Ponto de Cultura
Depoimento de Maria José da Silva Carvalho
Entrevistado por Eduardo Barros e Isabela de Almeida
São Paulo 22/02/2010
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV241
Transcrito por Arianna Sassaroli
Revisado por Fernanda Regina
P – Maria José, a gente começa a nossa entrevista sempre com três perguntas padrões, que é assim: eu queria que a senhora dissesse o seu nome completo, o local e a data que a senhora nasceu.
R – Eu sou Maria José da Silva Carvalho, eu nasci em Martinópolis, em 20 de maio de 1956.
P – Martinópolis fica em São Paulo?
R – Fica em São Paulo, perto de Presidente Prudente, Araçatuba, aqueles lados de Bauru.
P – E o nome dos pais da senhora?
R – ______ Ramos da Silva e José Alexandre da Silva.
P – E qual era a profissão, a atividade dos pais da senhora?
R – O meu pai era de lavoura, né? Ele nasceu em Alagoas, minha mãe nasceu em Minas, então os dois tinham mais ou menos a mesma semelhança, que era trabalhar com lavoura, fazenda. Naquela época era muito comum, né? Aí, eles vieram pra Martinópolis, se conheceram, casaram. Depois nós fomos para Araçatuba, vivi um pouco da minha infância em Araçatuba. De Araçatuba nós viemos aqui para a Vila Mara.
P – Os seus pais, eles são vivos ainda?
R – Não, os dois são falecidos.
P – Os dois são falecidos...
R – São.
P – Como é que eles eram, qual que é a lembrança que você tem dos seus pais?
R – Olha, a lembrança que eu tenho da minha mãe é assim: a minha mãe não sabia ler, nem escrever, né? E ela era uma pessoa assim muito sábia, uma pessoa muito inteligente. E a minha mãe foi para o MOVA com 50 anos de idade.
P – O que é um MOVA?
R – É o Movimento de Alfabetização para Adultos. Ela queria aprender a fazer o nome dela, então ela foi para esta escola de alfabetização para poder começar a aprender. Então, isso é uma coisa muito forte, que marcou muito. O meu pai também não sabia ler...
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Depoimento de Maria José da Silva Carvalho
Entrevistado por Eduardo Barros e Isabela de Almeida
São Paulo 22/02/2010
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV241
Transcrito por Arianna Sassaroli
Revisado por Fernanda Regina
P – Maria José, a gente começa a nossa entrevista sempre com três perguntas padrões, que é assim: eu queria que a senhora dissesse o seu nome completo, o local e a data que a senhora nasceu.
R – Eu sou Maria José da Silva Carvalho, eu nasci em Martinópolis, em 20 de maio de 1956.
P – Martinópolis fica em São Paulo?
R – Fica em São Paulo, perto de Presidente Prudente, Araçatuba, aqueles lados de Bauru.
P – E o nome dos pais da senhora?
R – ______ Ramos da Silva e José Alexandre da Silva.
P – E qual era a profissão, a atividade dos pais da senhora?
R – O meu pai era de lavoura, né? Ele nasceu em Alagoas, minha mãe nasceu em Minas, então os dois tinham mais ou menos a mesma semelhança, que era trabalhar com lavoura, fazenda. Naquela época era muito comum, né? Aí, eles vieram pra Martinópolis, se conheceram, casaram. Depois nós fomos para Araçatuba, vivi um pouco da minha infância em Araçatuba. De Araçatuba nós viemos aqui para a Vila Mara.
P – Os seus pais, eles são vivos ainda?
R – Não, os dois são falecidos.
P – Os dois são falecidos...
R – São.
P – Como é que eles eram, qual que é a lembrança que você tem dos seus pais?
R – Olha, a lembrança que eu tenho da minha mãe é assim: a minha mãe não sabia ler, nem escrever, né? E ela era uma pessoa assim muito sábia, uma pessoa muito inteligente. E a minha mãe foi para o MOVA com 50 anos de idade.
P – O que é um MOVA?
R – É o Movimento de Alfabetização para Adultos. Ela queria aprender a fazer o nome dela, então ela foi para esta escola de alfabetização para poder começar a aprender. Então, isso é uma coisa muito forte, que marcou muito. O meu pai também não sabia ler e ele tinha uma coisa assim, ó: ele não sabia ler, só que a nível da matemática a gente não passava a perna nele. Ele dava um baile em todos os filhos, todas as pessoas neste sentido. Então, são duas coisas que me marcaram muito.
P – E sua relação com seus pais, era uma relação próxima, como é que era?
R – Assim, uma relação gostosa, que eu procuro hoje traduzir para os meus filhos. Naquela época, nós começávamos a trabalhar muito cedo, então, como todas as outras pessoas, eu comecei a trabalhar com dez anos, né? Filha mais velha de sete irmãos, então você acaba tendo uma responsabilidade um pouco maior de ajudar na despesa da casa, de ajudar no sustento da família. E essa relação acabou sendo uma relação assim... Você acaba assumindo uma responsabilidade mais cedo e nesse sentido você amadurece mais cedo. Essas coisas ajudam bastante. Então, a gente tinha uma relação boa, nos relacionávamos bem, e claro que tinham os conflitos na adolescência.
P – Mas, espera, vamos esperar para chegar à adolescência ainda. A senhora disse que era a mais velha de sete irmãos.
R – A mais velha de sete, sou a mais velha de sete.
P – E o nome dos sete, pela ordem?
R – Pela ordem... Aaah Jesus, agora... ____ minha memória. É Jorge, Jorge Alexandre, não, primeiro eu. Tá vendo, ó, já comecei errando! Maria José, Jorge Alexandre, ______ Alexandre, Terezinha Ramos, Fátima, Neide, Edite... Falei os sete!
P – Foram os sete?
R – Foram os sete.
P – E nisso, nesse começo de vida, na sua infância, a senhora já estava em Araçatuba?
R – Estava em Araçatuba.
P – E a senhora foi trabalhar na lavoura com seus pais?
R – É, eu fui assim algumas vezes, né? Eu tenho uma lembrança muito vaga de uma lavoura de algodão. Bem branquinho aquele algodão, né, porque quando eu vim pra cá, pra São Miguel, eu já tinha dez anos, então eu tenho aquela vaga lembrança, bem pequena, né?
P – Da plantação de algodão?
R – Da plantação de algodão. Ali ia... Então, aquela ficou uma imagem, aquela imagem todinha, aquela cena ficou, né, uma cena de criança na realidade. Ai Jesus...
P – Pode continuar.
R – Se você quiser fazer de novo...
P – Eu tava falando sobre a sua lembrança do algodão, né?
R – Isso. Então, essa é uma lembrança que assim, tinham vários homens na lavoura, o meu pai estava, então eu fui... Primeiro, tinha que levar a comida, né? Então, você levava a comida e daí já ficava trabalhando. Normalmente as pessoas almoçavam 11 horas e depois das 11 a gente ficava até o final da tarde.
P – E a senhora se lembra da casa que vocês moravam lá em Araçatuba?
R – Eu me lembro de uma chácara e assim, nossa chácara tinha bastante batata-doce, tinha mandioca, tinha milho, tinha pé de mamão... Lembro também, a gente brincava muito e um jogava mamão podre na cabeça do outro. E esse meu irmão, um dos mais velhos, uma brincadeira nossa, ele jogou um mamão podre na minha cabeça e ficou como um chapéu. Então, aquela cena, toda vez que a gente brincava, mesmo depois de adulto, ele falava: “Ah, você lembra do mamão podre na sua cabeça?”. Então, uma chácara assim... Hoje, nos padrões que eu conheço as chácaras, na minha imagem era uma chácara simples, uma chácara simples, mas que tinha todas essas farturas, né? Cana, tinha pé de banana, pé de abacate, então, essa época, lá na chácara. Nossa! E pra mim aquilo era uma fazenda, “Nossa, que fazendão que a gente mora, né?”. Hoje eu tenho idéia que é uma chácara simples, que tinha algumas frutas.
P – E era lá que vocês moravam?
R – Nós morávamos lá.
P – Então, morando na chácara e com seis irmãos, eu tenho impressão...
R – Tenho dois que nasceram aqui.
P – Ah, dois? Então, na época eram quatro irmãos?
R – Nasceu aqui na Vila Mara a Edite e a Neide.
P – Mas, ainda assim, era bastante criança. Eram cinco crianças numa chácara, como é que eram as brincadeiras de vocês, além do mamão podre?
R – Gente, era uma delícia, a gente brincava de (mão na roda?), de roda, a gente brincava de bolinha de gude, a gente brincava... Ai, as brincadeiras eram muito gostosas. Sabe, a brincadeira de passa-anel, muita coisa. De telefone, daquelas da lata de leite Ninho, que você coloca a corda aqui e o outro lá, eu falo com ele lá do outro lado, então assim... Pular corda... Nossa, a gente ficava tudo em forma, né? Porque o tanto que pulava de corda. Mas muito legal.
P – E a senhora estudava em Araçatuba?
R – Eu estudei, fiz primeiro, segundo, acho que até o terceiro ano. Meu quarto ano primário eu fiz aqui no Diogo de Farias, é...
P – E como é que foi essa mudança de Araçatuba para São Paulo?
R – Olha, assim, eu não me lembro muito dos fatos em si, né? Eu me lembro que meu pai: [disse] “Nós vamos para São Paulo” e quando você é criança, os pais não conversam muito. Naquela época não se conversava. Hoje ainda tem uma abertura maior. “Vamos morar em São Paulo”, só me lembro da gente no trem, indo de trem de Araçatuba para São Paulo. Viemos de trem, depois nós alugamos uma casa aqui no Pimentas, isso em 64... É mais ou menos, 64-65. Nós alugamos uma casa no bairro dos Pimentas, que nós ficamos dois, três meses e nós viemos morar aqui no Vila Mara. Aqui neste bairro onde nós estamos, né? Então, tem mais de 40 anos que eu estou neste bairro.
P – A senhora se lembra da primeira lembrança do bairro?
R – Lembro. Era uma casa pequenininha, hoje tá tudo... né? Mas, tinha... Era uma casa pequena, um morro, inclusive naquela época tinha cavalo, tinha vaca, essas coisas todas tinham aqui na região. Depois nós viemos para cá... Quando nós viemos aqui para o bairro, tinham poucas casas, umas quatro ou cinco. Tanto é que a casa que nós viemos para cá é uma casa de madeira, né... Era uma casa de madeira, pequena, depois que fomos construir um...
P – E vocês vieram especificamente para cá por algum motivo? Era próximo do trabalho do seu pai ou foi onde...
R – Não, o meu pai dizia que era melhor para trabalhar, que lá tava difícil e que se viesse para São Paulo, teria mais oportunidade, teria mais chance de trabalho, teria mais chance de sobreviver, né? Era isso que ele dizia para a gente. Que lá a situação tava difícil, “Vamos para São Paulo”.
P – E aí, como é que vocês chegaram neste bairro aqui?
R – Aqui na Vila Mara? Então, nós fomos primeiro para o Pimentas, né? Alugamos primeiro lá uma casa, ali não dava pra ficar, casa pequena, essas coisas toda, “Vamos alugar uma casa”. Aí meu pai alugou uma casa aqui na Vila Mara, que até hoje é no mesmo local. Só que já foi construída, era de madeira, ele construiu, acabou comprando o terreno, então nós viemos para cá. Na outra casa só tinha um cômodo, nesta também só tinha um, né? Mas era maior.
P – E o pai da senhora quando veio para cá, ele lavrador lá no interior, né? Aqui ele veio fazer o quê?
R – Ele foi trabalhar de servente de pedreiro, aí ele aprendeu a profissão de carpintaria, trabalhou muito na carpintaria. Até falecer, ele foi carpinteiro.
P – E a vida de criança, aqui em São Paulo, depois de sair daquela vida de brincar na chácara etc, qual sua lembrança desta infância em São Paulo?
R – Ai meu Deus do céu... Eu queria voltar para a minha chacrinha (risos). Porque, assim, aqui na cidade grande, a gente considera aqui como cidade grande, né? Naquela época também. Então, assim, quando nós chegamos, as ruas não eram asfaltadas... Hoje, tem tudo isso, mas naquela época não tinha. Não tinha escola, que tem lá embaixo, era campo... A gente não tinha as brincadeiras que a gente tinha. Primeiro pela questão do espaço; segundo, porque todas as crianças, os pais não deixavam brincar do jeito que a gente brincava. Então, isso pra gente foi um choque. A gente achava que podia chamar os meninos da rua e brincar: “Não, vem aqui, vamos brincar!”. Até você entender que você estava numa outra realidade, numa outra situação, demorou. Demorou e frustrou, né? Porque assim, inclusive eu falo para as minhas irmãs, as que vieram depois, “Olha, eu gostaria que vocês tivessem tido a infância que nós tivemos”. Por exemplo, lá em Araçatuba, o meu pai fazia fogueira de São João, então, tinha forró; todo mundo se juntava numa casa, na época de São João, todo mundo da rua trazia... Um trazia milho, outro trazia arroz-doce, outro trazia canjica, então você se juntava e toda a criançada fazia a maior festa; pulava quadrilha. Hoje nós sabemos o que é pular quadrilha, né? Naquela época a gente falava: “Vamos dançar” e vinha todo mundo. E aqui, nós não vivemos isso; mesmo naquela época não tinha esse costume. Era São João, isso ou aquilo, fazia fogueira, nós não tínhamos a questão do juntar na rua, trazia todo mundo, trazia todo mundo da rua, trazia molecada, você ficar junto, pular fogueira, o pessoal lá: “Ah, eu vou ser sua comadre, então vamos pular a fogueira juntas”, então, essas coisas a gente lembrava. E aqui frustrou, porque, como é que você ia viver isso? Não dá.
P – A senhora disse que quando chegou aqui tinha quatro ou cinco casas só, uma delas a da sua família.
R – É, a minha era de tábua, tinha quatro casas de alvenaria, né? De tijolo, construída, quatro casas.
P – Agora, casas de madeira tinham várias?
