Você quer o quê? Quer que nós “aprenda” o quê?” E aí eu acho que ela viu que eu era meio espevitada também, né, e aí começou a me dar coisas pra ler, assim, livro de poesia, de outras coisas e aí eu fui lendo. E aí, um dia, ela falou pra mim: “Você não quer ir numa reunião? Vai ter uma reunião de jovens, eu faço parte de um grupo e você pode ir, se quiser”. E aí eu pedi pro meu pai deixar eu ir, era na casa dela, então tinha toda essa coisa de ir na casa de uma professora, que também era um negócio muito importante, né? E era uma reunião da Juventude Operária Católica, que foi o primeiro lugar que eu militei, e comecei com essa idade, de onze anos, por causa de uma professora. Depois disso a minha vida foi muito desenhada pela militância, né, e eu não sei muito bem como seria a minha vida se eu não tivesse topado com essa mulher, poderia ter sido muitas coisas, né, mas eu topei com ela, esse é o fato, e aí, nessa esquina, eu tomei um certo rumo que mudou tudo. E ela é uma figura que me acompanhou durante alguns anos porque eu segui militando, eu era muito jovem, ela ia na casa dos meus pais pedir pra eles deixarem eu ir não sei aonde, numa reunião. Imagina, com doze anos eu ia na reunião! E depois, quando eu fugi de casa, então ela também sabia, né? Foi difícil porque os meus pais foram atrás dela também, né? Mas ela não sabia onde eu estava, que eu tomei esse cuidado, pelo menos. É uma pessoa, é uma professora, muito importante no que eu sou, eu acho, de algum jeito aí.
P/1- E eu queria saber também um pouquinho sobre você, como é que foi o seu contato com a poesia, que você citou, que ela dava livro. Você lembra do seu primeiro livro? O livro que você leu?
R- Em casa a gente não tinha muitos livros, né, tinha alguns livros, mas que eram livros, nem sei porque aqueles livros estavam ali. Tinha uma enciclopédia, que eu lembro até hoje, de ciências biológicas, que a gente só usava porque tinham gravuras muito grandes de todo tipo de verminose e a gente ficava apelidando nossos irmãos de giárdia, de ameba, de qualquer coisa, (risos) dependendo do desenho que a gente ficava... era, enfim, não tinha muito, né? No jornal, nesse jornalzinho que eu comecei a ler cedo, tinha poesias, às vezes aparecia poesias, e eu comecei a identificar o que era poesia porque ela era aquela tirinha fininha, né, se tivesse escrito de outro jeito, eu provavelmente não saberia. Mas eu comecei a gostar daquilo, talvez por causa da forma. (risos). E aí, quando eu conheci a Raquel, ela começou a me passar livros mesmo, pra ler, e aí teve, ela pegou um livro da biblioteca da escola e me deu pra ler, um livro que era do Manuel Bandeira, porque justamente eu gostava muito das poesias, né, desse formato, e ela me deu um livro do Manuel Bandeira, chamava Estrela da Vida Inteira. E aí ele estava carimbado com o carimbo da biblioteca da escola, mas a gente não sabia que tinha uma biblioteca na escola, porque a biblioteca da escola era fechada. E aí eu comecei a ficar irritada com aquilo porque eu queria ler, e aí você, como que você podia ler? Você podia ler quando o professor levava os livros, ele escolhia uns livros e levava pra sala e, se você quisesse ler aqueles livros, você lia aqueles livros, mas a gente não ia na biblioteca, porque a biblioteca era fechada. Então, aí, eu perguntei pra ela se existia outra biblioteca e aí existia uma biblioteca no Centro da cidade. E aí eu ia com a minha amiga às vezes, nós “andava” quarenta e cinco minutos até o Centro da cidade pra ir na biblioteca, porque na biblioteca tinha enciclopédia, que era o Google do momento. (risos) E ali, pra descobrir quem era Manuel Bandeira, e assim eu fui descobrindo vários autores, através da enciclopédia, porque daí falava dos modernistas, né, que ele era modernista. Eu lembro até hoje do verbete do Manuel Bandeira. E aí eu lembro que esse verbete juntou com outro verbete, que era o do Mário de Andrade, por causa dos modernistas. Aí eu fui ler um romance chamado Amar, verbo intransitivo, que é do Mário de Andrade. E aí juntava também com uns verbetes do comunismo, porque o Mário de Andrade tinha sido comunista, que juntava com marxismo, que juntava com Hegel e aí eu ia, um pouco, lendo as coisas conforme a enciclopédia, no caminho da enciclopédia, (riso) dos verbetes que um citava alguém que me dava curiosidade, e eu ia caçar aquele outro. E aí eu lia umas coisas que também não fazem o menor sentido uma pessoa ler com doze, treze anos de idade, eu fui ler A Fenomenologia do Espírito. Eu não sei como foi que eu fui ler aquilo, e eu ainda tenho as minhas anotações em algum lugar que eu não achei, de quando eu li, com doze anos, anotação de A Fenomenologia do Espírito, eu nem consigo imaginar mais o que é que tem ali. Mas, então, esses livros foram livros que marcaram tanto que eu lembro, assim, mas porque eles foram um pouco um caminho, quase, eles eram uma trilha me levando, quase igual as histórias que a gente inventava, assim, que ia me levando de um lugar pro outro. E aí eu descobri o comunismo, eu descobri o marxismo, eu descobri os modernistas, eu descobri um monte de coisa e eu, na escola, uma biblioteca fechada! Eu falei: “Não!” Então, o que a gente fez? Juntei vários amigos meus que eram tudo pancada da cabeça e a gente arrombou a biblioteca da escola, o que gerou um grave problema, um caso de suspensão pra alguns (risos). Mas eles não queriam deixar a biblioteca aberta porque não tinha quem cuidasse, dizia que a gente ia desgraçar os livros e tudo o mais. E aí, nessa época, como eu estava começando a dar muito trabalho na escola, porque realmente era isso, então eu virei fiscal da escola, porque depois que eu descobri essa biblioteca fechada eu achei que era um absurdo e aí eu virei fiscal, mesmo. Então eu ficava olhando a caixa d’água, eu vi que a caixa d’água estava aberta, então eu pedia pros meus amigos, que eram os pancadas mesmo, que tinha a coragem de subir lá e olhar a caixa d’água. Aí eles voltavam, falava assim: “Tem um pombo morto”. Aí nós ‘voltava’, passava de sala em sala, sem pedir pra ninguém, falando que tinha um pombo morto na caixa d’água, que ia todo mundo morrer. Aí, quando dava no dia seguinte, estava cheio de pai e mãe na escola, falando como que a caixa-d’água estava aberta, que os filhos estavam chegando em casa dizendo que ia tudo morrer. E aquilo foi virando uma perturbação tão grande, que aí a coordenação da escola chamou minha mãe e perguntou se ela não deixaria eu ficar cuidando um pouco da biblioteca, que tinha que arrumar alguma coisa pra eu fazer, (risos) pra eu parar de arrumar problema. E aí eu fiquei um pouco, assim, eu fiquei um tempo ficando na escola, umas duas horas na biblioteca, pra biblioteca ficar aberta. Trabalho infantil, né, não tem muito... (risos) Então, sobre os livros e sobre a leitura é isso, foi minha maior escola, na verdade. Eu lembro muito mais das coisas que eu li por causa da enciclopédia, ou da biblioteca, sabe, do que das coisas que efetivamente eu aprendi na sala de aula, sei lá. Eu briguei muito, por exemplo, com a minha professora de Matemática, muito, uma professora de Matemática que eu tive, porque ela estava ensinando números negativos e eu falava assim: “Mas eu não consigo entender porque um número é negativo! Não existe menos alguma coisa. Ou você tem alguma coisa ou você não tem. Agora, como eu vou ter menos alguma coisa?”. E aí, aquela coisa da escola, né, que ela falava assim: “Mas essa é a regra, você só precisa aprender a regra e fazer a conta!”. Eu falei: “Mas eu não vou fazer uma conta, eu não sei o que significa!”. Eu sei que eu arrumei tanto problema que aí também me dispensaram das aulas de Matemática e era outro período que eu ficava na biblioteca. Então, a leitura acabou sendo minha escola, dentro da escola, ou fora da escola. E, daí pra frente, eu não parei de ler mais, e de abrir biblioteca também. (risos)
P/1- Nesses caminhos que você trilhou desde pequenininha, assim, de criança, você já tinha o sonho de ser alguma coisa? Assim, o que você queria ser desde pequenininha, assim, quando você crescesse?
R- Ai, nossa, eu quis ser muita coisa, não tem assim um sonho que era esse e pra sempre.
P/1- Mas, quais, assim, você poderia citar.
R- Primeiro, eu queria ser uma pessoa que cuidava de cavalo. Eu tinha esse rolê porque o meu avô tinha sido amansador de cavalo. Olha que é uma coisa que deve ser terrível, mas eu achava um sonho, eu gostava de cavalo, tinha cavalo ainda onde a gente morava por causa da rua de terra, muita gente tinha cavalo. Então, eu saía com a minha avó pra pegar cocô de cavalo. Então, a gente andava no rastro dos cavalos, que era pra trazer esterco, pra botar nas plantas. Então, eu tinha essa coisa que eu queria trabalhar com cavalo. Depois eu queria ser desenhista, porque eu gostava de desenhar. Depois eu queria ser cantora. Daí teve uma época, que foi a época que eu mais comecei a arrumar treta, e aí que era isso, que eu era a menina dos argumentos, que eu ficava lendo pra irritar as pessoas, porque eu ia até o limite da razão de um ser humano de paz. Aí eu queria ser advogada, porque eu achava que essa era a função de um advogado: levar a pessoa até o limite (risos) de onde ela consegue, pra ver se ela é coerente na história que ela está falando, mas depois eu não queria mais ser advogada. E aí, teve uma época que eu comecei a querer ser professora, mas aí eu não queria ser professora da escola, porque eu não gostava da escola e aí eu comecei a pensar que eu queria abrir uma escola. E aí eu acho que esse foi o último assim, sonho de ser alguma coisa.
P/1- Bacana. E durante a sua adolescência, o que você fazia? Depois desse período que você foi pra escola, o que você costumava fazer com os seus amigos, durante a adolescência?
