P/1 - Irani, então primeiro boa tarde, queria te agradecer, queria agradecer você ter aceitado esse convite, a sua disponibilidade para estar aí no Museu para está entrevista e para a gente começar eu queria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, a data e local do seu nascimento.
R - Boa tarde, meu nome é Irani Dias - eu falo Irani Dias, é Irani Aparecida Pereira Dias, mas eu me intitulo mais como Irani Dias - eu nasci em Malacacheta, interior de Minas Gerais, e o dia?
P/1 - Isso.
R - Dia sete de dezembro de 1971.
P/1 - Certo. E Irani, quais os nomes dos seus pais?
R - Geraldo Soares Dias e Alaíde Mendes Pereira.
P/1 - E você sabe contar a história da origem da sua família? Como os seus pais se conheceram…
R - Meus pais eram lavradores. Meu pai vem de uma descendência eu acredito que de quilombolas, não cheguei a estudar, mas pelas coisas que ele contava, que vivia no mato, que comia raiz e fugia para o mato, essas coisas, eu imagino que seja, se não for está muito próximo. A família da minha mãe é de origem mais, eu acredito que portuguesa, porque… Pelos traços, né? Traços mais finos, e tinha muitos portugueses naquela região, que eram os proprietários das terras. E se conheceram na lavoura, as famílias se conheciam. Eu sei muito pouco do passado, minha mãe conta muito pouco. Meu pai fala mais dessa ida dele para o mato, de ficar morando no mato, de comer raiz, essas coisas, caça, mas tenho poucas… Assim, eu lembro de coisas de quando eu era menor para frente, mas do passado deles assim, bem pouco.
P/1 - Mas você sabe dizer se eles eram de Minas ou se em determinado momento eles foram para lá…?
R - Não, eles eram de Minas, nasceram lá, na cidade de Teófilo Otoni, que é bem perto de Malacacheta.
P/1 - Sim. E ambos trabalhavam na agricultura, trabalhando no campo ou tinham atividades diferentes?
R - Não, sempre no campo, na agricultura. Eles plantavam a meia, né? Então eles plantavam a roça e dividia com o dono da terra.
P/1 - E aí eles se casam, as famílias já se conheciam, como eles foram formando a família? Você tem irmãos?
R - Sim, eu sou a sexta filha, nós somos em seis irmãos biológicos, do meu pai e da minha mãe, e tenho mais uma irmã por parte de pai, que é a mais nova. Eles se casaram e vieram tentar a vida em São Paulo, e desde então nunca mais voltaram para lá.
P/1 - Essa mudança para São Paulo acontece depois do seu nascimento, né?
R - Sim, eu vim… Eu vim eu tinha dias quando eu vim com os meus pais para cá. Meu pai conta que eu vim no joelho dele no ônibus, que eu era tão pequenininha que ele me botou no joelho e trouxe.
P/1 - Então Malacacheta não é um lugar do qual você tem referência, né?
R - Não.
P/1 - Qual é a casa, o lugar que você tem referência da sua infância?
R - A primeira que eu lembro é uma casa lá num lugar chamado Parque Belém, não sei se é mais esse nome que se chama lá, mas é na [Avenida Depurado] Cantidio Sampaio, subindo na Brasilândia, quase chegando no Jardim Elisa Maria, um pouco antes, é um lugar onde tem uma pedra gigante que marca a entrada desse lugar. Era uma casa de aluguel e é onde eu me lembro, é a primeira referência que eu lembro de casa. Aí depois foram muitas mudanças, acho que a gente mudou mais de trinta vezes (risos) de casa.
P/1 - É bastante mudança para a gente pensar aqui, mas eu queria te perguntar - você já estava descrevendo um pouco desse lugar - que é ali perto do Jardim Elisa Maria, né? Como que era essa casa que você tem como primeira referência e como que era o bairro? Você descreveu essa pedra grande que tinha - talvez ainda tenha lá - mas como que era a casa e o entorno?