R – Tinham mais, tinham mais.
P – Você consegue descrever pra gente a visão que você tinha da porta da sua casa, como é que era esse bairro, naquela época, mais de quarenta anos atrás.
R – Olha, a entrada da minha casa era assim: tinha um quintal grande, a casa de tábua lá no fundo, uma portinha pequenininha que você entra aqui na frente; tinha um tanque de lavar roupa e uma mesa, onde a gente colocava uma bacia que você lavava a louça, né? E quando chovia, a rua era totalmente de terra e terra preta... E quando chovia, você falava: “Meu Deus do céu, como é que nós vamos lavar louça ali? Lavar roupa ali?”. Então, tem uma cena, que assim, minha tia morreu em Araçatuba. E aí, eu tava lavando roupa.... Porque assim, as crianças, na nossa época... Era comum você ajudar, hoje também, mas naquela época era mais. Então, você lavava roupa, tudo... Quando a minha tia faleceu, a polícia passava na frente da nossa casa, várias vezes, aquela baratinha e a gente ficava olhando... Ela estava procurando a nossa casa, pra dizer que minha tia tinha falecido e que meu pai tinha que ir em Araçatuba buscar meus três primos. Eu tenho essa visão da casa, deste dia. Porque eu... “Nossa, aqui, tá passando, toda hora... Chega uma hora que eles têm que bater palma e perguntar, né?”. Aí vieram avisar. Então, assim, eu tenho essa visão da casa. Lá no fundo, aqui na frente, um tanque, uma mesa de tábua com uma bacia, que se lavava louça e lavava roupa, puxava água.
P – E a senhora, nesta época, já começou a fazer as primeiras amizades no bairro? Como é que era a relação com os vizinhos?
R – Era muito pouco. Como não tinha muita casa, não tinha muito vizinho, então, era pouco. Era um lá, outro do outro lado. Aí a gente começou a fazer as amizades mais na escola, né? Por causa da escola, a gente ia pra escola e lá fazia mais amizade. Mas, aquela amizade que depois você conversava lá, brincava e vinha depois pra casa e pronto.
P – A escola era longe?
R – É a mesma, ela ainda tem até hoje, né? É uns quinze minutos a pé, daqui lá.
P – E como era, como foi sua adaptação na escola nova?
R – O primeiro dia a gente leva um susto, né? Professores novos, tudo novo, cidade nova, tudo... E nós, até hoje, nós temos muito medo do novo. O novo às vezes amedronta. Você não sabe o que te espera. Então, você fica muito ansioso e fica até agressivo às vezes. Eu me lembro que na primeira semana, eu olhava aquele povo, eu falava assim: “Meu Deus do céu, como vai ser isso aqui?”. Porque eu sempre fui assim mesmo, faladeira. Eu falava: “Gente, como é que vai ser isso aqui nessa escola, como é que vai ser tudo isso?” e acabei, fiz o quarto ano primário lá, depois, em frente onde eu morava, construiu uma nova escola. Naquela época tinha admissão; pra você ir para o ginásio, você tinha que fazer um ano de admissão. Eu fiz um ano de admissão pra ir pro ginásio. Aí eu já fiz o ginásio... Comecei a fazer o ginásio aqui no Bento. Depois eu terminei em outra escola, né?
P – Mas, nestes primeiros anos de escola aqui em São Paulo, teve alguma professora que te marcou ou algum amigo, algum colega que tenha permanecido na lembrança?
R – Olha, pra mim teve a Dona Neusa, né? A Dona Neusa trabalhou no Diogo, hoje ela não tá mais, ela aposentou... E assim, uma professora que ela dizia assim: “Olha, todos vocês têm que aprender”. Hoje, na escola, você não repete mais. Então, não é todo mundo, mas tem umas pessoas que se acomodam, mas na nossa época, você tinha que saber. Você tinha que saber ler, você tinha que saber tabuada, você tinha que saber História, senão, você não passava. E ela dizia: “Vocês precisam aprender”, ”Porque quando vocês chegarem...” – ela não falava ginásio, ela falava: “Quando vocês forem fazer admissão, vocês têm que ter nota boa; então, quanto mais vocês melhorarem na letra...” – ela fazia assim – “Quanto mais vocês melhorarem na letra, vocês vão aprender mais rápido”. Eu achava que eu tinha que ter, que eu ia ficar ótima, nossa, que eu ia ser uma excelente aluna se a minha letra fosse bonita. Olha a cabeça da criança como é, né? Então, aquilo eu fui buscando, sabe, aperfeiçoar. Uma coisa muito gostosa.
P – Maria José, qual que era o sonho grande que você tinha nesta época?
R – Ai... Ter um quarto... Ter uma casa e ter um quarto. Porque assim, a gente tinha um cômodo, né? Então, numa cama de solteiro dormiam cinco. Eu falava: “Gente do céu, como eu queria ter um quarto, como eu queria ter uma cama só pra mim”. Não só eu, como meus irmãos também queriam, né? Naquela época, nosso sonho era esse. Era ter quarto, quarto e cama. A gente não pensava em ter casa, só falava: “Ah, eu quero um quarto, ter uma cama pra mim sozinha”. Imagina ter uma cama pra gente sozinho? Naquela época você falava: “É coisa, nossa...”, é como você ter uma suíte hoje. Pra nós, naquela época, era... Esse era o maior sonho. Eu não pensava em mania de educação, ter profissão, eu vim a pensar nisso depois, né? Depois dos 15 anos. Antes não.
P – E os quinze anos, como é que foi essa entrada na adolescência?
R – Como eu te disse, nós aqui começamos a trabalhar muito cedo. Então, com dez anos eu comecei a trabalha no Tatuapé. Eu trabalhava numa casa, eu estudava de manhã e à tarde eu ia trabalhar na casa da mulher. Depois, eu terminei o quarto ano, aí eu tinha dia inteiro, aí eu ia o dia inteiro pra a casa dela, pro Tatuapé. Aí, eu trabalhei lá até os 14 anos. Naquela época, com 14 anos, você tinha que ter carteira assinada. Aí, eu saí da casa dela e fui trabalhar numa firma, numa metalúrgica no Brás. Então, eu trabalhava das 15 às 22. Naquela época podia, hoje não pode, por causa da questão do estatuto. Então essa época... Como eu comecei a trabalhar muito cedo, era trabalhar. Trabalhava, ajudava a construir a casa. Aí, eu parei de estudar. Parei de estudar nesta época e continuei trabalhando, depois eu voltei a estudar.
P – Lá nessa metalúrgica, você trabalhava na parte de faxina? O que era lá?
R – Na máquina mesmo.
P – Na máquina mesmo, com 14 anos?
R – É, na máquina. Naquela época podia, você era metalúrgica, você trabalhava na fábrica de metalúrgica, fazia as tampinhas, fazia as latas, né, depois fui pra outras. Mas, essa, era na máquina mesmo. Aí, eu fui mandada embora, porque eu briguei com o chefe... Ai...
P – Conta esta história desta briga com o chefe. Por que você brigou com o chefe?
R – Porque assim... Pode falar palavrão?
P – Pode falar o que você quiser!
R – Tá, então assim, toda menina que fazia o serviço errado, ele chamava de abacaxi. Aí, eu ficava olhando assim. “O dia que este cara me chamar de abacaxi, eu vou ser mandada embora.”, né, eu pensava. Aí, a minha prima falou assim: “Como é que é?”, “Não, o dia que ele me chamar de abacaxi, eu vou ser mandada embora, porque eu não vou permitir que ele me chame de abacaxi”. Aí, ele me chamou. O dia que ele me chamou, eu mandei ele para aquele lugar, falei que abacaxi era ele, que ele não prestava para nada e para que ele fosse para aquele lugar. Ele levou uma suspensão e eu fui mandada embora, né? Mas, as histórias que têm, é que ele nunca mais chamou ninguém de abacaxi. Que ele falou: “Você não tem a noção de ser mandada embora, você é adolescente, né, adolescente acha que é o dono do mundo, acha que sabe tudo e algumas coisas não vai aceitar”. Eu falei: “Ele não vai me chamar...”, “O dia que ele me chamar de abacaxi, eu vou ser mandada embora”. Ah, chamou, tá, na hora fui mandada embora. (risos)
P – Dona Maria José, nesta época eu imagino que o seu salário a senhora deveria dar para os seus pais, para ajudar em casa.
R – Todinho, todinho.
P – Todinho?
R – Todinho, moço. Não dava para tomar um guaraná. (risos)
P – E, apesar de trabalhar muito, você já tava ficando mocinha nesta época, adolescente, não tinha nenhum tempinho livre pra sair, pra namorar, pra fazer amizade; o que você fazia na sua hora de lazer?
R – Ó, é... Por exemplo, lá atrás, a gente namorava um pouco mais tarde, né, tanto é que eu fui casar com 36 anos de idade. Então, o que a gente tinha? Você trabalhava, aí nós começamos, depois dos 17, 18 anos, começamos a participar da igreja. O que a gente vinha para a igreja, no sábado, no domingo, aí a gente se encontrava com o grupo de jovens, que tinha um grupo de jovens, aí, esse era o nosso passeio. Esse era o nosso lazer. Então, você vinha, participava na igreja, ia embora pra casa, segunda começava tudo de novo e um baile naquela época, não ia, né? Hoje se eu puder, não perco um. (risos) Porque não tinha, assim, muito essas coisas, não tinha mesmo. Então, era trabalhar, vir pra casa, sábado e domingo você ia pra igreja, você participava, por exemplo, eu fui catequista, né, fui ser catequista, aos sábados e domingos, dava catequese, a igreja é aqui na Santa Rosa, que ainda tá aqui, então, esse era o nosso passeio. Esse era o nosso lazer. Festa, a gente não ia, era muito difícil, a não ser, assim, nas firmas que a gente trabalhava, quando era época de Natal, os patrões sempre faziam uma confraternização ali com os funcionários, dava um panetone pra cada um e pronto, mas não tinha o costume de festa. A gente não participava de festa, né? E aí, assim, nem na praia, né? Nem praia, praia bem depois dos 20 que nós fomos conhecer a praia. Então, assim, nós obedecíamos a pai e mãe, a realidade era essa. Obedecia a pai e mãe, você vivia e trabalhava, isso que você disse, Eduardo, é correto. Todo salário, né, a gente recebia, então a gente dava o salário inteiro dentro de casa. E naquela época, meu pai estava construindo a casa, então, tudo que entrava era pra dentro de casa mesmo. Aquela saia bonita que você via na loja, aquela blusa bonita que você via na loja, você engolia seco... né, engolia a seco. Comprava o que desse pra comprar e pronto. E como a gente trabalhava, quando trabalhava em casa de família, então, você ganhava muita roupa... Sapato. Então, as patroas, elas nos davam muita roupa... Então a gente ficou muito tempo, quando era época de Natal, assim, então, eles faziam roupa pra gente. Então, você tinha roupa nova no Natal. Mas...
P – E a relação com os seus irmãos, ela continuou próxima? Os seus irmãos também trabalhavam como você? Como é que era essa...
R – Os meus irmãos, assim... Depois o Jorge, que é o segundo, o Jorge começou a trabalhar cedo também, né? Seguiu no mesmo ritmo. Jorge, a Terezinha, a Fátima, né? Os quatro seguiram o mesmo ritmo. A Edite e a Neide, que são as mais novas, né, já foram outro ritmo. Apesar de terem começado a trabalhar... Todos começaram a trabalhar muito cedo, né? Minha família começou a trabalhar muito cedo.
P – E vocês, nesta época, dormiam tudo no mesmo quarto, na mesma cama?
R – Tudo, é... Quando o meu pai começou a construir, aí, ele fez dois cômodos, né? Aí, a cama aumentou. Já não era mais a cama de solteiro, já era a cama de casal. A gente começou a comprar cama. Sabe aquelas caminha de... Que você abria e fechava? De mola? Então, nós começamos a comprar aquelas camas. Aí, já começou a separar...
P – Conta pra mim, mais em detalhes, por favor, essa história da construção da casa, a primeira casa de vocês, que vocês estavam construindo aqui em São Paulo.
R – É, a construção da casa é assim: meu pai comprou o terreno, né? Ele comprou o terreno, “Opa, compramos o terreno, agora vamos construir”. Aí, tudo que ele recebia e tudo que eu recebia, a gente comprava as coisas para poder fazer a casa. E nós fazíamos a casa, né? Tinham dois compadres dele que eram pedreiros, que ajudavam a fazer. Aí, eu ajudava a fazer as massas, carregava água lá pra pôr o cimento, então, demorou muito para construir, né? Porque construiu um cômodo, depois foi construindo outro e tudo que a gente recebia, tudo era pra comprar as coisas pra fazer a casa. Tudo. Aí, você falava: “Não acredito que não vou comprar um sapato, que eu não vou comprar um chinelo...”, mas tudo era pra casa. E aí, todo mundo se envolvia, todo mundo tinha que se envolver. Naquela época, meus irmãos ainda não trabalhavam. O Jorge, que é o segundo depois de mim, começou a trabalhar, quando ele começou, a casa já estava, praticamente, não estava pronta, mas já estava levantada, né? Aí, o acabamento da casa foi o mais difícil, porque o que demorou mais, porque naquela época, você levantava as paredes, fazia o chão e achava que a casa tava pronta, né? Aí, entrou todos os filhos, depois começaram a contribuir pra que terminasse a casa, né? Mas foram muitos anos! Foi _____, tipo... Dois anos, pra poder terminar dois cômodos, inteiros, sabe? Então, demorou muito ou eu achava que tava demorando muito, né? Porque eu falava: “Caramba, nunca termina”, né? “Você faz e nunca termina...”. Então, tudo era voltado pra construção da casa, tudo. E minha mãe não trabalhava fora. Aí, quem fazia era a gente. Então, ela fazia o que desse, mas a gente que tinha que entrar com a mão de obra e com a grana.
P – E como é que ficou a casa depois de pronta?