R- Eu comecei a trabalhar com treze anos. (risos) Então, isso era uma parte, né, da adolescência. Agora, era uns trabalhos meio malucos também, porque assim, antes de eu arrumar esse primeiro trabalho, eu tinha uma vizinha que era a Léo, e a Léo tinha duas crianças e ela tinha um problema grave, que ela precisava trabalhar e não tinha com quem ficar, eu falei: “Eu posso ser babá dos seus filhos”. E a situação do trabalhador é tão desgraçada que a Léo falou: “Tudo bem”. Então eu tinha doze anos e eu cuidava de duas crianças. Até o dia que o Danielzinho perdeu o dedo, porque estava andando de bicicleta, enfiou o pé no aro do negócio, perdeu o dedo, a gente pegou o dedo, levou pro hospital, costurou o dedo, deu tudo certo, mas, assim, era a evidência de que tinha chegado o limite da minha profissão como babá, pelo menos naquela fase da vida. E eu sempre ficava querendo arrumar um serviço, porque a gente não tinha muita coisa pra fazer no bairro, né? A cidade onde eu morava, que é Mauá, é uma cidade muito pobre, ainda hoje, então você não tem... foi ter shopping em Mauá depois que eu saí de lá e olha que é shopping, que não é um centro cultural, né, que é uma coisa que dá muito lucro e é interessante pra muita gente, mas mesmo isso não tinha. Então não tinha nada, absolutamente nada, assim, de espaço cultural, atividade cultural. Você tinha as escolas, que eram os lugares que a gente ia durante a semana, e tinha a rua. A rua era o grande negócio. Então continuou na adolescência essa coisa da rua também, de uma maneira um pouco diferente, né, porque daí já tem uma coisa de você também, às vezes, não querer, você não está mais necessariamente brincando, mas você está simplesmente na rua, à toa, igual a gente vê um monte de adolescente sentado na rua fazendo nada, (risos) falando todo o tipo de besteira possível durantes horas, que não acaba, é inesgotável. Tinha essa coisa da rua. Tinha uma coisa de tentar arrumar dinheiro, porque a gente não tinha dinheiro, então a gente queria fazer algumas coisas, sei lá, qualquer coisa. Então aí teve uma época que a gente ficava pegando limão. Então, eu estou falando assim, as coisas que eu fazia com os meus amigos eram as mais variadas do mundo, desde tentar construir uma bicicleta de pau ou tentar fazer carrinhos de rolimã com capacidade de levar mais de vinte pessoas, a gente ficava fazendo uma engenharia que depois sempre terminava em algum acidente meio grave. (risos) E era, seguiu sendo um pouco essa brincadeira da rua, mas de um jeito um pouco diferente. Tinha essa coisa das reuniões, então isso foi uma parte da minha adolescência, né, eu passei uma adolescência já meio como militante, então eu ia pras reuniões, eu ia pra ler, eu ia pra protesto, eu ia, o meu barato era essas coisas. (risos) E, nossa! Eu lembro que, nessa época, o meu sonho era ir numa passeata em Brasília, porque eu via na televisão uma passeata em Brasília, eu achava que uma passeata em Brasília era o ápice da mudança do mundo. Olha pra você ver a pessoa como se ilude, né, porque está longe. E então era isso. Eu comecei a trabalhar depois num lugar do meu bairro que tirava fotos, né, tinha esses lugares que revelavam fotos, tiravam fotos três por quatro pra documento, não sei o que, e eu fui trabalhar lá, eu saía da escola e ficava uma parte do tempo lá, com treze anos também, até o dia que assaltaram lá, à mão armada, eu estava sozinha, aí meus pais acharam que eu não devia mais voltar pro trabalho. (risos) E foi um pouco isso, assim. Eu tocava violão, ah isso era uma coisa também. A gente andava, não tinha nada pra fazer, eu sabia tocar umas músicas de violão, era uma época que todo mundo ouvia a mesma coisa, era todo mundo sofrendo com o Legião Urbana, né, todos adolescentes da mesma situação, assim, todo mundo com vontade de ficar depressivo, porque isso era uma coisa meio a moda, né, que a gente ficava ouvindo Renata Russo, que era aquela coisa. E a gente, e aí eu, a gente, o que tinha eram as nossas casas, as calcadas, as vielas, então era meio isso, a gente se juntava, se juntava na calçada, se juntava na viela, se juntava nos lugares, fazia fogueira, tocava violão em volta da fogueira. Então isso era, era isso as coisas que tinham na nossa adolescência, né? Não tinha uma coisa muito com São Paulo ainda, que já tinha, acho que um ritmo um pouco diferente. Eu fui descobrir São Paulo depois. Com dezesseis anos eu comecei a trabalhar em São Paulo, aí numa empresa no Jabaquara, mas que também eu só sabia chegar no serviço e voltar pra casa e eu vinha de Mauá e voltava. Tanto que no dia que teve um apagão, na época do Fernando Henrique Cardoso teve um apagão, né, do metrô e tudo, eu estava no meio do metrô, a gente teve que sair em outra estação, eu não sabia por onde eu ia, eu fiquei sentada, assim, umas duas horas no ponto de ônibus, pensando como que eu ia voltar, que eu só sabia voltar de metrô. Então, era um pouco dividida a minha adolescência, entre trabalho, a rua, estar em casa. Meus pais começaram a construir a casa também, e isso significava um trabalho, sobretudo pra mim, que era a mais velha. Então, tinha uma parte do dia que também, durantes vários anos, foi de chegar da escola e carregar tijolo, carregar barro, carregar areia, pedra, deixar as coisas prontas, porque meu pai ia chegar do serviço seis horas da noite, ia jantar, vestir a roupa de pedreiro e fazer massa para bater pelo menos algumas fiadas de tijolo, então. Mas era isso, era brincar, estar na rua, estar com o povo, trabalhar, assim que passava o tempo. E lendo, eu sempre lia, depois que eu aprendi.
P/1- E aí você comentou sobre a militância, como é que foi, pra você, a primeira manifestação que você foi? Você lembra? Aonde foi, como que foi, as pessoas que estavam com você?
R- Então, a primeira manifestação que eu fui, foi uma manifestação que tinha a ver com as escolas do bairro, mas que tinha alguma coisa com merenda, que estavam tirando a merenda, umas escolas que estavam sem merenda. E como a gente não fazia, assim, muita coisa pra fora, a gente sabia tudo o que acontecia no bairro e todo mundo se encontrava na rua. Então a gente sabia e aí tinha esse povo da JOC, que eu já era junto, eu falava: “Gente, estão tirando as merendas da escola!” E começou essa coisa do protesto e a gente fez um protesto, que a gente foi até a prefeitura. Mas, era uma coisa assim, que era muito bagunçado, né, um monte de moleque lá, vai lá, não sabe: “Bom, o que vocês querem?” “Querem merenda”. Mas ninguém sabia muito bem nada, (risos) mas eu achei ótimo. E, mais ou menos no mesmo período, assim, a diretora da escola que eu estudava, que era uma figura muito violenta, ela, enfim, teve um problema, sei lá, na minha sala, e ela foi na sala, chamada pela professora, pra botar autoridade, como sempre, e ela deu dois chutes num menino que estudava com a gente. E aí a gente criou um movimento, que era o movimento Fora Idalina, Idalina era o nome da peste, falo mesmo o nome dela. E aí a gente começou a fazer muitos protestos na escola, muitos protestos na escola. E eu me lembro muito bem do último protesto que teve, que o último protesto a gente jogou toda a merenda em cima do carro dela, porque o pátio onde a gente ficava, era um pouco mais alto que o piso do estacionamento e tinha um alambrado, então, a gente via os carros embaixo. Então, a gente falou: “Ah, ela vai ficar fazendo isso (risos) com os alunos, a gente vai acabar com o carro dela”. E aí a gente atacou todas as comidas que você puder imaginar, no carro dessa mulher. Ela chamou a polícia, estava perto da hora da saída, e aí a polícia chegou e a polícia não deixava a gente sair da escola, porque ela dizia que tinha que pegar quem tinha feito aquilo e que ninguém ia sair da escola. E aí começou a chegar gente que veio buscar os filhos, na escola. Nem todo mundo buscava os filhos, não era muita gente que buscava os filhos, mas essas pessoas começaram a perceber o que estava acontecendo na escola e a gente também ficava gritando de dentro da escola, uma coisa assim de doido. Mas essa foi uma manifestação muito forte, porque ela terminou com um monte de gente da comunidade do lado de fora atacando tijolo na porta da escola, a polícia não conseguiu segurar, teve que abrir a escola, virou um bafafá, essa mulher saiu da escola, veio outra diretora e assumiu a escola. Deu certo, né? Mas, olha, foi... é que a gente era meio doido, né? Mas acho que esses foram os meus primeiros protestos, lá em Mauá. E, bom, depois disso veio um período difícil, que foi quando os meus pais, né, se tornaram dessa religião, que eles são até hoje e essa religião é uma religião que rechaça muito a intervenção política, porque ela considera que a intervenção politica é como se fosse um pouco de, como eu poderia dizer, de dar aos homens um crédito que é só de Deus, tributar aos homens o que é só de Deus, que seria a capacidade de mudar as coisas, né, e de tornar as coisas justas. Então, a intervenção política tem um pouco, é compreendida, um pouco, desse jeito, eu acho. E aí foi muito difícil, porque meus pais sabiam que eu era militante, eu ia, eu fazia as coisas, eles sabiam que ia pra reunião, que eu ia. Bom, enfim, eu dava esse tanto de problema na escola também, não tinha como não saber. E aí eles começaram a dizer: “Olha, você não vai mais participar disso porque isso...”