R - A casa era no quintal de uma mulher, dona Nita, e ela tinha várias casas de aluguel, não era bem casa, hoje são casas, mas eram barracões mesmo, mas era um barracão bem construído, com uma estrutura legal, e aqueles de madeira, mas uma madeira bem larga que não se vê mais hoje em dia assim em barracos, eram umas madeiras largas, aí tinha uma fresta de mais ou menos um dedo entre uma e outra. Eu lembro que no frio era bem frio, porque passava o vendo um pouco, e aí a minha mãe colocava uns tecidos para cobrir, mas era um barraco bem feito, forte - não era bem feito porque tinham essas frestas né - mas assim, era daquele tipo de construção. E era eu e meu irmão, o Adelson, que é o irmão que vem depois de mim, e acho que já tinha a minha irmã, a Vanusa, era bem bebezinha, já tinha nessa época. E lá era tudo de barro, não tinha asfalto naquela época, acho que nem na Cantidio Sampaio não tinha, era bem rústico mesmo, era começo de bairro, né? Bairro que estava se formando, então não tinha muita coisa não, e eu era bem pequenininha, nem estudava, nem era a fase de escola ainda.
P/1 - Uhum. E Irani você situou mais ou menos como era a região, nessa configuração quais eram as brincadeiras que você se lembra?
R - Nossa, sabe que eu não me lembro de brincar naquela época, engraçado, mas eu acho que era entre nós irmãos, mesmo, a gente ficava muito preso dentro de casa, meus pais eram muito rígidos, a gente não podia ficar na casa dos vizinhos, então assim, se eles saíam para trabalhar a gente ficava trancado, não me lembro de brincadeiras nessa época não. Eu lembro assim, engraçado, eu lembro das comidas, de comer. Eu lembro de comer, que a gente comia muita farinha com leite, coloca o leite no prato e coloca a farinha e aquilo era praticamente uma refeição, aquilo era meio forte, tipo o pessoal que come cuscuz de manhã, a gente comia farinha com leite. Aí eu lembro de um tio, esses meus tios acho que moravam próximos, eu lembro deles na minha casa, mas eles não moravam na minha casa, mas eu não lembro da casa deles. Eu tinha os tios mais novos da minha mãe, eu lembro da presença deles lá, assim, de vez em quando, mas o resto assim eu não lembro muito. (sem áudio).
P/1 - A gente já vai chegar nessa fase, mas você falou que é a sexta, né? Entre seis irmãos.
R - Isso.
P/1 - E como que era, enfim, seus irmãos, alguns, já eram mais velhos e moraram com você? Como que era isso?
R - Não, eu era a mais velha.
P/1 - Ah, você é a primeira.
R - Eu sou a primeira.
P/1 - Você era a mais velha. Ah, eu tinha entendido a sexta, a última.
R - Não, não, eu sou a primeira, eu sou a mais velha.
P/1 - Entendi. E os seus pais chegam aqui em São Paulo, eles saíram do campo, do trabalho no campo e aí quais trabalhos eles vão exercer chegando aqui em São Paulo?
R - A minha mãe, quando vem para São Paulo ela passa a ser só do lar, um bom período ela fica só cuidando da gente, até porque ela teve seis filhos, um atrás do outro, então não dava tempo para trabalhar, e meu pai, nessa época, ele era bem ignorante assim, mulher não trabalhava fora, então a minha mãe ficava em casa cuidando da gente. Meu pai saía, cavava poço, era uma época que não tinha água, então muita gente pagava para cavar poço em São Paulo, aí ele começou cavando poço, aí ele trabalhou como ajudante de pedreiro, depois ele trabalhou no ramo de telefonia e de eletricidade, muito tempo, ele trabalhou na empresa chamada Tepal e na Embratel, na Telesp, trabalhou nessas empresas. O cabeamento telefônico de São Paulo meu pai conhece todinho, que foi quando a Telesp passou a… Que era a Companhia de Telefone de São Paulo, ele trabalhava passando os cabos da Telesp para a Telefonia. Porque quando começou a fibra ótica ele passou as primeiras na cidade de Limeira, Rio Claro, esses lugares, e ele contava muito. Eu lembro muito dessa época porque eles trabalhavam com fio e tinha um fio colorido bem fininho que sobrava, aí ele pegava as sobras de fio e transformava em arte, então eles faziam umas arvorezinhas, que eu não sei como ele conseguia enrolar aquele negócio, deixar bem redondinho e bem miudinho, ele fazia umas arvorezinhas, vendia, dava de presente, fazia umas pulseirinhas para gente, então eu lembro mais por conta disso, fazia arvorezinha de Natal com as sobras dos fios no almoço dele, para passar o tempo.