R – Ainda não tá acabada até hoje! (risos) Assim, ela... Hoje a minha irmã deu uma baita reformada nela, né? Mas, ela ficou com três cômodos, né? Uma área na frente e ficou pra... Construir em cima também.
P – E aí, eu imagino que mais, daqui a pouquinho vai chegar mais pro futuro, a senhora deve ter saído de lá e seus pais que ficaram na casa?
R – Ah, menino, deixa eu te contar a pior. Que assim, pior não, né? Eu saí de casa muito cedo. Eu fui morar sozinha, né? Porque assim, eu comecei a trabalhar, ajudar, isso, aquilo. Chega uma época... Na minha época, isso era uma postura muito avançada, né? Porque, chega uma época que eu falei assim: “Não, eu tenho que ter a minha vida, tenho que ter o meu espaço”, aí, fui morar sozinha. Aí, eu saí de casa, fui morar sozinha, no começo eu fui morar com uma colega, né? Depois ela mudou e eu continuei no apartamento sozinha, fiquei acho que quase 15 anos morando sozinha, né? Eu trabalhava – eu sempre trabalhei, né? – aí eu me sustentava, ainda sustentava a minha mãe e meu pai quando era vivo. Então, eu sustentava as duas casas.
P – Espera aí. A senhora saiu de casa com quantos anos?
R – Ah, eu acho que eu tinha... 20... 25... Quase 20, 20 e pouco.
P – E nessa época, a senhora trabalhava onde?
R – Olha, quando eu saí da firma, lá da metalúrgica, eu fui ser costureira, eu trabalhei quase dez anos numa firma que chamava (Artemis?), né? De sutiã, calcinha, camisola, então, eu me aperfeiçoei na costura. ___ overloquista, ______________, né? Trabalhei lá dez anos. Aí, saí de lá e trabalhei quase dez anos na antiga FEBEM, né? Trabalhei também na FEBEM quase dez anos, eu fui monitora na FEBEM. Antes de entrar na FEBEM, eu trabalhei em outras firmas de costura, ou seja, já trabalhei com tudo quanto é coisa, né? E quando eu fui morar sozinha eu já tava na costura.
P – Costura?
R – É. Saí da costura, eu fui trabalhar na FEBEM, né? Trabalhei na FEBEM, até quando o meu filho nasceu.
P – Mas, calma. A gente vai chegar lá na FEBEM ainda. Vamos voltar, estamos na costura ainda. Então, a senhora decidiu sair de casa, com vinte e poucos anos?
R – É, saí.
P – Foi morar longe, onde a senhora foi morar?
R – Não, aqui no bairro mesmo. Tinha uma padaria aqui em cima, na Erva-de-Santa-Luzia, né, e minha amiga morava lá, que também participava da igreja, né? Aí, ela foi: “Ah, vamos morar só” e naquela época foi uma coisa assim muito engraçada. Porque tinha várias meninas que passaram pela casa onde nós fomos morar. Porque elas foram fazer faculdade e não tinha ônibus. O último ônibus que tinha, saía 11 horas, elas iam chegar uma hora da manhã aqui, então elas não podiam ir para a casa delas, que ficava lá no final do Romano, porque não tinha ônibus. Então, elas vieram ficar com a gente esse tempo da faculdade, a Neuzinha, a Selma, a Bia, né? Só que assim, todas tinham casa. Cada uma ia para sua casa depois, como foram, né, então, eu e a Natalina. Depois a Natalina casou, foi morar em outra casa e eu continuei morando sozinha.
P – E vem cá, nesta época a senhora tinha voltado a estudar ou não?
R – Não... Assim, quando eu tava lá na costura...
P – Só um segundo... Bom, eu tinha perguntado se a senhora tinha voltado a estudar nesta época, a senhora disse que ainda não, né?
R – Ó, quando eu tava trabalhando na (Artemis?), lá no Brás, lá na Praça do Correio, sabe as histórias do supletivo, né? Então, tinha uma escola de supletivo, aí foi: “Ó, vou estudar aqui”, aí sim, naquela época, eu comecei a pensar: “Não dá para não ter estudo”, né? Sei ler, sei escrever, mas não dá... Sabia, assim, o básico, né? Mas não dá pra não ter estudo, não dá pra não ter profissão. Aí, eu já pensava assim, né?
P – Mas, nesta época, a senhora ainda não tinha voltado, né? Logo que mudou.
R – É, logo que... Não, antes de mudar, eu já tinha ido.
P – Já tinha?
R – Já. Aí, eu peguei e falei assim... Aí nós fizemos um... Fiz matrícula, tudo. Estudei um pouco lá, vi que não dava certo, né? Saí de lá, parei, aí, quando eu fui entrar na FEBEM, quando eu comecei a fazer o concurso pra entrar na FEBEM, eu só tinha o quarto ano primário, né? E o que a FEBEM exigia? A FEBEM exigia que você tivesse o ginásio completo. Eu fui fazer o exame de seleção, né, e fui selecionada. Mas, eu fiz uma seleção que assim: teve uma coisa que eu sempre fiz, não é porque estudo não, eu sempre gostei de ler bastante. Ah, meu filho, eu via papel na rua e começava a ler, né? Então, eu sempre fui de ler. Eu sempre lia, né? Até hoje eu sou assim. Então, eu fui prestar, fiz a inscrição na FEBEM, aí, tá, eles estavam procurando assim... O nível deles, que eles queriam, era para quem tivesse colegial completo e quem tivesse o ginásio completo. Eu tinha só o primário. Falei: “Bom, eu vou fazer, né?” e fiz e fui aprovada. Fui aprovada como monitora, como se eu tivesse feito o ginásio completo. Falei: “Caramba, e agora?”. Aí, entrei, não contei pra ninguém, entrei, comecei a trabalhar e voltei para a escola. Aí, essa época eu voltei para a escola, isso era 86...
P – Mas, aí, nessa época a senhora já tava com mais de 30, né? Quando você mudou era 20 e poucos...
R – Já, já tinha mais de 30...
P – Mas, aí, nessa época que você mudou e foi morar fora, como foi a mudança do seu cotidiano, como é que era seu dia-a-dia pela primeira vez morando fora, mais independente?
R – Porque assim, como eu sempre trabalhava fora, eu só chegava à noite, né? Chegava à noite, eu saía de manhã, cinco horas, cinco, cinco e meia e chegava em casa mais ou menos nove, nove e meia, então, eu não tinha, assim, muito tempo de sentir solidão. Que eu tinha medo da solidão. Quando a Natalina mudou, né, aí, eu comecei a... Quando eu fui, eu comecei a comprar as minhas coisas. E a primeira coisa que eu comprei foi a televisão e a geladeira. Que eu falei assim: “Sem água gelada eu não fico e sem televisão também não”. Aí, eu comprei essas duas coisas. Eu não tinha muito tempo pra voltar pra casa. Que como eu trabalhava bastante e o trabalho exigia, na realidade, eu sempre... É que nós no... Hoje, você entende que você enfia a cara no trabalho que é pra você não sentir o outro lado. E eu acredito que como todas as... Psicologicamente tem uma explicação, né? Naquela época não sabia explicar isso – que eu enfiava a cara no trabalho, por quê? Porque... Tinha, não queria... Tinha medo da solidão, medo de ficar só. Então, eu trabalhava sábado, trabalhava domingo, trocava plantão com todo mundo, né? Por exemplo, tinha plantão no domingo, o pessoal não queria trabalhar no domingo, eu falava: “Ah, não, eu troco”. Eu ia, então, assim, enfiei a cara no trabalho mesmo. Aí eu comecei a estudar, né? Tinha que estudar.
P – Aí, nisso foi quando a senhora já tava saindo da... Só um segundo, ele vai trocar a fita.
(Troca de fita)
P – Maria José, voltando aqui à entrevista, a gente estava mais ou menos na fase em que a senhora estava saindo da fábrica lá de...
R – Das costuras...
P – Das costuras pra ir pra FEBEM. Como a FEBEM entrou na sua vida? Você viu uma vaga de trabalho? Como é que esta história toda começou?
R – Então, eu recebi a informação que a FEBEM iria selecionar, né? Aí, eu peguei e me inscrevi. Naquela época, várias pessoas que participavam com a gente do grupo de jovens se inscreveram. E aí, todos passaram pelo processo de seleção. Nós fizemos o processo de seleção, eu fui selecionada, aí eu fui trabalhar na UR, que era aquela ali do Tatuapé, daquela das rebeliões, aquelas rebeliões que vocês viam, né? Então, nós passamos por tudo... Hoje é a Fundação Casa, né? Eles acabaram com aquelas unidades e fizeram em cada bairro, Casa. Mas, naquela época, era uma coisa assim... Trabalhar na FEBEM, era um pavilhão, com 200 meninos, né? E pra gente que é mulher, né, eu não estou aqui falando mal dos homens não. Mas, pra gente que é mulher, assim, tem várias situações que os homens “Ah, é mulher, não aguenta!”, “Ah, é mulher, não vamos querer não!”, então... E aí, eles surpreendiam, porque tinham várias mulheres e várias mulheres que acabavam, na realidade, segurando na palavra deles pra nós, ajudando a controlar várias rebeliões que nós passamos, né, várias coisas aconteceram. E teve um coordenador, né, que teve uma rebelião um dia lá no pavilhão que eu trabalhava, e aí, tinha eu e mais dois rapazes. Assim como você. E um dos rapazes ainda não tinha passado por clima de rebelião. Ele tremia, então, ele começou a passar mal. E é normal mesmo passar mal. Porque você vê as coisas, você presencia, dá medo mesmo. Porque quantas pessoas são machucadas, quantas pessoas eram machucadas, né? E naquele dia, eu tive medo. Falei: “Meu Deus do céu, eu estou sozinha, eu tenho que tomar uma atitude, o que é que eu vou fazer?”. Ah, peguei uma cadeira, subi em cima da cadeira, chamei todos eles, naquele dia tinha quase 200 internos. Falei: “Senta todo mundo!”. Todo mundo sentou, falei pra eles... Porque assim, os coordenadores não gostavam de falar que tava tendo rebelião. Porque o pavilhão ia se rebelar também. Aí, peguei e falei assim: “Tá tendo rebelião, né, aqui eu estou sozinha, a única coisa que eu peço é assim, ó, que os grandes tomem conta dos pequenos, não se preocupem comigo”. Porque tinha muito, eu trabalhava num pavilhão que tinha muito menino pequeno, né? Oito anos, dez anos, que era o pronto-atendimento, você recebia eles pra depois você mandar pros locais corretos. E naquele dia, eu falei: “Meu Deus do céu, tem tanto menino pequeno aqui dentro, que se entrar aqui vai machucar os meninos, né?”. Aí, os grandes, os grandes, assim, feito vocês, é, como a gente recebia, então você recebia de zero a 18 anos, né? Até os bebês era na nossa ala. Aí, teve dois, daqueles, tipo como se fosse o líder mesmo, pegou e falou assim, ó: “A senhora pode ficar tranquila, porque aqui ninguém vai colocar a mão nas crianças pequenas”. Os grandes resguardaram. “Aqui ninguém entra, ninguém vai pôr a mão na senhora e nem nos meninos pequenos”. Eu só lembro que eu falei assim: ”Comigo vocês não se preocupem, eu só quero que tomem conta das crianças pequenas”. Porque a gente sabia que se o negócio fervesse muito, as crianças pequenas seriam machucadas, né? Passou aquele dia. Teve vários acontecimentos, teve várias coisas, teve vários episódios na FEBEM, né? Imagina, quase dez anos lá, né? Então, a história é realmente muito grande.
P – Agora, Maria José, a senhora acabou de relatar pra gente um dia de rebelião, né?
R – É.
P – O clima tenso etc. Conta pra gente agora como era seu dia-a-dia de trabalho, um dia normal de trabalho lá na FEBEM.
R – Olha, o nosso dia normal era assim, ó: como eu trabalhava numa unidade de recepção, então, nosso dia era assim. Todo mundo que chegava, passava pelo nosso pavilhão. Todos, até os bebês. Um ano, seis meses, dois meses, então, nossa rotina era essa. Trazia e era a gente que recebia. Passava numa enfermaria que era ao lado, nos passava, a gente relatava no livro que entrou, né? Fichinha, número, os bebês, quem não sabia dizer o nome, então ali... Durante o dia, era assim o nosso papel lá: dos monitores era o almoço, o banho, levar no médico, levar para juiz, levar pra... Então, o dia passava muito rápido, porque era tanta coisa, né, que você... Fora a tensão do dia. E tinha umas coisas que eram assim, aí tinha que fazer todo o dia. Como nós recebíamos então todos eles tinham que passar pelo juiz para que ele determinasse o que ia fazer: se ia pra casa, se ia ficar interno, então, nós levávamos. Então, tinha dia que tinha 30, que tinha 40 meninos que a gente tinha que levar. E a gente levava aqui pro fórum, aqui na Penha, aqui onde tem o SOS Piratininga, lá no Brás. Aí, então, todos os dias a gente tinha que fazer isso. E o nosso plantão era quatro por dois. Por exemplo, eu trabalhava quatro dias de 12 horas e folgava dois dias. Então, eu trabalhava cinco e folgava um, né? E a rotina deste pavilhão, era essa. Os outros, quando já era uma unidade educacional, aí, tinha que levar pra escola, né, porque tem aula lá, as salas de aula, a recreação, eles tinham, passeios, que as educacionais tinham isso. Na nossa unidade não tinha. Não tinha, por quê? Como era uma unidade de recepção, você recebia e ali ia determinar pra onde ia, o que ia fazer. Os bebês iam tudo pro Pacaembu, que lá no Pacaembu tinha uma sala só para os bebês, né, então, nossa rotina era essa. Tinha dia que tinha 30 bebês, tinha dia que tinha dois, tinha dia que não tinha nenhum, então, nossa rotina...
P – Teve alguém que te marcou? Alguma criança que passou por lá que tenha tido uma história marcante na sua vida?