. Primeiro eles tentaram me convencer, muito, assim, né? São pessoas muito amorosas, meus pais. São rígidos, muito rígidos, mas muito amorosos. Mas ninguém conseguia me convencer. E aí, eu, com essa minha capacidade também de levar as pessoas até o limite da razão, chegava em conflitos que foram muito difíceis. E aí, quando eu tinha uns dezesseis anos, ia acontecer o Primeiro de Maio, meu pai já sabia que eu ia pro Primeiro de Maio, ele falou pra mim: “Você não vai”. E ele tinha que trabalhar, mesmo sendo feriado. E aí ele foi trabalhar e eu fui, e aí eu voltei, tomei uma surra terrível e eu fiquei com muita raiva, porque os meus pais não eram, eles não eram violentos, isso era uma coisa, eles eram muito rigorosos, mas a gente não apanhava. Assim, a gente tomava umas chineladas porque, também, pelo amor de Deus, né, gente, só sendo muito santo pra não dar, mas isso são umas coisas que a gente não botava muita fé, minha mãe davas umas chineladas e tudo bem. Mas essa foi uma surra grande que eu tomei, grande, e eu fiquei com muita raiva, e eu já era grande, né, eu já tinha dezesseis anos e eu estava levando uma surra porque eu tinha ido no Primeiro de Maio, e aquilo, pra mim, era um negócio que não entrava na minha cabeça. E aí eu sabia que eu não ia deixar de fazer o que eu estava fazendo, eu não sabia até quando eu ia querer ser militante, mas naquele momento eu não ia deixar de fazer isso, e aí eu decidi que ia fugir de casa. E aí eu fugi de casa num sábado de manhã, escrevi um bilhete, botei umas mudas de roupa numas duas sacolas de mercado. A gente não tinha mala, porque não ia pra lugar nenhum e fui embora, e não voltei nunca mai. Aí foi uma ruptura muito grave, assim, muito grave no sentido de densa, de difícil, de tudo, porque foi como romper com toda uma parte da minha vida. Os meus pais, até hoje a gente pouco se fala, até hoje eles têm essa mesma leitura sobre aquilo que eu faço. Ao mesmo tempo isso fez uma coisa, né? Se eu tinha saído de casa pra ser militante e rompido com tudo, então a minha militância tinha que valer a pena. E eu comecei a ficar um pouco enfadada com a militância na JOC, porque eu falava: “Só mexe com jovem, e tem um monte de gente que está aí lascado, que a gente tinha que organizar, que a gente tinha que fazer as coisas. E, perto dessa época, em 2002, é, o MTST, que era um movimento muito pequeno, que quase ninguém conhecia, todo mundo, na verdade, chama de Sem Terra, né, porque daí qualquer coisa que ocupava terra era os Sem Terra. E eles foram pro ABC porque eles queriam construir um trabalho no ABC, não tinha, e eles conheciam uma pessoa, que era um professor da Universidade Federal do ABC, com quem a gente tinha um contato nesse nosso trabalho de jovens, porque ele é, também, da região. E, quando eles foram começar esse trabalho, que era um trabalho que era com a perspectiva de construir uma ocupação, mas era nas favelas da região, eles pediram ajuda pra gente e a gente começou a ajudar, conversando com as pessoas que viviam nas comunidades que a gente morava ou fazia coisas, sobre moradia, como que estava a situação de moradia, se eles queriam fazer uma luta por moradia, a gente ajudou nesse trabalho inicial de juntar gente. Perto disso - aí eu já morava sozinha, né, eu já tinha saído de casa e tudo o mais - eu fui mandada embora de um trabalho que eu tinha, um pouco, meses depois disso que, na verdade, foi quinze dias antes da ocupação acontecer, que foi a primeira ocupação que eu participei, que foi em 2003, produto desse trabalho que começou no final de 2002, nas comunidades de lá. E aí, quando eu entrei na ocupação, eu falei: “Não, isso aqui vale a pena”, que era um negócio de louco, né, assim, chegar, eu lembro até hoje, a gente foi pra um Igreja Batista no centro de Santo André, que tinha um pastor de luta, doidão, que era o Pastor Levi, que falou: “Não, a gente está do lado do povo que luta”. E aí a gente marcou lá o ponto de encontro dos ônibus, com o povo que ia fazer a ocupação, que era esse povo que a gente foi reunindo durante esses meses de trabalho, nas comunidades. E esses ônibus, eu lembro de tudo desse dia, porque era muita gente, era uma igreja muito grande, eram umas quatrocentas pessoas que a gente estava indo e o povo da igreja tinha feito sopa pra nós, tinha uns outros ‘pastor’ doidão, fazendo umas missas meio revolucionarias assim. Umas missas não, uns cultos, já estou misturando os negócios, porque era da Igreja Batista. E, uma hora da manhã, meia noite e meia, uma hora da manhã, a gente entrou nos ônibus e foi, saiu pra ocupar um terreno. E aí a gente entrou num terreno gigantesco, na beira da Anchieta, na frente da Volkswagen, e a gente chegou, uns motoristas não queriam parar, porque alguém tinha dito pros motoristas que era uma vigília, mas na verdade era uma ocupação de terra. (risos) Então, muitos ficaram com medo, não queriam parar e aí uma treta, e aí para, enfim, tudo muito tenso, a gente desce, umas quatrocentas pessoas, de um monte de ônibus, num terreno baldio gigantesco com, sei lá, trezentos mil metros quadrados, escuro, começa a fazer barraco. E aí veio a polícia, só que aí tinha uns ‘pastor’ com a gente, então ficou uma situação meio estranha, até por isso, porque daí os pastor que foi falar com a policia. E, no fim das contas, a gente ficou nesse lugar, e eu fiquei, isso era uma sexta à noite, eu fiquei nesse lugar até domingo. Na verdade, ainda eu não tinha sido mandada embora, eu fiquei nesse lugar até domingo e eu precisava ir trabalhar na segunda-feira, e não parava de chegar gente. E era muito trabalho, e a gente ficava fazendo barraco, organizando pras pessoas deixarem espaço de rua. Cada um que chegava, a gente explicava como que funcionava, o que era assembleia, o que era trabalho coletivo, o que era isso, o que era aquilo outro. Eu sei que eu saí segunda-feira pra trabalhar e coincidentemente, é isso, eu fui mandada embora no meio dessa semana que, pra mim, no fundo, foi até uma coisa boa, porque daí eu peguei o seguro-desemprego e falei: “Eu vou ficar um pouco aqui” e, quando eu voltei eu não conseguia mais me achar, porque tinha dez vezes o número de barracos, que tinha de quando eu saí, e isso só aumentava. E aí eu estava sem trabalho, eu tinha largado a escola, né, porque quando eu saí da casa dos meus pais, eu estava no terceiro ano do colégio, e eu estudava numa escola técnica de manhã e trabalhava de tarde, e aí eu fui morar sozinha, chamei meu chefe e falei: “Olha, eu preciso que aumenta meu salário, porque eu vou morar sozinha”. Ele falou: “Eu posso aumentar seu salário, se aumentar seu trabalho”. E eu falei: “Tudo bem”. Então, ele aumentou a minha jornada de trabalho e eu saí da escola, e eu fiquei sem me formar no ensino médio. Então, eu estava sem escola e estava sem trabalho, eu estava com tempo e fui pra dentro da ocupação, assim, fui e fiquei. E achei que aquilo ali valia a pena demais, que aquilo ali juntava gente que precisava, que aquilo ali era um jeito das pessoas se encontrarem com um objetivo comum. E é um exercício de pensar um mundo novo, porque não tem nada no terreno, então você vai construir, então como que você vai construir? Onde que as pessoas vão ocupar? Que espaços vai ter? Que espaços vão ser ocupados, quais não? Por quê? Como você decide isso, com tanta gente? Como que, com tanta gente, a gente consegue fazer com que as coisas sejam decididas por todo mundo? Como que você lida com a polícia, com o governo, com tudo? E isso foi, afff, eu me apaixonei pela ocupação de terra nesse dia! E fiquei na ocupação de terra. E aí, depois, a ocupação foi despejada, e aí o povo foi pra Praça da Matriz, em São Bernardo do Campo, aí o padre pediu pra polícia pra tirar a gente de lá. Ah, era uma treta também, com o padre. Enfim, muitas coisas, sabe, eu fui vivendo a partir desse processo. E aí, durante esse processo, eu me casei a primeira vez também, eu tinha uns dezoito, dezenove anos, com uma pessoa que era do movimento. E foi aí que eu vim morar em São Paulo. Então, a militância, na verdade, se tornou esse fio condutor ou esse epicentro, ao redor do qual as minhas escolhas iam se organizando, sabe, meu mundo ia se abrindo ou se fechando, que eu ia conhecendo gente, também deixando gente pra trás. E aí eu vim morar em são Paulo, foi assim que eu vim, por causa da militância. Primeiro foi um super choque porque, esse companheiro com quem primeiro eu me casei, eu conheci na ocupação de terra, né, então você acha que a pessoa... mas ele não era sem-teto. Então, quando eu fui na casa dele a primeira vez, eu tomei um choque profundo, porque eu conhecia São Paulo muito pouco, por causa do trabalho, mas era esse caminho de jegue, que só vai por onde volta, e eu não tinha relação social nenhuma com essa cidade, né, era uma coisa que eu vinha trabalhar e voltava e também não cabia mais nada em vinte e quatro horas. E aí eu vim, aí eu fui e aí era isso: era um apartamento que tinha dois andares, eu não sabia nem que existia apartamento de dois andares, na minha vida. Mas era isso, eram mundos inteiros se abrindo de pessoas, de modos de vida, de cidade, de tudo muito diferente, por causa da militância e a militância até hoje é isso, como você mexe algumas configurações e de repente você parece que está num planeta diferente mesmo, com gente diferente, com jeito de ver diferente, que é o que, junto com os livros, também é a minha escola, eu acho, esse circular por um monte de mundos diferentes. Respondi, preta, o que você perguntou? Não sei.
P/1- Depois que você se casou, você continuou trabalhando? Você estava trabalhando em São Paulo? Como é que foi? Você começou a militar em outros lugares, por outras causas?