P/1 - E Irani, tinha algum momento de reunião de família que era um momento em que todo mundo se encontrava, às vezes também vinha outros parentes…?
R - Sim, assim, essa reunião de família era um pouco rara, nesse comecinho assim, quando eu era muito pequena. A minha vó vinha em casa, às vezes a gente ia na casa dela, mas não chegava a ser uma reunião assim, a gente ia lá, não lembro de muita gente, eram poucos, e depois quando eu cresci um pouquinho mais eu lembro de no domingo… Domingo era dia de comprar a galinha viva e meu pai matava, fazia o almoço, aí estava todo mundo junto, mas isso acho que uns quatro para cinco anos, que é nessa época.
P/1 - E eu ia te perguntar se nesse momento você já tinha um sonho do que você queria ser quando crescesse.
R - Eu tinha, eu queria ser médica ou policial.
P/1 - E porque?
R - Ah, porque eu gostava dessa área de salvar vidas, sempre gostei de ver cirurgia, essas coisas, então acho que era mais isso, mais o salvar.
P/1 - Uhum. E você falou que quando você entra na escola aí você tem lembranças mais vivas, né? Você lembra a primeira escola que você foi?
R - Lembro. A minha primeira escola era uma escola de lata, era uma espécie de containers que eram feitos, foi no Jardim Vista Alegre, nessa época a gente já morava no Jardim Vista Alegre e era uma escola de lata numa baixada assim, - hoje ainda existe, a Escola João Amos Comenius, ela fica no pé de uma espécie de uma mata, uma serra - e era um lugar que alagava, naquela época, quando chovia era bem sofrido, aí depois construíram a escola que tem hoje, que é o prédio de três andares, mas a maior parte do tempo, até a quarta série foi nessa escola de lata. E eu me lembro bem dela porque tinham os meus professores, que eu gostava muito, a professora Angélica, que era muito brava, e o professor Diogo.
P/1 - A lembrança desses dois professores eram pelo fato deles serem rigorosos ou por outros motivos também?
R - Acho que era pelo fato deles serem rigorosos. A professora Angélica teve um fato que talvez isso faça eu lembrar dela, mas assim as escolas promoviam passeios para levar as crianças, mas eram pagos, né? Eu não sabia que era pago, criança não entende isso, e aí teve o passeio da escola, eu trouxe o papel para minha mãe e meu pai assinarem, eles assinaram, mas eles não pagaram o passeio e aí quando o ônibus chegou que eu fui, eu não podia entrar porque eles não tinham pago e eu não sabia que tinha que ser pago, não tinha feito essa conexão, e aí ela não deixou eu entrar no ônibus, eu nunca vou esquecer isso (risos). Aí hoje em dia meus filhos vão em todos os passeios, porque foi meio traumatizante.
P/1 - É, eu imagino. E aí você já tinha mudado de bairro, pelo que você fala, aí você morava perto da escola? Você ia a pé para a escola nessa época?
R - Era perto, eu morava subindo a rua da escola, era perto. Meu pai já tinha comprado o nosso terreno, já tinha construído, a gente já morava no terreno que era nosso. No futuro a gente ia perder, vendeu, e a gente ficou sem casa, que é o que me leva para a luta da moradia, que depois a gente fala...
P/1 - Não vamos deixar de passar por esse tema. Você tinha me falado antes que você lembra de brincadeiras nessa época de escola, né?
R - Nossa, eu brinquei muito nessa época.
P/1 - E quais eram as brincadeiras que você gostava?