R – Ah, teve. Teve três situações, né? Assim, eu sou exagerada, viu? Você já viu, né? Assim, primeiro foi um bebê. O nome dela era Juliana. É... 80 e pouco... Naquela época, não se tinha as informações que tem hoje sobre a questão do HIV, né? Hoje nós temos informação, hoje nós temos como proteger, hoje a gente... Todo lugar que você for, você tem, você busca isso. Naquela época, nós não tínhamos, né, o quadro, o que significava o HIV. Nem os funcionários, nem as pessoas em si. Chegou essa menina, ela deveria ter uns seis meses, né? Então, a mãe teve o HIV, ela nasceu com o HIV e a família não quis mais, então eles vieram pra FEBEM. E a menina já estava numa fase de decomposição. Então, essas juntas assim, já não cicatrizava mais, isso aqui, né? Não cicatrizava mais, porque ficou imune, né? É como o diabete, né? Você tem um corte, então, a dificuldade é muito grande. Então, naquele dia, foi o comentário do setor médico... Ficava sem saber o que fazer, todo mundo ficava sem saber o que fazer, como é que você vai receber uma criança do HIV, uma criança com AIDS, né? Você não tinha proteção nenhuma e ninguém queria pegar aquela menina, né? Ninguém queria pegar. Aí, eu falei: “Eu vou pegar”. Você tinha que pegar ela, ela não podia ficar com a gente no setor, porque ela tinha que ser transferida pro hospital... Como ela já estava em fase de decomposição, então, ela não podia ficar em lugar nenhum, porque só ia atrapalhar o tratamento. E aquela época, a questão dos coquetéis, né, a gente não sabia... Nem sabia que existia a questão dos coquetéis... Então, tudo era muito novo e muito difícil pra gente. Isso marcou muito, né, essa é uma coisa que marcou. Que nesta época eu já tinha um pouquinho de inteligência, né, então você ficava pensando: “Puxa vida, que coisa, né, precisa de mais informação, precisa de mais proteção, como é que se pega...”, ninguém nem sabia como é que se pegava o HIV, ninguém sabia como é que isso funcionava, né, só sabia que todo mundo tinha medo da AIDS, todo mundo. Nossa, falava em AIDS, entrava em pânico. Então, isso marcou bastante. Eu tenho o rostinho dela até hoje, né? E uma outra que é assim: família de muitos filhos, né? Lembra lá atrás, quando eu falava que eu dormia com os meus irmãos, né? Família de muitos filhos, os filhos são acostumados a dormir juntos. Aí, chegou um menino, né, o Gabriel. Aí, as meninas da noite falaram: “Maria José, o Gabriel não dorme. Faz uma semana que o Gabriel tá aqui. O Gabriel não fecha o olho. O Gabriel chora a noite inteira e não sei o que”. Naquele dia, eu tinha ido pro hospital. Eu fiquei o dia inteiro no hospital, com um dos meninos que tava doente... Eu acredito assim, nada é por acaso, tudo tem um significado e tudo tem um por quê. Naquele dia, o rapaz que ia me buscar, o motorista que ia me buscar, chegou muito tarde, chegou depois das 11 da noite e não tinha ônibus pra vir pra casa e eu tive que dormir lá. Mas, eu tava tão cansada, né, que eu peguei e falei assim: “Gente, eu não tenho como ir embora, eu vou ficar aqui, eu tenho que trabalhar amanhã mesmo”. E esse menino, que chorava a noite toda, eu peguei e falei assim pra ele: “Vem aqui, Gabriel”. Aí, o Gabriel... Eu tava tão cansada, mas tava tão cansada, peguei o Gabriel e falei: “Encosta aqui, vai”. O Gabriel encostou e dormiu a noite inteira, né? Aí, de manhã, as meninas falaram: “Por que ele dormiu com você?”; eu peguei e falei assim: “Por quê? Porque vocês têm que colocar ele pra dormir com outra pessoa, porque ele tá acostumado a dormir com os irmãos, então ele não vai dormir sozinho nunca. Porque ele é pequeno e aí, só vai dormir com alguém”. Uma das psicólogas, né, porque lá tem tudo. Psicóloga, tudo. Aí uma das psicólogas falou assim: “Como é que você sabe disso?”. Peguei e falei pra ela assim: “Ó, porque quando eu era pequena, eu era acostumada a dormir com meus irmãos! Mas eu não tive esta história de separar, eu não me separei dos meus irmãos quando pequena”. Aí ela pegou e falou assim: ”É, você tá certa”. Então, uma coisa... Ou seja, aí, eu me questionava enquanto funcionária, né, falava: ”Puxa vida, enquanto a funcionária tem uma semana que o menino não dorme, né, o menino chora a noite toda e vocês não conversam com o menino, não procuram saber por que o menino não dorme?”. Aí, eu achava que era incompetência da funcionária. Olha só, como se eu fosse uma expert, cheia de defeito como todo mundo, mas eu achava que era defeito, que ela tinha que... Sabe? Aí, ela assim: “Você é cheia de sabedoria”. Eu falei: “Não, não sou cheia de sabedoria não, né, eu sou cheia de fuçar”. E o outro caso, de um menino deficiente, né? Porque lá também, como eu disse, como a nossa unidade era uma unidade de recepção, recebia todo mundo. Então, você recebia muita gente portadora de deficiência, né? Esse era o Washington. Eu gravo o nome deles. Então, o Washington ficou mais de um ano na FEBEM e ninguém queria receber o Washington. Nenhuma casa de tratamento de portadores queria receber o Washington, né? Então, ele ficou lá, ele não falava, então quando ele saiu de lá, ele já balbuciava, já começava a falar algumas coisas. E aí, quando eu chegava de manhã, eu sempre fui muito assanhada, sempre fui. Nossa, o assanhamento chegou na Maria José e parou, né? Acho que eu passei na fila umas cinco vezes. Aí, eu falava: “Washington, cheguei, viu?”, aí, ele olhava assim, né? Pronto, aquilo pra mim era o bom dia, né? Ali ficava o dia inteiro, dava comida, cuidava, até que chegou o dia, em Guarulhos, não sei onde é a casa. Uma das casas de Guarulhos recebeu o Washington. Aí, as meninas falavam assim: “Como a Maria José sempre foi muito apaixonada pelo Washington, nós vamos deixar ela levar o Washington”. Eu chorava, chorava tanto, porque assim, primeiro: nós já temos grandes dificuldades, né? Todos nós temos. Imagina uma criança portadora de deficiência, não anda, tinha todas as dificuldades, então aquilo marcou muito, em relação à questão da deficiência. E aí me obrigava, como a gente também saía pra procurar vaga, então me obrigava a ir aos locais que tivesse os portadores, por exemplo, no Belém, Guarulhos, Vila Mariana. Então, todos estes lugares a gente passava. Você via várias situações. A situação do Washington era um caso mais difícil mesmo, você não encontrava lugar. E aí eu ficava pensando: “Meu Deus do céu, São Paulo...”, eu sempre pensei assim: “São Paulo é o lugar mais rico do mundo, né, São Paulo é o lugar onde se envolve tudo que é tipo de dinheiro, né?”. Naquela época, eu falava: “Tudo que é dinheiro do mundo inteiro”, eu não sabia falar os nomes dos dinheiros, né? Mas eu falava: “O do Japão, da Alemanha, do Brasil, da Argentina...”. Eu não sabia falar peso, eu não sabia falar euro, eu não sabia falar nada disso, mas eu já imaginava, mesmo pequena, com dez anos, eu sabia que São Paulo era o lugar que mais se movimentava com a questão financeira, né, muito grande, tudo era São Paulo. Aí, eu ficava pensando: “Como São Paulo do jeito que é, não tem um local de especialidade pra esse nível”. Então, eu me questionava também nesse sentido. Então, esses três casos me chamaram muita atenção, né? Teve outros casos de audiência, mas aí já eram maiores, já era quem tinha penalidade, já ia cumprir pena, já ia, né, mas aí, na questão da criança mesmo, da infância, neste sentido. A questão do HIV, que pra mim, hoje é claro, hoje eu tenho outra clareza; a questão da psicologia, hoje eu entendo isso, naquela época eu não entendia, né, e a questão da saúde em si.
P – E Maria José, nesta época, se eu não to enganado, foi a época que a senhora se casou?
R – Eu casei... Com 34 anos eu fui morar junto, né? Como eu te disse, assim, eu fui uma mulher muito avançada pra época, né? (risos) Então, assim, eu fui morar junto primeiro, né? 34 anos eu fui morar junto, né? Com o Juscelino ali. Eu achei que a gente ia ficar um mês só, sabe? Mas, já faz 20 anos que a gente tá junto. Então, aí... eu... Morei junto, depois eu casei, né? Eu casei...
P – Como é que você o conheceu?
R – Ah, nos movimentos. Participação nos movimentos de moradia. Ele participava no centro, né, eu participava por aqui... Todinha, que eu sempre participei. Lá da igreja, lembra quando eu falei que comecei a participar da igreja? Depois, eu comecei a participar dos movimentos.
P – Daqui a pouco nós vamos voltar nesta história, que eu quero ouvir bastante.
R – É, tem a história dos movimentos, né? Então, aí, a gente se conheceu, aí, ele trazia a gente no metrô e ia à casa de uma colega minha que era colega dele e nem ele sabia que era colega minha e nem eu sabia que era colega dele. Aí, começamos a namorar. Ele me chamou pra ir ao cinema, ele fala que eu cruzei as pernas em cima das pernas dele, mas eu acho que não é isso não. (risos) Aí, nós fomos morar juntos e estamos juntos.
P – Que filme vocês foram ver, pra esse que foi o primeiro encontro?
R – É... A Sociedade dos Poetas...
P – Mortos.
R – Mortos. Primeiro filme que nós fomos juntos. Eu queria muito assistir esse filme, né? Nessa época, eu já retratava a questão da educação, todas essas coisas, então, eu queria assistir esse filme e ele também. Nós fomos assistir ao filme.
P – E aí, quando vocês foram morar juntos, você saiu daquele apartamento?
R – Não, ele veio para o apartamento.
P – Ah, ele veio para o apartamento?
R – Ele veio, eu fui buscar ele. (risos)
P – Aí, as meninas que moravam lá com você, já não moravam mais.
R – Já não moravam mais. A Natalina já tinha casado, já tinha ido embora, né? Minha irmã ficou um tempo comigo, depois saiu também, né? Aí, ele veio.
P – E só para a gente contextualizar aqui; nesta época a gente tá mais ou menos na metade da década de 80?
R – É, já tava... Era 90. Foi 90 que nós somos? Deixa eu ver...ai... 90? Nós começamos... É, mais ou menos 90.
P – Mais ou menos 90?
R – É.
P – E aí, você casou, foi dividir a casa com ele?
R – É, eu casei...
P – Qual que é o nome dele?
R – Juscelino.
P – Juscelino.
R – É, aí, eu casei em 92. Eu fui morar em 90, eu casei em 92.
P – E neste meio tempo, a senhora continuou lá na FEBEM?
R – Aí, eu continuei trabalhando na FEBEM, continuei trabalhando lá... Eu saí de lá no final de 92. Porque, assim, meu filho, né? O Jamil, que fez 18 anos ontem, quando eu fiquei grávida dele, eu saí da FEBEM.
P – Então, a senhora teve um filho com ele? A senhora tem um filho?
R – Tenho três.
P – Três filhos?
R – Três filhos, perdi o juízo, casei e tive três filhos.
P – Então, peraí, a senhora se mudou em 1990, em 92 casou de papel passado...
R – É, o Jumar nasceu em fevereiro de 92, né? Eu casei em maio de 92. Só que eu já tava morando com o Juscelino desde 1990.
P – E aí, os três filhos, quais são?
R – O Jumar, que é Jamil, né? Eu queria Jumar, aí, o cartório deu um livro pro Juscelino no dia de registrar e falou que não podia ser Jumar, que tinha que ser outro nome com jota. O Juscelino pôs Jamil. Eu processei o cartório, mas eu perdi a causa, né? (risos) Porque eu falei: “Que absurdo, o filho é meu, eu que escolho o nome, chega o cara do cartório, o bam-bam-bam...”, esse era o jeito que eu falava, “O bam-bam-bam não quer pôr o nome do meu filho, dá um livro e induz a outro nome?”. Processei, perdi a causa, né? Mas, eu falei, eu não sabia que ia perder, né, achei que eu ia ganhar. Hoje, por exemplo, ele, eu pergunto pra ele se ele quer Jumar ou se quer Jamil, ele quer Jamil. Eu falo: “Com meu desgosto, né?”. Mas, processei, porque achei um absurdo. Como? O filho é meu, eu que fiquei nove meses esperando, eu que planejei, eu que fiz tudo, agora o cartório não quer colocar o nome que eu vou escolher?! Nossa, isso pra mim foi o fim, sabe, foi o fim do mundo, né? Processei e perdi a causa. Então, eu tenho o Jumar, com 18, tem o Julio, né, que vai fazer 16 e tem a Julia, que vai fazer 14.
P – E os três estudam?
R – Os três estudam.
P – Moram aqui com você?
R – Moram, moram comigo.
P – Maria José, aproveitando que você acabou de mencionar aqui o fato de você conhecer o...
R – Juscelino.
P – O Juscelino tem a ver com a sua militância no movimento de moradia, já que ele também participava? Eu queria voltar agora um pouquinho no tempo pra gente começar a conhecer a sua trajetória relacionada ao movimento. Como esta questão apareceu na sua vida?