R- Então, eu continuei no MTST, porque era uma época que a gente era muito... a gente era meia dúzia de gente fazendo o movimento, um monte de jovem doido também e, pra mim, a luta por moradia foi isso: eu estudava igual uma louca, aí eu fui ler todos os teóricos do marxismo que estudaram a cidade, a questão urbana, o não sei o que. Nada disso era na escola, mas era a vida ia pondo e eu ia estudando e aí eu falava: “Não, é isso, a gente tem que militar aqui porque isso é o território, disputar território, é juntar gente pra gente conversar sobre o significado do território”, essa coisa do território era muito forte. Talvez, agora pensando, desde o tempo que a gente marcava os lugares onde eu morava, sabe, do território, né? Então, eu tinha isso, essa coisa com o lugar, com onde a gente está, com essa coisa do território e da gente ser um pouco dono do que acontece nesse lugar. Então, como que a gente consegue ser parte do rumo que tem esses lugares, da vida que tem nesses lugares, da vida que a gente leva nesses lugares? E a luta por moradia foi virando isso pra mim, não só uma coisa da moradia, mas esse espaço onde era possível juntar gente pobre como eu, que estava atrás de um jeito diferente de viver, que a gente não sabe qual é, mas que a gente queria construir junto e que aquele chão dava liga pra gente se juntar. Então, eu continuei no Movimento de Moradia e até hoje não saí. (risos) Eu fiquei sempre oscilando muito no trabalho, não é, porque é isso: não tenho formação acadêmica. Então eu sempre trabalhei de tudo o que apareceu na vida, mas esses trabalhos se alternavam com momentos de militância também, que a coisa ficava muito difícil. Então, você fazia uma ocupação nova, a gente tinha que ir morar lá, praticamente, pra trabalhar e fazer reunião e fazer assembleia e fazer formação política e estruturar coisas e ajudar que pessoas se apropriassem dos jeitos de organizar e fizessem elas mesmas. Aí você tinha uma coordenação que funcionava sozinha e aí você conseguia sair de novo, porque a galera ia tocar as coisas, né? Então, messes momentos mais exigentes assim, eu abandonava sempre o meu trabalho. E aí é isso: a minha carteira profissional é uma desgraça, minha filha. É o retrato disso, porque aí eu entro no serviço, aí vai, você está lá no trabalho, de repente. E continuando militando, de noite, de sábado, de domingo. Essa coisa no território também é muito forte, né, porque a militância estudantil ou a militância sindical, funcionam em espaços que existem de segunda a sexta, horário comercial ou horário de aula. O território é onde as pessoas moram e as pessoas estão mais onde elas moram quando elas não estão trabalhando, nem estudando. Então, fins de semana, pra mim, sempre foi dias de trampo intenso na militância, a vida toda, assim. Então, trabalhava, militando desse jeito, e nesses momentos das ocupações, eu saía do serviço, pedia as contas, era mandada embora, alguma coisa eu fazia. E isso foi assim, foi sempre essa oscilação, eu segui militando, militando no movimento de moradia, trabalhando desse jeito, fazendo muitas coisas, fazendo todo tipo de coisa. Fui, aí comecei também a me conectar com movimentos de outros lugares, a gente começou a construir o movimento nacionalmente, então daí eu também já começava a ir pra ocupações de outros estados, ajudar a organizar. E aí também era entrar em outros universos. Eu era uma pessoa que é isso: nunca tinha saído do estado de São Paulo e aí você sai do estado de São Paulo, um pouco com essa coisa de ser uma ativista que vai num lugar pra ajudar a estruturar naquilo, sem nem conhecer o lugar. E eu fui conhecendo, o pouco que eu conheço do Brasil, desse jeito. Então, às vezes, as pessoas falavam pra mim assim: “Nossa, você conhece tal lugar, você já foi na praia tal, você já foi na praia?” “Não, mas eu fui na favela tal, no morro tal, na ocupação tal”, todas quiçaças eu conheço do lugar, mas assim (risos) outros lugares, muito dificilmente. Era quase que uma vida subterrânea desses lugares, né, ou a vida desses lugares que não aparece muito, mas que é uma vida real nesses lugares, então eu tive muita sorte. E aí é isso: eu só conheço gente e o negócio só se expande, se expande, se expande. E aí eu comecei a estudar psicanálise, aí eu comecei de tudo o que você puder imaginar também, eu já fiquei estudando por causa de coisa da militância. E aí, só que associado ao trabalho, tinha essa coisa do estudo, né, o que eu ia fazer? Bom, eu era pobre, mesmo que tivesse um companheiro que não era pobre, mas eu era pobre, eu precisava resolver minha vida e aí a coisa do trabalho, como é que você trabalha? E eu tinha muito problema já com a escola, e aí quando eu conheci o povo da universidade eu tive mais problema ainda, porque eu falava: “Essas desgraças não sabem de nada, lê cinco livros e vem aqui querer dizer como é que o povo tem que fazer as coisas que eles mesmo não faz”. Então, pra mim era uma coisa assim, selvagem! Mas eu sabia que eu ia precisar entrar na faculdade, né, eu sabia que em algum momento isso ia ser parte de pensar trabalho, de pensar. E é triste, né, porque eu não tinha um sonho de entrar na universidade, sabe? (risos) O que é uma coisa muito triste. Mas se associava ela muito com trabalho e ainda hoje associam. E aí começaram as minhas tentativas de escola, aí a escola volta pra vida, junto com o trabalho. Aí eu entrei na PUC, em 2005. Gente, eu vou falar um negócio que eu não sei como é, porque isso é um negócio ilegal, porque, por exemplo, eu não tinha o ensino médio, né, então, o que que eu fiz? Vou comprar um diploma, gente, pra que que eu vou pra escola? Não vou! De novo, não vou. Essa desgraça eu não vou. Pois eu comprei um diploma, no Largo do Paissandu, por cento e vinte reais, que aliás deve ser, deve ter ficado mais caro, provavelmente, (risos) mas assim, só isso _____________ [1:13:00]. (risos) Comprei, fiz o vestibular, entrei na PUC, em 2006, isso. Entrei na PUC, estudei seis meses, aí tinha todo o processo de bolsa. Na coisa do processo de bolsa teve várias complicações, né? Uma delas, a minha mãe ficou doente, daí foi uma época que eu voltei a me aproximar da minha família pra dar um suporte, minha mãe teve um câncer muito difícil e é isso, né, o SUS que é uma coisa que a gente defende e tem que defender, sabemos também das dificuldades, né, de demora, enfim, que tem mais a ver com isso, do que com outras coisas. E aí foi um período difícil. Então, eu estava nessa de tentar na faculdade, ao mesmo tempo tinha que entregar os documentos, eu não estava dando conta, e tinha a minha mãe e tinha não sei o que, eu sei que eu fui conseguir fazer isso já quase que fora do prazo e aí ela falou assim: “Olha, a gente vai analisar duplamente os seus documentos, porque a gente não costuma aceitar nada fora do prazo” e eu falei “Se analisar por cima os meus documentos já pode achar algum BO”. E aí eu saí da PUC, não tive bolsa, eles não descobriram nada do diploma, vão descobrir agora, e aí eu saí da PUC. Que foi muito doido, porque foi um período que eu estava casada, eu tinha ido morar na zona sul, aí a zona sul de São Paulo virou o meu segundo território, depois de Mauá, virou o território da minha segunda vida, que eu falei pro meu companheiro, eu falei: “Olha, eu não dou conta de ficar morando aqui, não, nesse apartamento aqui. Eu acho legal e tudo, mas não encaixa comigo em nada”. Eu nunca tinha morado nem num prédio, em Mauá não tinha nem prédio, a gente achava que quem morava num prédio era rico. E aí eu falei: “Olha, eu preciso morar na periferia”. E aí a gente foi morar na periferia. Então, já tinha zona sul e, na PUC, coincidentemente, eu conheci duas pessoas da zona sul, que eram as duas (risos) únicas pessoas da quebrada que estudavam na minha sala e que também não se formaram até hoje, e que também saíram da escola porque não conseguiram bolsa, e um deles depois eu descobri que também tinha comprado diploma. Ou seja, essas coisas, né? E são meus amigos até hoje. E foram muito importantes, eram pessoas do Sarau do Binho. E aí eu comecei, além de militar, de trabalhar, de enrolar na PUC, a participar do Sarau do Binho. Que, pra mim, era o lugar que eu mais queria na minha vida, porque era um lugar que tinha um monte de gente favelada igual eu, na quebrada, num espaço de estudo que não era uma escola, que não tinha um professor, que tinha livro, que tinha um monte de gente querendo fazer coisas diferentes, conhecer coisas diferentes. E aí eu chamava o pessoal pra ir na ocupação, e aí a gente fazia sarau na ocupação, e a gente começou a fazer trabalho de cultura. E aí eu ia no Sarau do Binho, então eu falava do que estava acontecendo em outros lugares, e essa relação de continuar os meus estudos no sarau, praticamente. Então, o trabalho entra, assim, de um jeito na minha vida, que é como uma obrigação inescapável pra quem é pobre e a universidade entra um pouco na minha vida desse jeito. É, feio falar isso, né, mas é verdade. Enquanto que o sarau e as ocupações entram na minha vida como, nossa senhora, as escolas que eu queria que todo mundo pudesse estudar.
P/1- O que é que tem de tão especial no sarau, assim?
R- Dá pra falar do que não tem, né? Não tem parede, não tem professor, não tem hierarquia, não tem prova, não tem classificação, não tem divisão entre melhores turmas, piores turmas, não tem: “Senta e fecha as pernas”, não tem: “Não pode comer agora, não tem não pode beber agora, não tem” Tem vida, né? Tem gente, que quer escapar de uma rotina massacrante, mas sem se esconder dessa rotina massacrante, gente que não suporta o dia a dia pesado de trabalho, de violência na quebrada, de tudo, mas não quer acreditar que tem além disso, é sentar pra ver a televisão. E é gente desbravadora de bairros, porque é gente que sai descobrindo outros loucos, que querem também as mesmas coisas e se junta. E é uma loucura, eu acho, sarau, eu acho. Eu não sei como se explica isso, é meio metafisico. Você imagina: o Sarau do Binho é na segunda-feira, cara, todo mundo trabalha! Hoje é uma vez por mês, antes era toda segunda-feira. Lógico que não dava pra todo mundo ir toda segunda, mas sempre era cheio. Mas era um lugar de liberdade, assim, tão grande, que a gente ia mesmo se fodendo no outro dia pra ir trabalhar. Aí é muita irmandade, eu acho. Tem muita gente, o que mais tem aí é gente querendo uma vida outra, aos trancos e barrancos, e fazendo o que dá igual doido, pregando placa nos postes com poesia, pra trabalhar no dia seguinte, né? É, a vida devia ser outra, né? Porque é muita gente soterrada. Esses aí são os que não aceitam ser soterrados, os que percebem que estão sendo soterrados, né? Uma parte do nosso povo, coitados, nem percebe, porque são tão pouca as ferramentas, né? O sarau era esse fôlego. Você quer ir, né? Você esta fodido, mas você quer ir, porque você quer viver um pouco além de sobreviver, além de viver. Começou.
P/1- Você quer beber uma água?
R- Começou. (choro) Nossa, agora que abriu as comportas do inferno, vocês vão ver. (risos)
P/1- Estava controlando, você abriu.
R- Ai, meu Deus _____________ [1:21:02]. Ah, preta, embora lá, agora só Deus sabe como que vai ser, mas tudo bem.
P/1- Eu queria que você falasse um pouquinho sobre a sua trajetória de livros, que você escreveu alguns livros. Como que foi, a partir desse momento que você foi pro Sarau? O que aconteceu na sua vida? Você terminou a faculdade? Você fez alguma faculdade? Você falou que estava estudando.