R - Olha, na minha rua tinha mais menino do que menina, tinha a Márcia… Era a Márcia e a Andréa, eram duas amigas de infância, era nós três de menina e o resto uns quinze, vinte moloques na rua, então as brincadeiras eram muito de carrinho de rolimã, pipa - apesar que eles não deixavam a gente empinar pipa com eles. A Márcia era a mais nova de oito irmãos e aí os irmãos dela não deixavam a gente empinar pipa com eles, mas a gente tentava, mas a gente brincou de mãe da rua, que eram as brincadeiras que tinha o maior número de crianças eram essas, carrinho de rolimã, de… Carrinho de rolimã foi mais na época de quando colocaram asfalto, mas a gente brincava de casinha e aí a nossa casinha era pegar latinha de extrato de tomate, de sardinha no lixão - tinha um lixão lá perto que a gente ia garimpar brinquedos lá - e os nossos brinquedos eram esses, potinho de manteiga que jogou no lixo, a lata de Nescau - acho que nem tinha Nescau - mas eram latas, coisas que o pessoal usava de comida e descartavam no lixo e a gente pegava e brincava com aquilo, cortava a mão, não sei como não dava tétano (risos). Brinquedos assim… A gente ia uma vez por ano só, que não durava nada, porque era o brinquedo que o sindicato dava para os filhos do pessoal que trabalhava na empresa, que o meu pai trabalhava, eles tinham um sindicato da categoria, e aí no Natal eles levavam os filhos dos funcionários para ganhar um brinquedo e eu lembro que eram aquelas bonecas que arrancavam os braços, eram bem fajutas, vinham num saquinho plástico, todas eram iguais e era isso, mas duravam poucos dias.
P/1 - Aquelas bonecas de cabelo loiro, né?
R - Não, não tinha nem cabelo, o cabelo era colado na cabeça, era desenhado, era aquelas de plástico bem fajutas mesmo. Depois vieram as loiras de cabelo… Que também a gente acaba com os cabelos, tacava esmalte na cabeça das bonecas, destruía tudo.
P/1 - Aham. Você falou que a sua mãe teve os seus seis irmãos num período muito curto, né? Nessa época os seus seis irmãos já tinham nascido? E como você ajudava? Se você participava dos cuidados, sendo que você era a filha mais velha…
R - A maioria já tinha nascido, só os dois mais novos ainda não, mas três já tinham nascido, e eu que cuidava, também, mesmo a minha mãe não trabalhando fora ainda nessa época eu cuidava. A gente era responsável para cuidar… O filho mais velho cuidava dos outros, mas eu achava muito injusto isso, porque uma vez o meu irmão pegou uma caixinha de palito de fósforo, eu peguei e deixou próximo do berço dele, eu não tinha visto, e ele pegou e colocou na boca, nossa, eu levei uma surra por causa daquilo, porque falou: “Ah, o menino podia morrer, não sei o quê”, mas a responsabilidade nem era minha (risos). Hoje eu consigo fazer essa avaliação, mas na época eu achei tão injusto aquilo, falei: “Gente…”, porque não foi por mal, nem imagina que fósforo poderia matar, por na boca, acho que nem mata, mas a gente cuidava uns dos outros. Eu me lembro uma vez que eu quebrei o braço da minha irmã porque ela era muito chata e eu tinha essa minha amiga Márcia que era da minha idade, e a minha irmã era mais novinha e ela queria ficar se metendo nas nossas brincadeiras, então ela não deixava a gente brincar de nada, ela dava trabalho e… Não foi nem eu, na verdade, foi a Márcia, mas quem pagou o pato foi eu, que eu deveria ter visto, mas eu não tinha a noção dessas coisas, sabe? Do perigo. Aí tinha aqueles carrinhos de pedreiro que a roda dele era de ferro e tinham vários ferrinhos assim, aí ela pegou o braço da minha irmã, foi enfiando no coiso e rodou e aí quebrou o braço da minha irmã. Nossa, aquele dia também foi cruel. E a gente apanhava - na minha família, nas outras crianças eu não lembro - mas o meu pai batia na gente com mangueira de água dobrada, então era terrível. As veias das minhas pernas, quando eu era criança, era tudo estourada, porque ele batia nas pernas, batia da bunda para baixo, mas ele acabava com as pernas da gente também, e ele batia muito, não era assim… Ele batia pouco na quantidade, mas quando ele batia, ele batia muito. Mas não tenho nenhum trauma quanto a isso dele não, acho que a gente era levado da breca mesmo, não precisava tanto, mas ele sofreu muito também na infância dele, ele apanhou muito também. Ele fugia para o mato porque a mãe dele judiava muito dele, então ele preferia viver no mato. Mas não guardo raiva, nada assim.