R – Assim, é, antes de conhecer o Juscelino, eu já participava do movimento de moradia. Antes de participar do movimento de moradia, eu fiz um trabalho com tudo isso que eu trabalhava, isso, aquilo, eu fiz um trabalho voluntário numa casa, que chamava Casa Branca, que a gente trabalhava com os menores infratores do bairro, né? Aí, esta é uma história muito linda também, qualquer dia eu queria contar pra vocês, né? Então, como eu já participava, na igreja, você participa do grupo de jovens, essas coisas todas, só que você estaciona ali, você estaciona. Se você quer uma coisa maior, um conhecimento maior, não que você tenha que sair da igreja, mas você tem que buscar, porque dentro da igreja você não vai ter, né? Aí, eu comecei a participar do movimento de moradia, porque tinha uma Sociedade de Amigos aqui, né, que a gente participava dela. A gente participou dela, tinha vários movimentos e eu me identificava mais com o movimento de moradia. Teve várias ocupações em São Paulo e eu fiz parte de várias ocupações, né? Uma delas é essa aqui onde nós estamos hoje, né? Quando o Juscelino veio, então, eu já participava, por isso que a gente se encontrou. Reuniram vários movimentos, vários encontros, você reunia o pessoal da cidade, o pessoal dos bairros e você discutia mutirão, você discutia como fazer, aí, a gente acabou se encontrando numa dessas reuniões.
P – Mas, lá atrás, antes do Juscelino entrar na história, você acabou de dizer que se identificou mais com a questão da moradia quando você optou seguir essa militância. O que te levou a se identificar mais com o movimento pela moradia?
R – Eu acho que pelo fato, assim, de bem lá atrás... Quando... Lembra que você me perguntou da questão do sonho, da casa, né? Aí, eu pensava assim: “Todo mundo tem direito a ter uma casa, todas as pessoas têm direito a ter uma casa”. Acho que, como eu disse, acho que nada é por acaso, acho que tudo tem um sentido, tudo tem um significado, né? Mesmo naquela época, com esse pensamento, eu não imaginava que eu fosse participar de um movimento de moradia. Mas eu sempre dizia que o sonho é uma casa e todas as pessoas têm que ter uma casa, né? E aí, através dos movimentos, por exemplo, eu me identifiquei mais, por quê? Por isso, por achar, não importa o que a pessoa seja, não importa o que ela tenha, todas as pessoas têm o direito de ter uma casa. E ter casa é muito difícil, comprar casa é muito difícil. Fazer casa é muito difícil. Aí, através dos movimentos, por exemplo, nós tivemos várias ocupações, eu particularmente, né, várias ocupações. Prédio, terreno, por quê? Porque eu achava assim, achava que, achava não, acho, né? Ninguém gosta de ocupar terra, porque vai apanhar da polícia e vai apanhar mesmo, vai apanhar e não vai apanhar pouco. Você ocupa prédio, você vai apanhar, não vai apanhar pouco, mas é uma forma de você abrir negociação. Se você não faz isso, você não abre as negociações, né? E por esse pensamento, eu comecei a participar. Aqui onde nós estamos, desde lá da estação de onde vocês vieram, até lá embaixo, era tudo terreno vazio. Era tudo... 80, 82, era tudo terreno vazio. E era uma chácara, não tinha nada, aí, nós ocupamos aqui. Nós ocupamos, apanhamos do Jânio Quadros, né, a polícia do Jânio Quadros botou a gente pra fora, nós continuamos a fazer as reuniões aqui na sociedade, a sociedade dão duas ruas daqui pra lá, né? Aí, só que nós não abandonamos, falamos: “Não, não vamos abandonar”. E foi uma época que surgiu várias ocupações em São Paulo, né, 85, 86... Tudo quanto é canto saía a questão do movimento. E antes disso, antes da gente ocupar aqui, como eu sempre participei dos movimentos, tinha um Movimento Nacional de Luta por Moradia, que é um movimento nacional, né? Eu fiz parte deste movimento, fui da diretoria deste movimento, né? Então, nós tivemos vários encontros nacionais, Goiânia, Brasília, então a gente ia, assim, eu participava de tudo isso e tinha uma facilidade de participar e fazia os encontros, ajudava a preparar e sempre achando que se as pessoas não participassem, não teria casa. E aí, a gente foi se envolvendo... Esse Movimento Nacional de Luta por Moradia, ele tem até hoje, hoje eu não faço parte da diretoria dele, mas passei por ele. Nós fizemos uma plataforma nacional de habitação, nós entregamos para o Fernando Henrique, essa plataforma para o Brasil inteiro, é muito bonita a plataforma, né? Do direito à moradia, luta pelo direito à moradia. Porque, a questão de moradia, ela não passa só pela questão da casa, mas ela passa também pela questão de urbanização, das pessoas terem escritura da sua casa, né, pela questão urbana. Então, assim, quando lá atrás, quando eu comecei com 17, 18 anos, que eu participava, eu falava assim: “Gente, como é que pode as pessoas, tanta gente trabalha e não consegue ter uma casa”. E aí, dentro da participação, a gente foi buscando. Quando nós ocupamos aqui, que nós apanhamos da polícia, a polícia atirou, e que nós falamos assim: “Nós não vamos desistir”. E pra nossa – vou falar felicidade – pra nossa felicidade, os donos destes terrenos aqui, eram sobrinhos do Paulo Maluf, pra nossa felicidade. Então, assim, nós negociamos, nós tínhamos uma advogada, naquela época, muito legal. O nome dela é Ideli, né? Então, junto com a Ideli, os advogados do Maluf não me recebiam. Ela: “Não tem problema nenhum, porque eu não sou advogada? Vamos atrás do advogado”. A Ideli veio, junto com a gente, então tem uma história aqui muito bonita, das pessoas, das famílias. Tanto é que tem famílias aqui que moram, que ainda são daquela época. Da época que ocupou mesmo. Ocupamos, apanhamos, saímos, viemos de novo, né? Fizemos o desenho da nossa casa, nós desenhamos o projeto; ia ser sobrado, né? Aí tinha um pessoal do outro lado também que precisava de casa; nós tivemos uma briga com a Superintendência da Habitação porque a gente queria tudo pra nós, olha só, né? Aí, a gente acabou optando por fazer os desenhos dos prédios mesmo. Mas, a minha participação no movimento de moradia desde aquela época, eu nunca abandonei, sempre participei. Hoje eu continuo participando, mesmo morando, porque eu acho assim, ó, não é porque eu tenho a casa que eu não tenho que contribuir para que outras pessoas também tenham, né? Eu tenho, se for da possibilidade da minha contribuição para que outras pessoas tenham, eu vou fazer isso. E é com gosto, é uma coisa que eu gosto, que eu quero fazer. Às vezes eu fico até, falo: “Gente, como é que pode?”, porque, assim, o construir não é o difícil, o levantar a parede não é o difícil não, o difícil é o pós-morar, né? Porque as pessoas vão aprender a viver coletivamente, elas vão aprender a conviver com várias pessoas, cada um de um jeito, cada um na sua característica, cada um do seu jeito, cada um com a sua forma de criação e é muito difícil você viver coletivamente, né? E aí, os movimentos de moradia, neste processo, eu fui conselheira de habitação, eu tive 12.880 votos, não agora, na outra que passou, né? E dentro do Conselho Municipal de Habitação, a briga maior pra gente é você trazer fundos financeiros pra que haja mais construção da habitação. Hoje, a história dos mutirões, né, por exemplo, hoje não dá pra se fazer mais mutirão do jeito que nós fizemos aqui porque é um outro mundo, uma outra história. Aqui, até o terceiro ano as famílias levavam tudo no carrinho de mão, nós fizemos no braço mesmo, tudo isso, né? Quanto tempo nós levamos? Hoje aqui ainda tem umas coisas que ainda precisam, por exemplo, em relação à questão da Cohab, nós, por exemplo, ainda não temos aqui a nossa telefonia, que é aquele quadro de telefone pra todo mundo, a questão do bombeiro, a questão do gás encanado. Então, do jeito que nós fizemos aqui, na época que nós começamos, este era o método, né, o método tinha que ser este. Hoje tem outras formas, né? Hoje tem a empreiteira, hoje tem, sabe, que você pega tudo e já sai concretizado, você só faz o acabamento. Aqui não, aqui nós fizemos desde a fundação até o último andar.
P – Maria José, voltando lá no início da sua militância, qual que era o nome do movimento, o primeiro o qual você se afiliou, quando você estava lá na igreja, tal e você quis começar a militar na causa da moradia?
R – O movimento de moradia mesmo.
P – Ah, o movimento de moradia?
R – O movimento de moradia.
P – E qual era o seu papel, era de militante, tinha algum cargo de coordenação?
R – Olha, eu vim como militante mesmo, né? Porque, como a gente participava, então você vem como militante. Militando, participando... Depois disso, as pessoas escolhiam quem era que representaria eles. E nessas escolhas, várias vezes eu fui escolhida. Por exemplo, eu fui escolhida pra ser a representante no movimento nacional de luta por moradia de São Paulo. São Paulo fez a sua reunião, eu participava, tudo e São Paulo “Não, vamos escolher a Maria José para ser a nossa representante nacional”.
P – Mas isso já mais pra frente?
R – É.
P – No começo lá naqueles, você tinha o quê? Uns 17, 18 anos? Ainda tava trabalhando, imagino até, na fábrica têxtil.
R – É, eu trabalhava na costura, trabalhava na...
P – E qual que era o dia-a-dia de militância?
R – Ah, eu participava o dia que eu tava de folga, aí, à noite. Por exemplo, as reuniões à noite e final de semana. Então, final de semana, dia de sábado, domingo, a gente tinha as reuniões uma vez por semana ou a cada 15 dias e à noite. Aqui, por exemplo, a gente se reunia às sextas-feiras à noite. Na Sociedade, a gente se reunia todo mundo e também eu fui escolhida como uma das pessoas para ser coordenadora.
P – E como é que era o nome da sociedade?
R – Sociedade Amigos Vila Mara.
P – E os episódios de ocupação, qual que foi a primeira ocupação que você participou?
R – Deixa eu ver...
P – Ou a que você tenha lembrança mais antiga, assim.
R – Olha, teve essa, teve uma na zona norte, de terra, teve uma de prédio na Mooca, assim, linha de frente, né?
P – Descreve pra gente como que era essa ocupação.
R – Ó, a ocupação de prédio da Mooca, aí, assim, aquilo que eu te falei: se reúnem todos de várias regiões, tem um local na cidade, onde você se encontra, onde você debate e aí, você marca. Por exemplo, estamos aqui conversando, aí, a Isabela fala assim: “Ah, nós estamos discutindo na nossa região de fazer uma ocupação, precisamos de apoio, que não sei o que...”. Aí, então, todos nós que participamos, no dia da ocupação dela, vamos lá ajudar. Então, vamos todo mundo pra lá, ocupar junto com ela, depois a direção lá, o pessoal da coordenação toca, a gente fica juntos nas negociações. De prédio, você entra, a (tirar um espaço a mais aqui) primeira coisa que você tem que fazer é pegar o vigia ou o zelador, né? Porque senão, ela vai chamar a polícia. E você tem que ter pelo menos um tempo pra você poder organizar todo mundo, entrar todo mundo... Depois que entrou, claro, ninguém vai fazer nada com ninguém, com o zelador, com o vigia, não, só pra ele ficar ali, depois ele vai embora e pronto e acabou. Que a gente sabe que a polícia vai vir mesmo. Só que antes da polícia vir, você tem que abrir o canal de negociação; nós ocupamos e fomos abrir o canal de negociação. Esse aí, as famílias hoje estão morando, sabe ali no Peri? Ali perto da Canindé? Não tem uns prédios ali? Que foi construído? Então, aquilo ali é fruto de ocupação, né? Várias pessoas das ocupações, que ocuparam, obrigaram o governo, o município, a prefeitura, a construir, a atender a demanda. Então, ali é um.
P – Mas, esse dia que vocês chegaram lá na Mooca, como é que foi assim? Narra pra gente essa...
R – É, nós chegamos à noite, já estava tudo escuro, um leva a lanterna, o outro já leva a comida, o outro leva a água... E lá, era assim, era uma firma, com várias escadas, aí, um vai seguindo o outro, um vai puxando o outro, aí fica quatro na porta, quatro do movimento na porta, pra não deixar outras pessoas entrarem, aí, você vai de andar em andar e cada andar, assim, as pessoas pegam um pedaço. Por exemplo, nós quatro aqui, né? Então, vamos assim: esse andar aqui, você divide em cinco, seis pedaços. Um pedaço pra mim, um pra você, outro pra ele, outro pra ele, outro pra ele... Porque quando for o dia da negociação, você tem que ter o nome de todo mundo e todo mundo que tá. Então, a primeira noite, é uma noite muito difícil, né, não tem nada, não tem água, não tem nada, tudo escuro. Então, você passa muito medo à noite porque é uma noite muito tensa, a polícia chega, né? Quem vai conversar com a polícia? Tem que ser aquelas pessoas tranquilas, aquelas pessoas que têm cara de sérias, né; eu não sei por que eles achavam que eu tinha cara de séria. Nós sempre estávamos juntos, né? E aí você junta todo mundo, você marca o local para se encontrar, tem que chegar todo mundo de uma vez. Não dá pra chegar aos picados. Então, você chega com todo mundo, na hora você tem que pôr todo mundo pra dentro; nós chegamos, abrimos, estouramos o cadeado, ficou três na porta, põe todo mundo pra dentro, você encosta a porta, aí, você vê as crianças, vê todo mundo e quem vier você já prepara antes.
(Troca de fita)
P – A senhora estava descrevendo essa primeira noite, tal, como que vocês quebraram o cadeado?
R – É, nós quebramos o cadeado, colocamos todo mundo pra dentro, fechamos a porta por dentro, ficaram três pessoas na porta, três do movimento, aí os outros vão orientando as pessoas pra que fiquem, pra que se juntem, pra que não fique ninguém sozinho e que dividam, cada um divide um canto e fica num canto. Quem tem criança leva colchão, leva cobertor, né? Aí, se organiza pra que todo mundo fique pelo menos ajeitado. Então, a primeira noite é isso. Não tem água, não tem nada, a não ser aquelas que a gente... De manhã, você tem que providenciar todas essas coisas, alimentação, aí fica a parte da coordenação, né? Aí, a coordenação tem que providenciar comida, tem que providenciar água pra todo mundo e todo mundo tem que se ajudar. Então, a primeira noite é a mais difícil. Quando você ocupa terra, a questão da terra é assim, ó: é chegar e as pessoas fazerem pelo menos as barracas, aí, fazem as barracas, fazem fogueira à noite, aí, todo mundo já traz as coisas... Acho que vai atrapalhar. (barulho de carro)
P – Vamos aproveitar que tá passando carro e eu vou te pedir... A ocupação por terra, terreno mesmo, foi a que aconteceu aqui onde nós estamos, não foi?