R- Nossa, eu entrei em muita faculdade. Eu sempre gostei muito de estudar e eu sempre estive envolvida com muito estudo, por causa da militância. Então, é isso, no movimento tinha, o movimento colocava o tempo inteiro, desafios , assim, pra pensar, então eu comecei a perceber que a gente fazia formação politica, né, então, as pessoas, por exemplo, tinha uma parte que não sabia ler, então eu tinha que ensinar as pessoas a ler, então eu comecei a estudar Pedagogia, sei lá, porque eu queria ver... era mais, pra mim, o estudo era uma ferramenta, assim tipo: eu preciso alguma coisa pra resolver um problema da vida, então eu vou estudar. Então, é isso, eu estudei um pouco dessas teorias pedagógicas, sobretudo Paulo Freire, que eu acho que é o que, no movimento também é mais lido e mais acessível também. Enfim, estudei Urbanismo, estudei Psicanálise, estudei, olha todo tipo de coisa que você puder imaginar> marxismo, Economia, Teoria Crítica, tudo tinha relação com coisas do movimento. E isso fez com que eu fosse me aproximando da universidade. Então, por exemplo, meus amigos brincam assim que eu nunca me formo, mas eu tenho uma vida acadêmica que é terrível, porque é isso, então você está sempre na universidade, fazendo debate com não sei quem, com o professor não sei quem, seminário não sei o que e tudo o mais. E, ao mesmo tempo, sempre brigando muito, então, me contrapondo muito à várias leituras que a universidade tem de coisas que eu também li, que eu acho que é de outro jeito o negócio, e aí eu sou encrenqueira também, tem que já deu, isso já esta marcado, né? Então, eu tinha uma coisa com os livros, assim, eu gosto muito de ler, e os livros foram a minha possibilidade de estudar as coisas formais sem a hierarquia da escola, porque, é isso, né, o cara está dizendo uma verdade num livro, mas você pode ler e fechar o livro e falar: “Que otário”. (risos) Não tem ninguém ali te obrigando a reverenciar uma pessoa, te impedindo de discordar se você não tiver uma tese de doutorado pra fazer isso. E a literatura, ela sempre foi esse, esse fôlego um pouco, né, porque a teoria bruta ajuda a entender várias coisas que acontecem, mas projetar futuro é difícil na teoria, né, e quase sempre quando é feito, dá ruim, porque vira receita, vira autoritário, vira verdade única, vira um monte coisa. E a literatura é esse lugar que a gente pode arriscar, (risos) e pode ser uma loucura e pode ser fantástico e pode ser... mas eu não tinha essa coisa. Eu tenho uma relação muito afetiva com os livros, mas eu não tenho uma relação de autoridade do livro. Então, pra mim, assim, uma pessoa pode escrever um livro ou pode não escrever um livro e eu conheço um monte de gente, nossa senhora, que é sabido demais e que nunca escreveu e nem vai escrever um livro e eu acho mais sabido que do que gente que escreveu dez. Mas nos saraus eu tinha, eu sempre participava dos saraus, às vezes eu escrevia uma poesia, às vezes eu escrevia um conto, uma coisa, às vezes eu lia no sarau, mas eu sempre fui tímida de ler no sarau, porque eu acho mais fácil fazer assembleia com cinco mil pessoas do que ler uma poesia. É muito mais de dentro, né? É muito mais exposição de si mesmo, dá muito mais medo, eu acho. (risos) Então, eu participava do sarau, mas era uma participação assim, que quando eu arrumava coragem eu ia e fazia, e eu sempre fui do sarau, construindo o sarau, mas eu nunca me pensei como poeta, como escritora. Porque, pra mim, escrever era mais uma ferramenta das coisas que eu fazia, porque escrever era um jeito de compartilhar as coisas, porque no sarau é isso, todo mundo é pobre, com ou sem livro, quem fala que é poeta, é poeta e sei lá se ele fez poesia ou não fez, mas ele está falando que é, então ele é. (risos) E aí eu nunca tinha pensado em escrever, eu pensei já em escrever literatura anos atrás, era uma vontade que eu tinha porque eu gosto muito de literatura e sempre foi porque esse lugar, dá pra você o direito de arriscar, mas não era uma coisa que estava concretizada como um plano, sabe? Eu achava que seria muito legal fazer isso, mas não sabia se eu ia fazer isso. E, nessa minha vida de militante, eu me casei essa vez, depois eu me separei e aí foi um terremoto, o mundo quase acabou, o movimento quase acabou, aconteceu todo tipo de coisa que depois me fez pensar sobre o feminismo, foi nesse processo que eu fui também me aproximando de pensar o feminismo, inclusive pra entender o que estava acontecendo comigo, né, com essa diferença que tem, né, um homem do movimento, uma mulher do movimento, os dois se separam, o movimento quase acaba e ele se transforma numa figura que é isso: o movimento é um patrimônio masculino, as mulheres que estão dentro do movimento são patrimônios masculinos e, se você é companheira de uma liderança, você é parte do patrimônio moral dele. Então, se você decidiu se separar, você está destruindo o patrimônio moral e você tem que sumir, porque você é a destruidora do patrimônio público que é o movimento. Essas coisas todas me balançaram muito, assim. Depois eu me casei de novo, me separei de novo, eu também sou ‘meia casamenterinha’. Mas nesse processo de pensar sobre mim mesma, de pensar sobre o feminismo, de estudar o feminismo, eu também comecei a lembrar de muitas coisas que eu vivi, que tinham, sobretudo, relação com a minha trajetória amorosa no meio desse bang bang de ocupações de terra, porque tudo é assim, de greve de fome, de protesto, de outros estados, de marchas nacionais, de despejo, de polícia, de ir presa de vez em quando. No meio disso a minha vida amorosa acontecia e eu ia respondendo às coisas também como necessidade de resolver e, num dado momento, eu parei pra pensar sobre isso e era muito sofrimento que eu fui encrustando, sabe? E aí, quando eu comecei a mexer nisso, eu comecei a escrever. Eu não tinha perspectiva nenhuma de publicar isso, mas eu fui juntando coisas, e eu fui fazendo coisas, e eu fui escrevendo, e eu fui mexendo, e aí chegou uma hora que eu tinha muita coisa escrita. E aí , uma mulher, porque são sempre as mulheres, chamada Suzi Soares, que é uma das pessoas que constrói desde sempre o Sarau do Binho, e que é, coincidentemente também, a companheira do Binho, me escreveu uma mensagem em dois mil e dezessete, e a gente estava construindo a Felis, que é a Feira de Literatura da Zona Sul. Eu sempre ajudo no que eu posso e tal, no meio dessas loucura de trabalho, militância e escola, tudo o mais, mas assim, ajudo com parte do sarau, e ela me mandou uma mensagem, falou: “Olha, a gente conseguiu uma verba pra publicar, pra fazer um livro e aí a gente achou que deveria fazer um seu, se você aceitar fazer um livro”. E aí eu falei: “Gente, como assim, Suzi?” Isso era tipo meia-noite, ela me mandou essa mensagem, eu falei: “Suzi, eu nem sei o que te falar, cara. Como assim, um livro? Eu não tenho um livro”. Ela falou: “Mas você fica escrevendo um monte de coisa aí, todo mundo sabe que você tem um monte de coisa escrita, arruma isso aí, faz um livro”. Eu falei: “Não, eu posso fazer, mas eu preciso pensar, vixe!”. Ela falou: “Mas você aceita?”. Eu falei: “Não, eu aceito, mas eu preciso...” Ela falou: “Então, tá! Então tem sete dias”. Sete virou doze, né, assim, claro. Mas é isso: durante quase duas semanas eu fui trabalhar, voltei do trabalho e trabalhei tipo oito horas em todas as coisas que eu tinha escrito e fui tentando dar pra isso a forma de um livro. Sem saber muito, sem pensar muito sobre o estilo literário, sobre essas coisas que também envolvem a literatura, mas não sei se o fazer literatura envolve, talvez estudar Literatura envolva, mas... e aí saiu o primeiro livro, que chama Do verbo que o amor não presta. E foi uma relação de estranhamento profundo, assim, ver coisas que eu escrevi, que são muito particulares, muito escondidas, muitas vezes doloridas, num papel, disponível pra um monte de gente que eu não conheço. Como também foi um outro estranhamento quando alguém me perguntava: “Quanto é o livro?” E eu falava: “Gente, mas quanto que é um livro?” Você fala: “Eu não sei, esse livro serve pra alguma coisa? Por que alguém vai pagar por esse livro? Como que é isso?” É muito difícil, assim, eu acho que isso deve ser um tormento pra todo mundo que produz alguma coisa que depois tem que trocar, né, assim, por que quanto que vale? Quanto que vale um livro, o que faz um livro valer alguma coisa? Foi muito estranho pra mim. Mas esse processo de escrever girou uma chave, assim, dentro da minha cabeça. Eu já vinha pensando, eu já vinha escrevendo muito, juntando essas coisas, pensando sobre o feminismo. No meio desse processo aconteceu a revista Amazonas, que é uma revista que eu construí junto com um grupo de mulheres de outros países e que tem uma relação muito estreita com escrever e com publicar, né, mas não é uma produção de um livro, de um olhar só meu sobre muitas coisas e muito pessoal, meu, né? Tem ali as marcas pessoais de muita gente. Aí, você fica mais folgado, assim, né, de se mostrar no meio dos outros. Mas essa chave de escrever girou na minha cabeça e aí eu não conseguia mais parar de escrever quando o livro saiu, e virou um pouco um tormento. Ainda estou no registro um pouco do tormento, que é não conseguir parar de escrever. E a gente não tem tempo, né, pra ler, porque pra escrever precisa ler e viver. E aí, como é que você tem tempo de viver, de ler e de escrever, se você trabalha, se você estuda, se você é militante de dez coisas? Mas é um vírus, assim, de escrever, e eu peguei esse vírus, já não conseguia mais parar de escrever, e aí eu achei que, já que eu estava mexendo em todos os meus buracos doídos, eu ia mexer em outros. E foi quando eu comecei a escrever Notas sobre a fome, que é um pouco sobre a fome. (risos) Mas tem isso, né? É isso: eu não vejo um livro como uma autoridade nem como uma verdade, mas um livro é uma possibilidade de compartilhar com mais gente do que as pessoas onde eu chego ou de compartilhar com as pessoas de onde eu chego de um jeito que o tempo não permite eu compartilhar. E a gente lê tanta gente falando sobre tanta coisa, e a gente lê tanta gente falando sobre quem passa fome e eu ficava louca com isso, porque eu falava assim: “A gente lê sobre quem passa fome, mas quem escreve sobre quem passa fome, não passou fome. Então, como?” É sempre esse lugar do objeto de estudo, né? E aí eu resolvi que queria escrever sobre como é ser alguém que passou fome, mas não uma história assim, não desse jeito, mas um registro, um pouco, de lembrar que uma pessoa que passa fome, ela não é um objeto de estudo, ela é uma pessoa tal como quem escreve. Então, ela ama passando fome, ela estuda passando fome, ela pensa passando fome, ela olha pro futuro passando fome. Então, na verdade, tem muito mais a ver com esses olhares, sabe, um pouco, que existe subjetividade no meio do povo pobre. Os dramas românticos não estão só na classe média, que tem tempo pra isso e nem nas classes ricas. De tempo apertado no caso da classe média ou o povo que tem muito dinheiro, que vai usufruir a vida. Não! Todo mundo ama, com fome ou sem fome, e como é? E aí, me recuperar muito essa história do meu bairro, da minha infância, da minha família, desses meus amigos de vizinhança, do que é fome, que é que a gente chama de fome, que eu acho que também é uma pergunta que eu me faço muito porque às vezes também a gente acha que não passa fome, mas passa e a gente, talvez, precisasse pensar mais sobre o que é fome. E escrevi esse livro porque eu queria que meus amigos que tinham passado fome pudessem também ver que a gente que tem que escrever e são poucas pessoas. Eu fui atrás da fome na literatura e você vai achar Carolina Maria de Jesus; você vai achar Solano Trindade, um pouco; você vai achar, sei lá, Josué de Castro que não é um cara que passou fome, mas que estudou muito sobre isso, né, e que tem esse registro forte por causa do sertão, de onde ele vem, mas não tem muito, num país que é tão atravessado pela fome, não tem muito. Porque também tem uma coisa, que ninguém quer falar. E mesmo a gente, que é pobre, não quer falar, porque ninguém quer falar que passou fome, porque ninguém gosta de falar que passou fome, porque tem outra coisa, eu me lembro que a minha avó dizia assim: “Não fala tal coisa, que chama”, tipo desgraça, esses xingamentos que a gente faz. E talvez seja um pouco isso, né? Não fala que chama, então não fala. E aí eu fiz esses livros, mas esses livros circulam comigo, praticamente, assim, né? Circulam entre essa confraria de gente que constrói escrita e literatura, sobretudo na periferia, nos saraus, e que constrói militância, e que constrói no bairro. E é doido, né, porque é isso, não é? O primeiro livro que eu escrevo não tem nada a ver com a universidade, não tem nada a ver com a Academia, não tem nada a ver com a militância. O primeiro livro que eu escrevi, me falam assim: “Meu, nunca imaginei que você fosse escrever um livro sobre isso e sobre amor, sobre um monte de coisa. Pensei que ia ser um livro pé no peito do governo, de sei lá o quê”. E aí você percebe também o quanto que a gente vai se sobrepondo de capas para sobreviver a várias coisas e o miolo vai ficando invisível, até pras pessoas próximas, né? E aí eu continuei escrevendo, que eu não sei mais parar de escrever, não sei o que eu vou fazer com isso, não estou com a perspectiva de fazer um livro, mas continuo escrevendo, escrevendo, igual uma doida, um monte de coisa que eu acho que não presta também, e a gente sempre acha que não presta. E estou na universidade, hoje eu estudo Saúde Pública, mas já estudei Filosofia, Ciências Sociais, Serviço Social, Letras, Ciências Sociais de novo. Já entrei na ESP, na UNIFESP, (risos) na USP, em tudo, na PUC, em todo canto eu estudei, eu já entrei e já saí, porque eu não aguento, meu Deus do céu! Eu acho o jeito de estudar na escola, um jeito muito burro, minha gente. Eu acho, é muito difícil. Você estuda, estuda, não sabe pra que aquilo serve. A vida inteira eu só estudei porque estudar servia pra alguma coisa. Então, parece que você tem que ficar um doido pra caber naquela lógica, porque não faz sentido nenhum. Mas eu não falei que depois eu fui terminar a escola de verdade, hoje o meu diploma não é mais comprado. Eu fui pro EJA e fiz um supletivo pra terminar o terceiro ano, e aí depois eu fui entrando em todas essas faculdades aí. Mas é isso: eu fiz dois anos de Filosofia, aconteceu o despejo do Pinheirinho, eu trabalhava no CEDHEP, que é um Centro de Educação em Direitos Humanos, lá na zona sul. Eu larguei o serviço e fui pra lá, eu fiquei lá cinco meses, até ajeitar o lugar pra todo mundo ficar, e é isso.