R – Esse aqui e outro na zona norte.
P – Então, eu queria que a senhora contasse pra gente especificamente, como foi a história desta ocupação aqui, as primeiras reuniões, como vocês decidiram, quando vocês chegaram aqui, descreve pra gente esse episódio na sua história de militante.
R – Então, aqui assim, ó, como eu te falei que eu trabalhava, nesta época, surgiu várias ocupações na cidade de São Paulo. Surgiram várias ocupações, na Sul, na Norte, né? Tanto é que tem vários projetos como este. Naquele dia, como surgiu várias ocupações em São Paulo, o pessoal aqui da vila também começou a ocupar aqui. Quando eu cheguei, já tinham várias pessoas e já estavam com o terreno demarcado. Já tinham colocado fitinha, já tinham separado os seus terrenos e aí, né, eu vim junto. Naquela época, eu não tinha demarcado terreno nenhum pra mim. Porque eu morava lá em cima, na padaria, tinha minha casa lá e naquele dia começamos; tinha eu, uma moça que chama Irene, a Irene que mora no Jardim Maia, que participava da Sociedade Amigos. Como eu te disse, a gente sempre participou da Sociedade. A gente participava da Sociedade e a Natalina, aí, nós pegamos e eu falei assim, ó: “Não dá pra deixar o pessoal solto, sem nada”, então nós juntamos o pessoal, já começamos a fazer as reuniões lá, aí, aqui, quando o Jânio derrubou, já tinha três casas praticamente prontinhas, prontinhas mesmo, de alvenaria. Essas reuniões a gente fazia todos os dias. Todo o dia, à noite, a gente vinha; eu vinha à noite, porque eu trabalhava. As meninas que estavam de dia vinham de dia. Conferia para ver se estavam as mesmas pessoas, tomava muito cuidado. Sabe aquela história de vender lugar, de vender terreno? Tomava muito cuidado pra que isso não acontecesse, assim nós fomos ficando. Até que, a gente sabia que ia vir a desapropriação, tudo. O dia que a polícia veio aqui estava lotado e derrubou mesmo. Só que, mesmo antes da polícia vir, a gente se reunia. E depois que a polícia veio e derrubou, a gente continuou se reunindo. “Vamos parar? Não!” “Vamos continuar?”, “Vamos!”, “Vocês topam?”, “Topamos!”, “É luta, não é fácil, vocês topam assim mesmo?”, “Topamos!”, aí foi onde os terrenos eram vazios. Terreno vazio, né? E vamos lutar pra comprar o terreno, a prefeitura comprar. Fizeram as negociações com a prefeitura, a prefeitura comprar, até que chegou uma época que a prefeitura teve que realmente desapropriar. Porque, nas negociações de advogado, a Ideli do nosso lado e o advogado do proprietário, então, qual era a coisa? A coisa é assim, negociar. Eles não queriam o terreno pra mais nada, né? Não queria, então, na realidade eles acharam que: “Opa! Ocuparam, não vamos deixar ocupar”. Tanto é que a prefeitura, os três terrenos são desapropriados para fins sociais de habitação, lá na prefeitura. E nós continuamos, até que a gente pegou, fizemos o projeto, nós fomos na USP, né? Com os urbanistas da USP, aí, os meninos falavam assim pra gente... Era eu, a Natalina e a Isabel que éramos a linha de frente, né? Eles falavam assim: “Três mulheres, nenhuma é arquiteta, nenhuma é engenheira, nenhuma é nada, como é que vocês vão construir a casa de vocês?!”, “Nós vamos, pode ter certeza que nós vamos construir”. E ficavam olhando pra... Aí, muita gente não acreditava. Nós enfrentamos, foi feita a planta da casa, as brigas com a prefeitura... Quando foi tudo aprovado, o convênio, a gente nem acreditava. Mas, isso, ó, luta muito tempo. A gente já participava aqui, quando eu fui morar com o Juscelino. Então, assim, aqui é antes de eu morar com o Juscelino, bem antes. Aí, a gente pegou... Nesta época, como sempre, eu sempre trabalhei fora, né, então, eu ia só final de semana, eu ia à noite. A Luiza Erundina, na época, que teve mudança de prefeito... O Jânio Quadros saiu e a Luiza Erundina foi eleita. Na gestão da Luiza Erundina foi feita a transferência, foi feita a questão dos desenhos, foi feita a questão da compra da terra, assim, da desapropriação da terra e foi feito os projetos. Mas, assim, como eu te disse no começo, aquela organização da ocupação da terra, o que ajudou foi que as pessoas não esmoreceram. Tem um senhor que morava aqui, ele faleceu ano passado, o nome dele era Seu Nelson. O Seu Nelson dizia assim: “A gente naquela terra preta...”, porque aqui era tudo terra preta; ele falava assim: “Eu vou morar na minha casa, porque eu acredito nas meninas”, era eu, a Isabel, a Natalina... Ele falava: “Eu vou morar na minha casa, porque eu acredito nas meninas”. E nesse acreditar, outras pessoas também acreditaram, tanto é que tá aqui hoje. Mas, foi uma luta muito difícil mesmo. Porque, primeiro, todas as verbas vinham da prefeitura, você presta conta e depois que vem. E nós ficamos aqui na gestão do Paulo Maluf oito anos sem receber verba nenhuma, né? Praticamente tudo já começado a construir, o terceiro andar e sem receber verba nenhuma. Tanto é que nós fizemos uma passeata em frente à prefeitura, que era ali no Parque Dom Pedro, junto com o Maluf lá já... Nós fizemos uma passeata lá e tiramos uma verba para poder dar continuidade. Depois, retornou. Mas, essa parada, deteriorou muito o material, deteriorou muito as coisas. Mas, uma coisa assim, que eu tinha te colocado, enquanto as pessoas não estão morando, elas têm uma força muito grande, né? Você tá construindo, você tá organizando, você tá... Aí, é muito mais fácil, por exemplo, do que hoje. Não que hoje seja difícil, não é isso, a questão é, nem todas as pessoas, depois que vão morar, acham que tem que continuar participando, é um direito de cada um, né? Continua participando quem quer, quem gosta, quem tem uma consciência maior. Quem não tem, não vai participar mesmo. Isso fez com que várias pessoas daqui não desanimassem. Não desanimou, né... Esse grupo de pessoas, aqui sempre teve uma diretoria de 12 pessoas e essa diretoria sempre foi, assim, muito firme. O meu papel, era muito de buscar as coisas fora. A Isabel ficava muito aqui dentro, naquele momento tinha que ser assim, e eu era a pessoa que ia buscar a grana fora, né? Não tem grana em São Paulo? Opa, então vamos pra Brasília, vamos brigar com o Fernando Henrique pra que venha verba pra São Paulo e pra que nosso conjunto esteja no meio. Então, eu fiz muito isso. De ir pra Brasília, de tá com o pessoal de São Paulo, tá na listagem, essas coisas todas, as brigas lá, eu saí muito pra fora. Então, eu saí e continuo saindo bastante pra fora, por conta da situação. E o pessoal aqui segurando as coisas, né? Um vai buscar e o outro segura... E aí, o que isso significou? Significou assim, ó: que a questão é coletiva, você dividir as coisas, tem que dividir mesmo, né? Você vai buscar e eu vou ficar. Não é fácil nem pra quem tá e nem pra quem vai buscar. Várias caravanas da moradia de São Paulo, que a gente ia, São Paulo lá na lista, nosso conjunto lá... A verba vinha.
P – Ô Maria José, você falou que quando você chegou no movimento, essa ocupação aqui, então, já existia?
R – Não.
P – Eu queria saber qual foi o seu primeiro contato com a ocupação aqui deste terreno, enquanto era só um terreno. Descreve pra gente como que era aqui. Tinha uns barracos, como era o dia-a-dia desta ocupação aqui?
R – Olha, nos primeiros dias, não tinha nada. Foi só demarcação dos locais, eu ajudava o pessoal a demarcar, depois o pessoal começou a colocar aquelas... De lona, né? De plástico, fazia as barracas de plástico, eu junto também, aí eu já tava na organização. Já tava na organização da construção das casas que foram derrubadas, também já tava... A partir daquele primeiro dia, eu entrei na organização direto, né, daquele dia.
P – Quantas barracas eles fizeram aqui?
R – Olha, casa de alvenaria, que foram derrubadas foram três casas grandes, os outros eram de... Como é que fala? Era... De madeira, de lona, de plástico, era barraca...
P – Muita gente?
R – Tinha muita gente. Porque, assim, hoje aqui onde nós estamos, era um campo, isso aqui era um campo. Então, tinha aqui e tinha aqui. Esse conjunto amarelo também era todinho, era este pedaço inteiro. A rua do meio sempre teve. Mas, era os dois pedaços todinhos. Aí, o dia da desocupação, tinha mais ou menos... Ah, quase umas mil famílias... Quase umas mil famílias.
P – E como era o dia-a-dia no acampamento aqui?
R – Então, o dia-a-dia do acampamento é assim, ó: aqui já tinha várias casas do lado, então tinha solidariedade de muita gente. E como as pessoas moravam por aqui perto, então, isso facilitava. Eram as equipes de vigia, tinha uma equipe de vigia de 24 horas, eu revezava com você, eu ficava um tempo, você também ficava, ele ficava... Nunca deixava sem uma equipe de segurança. Tomava conta à noite, pra que ninguém mexesse nas coisas dos outros, não mexia mesmo, porque a equipe não deixava. Tinha equipe que tomava conta das crianças... Aqui nós fizemos uma creche, né? Depois, quando veio toda a papelada pra gente, que ia ser nosso mesmo, que nós desenhamos, que a gente ia construir, aí, nós fizemos uma creche. Uma creche para as famílias das crianças do pessoal que ia morar, né, dos “mutirantes” que nem a gente dizia. E lá atrás, a gente já dizia, assim, ó: “Na hora que nosso projeto for construído, nós vamos fazer a equipe de creche, nós vamos fazer equipe disso, equipe daquilo”, aí, isso foi surgindo. Lá atrás, quando tava tudo no terreno puro, essas coisas todas, nós tomamos conta do terreno, depois que o terreno foi desocupado, porque a gente não podia deixar outras pessoas ocuparem, porque a gente achava – achava não, é – que o terreno tinha que ser nosso... Toda essa mobilização foi feita, de segurar o terreno, de segurar com o que viesse, com que fosse nosso.
P – Mas, aí, vocês fizeram o acampamento, tinha mais ou menos mil famílias aqui?
R – Mais ou menos.
P – Morando aqui no acampamento, tudo isso aqui...
R – Porque, era inteiro, né? É.
P – Aí, chegaram a construir três casas?
R – Três casas de alvenaria...
P – E brigando nesse meio tempo com o pessoal, com o proprietário aqui...
R – Exatamente.
P – Aí, quando a polícia veio, a polícia veio e desmontou tudo?
R – Desmontou tudo.
P – Como é que... Descreve pra gente essa chegada da polícia, como é que foi esse dia?
R – Chegaram de manhã cedinho, mais ou menos seis horas da manhã, né? Quando eles chegaram, já chegaram com os tratores, porque eles não avisam o dia que vêm. O juiz dá a reintegração de posse, pronto e acabou. Chegaram; isso aqui ficou lotado de polícia, bateu na gente mesmo, não adianta falar que não apanha, porque apanha, mete o cassetete nas famílias; derrubaram as três casas, as outras casas também, vieram várias lideranças de outros lugares. Eu me lembro que veio o Ticão, que você deve conhecer, veio o pessoal da cidade toda, veio pra cá, essa rua ficou lotada. O impacto quando chega é um impacto muito difícil, muito ruim, muito triste. Eles já chegam, não perguntam nada, eles não querem nem saber, já vão colocando os carros pra poderem quebrar as casas. A gente chega no comandante, foi chegado no comandante várias vezes, falando: “Não precisa bater, não precisa...”, mas eles não querem nem saber, batem mesmo, pronto e acabou, né? E esse dia ficou marcado no bairro como um todo. Então, todo mundo falava...
P – Espera só um segundinho, deixa ele... (carro passando) Pronto, pode falar. Esse dia, a senhora...
R – Então, esse dia marcou muito tanto não só pra gente, como pra todo mundo do bairro, porque todo mundo do bairro começou a vir pra cá. E a polícia, ela não quer nem saber, né? Ah, é pra reintegração, vamos reintegrar, não sei o quê... O oficial de justiça junto e derrubou mesmo.
P – Aí, você estava dizendo que foi falar com o comandante?
R – Várias pessoas vão falar com o comandante no caso de não bater nas pessoas, né? “Não precisa disso, não precisa bater, não precisa um monte de coisa.”. Nessas horas eles não ouvem ninguém, eles não querem nem saber, a ordem tem que ser executada e aí, manda bater mesmo. Várias pessoas apanharam, muita gente apanhou, né? Muita gente apanhou.
P – Neste dia vocês acharam que tava tudo perdido?
R – Nós falamos: “E agora?”. Eu me lembro que eu e a Irene...
P – Fala de novo essa parte, só porque eles acabaram atrapalhando.
R – Deixa o carro...
P – Vamos deixar o carro sair.
R – Ó, você está atrapalhando, meu bem, só um minuto, tá?
P – Deixa a gente aproveitar, deixa ele sair.
R – É...
(Pausa)
P – Bom, você tava dizendo que, eu perguntei pra você se esse dia vocês acharam que tava tudo perdido.