P/1- Você lembra quantas ocupações você já participou?
R- Nossa Senhora! Eu lembro, mas eu precisaria contar. Quer dizer, eu lembro, eu não sei se eu lembro, não, não lembro. Olha, foram dezenas de ocupações, dezenas de ocupações. Eu não sei dizer, porque eu participei de muitas, eu participei de muito mais ocupações do que, inclusive, eu fiquei lá estruturando, porque é isso: eu ajudei a fazer ocupação no Pará, ajudei a fazer ocupação em Roraima, no Rio de Janeiro, em Minas, em todo canto teve momentos que eu estava lá na hora de entrar, no primeiro dia, no segundo dia, no momento de maior risco assim, de maior tensão, eu estava lá, mas depois eu ia embora, e o povo que tocava ‘os trens’. Então, eu participei de muita ocupação.
P/1- Qual que era o seu papel dentro da ocupação?
R- Nossa!
P/1- Você tinha vários papéis?
R- É, então, porque, o que acontece? Na ocupação, eu acho que o meu principal papel era conversar com as pessoas. Porque, na ocupação, as pessoas chegam na ocupação porque elas querem um pedaço de terra pra morar. Então, ninguém está muito assim: “Eu quero um pedaço de terra pra morar, o que que tem que fazer?”. Então, muitos chegam e falam assim: “Com quem que tem que falar aí, pra ter? Com quem eu posso comprar? Com quem que...”. E aí é um trabalho permanente, porque você ocupa uma terra com quatrocentas pessoas, daí em um mês tem quatro mil pessoas. Significa que não para de entrar gente durante um longo tempo, que bom, ele parece mais longo na ocupação. Um mês não é um longo tempo, mas na ocupação é muito tempo, um mês. A noção de tempo muda mesmo, né? Não tem luz elétrica, não tem TV, não tem, todo mundo acorda cedo, porque você acorda pra fazer as coisas, pra pegar água pra cozinha, pra fazer a horta, pra abrir a rua, pra sei lá o quê. Você vai dormir também, você vai dormir mais cedo, a maior parte das pessoas e tem uma galera que fica até mais tarde, porque também está cuidando. Então tem as reuniões, e tem a fogueira, e tem essa vida muito comunitária de muita gente diferente, de repente, no mesmo lugar e que não vai ficar dentro do barraco. Porque o barraco é de plástico preto e não tem nada pra fazer no barraco, não tem TV, não tem rádio, não tem nada. Então, a vida toda é do lado de fora, digamos assim, e sendo do lado de fora, a vida toda é junta com um monte de gente. E vindo cada um de uma trajetória diferente, as pessoas... têm muitas ocupações e tem até hoje muitas ocupações espontâneas, né? As cidades foram construídas um pouco assim, com ocupações espontâneas de pessoas pobres, todas as periferias, não foram grandes movimentos que fizeram, né, foram as pessoas precisando de casa, indo lá, vendo o terreno, e caindo pra dentro e fazendo o que dava. Mas, numa ocupação que pretendia, assim, ser um espaço, além de luta por moradia, de organização do povo, pra lutar pra melhorar as condições de vida, então você tinha um longo trampo de conversa. Porque é isso, as pessoas chegam e falam: “Com quem eu falo? Quem é o cabeça?” Isso, é um negócio, assim, básico. “Quem é o cabeça?” Aí a gente fala: “Então, aqui não tem um cabeça, aqui é assembleia, a gente se junta pra decidir as coisas, blablabla”. Ou então aquele que fala assim: “Com quem que eu falo pra comprar um pedaço?” Você fala: “Olha, aqui não tem nada certo, é uma ocupação, a gente não sabe se vai ficar ou não, nanana, é proibido vender porque isso é uma desmoralização pro movimento, quem precisa não vende, a gente já está nessa situação de não ter casa porque tem gente que trata a terra e a casa como mercadoria”. E, no fundo, é um trabalho de ficar o tempo inteiro juntando pequenas coisas da vida real que nós temos que resolver ali, com grandes coisas que são problemas que a gente vive. Então, o dia inteiro é conversar com as pessoas, o dia inteiro é resolver problema. Gente, acontece de tudo na ocupação, tipo: a pessoa dormiu e ela acordou e o outro tinha feito um barraco na porta, colado, que ela não conseguia sair do barraco! Você fala: “Não, não é possível que isso está acontecendo”. É possível, na ocupação tudo é possível. Então, você tem que ir lá, porque está um querendo matar o outro porque: Como assim? Você fez o barraco tão colado no meu, que eu não consigo sair de casa. Agora eu tive que rasgar a lona pra sair pelo buraco que não era pra sair”. E aí, tudo é um processo de tentar trazer todo mundo pra pensar junto, mas é muita gente, então você faz isso de pouco, de picado, o dia inteiro, a partir de coisas concretas, a partir do problema da cozinha, de não sei o quê. E aí tem a cozinha pra fazer, porque no começo todo mundo come junto, porque não vai ter botijão de gás no barraco de plástico, porque o risco é muito grande. Então tem uma cozinha comunitária, ou algumas cozinhas comunitárias. E aí a gente vai atrás das mulheres, que ajudam a cozinhar e eu digo mulheres, não porque a gente vá atrás delas, mas porque elas são as que se voluntariam pra esse trabalho, lamentavelmente, né, são as únicas, porque é um trabalho sem o qual ninguém fica de pé. Mas, aí você junta e como é que vai funcionar? E desde cedo você está trabalhando, o dia inteiro assim, trabalhando. Então é: aonde que vai atrás de água, quem que tem um carro que pode buscar água, não tem dinheiro, então faz uma vaquinha do combustível pra passar pra não sei quem, no Ceasa buscar a xepa, vai não sei o que, não sei o quê. Tudo. É como se a gente fosse um pequeno governo de nós mesmos, assim. E aí, todos os problemas que estão colocados, a gente precisa resolver, mas não tem prefeito, é nós; não tem polícia, é nós. Não tem. Então, a gente tem que criar maneiras e essas maneiras são tudo conversas. É isso, é conversa. E dá certo no fim das contas, o pior é que dá certo. E aí tem coisas mais assim, às quais eu me dedicava mais, como, por exemplo, os processos de formação política. Aí eu sempre tive muito dedicada a isso. Que também, pra mim, é a continuidade da conversa, só que num plano um pouco mais sistemático, sei lá, ou mais concentrado, mas que também passava por N coisas, porque daí você vai fazer formação politica, então você tem um... sei lá, você produz um material, uma cartilha, um vídeo, alguma coisa e vai ler com as pessoas, pra gente pensar os princípios, as decisões coletivas ou coisas assim. Mas, aí você tem uma cartilha, e aí tem gente que não sabe ler. Então aí, disso se desdobra, porque você tem que fazer um grupo de gente que você vai ensinar a ler, pra poder ler a cartilha, pra poder participar do negócio. Daí se desdobra, que tem, por exemplo, um trabalho que é com as crianças, porque as crianças, nas ocupações, são muitas e o que elas fazem o dia inteiro? Brincam de assembleia. Você vai na ocupação, tem criança fazendo assembleia, você fica olhando e fala: “Meu, não acredito”. Eles imitam tudo, eles sabem tudo, eles fazem barraco, eles reclamam na assembleia quando eles acham que estão desrespeitados em alguma coisa. Lá na Esperança, inclusive, eles arrumaram uma encrenca com uma senhora lá, que a senhora queria privatizar um espaço de praça que eles brincavam. Privatizar assim: que ela não queria que ninguém sujasse, que ninguém andasse, que ninguém não sei o quê, porque era na frente do barraco dela, eles foram pra assembleia denunciar a Dona Teresinha. E aí, como é que você pensa um processo, né, de elaborar, não é formação política, mas, sei lá, como é que você elabora? Porque essas crianças estão vivendo isso, né, estão vivendo a polícia vindo, estão vivendo o risco de despejo, estão vivendo quando dá enxurrada, quando tem tempestade derruba tudo, quando tem que reconstruir tudo. E aí, como é que... tem que elaborar isso aí, isso vai ficar só, né? E aí a gente desdobra um outro trabalho, que é pensar essa educação mais com as crianças. Tem toda a questão de cultura também, porque é muito povo vindo de vários lugares, cada cá com um jeito, cada cá carregando trezentos e cinquenta coisas incríveis, que não sai pra fora espontaneamente, porque no mundo não sai. Mas aí tem a fogueira, então você já começa a ver que tem algum que toca violão, tem um outro que é um mecânico que cola com uma flauta que você não está acreditando, mas é o cara e aí tem a senhora fulana de tal que fazia Reisado onde que ela era pequena, lá não sei aonde. E aí como que pensa a cultura nesse processo também, de formação, da gente ir construindo um comum, assim, um comum, algo comum que seja de onde a gente parte e o que nos sustenta. Então, esse trabalho de formação política é, talvez, o trabalho ao qual eu mais tenha me dedicado, mas a gente faz tudo no movimento, então pega água, faz barraco, faz formação política. Por causa da formação politica eu sempre, também, fiz muita assembleia, então, que é isso: pensar o espaço, se comunicar, qualquer espaço se comunicar como um espaço educativo. Então, como é que você fala, como é que você explica, como é que foi a negociação, como é que foi a reunião com a prefeitura, como é que a gente decide o que vai fazer. Isso também é formação política, né? E aí eu fiquei muito tempo dedicada a isso, assim, sobretudo a isso, mas enfiada dentro da ocupação, fazendo qualquer coisa, tomando cachaça também.