R – Aí, assim, eu e a Irene, nós falamos assim: “Nós vamos deixar, sim”. Eu me lembro o seguinte, que a gente, nós duas, “Nós vamos deixar por isso mesmo?”. Aí, nós começamos a falar pras pessoas assim, ó: “Hoje à noite na Sociedade”. Começamos a falar isso pra todo mundo, aí, a noite, nós fomos todo mundo pra Sociedade, né, que é a Sociedade do Vila Mara. Aí nós reunimos as pessoas lá e falamos: “E aí, a gente vai continuar, não vai continuar, como é que...”, aí todas as pessoas diziam do mesmo jeito: “Não, a gente vai continuar” “Vocês vão continuar?” “Vamos!” “Então, o que nós temos que fazer?”. Aí, foi onde entrou a questão do advogado, de ir atrás, do proprietário do terreno pra você poder fazer o processo de negociação de compra, né? Que aí, o advogado não recebia a gente, né? Porque nenhuma de nós era advogada, foi quando a gente foi atrás da Ideli, que era advogada. Daí, a Ideli veio, começou a participar junto com a gente, aí, entrou na questão da negociação. Mas, naquele dia mesmo, assim, um foi falando pro outro, né, “Vamos à noite à Sociedade”. Embora as pessoas, mesmo quem a gente não tinha conseguido avisar, já tinham o costume de estar lá na Sociedade à noite, né? Aí, foi chegando um, foi chegando outro, a gente já tinha mais ou menos várias pessoas que ajudavam a coordenar, que ajudavam a fazer as discussões, o cadastro... Nós tínhamos o cadastro de todo mundo e onde todo mundo morava.
P – Entre o primeiro dia que vocês colocaram a primeira barraca aqui e o dia que vocês conseguiram a posse da terra, a desapropriação, foi quanto tempo?
R – Acho que foi dois anos. 87... Três anos... Três anos.
P – E como foi receber a notícia boa que vocês haviam vencido?
R – Assim, como nós não... Continuamos a participar, tudo... Lembra que eu falei das brigas, do Fernando Henrique, vir verba pra São Paulo, essas coisas todas? E foi colocado nosso conjunto junto? Aí, a gente, naquela época, a secretária de Habitação era a Ermínia Maricato, né? A Ermínia Maricato já conhecia a gente, eu por conta de participar fora, de várias coisas, um monte de coisas, então eu já era conhecida, por muitas “Olha o mutirão da Maria José!”, “Vamos colocar na lista”, né? Aí, no dia da assinatura do convênio, porque nós assinamos um convênio com a Funapes, naquela época. Hoje não tem mais o Funapes; isso tem 19 anos, que a gente assinou lá o convênio com a Funapes. Aí, a partir da assinatura do convênio, que começou a vir as verbas, aí a gente começou a... Fizemos um galpão bem grande, porque todas as noites... Esses três anos, a gente continuou tomando conta, né? O pessoal tomava conta, não deixava ninguém ocupar, porque era nosso e tinha uma turma de vigilantes muito fortes, muito fortes mesmo. Acontecesse o que acontecia, aquela equipe tava ali. Então, tinha equipe 24 horas. Fizemos o barracão, neste barracão, antes de começar a construção, tinha gente o dia inteiro. Tinha o fogão, tinha panela, tinha tudo, porque não podia deixar nenhum momento sem ninguém. Então, se deixasse, o povo ocupava mesmo. Ainda mais que estava em vias de negociação, em vista de construção. Então, esta época, enquanto não começou a fundação, com a prefeitura... Eles contrataram a empresa pra fazer a fundação, porque aqui era tudo pântano, tudo alagado mesmo, eles colocaram, tem uma fundação muito firme aqui embaixo, né? E mesmo assim, a gente tomando conta. Aconteciam as coisas na região, nossa, aqui teve várias tentativas de ocupação. Várias e não foi só uma ou duas, né? Da gente ter que cantar aqui durante a noite, tomando conta, ter que chamar o que tá mais perto pra ir chamar os outros pra você montar um baita batalhão de vigilância, várias vezes, né? Porque, praticamente já era nosso; se alguém ocupasse ia ser muito difícil, então, a gente não podia deixar de jeito nenhum.
P – E quando foi o primeiro buraco que eles fizeram aqui pra fazer a fundação?
R – Ah, mas nós soltamos rojão, meu filho...
P – Conta pra mim como é que foi esse dia?
R – Foi uma coisa muito gostosa e a gente comemorava e um beijava o outro, um abraçava o outro, um chorava, o outro... Sabe? Porque a sensação é assim: “Poxa vida, conseguimos”, né? Então, assim, a sensação, eu não diria uma sensação de alívio, mas tipo assim, é o começo, né... É o começo. E aí, nossa, eu me lembro da primeira noite assim, mesmo quem não tava de plantão vinha pra cá, olhava, ficava aí, sabe, uma coisa muito gostosa, muito bonita, você via o brilho nos olhos das pessoas, né, o brilho! Principalmente daqueles que não acreditavam, principalmente. Mas, assim, teve muitos momentos, né, muitos momentos.
P – Isso foram três anos de negociação e invasão, ocupação, aliás, ocupação, negociação com a prefeitura e depois de três anos conseguiram ter a desapropriação?
R – Isso.
P – Aí, depois demorou um tempo pra começar a construção propriamente...
R – No mesmo mês que a gente assinou o contrato, nós assinamos o contrato com a Secretaria da Habitação, aí, já começou a fundação.
P – Que ano foi isso?
R – Começo de 92.
P – Começo de 92? E aí, todo mundo vinha aqui ver a obra, ficava aqui...
R – Ai! Nossa! Essa é a coisa mais linda! Mais linda. A fundação, a empresa fez, né? A Jaú fez a fundação e nós viemos, depois que ela fez a fundação, aí que nós começamos a levantar, né?
P – Quem que levantou as paredes?
R – Aí foram os mutirantes daqui.
P – Ah, vocês organizaram um mutirão?
R – Um mutirão, nós tínhamos... Ah, eu nem te falei da nossa equipe técnica, né? Da nossa assessoria técnica, né? Então, assim, quando nós sabíamos que a gente ia conseguir, nós formamos uma equipe técnica. Nós tínhamos engenheiro, arquiteto e a nossa era a única que tinha uma assistente social. A gente achava, eu acho até hoje, que na equipe social, na equipe técnica tem que ter o olhar diferenciado, que é o olhar, o outro olhar que não seja só a questão da construção em si. Então, nós tivemos o assistente social. A nossa equipe técnica, né, o Roberval, Ulisses, que era o nosso engenheiro, que tem até hoje, então, eles juntos, faziam todas as coisas, fizeram o projeto, desenharam o projeto, o projeto veio, passou o projeto da elétrica, passou o projeto da hidráulica, passou... E de cada área tinha que ter um profissional. Um profissional da elétrica, um profissional da hidráulica, um profissional... Pra quem for, por exemplo, eu não sei fazer nada, né? Você vai me pôr numa equipe de elétrica? Tem que ter o eletricista que vai me orientar. Então, cada equipe tinha um dos mutirantes que ensinavam os outros. Por isso que eu te falei da equipe da creche. Aí, nós formamos a creche das pessoas, pra mim foi a coisa mais linda que teve, porque as pessoas vinham trabalhar aqui no conjunto e traziam as crianças e nós tínhamos uma equipe, equipe que a gente dava até formação. Que lidar com criança não é pum, joga lá pronto e acabou. Mas, você tem que ter muitas preocupações e tem que ter muita diretriz, né? Então, a nossa assistente social trabalhava toda essa formação com a equipe, que vinha cuidar das crianças. A criança chegava de manhã às sete horas e ia embora às quatro da tarde, todo sábado e todo o domingo. Tinha uma equipe que trabalhava no sábado e uma equipe que trabalhava no domingo. E tinha a equipe da cozinha, que fazia almoço pra todo mundo, isso _____ tem que pedir, todo mundo almoçava aqui. A gente recebia, naquela época, uma alimentação da (Cemabi?), que a Cemabi mandava o arroz, o feijão, aí, a gente comprava as misturas. Comprava a mistura e todo mundo almoçava aqui. Então, sábado e domingo tinha 200 pessoas, tinha 150, que aqui são 296 apartamentos e tinha que ter representante de cada apartamento. Eu não posso, o Juscelino tem que estar. O Juscelino não tá, eu tô. Então, obrigatoriamente tinha que ter um representante, né? Isso aqui sábado e domingo fervia e a equipe de segurança era 24 horas. Então, quem trabalhava na segurança, era da segurança. Quem ia trabalhar a noite, trabalhava a noite, não vinha durante o dia. Então, todas as equipes tinha um coordenador, né?
P – E quanto tempo foi de trabalho do mutirão pra subir tudo isso?
R – Então, nós tivemos oito anos de parada, que nem eu tinha te falado, né?
P – Não, mas antes de parar, então, foram uns três anos lá de luta e conseguiram, a empresa veio e fez a fundação...
R – Aí, nós começamos...
P – Começou o mutirão.
R – Quando a gente tava praticamente no terceiro andar, aí, as famílias assim, ó: teve muitos de nós, assim, as pessoas mais velhas acabaram colocando muito dinheiro do bolso pra poder não deixar, por exemplo, a grade do lado nós colocamos. Ou seja, então, muita coisa a gente não ficou esperando, né? O último andar foi o que nós fizemos com aquele caminhão da Concreto Usinado, né? Que eles trazem o caminhão e colocam. Até o terceiro, nós fizemos no carrinho. Quer ver quanto tempo? A Julia tem 14 anos... Ah, nós demoramos cinco anos.
P – Direto, cinco anos direto de trabalho?
R – Direto, é.
P – Todo o sábado e domingo vinha aqui?
R – Todo sábado e domingo. Pra levantar foi rapidinho, porque assim, o que demora mais é a questão de acabamento. A questão de dentro, da questão da hidráulica, da questão da elétrica, essas coisas demoram mais, né? E tem uma turma que veio morar primeiro pra poder ajudar a tomar conta.
P – Mas, aí, então foram três anos, mais cinco de trabalho, oito anos. Aí, depois quando tava quase terminando, parou.
R – Aí, assim, não veio a verba, não vinha a verba e nós, mesmo assim, a gente não deixou parado. O que se dava pra fazer, a gente foi fazendo, né? Ou seja, parou a verba da prefeitura? Só que a gente acabou, assim, os moradores dando continuidade, o morador não deixando muita coisa, sabe? Por exemplo, o salão comunitário nós fizemos, foram os moradores que fizeram, então, tem muita coisa, assim, que aí, pra não deixar totalmente parado, que a gente foi fazendo com o dinheiro dos moradores. Por exemplo, “Vamos juntar, vamos fazer a cerca”. Comprou a cerca, todo mundo pagou a cerca...
P – E aí, então, quer dizer, quando vocês conseguiram mudar pra cá?
R – Eu vim primeiro, né? Eu vim em 94.
P – Então, você veio antes desta parada de oito anos, na época do Maluf?
R – Eu já vim na parada.
P – Tava começando... Tava...
R – Eu já vim na parada. Porque, aí, assim, ó: lembra que eu falava da questão do pessoal que toma conta pra que o pessoal não ocupasse? Aquele bloco de lá de onde eu moro, era o que estava mais próprio pra eu deixar algumas famílias mudarem. Então, em assembléia, nós decidimos que algumas famílias viriam morar, principalmente pra tomar conta, pra não deixar o povo ocupar, claro que chamava todo mundo que não morava, que era mutirante... Aí, nós viemos nesta época, eu vim em 94. É, 94. Então, vieram 12 famílias em 94 que foram as primeiras, aí, depois a gente foi abrindo pra que as outras pudessem vir. Teve sorteio, né? Então, todas as famílias passaram pelo sorteio.
P – E quando foi a inauguração oficial, que tava prontinho, que todo mundo veio?
R – Olha, aquela inauguração oficial com a prefeitura, nós não fizemos.
P – Não, mas a de vocês, que vocês consideram, assim, quando ficou prontinho?
R – Porque assim, nós não fizemos essa inauguração, nós fizemos assim, aqui entre a gente, vamos morar todo mundo, vamos fazer uma festa de confraternização, vamos fazer, aí, nós fizemos uma festa simples.
P – E quando foi isso?
R – Ah, deixa eu ver a data. Sou ruim de data. Tem, quer ver... Ai, tem uns seis... O senhor veio pra cá, tem seis anos, né? Nós fizemos antes do senhor vir, foi bem antes. Acho que tem uns oito anos.
P – Oito anos? Então, foi lá pro começo de 2000 e pouco? 2002?
R – É, 99...
P – Então, quer dizer, foram mais de 12 anos de luta pra...
R – Nossa, e ainda tem luta, né, porque assim, tem umas coisas ainda da infraestrutura que ainda não vieram e que precisam vir. Uma delas é a telefonia, com relação à questão da Cohab. E a questão do gás encanado, ou seja, você viu que a gente começou a fazer, né? Começou a fazer a questão do bombeiro, questão do gás encanado e que ainda não tá pronto.
P – Como é que é viver nesta comunidade aqui?
R – Olha, viver o coletivo é muito difícil, né, porque assim, eu não diria assim... Tem uma coisa que é muito legal: a questão da solidariedade. Isso tem. Por exemplo, nossa, se um precisar aqui, ó, pode ter certeza que isso aqui vira o maior alvoroço, pra um ajudar o outro. Agora, nós, por exemplo, eu fui criada numa chácara, né, que nem eu tava te falando, em casa. Quando você vem para um apartamento, que você tem que estar com a sua porta fechada, então, você vai aprender a viver coletivamente. E o aprender a conviver é eu te respeitar. Por exemplo, eu vou pôr o som, né, eu vou pôr uma música, eu tenho que pensar que você tá do meu lado e que a música que eu ponho não significa que seja a mesma que você gosta. Por que eu tenho que colocar pra estrondar, né? Então, eu tenho que sabe, me resguardar. Não posso, por exemplo, achar que eu vou chegar aqui e – apesar de que eu já fiz isso – de camisola gritando pra todo mundo, isso e aquilo, né? Não, peraí. Eu vou ofuscar a visão de outras pessoas; na hora da emergência você vem, você nem olha como você tá, né, mas você vem. Então, é você não pensar em si só, é você pensar também no outro. A hora que o seu Leozinho, um exemplo, o seu Leozinho mora em cima da minha casa, a hora que ele vai arrastar as cadeiras lá, então ele vai pensar: “Eu não vou arrastar as cadeiras, porque tem gente em baixo, eu vou levantar a cadeira”. Então, o morar coletivo é você viver em comum e viver em comum, cada um com seu gosto, cada um com seu jeito, cada um... É aprender a lidar com todo mundo.
P – E qual que é o papel que a senhora desempenha hoje aqui?
R – Hoje aqui nós temos uma Associação de Moradores, eu sou presidente da Associação de Moradores. Tem uma diretoria, né, que há dois anos foi feita, porque antigamente era a Associação dos Mutirantes. A partir do momento que não tem mais os mutirantes, as famílias tão morando, não precisa ser mutirante, então, é a Associação de Moradores. Essa Associação de Moradores é uma associação nova, nova assim, de registro, mas o trabalho em si já, como você sabe, vem de antes. E hoje, dentro desta associação, né, teve eleição aqui, tudo, vai vencer o ano que vem, as pessoas vão escolher a nova diretoria, hoje eu faço parte da diretoria.
P – E quais são suas responsabilidades lá dentro da associação?
R – Ai, menino, nem te conto. Porque, assim, tem uma confusão muito grande entre síndico, né, porque, quando é apartamento, quando é conjunto, as pessoas colocam assim, ó: “É o síndico”. Eu falo: “Não, aqui não é o síndico, é presidente da associação. Associação é diferente de síndico”. E você acaba até desempenhando o papel de síndico, porque você acaba resolvendo, buscando, não só a questão da luta fora, mas a questão interna também. Tudo você acaba tendo e aqui a gente criou uma coisa gostosa. Na reunião da diretoria, você discutia as coisas e decidia em diretoria e em assembléia. E isso aqui é uma coisa nova pros moradores, porque até então, é um novo aprendizado. Então, ainda tem muita dificuldade, né, as pessoas acharem que, por exemplo, acharem que você tem que ir à casa do vizinho pra poder pedir pra abaixar o som, né? Peraí. Eu do lado posso fazer isso, a pessoa do lado pode fazer isso, não só a pessoa da direção, não só o presidente de associação. E você acaba de certa forma desempenhando, praticamente, todos os papéis. Tem gente que acha que você tem que conversar com o marido, porque ele tá batendo na mulher, tem gente que acha que você tem que conversar com o filho que não tá obedecendo, tem gente que acha que você, sabe, acaba até, se a gente não tomar cuidado, você acaba partindo para a questão da individualidade das pessoas. E a proposta não é essa. A proposta não é você partir pra individualidade das pessoas, a proposta é: você conseguir trazer, não só pela questão fora, mas pela questão interna, uma melhoria pras pessoas. Melhoria pra todo mundo, por exemplo, aqui hoje, nós ainda não pagamos pra Cohab, nós não temos o carnê de pagamento. E esta é uma luta fora, porque nós não pagamos ainda, as famílias não têm o seu carnê. Com todo esse tempo, com tudo isso, nós não temos ainda. E a minha postura é, não tem que ter enquanto a Cohab, enquanto a responsabilidade do governo municipal não terminar de concluir o que falta. A partir do momento que concluir o que falta, aí sim, mas até então não tem que ter. Não que eu ache que as pessoas não tenham que pagar, né?
(Troca de fita)
P – Tava falando da questão do pagamento, quer dizer, só depois que terminar que a Cohab manda os carnês e cada um paga uma cota mais mensal?
R – Aí cada um paga seu apartamento.
P – Aí, só depois disso que a pessoa tem direito à escritura ou não?
R – É, depois disso. Até então, nós não temos nenhum papel, nada oficial na nossa mão onde cada morador prove que é dono, que ele é o proprietário.
P – E aí, vocês vão começar a receber só daqui a um tempo?
R – É.
P – O carnê pra fazer pagamento?
R – Isso. Até então não. O que nós temos é interno. Por enquanto.
P – Quantas pessoas moram aqui hoje, Maria José?
R – Mil, quase mil... Passa mil. São 296 apartamentos, né, e cada família, aproximadamente, quem tem pouco tem três, assim nessa base. Três filhos, dois filhos, né, essa... Todas as casas. Você tem pouca casa com dois só. A maioria é tudo de três, três pra cima, né?
P – Agora que a senhora já conseguiu a sua casa e mesmo assim, a senhora continua mobilizada, continua militante, como a senhora vê a questão da moradia no Brasil? Qual que a senhora acha que é o grande problema da questão da moradia no Brasil?
R – Pra mim, o grande problema da moradia é que não tem, deveria ter, uma verba específica pra questão da moradia e que se cumprisse aquele 1% que os estados têm – acho que vou precisar de uma água. (pausa) E assim, no Brasil, quando a gente passa por Pernambuco, quando você passa por Minas, por Goiás, ainda tem muito, lá no fundão, a questão do latifundiário, né? E acaba, por exemplo, com todas as dificuldades que tem São Paulo, lá ainda é pior. Porque não se tem no Brasil hoje um programa, tem programa, mas não assim, uma política nacional de habitação. O Nabil Bonduki, que fez uma plataforma, em relação à questão da política nacional de habitação, que ainda tem que ser implementada, né? E essa dificuldade financeira é uma coisa muito grande e por exemplo, aqui em São Paulo, vamos falar de São Paulo, aqui, por exemplo, na capital nós não temos hoje local, por exemplo, pra fazer prédio mais... Então, tem que se criar novas fórmulas. E as novas fórmulas significam mais grana. O sul, por exemplo, o pessoal de movimento de moradia lá no sul, o pessoal coloca também muito a questão da regularização. Os fazendeiros que mandam matar mesmo, né? Nós sabemos mesmo que lá no Belém do Pará o pessoal pega já manda matar, manda atirar, então, tem toda essa dificuldade. Agora, pra mim, a maior parte é mesmo financeira e uma política de habitação, que isso não tem. Acaba criando programas, por exemplo, a Caixa, hoje, criou o programa do PAR [Programa de Arrendamento Residencial] que é aquele programa de assentamento residencial, que as famílias, assim, ó: por exemplo, eu te inscrevo num programa desse. Você tem que ter uma renda, mais ou menos superior a três salários mínimos. E você vai, eu te faço a tua ficha, você pega, você vai... Se você tem várias prestações, por exemplo, você tem a prestação do seu carro e a prestação da sua televisão, você acaba não sendo aprovado. Você acaba ficando de fora. Então, é uma coisa, que é assim, ó: com tudo isso, com todas as lutas, é uma luta que você não pode parar, você tem que continuar mesmo. A questão dos índios, né, questão... Tem muita.
P – Agora, Maria José, no começo da entrevista, você...
(pausa)
R – A gente tava falando do programa do PAR, né?
P – O PAR, isso.
R – Isso, então hoje tem esse programa que você indica as famílias e às vezes as famílias acabam não conseguindo serem beneficiadas. Apesar de que ela vai pagar, que ela... (corte) Aí, as famílias acabam não sendo contempladas, então ela tem que buscar formas, né? Forma de mutirão hoje, que nem eu tinha te falado no começo, de autogestão, que foi o nosso aqui, é muito difícil. As pessoas acabam tendo que ter outras vias. Tem, por exemplo, hoje, o crédito solidário, onde você paga, junta as famílias, compra o terreno, te vende, todo mundo pega, vai dividindo, faz a construção... Mas, com tudo isso, ainda é muito difícil a questão da moradia no Brasil.
P – Maria José, você falou pra mim no começo da entrevista que seu sonho de criança era ter uma cama e um quarto...
R – Ah, Jesus!
P – Agora, você tem a sua casa, depois de muito tempo de luta, né? Qual é o seu sonho agora?
R – O meu sonho hoje? Ai, são tantos! Mas tem um que é assim, ó: por exemplo, é como... Quando, no começo, lembra quando eu falei da questão dos estudos, da questão da... Eu vim estudar muito tarde, não sei o que? Então, assim, um dos meus sonhos hoje ao nível pessoal é os meus filhos, os três, às vezes eu pareço uma pessoa paranóica, né, porque eu acho que eles têm que estudar, porque eu acho que eles têm que ter profissão, acho que eles têm que fazer faculdade, eles têm que... Eles têm que fazer! Não interessa, mas tem que fazer e eu vou me debruçar pra fazer isso, se tiver que trabalhar ‘30 horas por dia’, eu vou trabalhar ‘30 horas por dia’, vai fazer, né? E fica até aquela coisa assim, de repente eu estou querendo fazer neles aquilo que eu queria ter feito, isso é um alívio pessoal. E a nível assim de sociedade, um dos sonhos que eu gostaria é que as pessoas... Hoje eu não tenho essa forma, né? Mas, se eu pudesse fazer com que várias pessoas que já têm a sua casa, que já têm a sua moradia, com que ela pudesse buscar, de alguma forma com que outras pessoas pudessem ter, né, isso pra mim é um sonho. Por exemplo, a Terezinha que gritou. Se eu tivesse uma forma de fazer: “Terezinha, você tem a sua moradia”, vê uma forma - a Terezinha é professora, dá aula - vê uma forma de fazer com que outras pessoas também tenham. Não precisa ser construindo, não precisa ser, sabe, fazendo reuniões, mas uma forma, isso eu gostaria muito, de que eu fosse essa pessoa que pudesse transmitir isso, eu gostaria. Isso é um sonho, que as pessoas vissem na Maria José uma forma assim, eu vejo a Maria José buscando a questão da moradia, então, eu também vou buscar de alguma forma. Mas, é um desejo meu, né? É um sonho.
P – Desejo lindo, né? E Maria José, pra você, o que significa ter uma moradia digna? O que é dizer assim: “Eu tenho uma moradia digna, todo mundo tem direito a ter uma moradia digna”?
R – Pra mim significa você ser gente, né, você ser cidadão, é você... Ah, porque assim, a constituinte fala de muitos direitos e pra mim, eu vejo esta questão não porque a constituinte fala lá que todo cidadão tem direito a ter uma moradia. Eu vejo assim, ó: todas as pessoas trabalham, não importa a forma, todas as pessoas lutam, todas as pessoas têm que ter uma moradia, todo mundo tem que ter a sua casa. Se você tem a sua casa, a sua vida melhora. Porque, se você tem a sua casa, você tem a sua residência, você tem o seu local, você vai ter dignidade. Porque, não existe dignidade se você não tem a sua casa. Na minha opinião, né? Sabe, porque se você tem a sua casa, as outras coisas você vai buscando. Se você não tem, se você paga aluguel, o aluguel é muito caro, 400, 500 reais, você vai dar um dinheiro pra uma pessoa que nunca vai ter volta, uma coisa que nunca vai ser seu e que você pode, por exemplo, investir na questão da educação, né? Por exemplo, meu filho de 18 anos, ele fez, fiz isso e vou fazer, claro, com que ele, ele fez um curso... (pausa) Que nem assim, eu tenho um filho, esse meu filho que fez 18 anos ontem, nós fizemos isso, ele fez um curso de Atendente de Hotelaria, né? Atendente de Hotelaria e Restaurante. Pra mim, eu, como pessoa, é a menina dos olhos, né, puxa vida! Atendente de Hotelaria, se tem um inglês, né, pega uma outra língua, ou inglês ou francês, deslancha na questão da profissão. Ele faz um estágio num cartório, 26º Cartório, aqui na João Mendes, ele tá adorando. O que eu falo pra ele? Eu falo assim, olha: “Você vai escolher, ou a questão do Direito, ou a questão da Hotelaria” “Eu...”, falo pra ele assim, “Eu, como sou atrevida, gosto mais da Hotelaria”, né, porque pra mim, acho que o Direito também tem. Mas, na minha opinião, a Hotelaria é outro campo, é outro ramo, você vai andar por esse Brasil inteiro, você... Olha só! Coisas da Maria José, né? Coisa que eu, né? Então, assim, eu penso muito nesta questão da educação e se a pessoa tem uma casa, ele vai pagar um curso de 400, 500 reais no curso de Hotelaria, se ele for pagar aluguel, ele não vai fazer o curso. Então, ele tem que ter a casa para ele poder manter o curso. Então, pra mim, primeiro lugar é a casa.
P – Essa parte você já conseguiu, né?
R – Consegui, consegui meu cantinho, minha casa, né? E eu gostaria que todas as pessoas conseguissem. Principalmente as pessoas que participam de movimento.
P – Maria José, nós estamos terminando. Eu queria te perguntar o seguinte: o que você achou de contar a sua história aqui pra gente? Esta experiência?
R – O que é que eu achei? Eu achei uma coisa bonita, uma coisa gostosa, né? Que assim, me fez relembrar muitas coisas, me fez pensar um pouco no ser humano, o que nós somos, né? O que nós somos, de onde nós viemos? A questão das raízes. Aí, uma coisa muito mais fácil a gente buscar dos outros, falar dos outros, falar da gente é muito difícil, é muito difícil. Mas, eu acho que a história tem que ser contada, as histórias das pessoas, as histórias de vida, agora é difícil contar a história da gente, né? Ainda mais assim, gravando, colocando, tem muitas coisas que a gente deixa pra trás ainda, tem muitas coisas que até – olha só como eu sou atrevida – tem até outras coisas que a gente poderia fazer de novo, também, né? Mas, é uma coisa diferente, é uma coisa nova, né? Nunca contei a minha história.
P – Então, a gente agradece muito a sua disposição, a sua história de vida, que é muito bonita, a gente agradece o seu tempo e a sua disposição de contá-la pra gente. Tá bom? Foi um prazer.
R – Eu também fiquei muito feliz, e assim, pra mim, eu gostaria de terminar assim dizendo que a cidadania é uma palavra muito bonita, essa palavra cidadania, mas não existe cidadania sem luta, sem a gente ir atrás, né? Porque a cidadania ela vem, mas ela vem através de uma conquista e as conquistas são difíceis, mas a gente tem que continuar conquistando e buscando as conquistas. Obrigada!
P – Parabéns!
R – Obrigada.
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