P/1- Teve algum outro projeto que você participou, que foi muito importante?
R- De militância?
P/1- Na sua vida, em geral. Pra Helena que você é hoje, teve algum outro projeto que você participou, que foi bem significativo?
R- É que eu não sei o que você quis dizer com ‘projetos’.
P/1- Alguma vivência que você teve, que você participou, pode ser dentro da militância também, algum trabalho que você fez.
R- Não, gente, tem muita coisa, então eu não sei. Eu acho que, bom, todas ocupações foram marcantes, assim, aquelas a que eu dediquei tempo, assim, eu sei o nome, eu ainda conheço pessoas, eu sou madrinha de um monte de afilhado que eu nem sei mais onde está, que eu falo: “Gente, não bota eu de madrinha dos filhos, que eu vou sumir uma hora”. Mas eu lembro das histórias, assim, das crianças, eu lembro muito, assim. Então, cada ocupação em particular, dessas que eu convivi construindo, me marcou muito. Bom, tem coisas que marcam muito também pelo choque, né? A ida à universidade foi um pouco marcante, porque conseguia ser pior do que eu imaginava. Mas a gente, hoje, eu sou de um outro movimento que se chama Luta Popular e a gente, além de fazer ocupações urbanas, faz também ocupações rurais e também se relaciona, por conta disso, de maneira um pouco mais orgânica com algumas outras lutas. E a gente foi, sei lá, já uns oito, nove anos, se aproximando muito dos indígenas, até o momento que a gente criou uma relação muito forte com os guarani kaiowa, do Mato Grosso do Sul. Eu fui pra lá algumas vezes, mas uma das vezes eu fui pra lá e fiquei um período assim, curto, mas fiquei lá. Foi uma coisa muito marcante pra mim, muito marcante, mesmo. Também foi muito marcante pra mim quando isso aconteceu com o povo quilombola do Maranhão, que eu também fui pra lá, a gente também tem ocupação no Maranhão, e aí eu fiquei com um povo de um quilombo que estava resistindo da jagunçada, metendo tiro, assim, e aí também foi um negócio que eu voltei muito virada do avesso e que são coisas que até hoje estão dentro da militância, assim, digamos, desse projeto. E tem o movimento de mulheres que talvez eu tenha, inclusive, chegado pelas coisas que eu vivi, muito pessoais, mas também que me permitiu enxergar as mulheres todas e a mim mesma de um jeito diferente também, virado do avesso. E esse é, talvez, hoje, o principal projeto onde eu estou dedicada: construir processos de organização que fortaleçam as mulheres. E isso tem me marcado, me marcado muito, assim. Como é diferente dos espaços de militância , onde a gente está junto, que a gente tem que estar junto, eu continuo militando em outras coisas, com muitos companheiros homens valorosos, mas como as mulheres são atravessadas de tanto sofrimento, assim, não tem uma reunião que você toca num tema difícil e que, em algum momento, alguém vai chorar, falando do quanto foi difícil apanhar, do quanto foi difícil sei lá o que, a solidão depois de ter filho, o quanto foi difícil perder um filho na mão do Estado, o quanto é difícil sustentar os filhos, do quanto dá vontade de tacar os filhos na parede, do quanto que é, foi difícil se libertar, sei lá, de um homem, ou dos pais, ou da igreja, ou de toda sorte de opressão, assim. Eu faço movimento das mulheres na periferia. Então, me tem marcado muito o quanto as mulheres são tão machucadas, gente, tão machucadas. E mesmo mulheres que às vezes, sei lá, eu às vezes não concordo com a forma como avaliam, eu não acho que os homens são nossos inimigos, eu não acho que esse é o nosso inimigo, né? O sistema patriarcal é o nosso inimigo, o capitalismo é o nosso inimigo, sei lá, X. Mas às vezes você olha, você vê aquela companheira falando aquilo, você consegue olhar assim, e falar: “Meu, essa mulher deve ter se lascado tanto pra ter chegado nessa opinião, assim, é uma pessoa tão cheia de ferida, tão adoecida de opressão, tão desrespeitada, desmoralizada, desvalorizada”. É muito marcante, assim. Assim como é muito marcante o fato de que, sem isso, não tem movimento de mulheres, não tem movimento de mulheres se agente não falar de nós mesmas, do BO que tem, das tristezas, das coisas que queria e não foi, das coisas que foi, mas não queria. E o quanto me ensina, assim, o tempo inteiro, que essa dimensão humana mais individual não é o oposto do coletivo, é a célula do coletivo, mas isso fica muito apagado em outros lugares e no movimento de mulheres isso aparece muito através do sofrimento.
P/1- A Helena é alguma coisa que não gostaria de ter sido ou deixou de ser alguma coisa que gostaria?
R- Olha, eu gostaria de ter sido uma filha mais suave pros meus pais, que são pessoas muito pobres, muito desprovidas de ferramentas pra lidar com uma pessoa de treze anos querendo ir pro protesto, sabe? E eu fui muito arrogante com a minha mãe muitas vezes, muitas vezes, né, de dizer: “Como você é submissa! Como você se submete a isso? Como você deixa o meu pai falar assim com você?” E sabe como, cara? A incapacidade. Bom, você é moleque também, fala um monte de merda aí, mas não sei se dava pra ter sido diferente, essa é uma questão que está posta porque faz parte, talvez, do que hoje eu penso, tudo isso que aconteceu. Mas certamente eu penso que eu podia, sei lá, podia ser... eu sou uma pessoa difícil, eu precisava ter sido uma pessoa mais fácil. (risos) Sempre tudo, pra mim, era oito ou oitenta, intensidade, vai passar, vai embora e não volta nunca mais, entendeu? Gosta de ocupação de terra, se enfia. Gosta de gente? Gosta. Então são vinte mil pessoas de uma vez só. E aí esse achar as coisas boas do equilíbrio tem sido um aprendizado também, então, não sei se eu não queria ter sido assim, mas eu sei que não dá pra ser do jeito que eu sou até o fim da vida, se não eu não vou durar, porque é muita intensidade, eu me gasto demais. Ah e eu queria, eu queria, eu queria muito, muito, muito não ser escrava da pobreza, sabe, isso é um negócio. Mas eu não queria, mas não tem jeito de ser só eu porque... e eu digo escravo da pobreza e não é essa coisa de pobreza, de fome, de miséria, nem de nada, mas talvez seja ser escrava do trabalho, sabe? Às vezes eu penso nisso, que sentido que faz você dispender tanto tempo e a maioria das pessoas como eu, não trabalha sempre em trabalhos que acredita, eu tive trabalhos que eu acreditei, mas a maioria dos trabalhos não foram trabalhos que eu acreditava, eram trabalhos que eu tinha que fazer pra viver. E aí é tanta energia dispendida numa coisa que não faz nenhum sentido, assim, além de te manter vivo pra continuar fazendo isso. E eu ainda acho que consegui por muitos caminhos, escapar do prognóstico fechado desse circuito tão perverso, mas eu vejo gente todo dia, tão brilhante, sabe, inteligente. Eu fui pro Acre também e conheci lá o Osmarino, que é um seringueiro. O Osmarino nunca foi numa escola e o maior sonho dele é ir pra escola, eu falo: “Osmarino, meu, tira isso da cabeça, você não sabe, aquilo é um inferno! Escola, cara!’ E o Osmarino lê, assim, no mínimo, três livros por semana, que ele acorda quatro horas da manhã, ele mora no meio da Amazônia, na reserva Chico Mendes, e o prazer da vida dele é ler, e ele é um seringueiro, um militante desde a época do Chico Mendes. E você fica pensando: “Gente, olhas essas pessoas, sabe, olha esse monte de mulher que eu conheço! As mulheres sabem fazer tanta coisa, sabe curar doença, manter gente viva no meio da fome, manter gente viva no meio da violência, as mulheres sabem mágica, e tudo isso que elas sabem ninguém vê, assim e a sociedade parece que faz de um jeito, a organização das coisas, que tudo isso deixa de ser um conhecimento, pra ser um peso, sabe? Porque essas mulheres não têm a chance de desenvolver essas coisas como práticas de vida, de conhecimento. O que tem é trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, que não acaba nunca. E, no caso das mulheres, não tem férias, não tem aposentadoria e até a morte. Eu queria muito não ser escrava disso e queria muito ver, podia ser uns dez minutos antes de eu morrer, não tem problema, seria pouco, mas um mundo que a gente não estivesse escravo disso, é o que eu queria ver, mas...
P/2- Você falou sobre morrer, eu queria te perguntar como e quando nasceu a Helena Silvestre.
R- Hmmm. Bom, então, eu saí de casa, na verdade, eu nasci sem nome, fui batizada de Daniela e saí de casa ainda como Daniela, né? Mas na primeira ocupação que eu participei, que foi essa ocupação chamada Santo Dias, em São Bernardo do Campo, em dois mil e três, foi uma ocupação bem conturbada, muito conturbada, mesmo, assim: teve jornalista que se infiltrou, foi um negócio bem terrível porque foi uma ocupação muito grande, no meio de uma polarização política muito difícil, envolvia o ABC Paulista, envolvia esse imaginário das greves, envolvia o terreno ser da Volkswagen, que também remontava todo o movimento operário e o Lula tinha acabado de ser eleito. Então, era, na verdade a gente se colocou no meio de uma treta, assim, política. E era um monte de moleque, é isso, eu tinha dezoito, dezenove anos, e a gente estava fazendo luta e a gente era sangue nos olhos, a gente queria moradia e tipo: “Mano, é isso, aqui vai ser uma escola de como se organizar pra lutar por uma vida melhor e a gente vai pra cima”. E teve, nessa ocupação, muito assédio da mídia. É isso, né, que eu digo: o jornal O Estado de São Paulo soltou uma matéria que é Como ser um sem-teto, porque uma repórter foi num brechó, comprou umas roupas usadas, chegou na ocupação, fingiu que era sem-teto pedindo um espaço, e a gente foi arrumando tudo pra mulher, assim, como fazia pra todo mundo, arrumava gente pra ajudar a fazer o barraco e tudo o mais. Depois ela fez uma matéria de uma página inteira no Estadão sobre isso, assim, e aí a gente ficou muito bravo, né? E mataram um repórter na frente da ocupação, numa situação que foi, até hoje, muito estranho. Um repórter da revista Época, que era até uma figura que ficou conhecido, porque é isso: ficava um monte de jornalista na porta da ocupação pra falar com a gente. Aí eu fui virando meio que referência muito rápido, assim, na ocupação. Então, aí eu falava alguma coisa com o jornalista, e aí saía no Diário do Grande ABC, que era o diabo do jornal que o meu pai e a minha mãe liam, o meu nome. Aí, pronto! A minha mãe me ligava chorando, falando que eu estava com os terroristas que ocupam terra, que não sei o que, que iam me matar, que iam me prender. Eu falava: “Não, mãe, tem nada disso, aqui está todo mundo só querendo fazer uma casa, não tem”. E era um sofrimento permanente. Então eu falei: “Não vou mais dar o meu nome pro jornal”. E aí, tinha uma treta, porque, enfim, tinha uma treta por causa de dois meninos, que ficavam brincando, me chamavam de Helena de Tróia, eu falei: “Vou falar Helena”. Aí eu falei Helena pra um jornalista uma vez e aí eu só falava Helena. E aí começou a sair no jornal Helena. Então, o que acontece? Quando vinha um outro repórter e queria falar comigo de novo ou conversar alguma coisa, ele já vinha procurando a Helena, porque é o que tinha saído. Então, isso foi se multiplicando e todo mundo tinha que saber que quando falavam Helena, era eu, só que isso num universo de vinte mil pessoas, porque eram tipo cinco mil famílias, na ocupação. E aí foi ficando Helena, foi ficando Helena. Claro que, toda vez que a polícia chegou, eu entreguei meu RG, está lá o meu nome Daniela Rodrigues Damasceno e tudo o mais, não vou fazer falsidade ideológica, mas ao mesmo tempo isso me ajudava um pouco porque às vezes a polícia também chegava lá procurando a liderança do jornal, né? Aí eles me achavam, Helena. Mas, por exemplo, aí ia abrir um processo na Justiça, contra alguém do movimento, vários processos eles abriram contra a Helena. Então foi ótimo, num certo sentido. (risos) Tem vários processos contra Daniela também, que esses aí eu acompanho todos. Mas foi assim, foi sobretudo por causa dos meus pais, que sofriam muito quando viam assim, né, quando lembravam de mim nessa circunstância. E aí todo o povo da igreja, todo mundo que lia o jornal, todos os parentes, todo não sei o que em cima deles: “Olha aí, nanana”. Então foi um jeito de preservar um pouco a minha família e foi por isso que surgiu. Que depois, como eu estava no começo das ocupações, foi ficando e todo mundo foi me conhecendo como Helena e mesmo quem sabia que o meu nome não era Helena, foi assumindo Helena como uma forma, também, de falar: “Ah, deve ser por motivo de segurança”. E nem era, né, nada, assim, de mais. Mas foi ficando e foi ficando e foi ficando de um tanto e é isso. Depois as coisas só foram expandindo e os mundos se abrindo e tudo o mais, que é isso: eu sou a Helena. E às vezes as pessoas me chamam de Daniela e eu demoro pra olhar, quando alguém me chama. A escola é um lugar onde isso é meio estranho, né, porque daí você tem que pedir pra alguém assinar a lista pra você, (risos) quando você não vai, e aí é seu nome, né? Ou no trabalho que tem um crachá ou alguém te chama e aí as pessoas falam: “Mas como que eu te chamo?” “Não, me chama de qualquer coisa” E aí tem isso: “Bom, mas o RH, mas e o documento, mas não sei”. Eu tenho um monte de certificado de palestra com o nome de Helena. Sabe Deus o que é que se faz com isso, mas eu digo: essa coisa de viver, que a Daniela pariu Helena de algum jeito, estão vivas as duas, na mesma pessoa.
P/1- Eu queria saber se você tem algum sonho, hoje.
R- Esse que eu falei de não trabalhar é o principal, (risos) mas tenho muitos sonhos. Mas meu sonho eu acho que tem a ver muito mais com as coisas que eu faço e acredito mesmo, do que algo privado, sei lá. É isso: meu sonho era que o mundo fosse outro, porque se o mundo fosse outro, todos os sonhos que eu ia ter já iam ser outra coisa. E é muito difícil, né, o jeito que estão as coisas na vida, assim, desde que a gente nasce, na verdade, nem digo particularmente desse momento. Mas eu queria que todo mundo pudesse escolher o que vai fazer na vida, todo mundo pudesse descobrir o que mais gosta de fazer na vida, que tivesse tempo pra descobrir as coisas que sabem fazer, que a gente pudesse saber da terra e nesse mundo não cabe isso. Então, eu acho que o meu sonho era outro mundo mesmo, não tem outro. É um sonho meio clichê, digamos assim. É só o que eu faço da vida.
P/1- Você tem filhos?
R- Não tenho. Eu já quis ter filhos. Na primeira vez que eu me casei eu era a doida dos filhos, eu falava: “Não, eu quero ter quatro filhos”. Eu falava que queria ter quatro filhos, com dezenove anos eu queria ter quatro. E esse meu primeiro marido dizia: “Não, mas como assim, a gente vai ter quatro filhos, a gente tem um montão de coisa pra fazer da militância. Não dá, você não vai conseguir fazer mais nada, você não tem que ter filho agora e tal” e eu falava: “Não, mas eu quero ter filho agora, eu quero ter logo”. Enfim, né, nessa coisa eu não tive. Depois, quando a gente estava se separando, aí ele queria ter filho, aí eu falei: “Agora eu não quero ter filhos”. (risos) E aí depois, é isso: eu fui indo, eu sempre quis ter filhos, mas eu acabei sempre adiando um pouco isso, fosse pela minha vontade ou pela vontade do meu companheiro ou, em diferentes ocasiões, diferentes coisas. E fui parindo essas outras coisas, né, que foram precisando também de tanta dedicação, assim, que eu acabei... eu não paro muito pra pensar sobre se eu vou ter ou não vou ter filhos. (risos) Talvez eu tenha ainda, eu acho que é possível, talvez não. Não é uma coisa, hoje, que me aflige muito, mas também não é uma coisa que eu pare muito pra pensar. Eu acho que eu vou fazendo tanta coisa, que eu vou até evitando de pensar nisso daí.
P/1- Agora eu vou fazer a última pergunta, que eu queria saber como é que foi pra você contar a sua história aqui no Museu da Pessoa.
R- Eu acho muito difícil, gente, contar a história da gente. É difícil, primeiro, eu acho que porque eu tenho dificuldade de dizer qual é a minha história mesmo, assim, tem muitas histórias que fazem a nossa história e qualquer coisa que a gente diga é sempre um pedaço, um recorte que a gente pinça, que tem a ver com as memórias que a gente guarda, mas também com os filtros que a gente faz e as couraças que a gente coloca, né, pra se sentir mais protegido. E aí é difícil decidir o que que conta, né, porque nunca dá pra contar tudo. Então, o que que a gente conta? Ao mesmo tempo que, quando você precisa escolher também, você volta pra uns lugares que são difíceis, talvez algumas coisas que são ausentes no relato também sejam isso, sabe, essas coisas que doem o suficiente pra gente ainda não conseguir contar ou não saber como conta. É quase um exercício de autoanálise, né, porque é... acho que quando alguém olha pra gente, sei lá, às vezes eu fico pensando isso, eu acho que, vamos supor, alguém na rua, alguém me vê na rua, então, parece ser uma pessoa inventada, uma pessoa que brotou ali ó, então você é Helena e tal, e fala pra caramba, meio briguenta, gosta de ler, gosta do sarau, gosta de cachaça, gosta de ocupação e de terra. Então, pronto. E várias dessas coisas você nem precisa dizer, né, as pessoas vão se conhecendo e vão se descobrindo, então, você é aquilo. Mas parece que a gente é inventado, eu digo, porque ninguém sabe como foi que você chegou a virar aquilo ali que você é. E quando a gente começa a pensar em como que a gente virou o que a gente é, que eu acho que é o que acontece quando a gente conta a história, a gente fica até em dúvida sobre o que a gente é, também. Cara, tinha que chamar uns terapeutas pra acompanhar vocês. Mas eu acho importante demais. Não a minha história, mas isso de registrar as histórias, porque o Osmarino está vivo, por exemplo, ele não vai escrever um livro, mas a história dele só está viva no nosso mormaço, não está vivo em outro lugar e quando a gente, todo mundo morrer, ninguém mais vai saber. E acho, e também por isso eu aceitei mesmo meio às cegas e ainda estando aqui um pouco desengonçada, sem saber o que fazer, assim, porque eu acho que é um respeito também à uma tradição que não é uma tradição escrita. E eu acho que nesse mundo aqui a gente dá muito valor à tradição escrita, mas aprendeu a desrespeitar muito a outra, e tem muitas, né, e falar é uma delas. E talvez, se a gente respeitasse a tradição de falar, igual a gente respeita a tradição de escrever, a gente ia descobrir o quanto de gente incrível que tem no mundo, né? E aí teria muito mais mulheres, teria muito mais indígenas, muito mais favelados, muito mais artista de rua, muito mais um monte de gente que não tem muita visibilidade no mapa das pessoas importantes que vivem na cabeça da gente, né?
P/1- Eu quero agradecer. Muitíssimo obrigada. Foi maravilhosa.
R- Ai, gente. Obrigada, vocês. Desculpa, viu, porque vou confessar que eu mesmo fico meio... é no contrapé um pouco, essas perguntas.
P/1- Mas foi tudo bem.
R- Chique!
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