P/1 - E tinha momentos em que... Você falou desse momento da sua irmã se intrometendo em uma brincadeira sua e de sua amiga, mas tinha momentos em que você e seus irmãos brincavam?
R - A maioria das vezes a gente brincava sempre juntos. Quando a minha irma nasceu, que ele era um pouquinho mais novinha aí dava um pouquinho de trabalho porque eu tinha meio que a responsabilidade de cuidar dela, de olhar, acho que era mais esses atritinhos, mas as brincadeiras sempre juntos, sempre todo mundo junto.
P/1 - E você falou da sua primeira escola, ali no Vista Alegre, depois dessa escola, que era, na época, uma escola de lata, acho que depois virou uma escola, enfim, a construção dela… Esqueci a palavra. Alvenaria, era essa palavra que eu estava tentando lembrar. Depois como você foi seguindo os seus estudos?
R - Então, aí eu estudei do quinto ano até o sexto nessa escola, nessa época o meu pai já tinha construído a nossa casa, a gente já morava numa casa de alvenaria também, a gente já tinha melhorado de vida, meu pai tinha um carro, que era um fusquinha azul, e ele tinha um bar um pouco para frente, na mesma rua que a gente morava, mas um pouco para frente, assim, bem para frente numa curva, e a gente estava numa época muito, acho que era 83 ou 84, que tinha muito assalta nas periferias da cidade de São Paulo, era uma coisa assim, terrível, porque toda semana o bar dele era assaltado, assim os caras já vinham buscar o dinheiro da semana, e aí levava a chave, jogava a chave fora, aí ele tinha que dormir no bar até de manhã para procurar um chaveiro, era assim, levava mercadoria, levava o dinheiro do caixa, e o meu pai foi desgostando da cidade de São Paulo e ele resolveu ir embora, aí nessa época a gente mudou, nós fomos para o interior, para casa da tia, cidade do meu tio, perto de Registro, indo para direção a Registro, Cananeia, direção ao Paraná, fica mias próximo do Paraná do que aqui de São Paulo, eu acho, e a gente foi morar um tempo lá, também não deu certo, aí o meu pai vendeu o bar, vendeu a casa, vendeu tudo para ir para lá. Nisso, um pouquinho antes da gente ir, ele tinha vendido a casa e levou a gente para lá, levou as coisas do bar para lá, ele vendou só o ponto, levou todas as coisas do bar para lá para ver se começava uma vendinha lá, mas cidade muito pequena do interior já tem as vendas, você não consegue crescer muito, e lá era muito afastado da cidade, e a gente foi para lá e não deu certo, a gente teve que voltar depois para São Paulo. E nisso que a gente voltou para São Paulo e meu pai tinha que transferir, tinha que fazer uma coisa no cartório pro cara que ele vendeu o bar, e aí esse cara morava num lugar chamado Jardim Elisa Maria e a gente morava no Vista Alegre, são dois bairros vizinhos, e um dia o meu pai me pegou na escola, eu tinha tido a Educação Física a tarde - eu estudava a tarde e aí emendava com a Educação Física - era tipo seis, sete horas da noite mais ou menos, meu pai me pegou na escola, era muito frio, era uma época muito fria, a gente usava aquilo que a gente chamava de “jaco”, que eram umas jaquetas de nylon e a gente estava no carro, nesse fusca, e o meu pai falou assim: “Ah, eu preciso ir no Marsilone, você sabe onde ele mora?”, eu falei: “Eu sei mais ou menos” - sabia mais ou menos em que quadra o cara morava, que tinha umas casinhas lá no Elisa Maria - e eu fui com o meu pai para procurar esse cara para eles irem no cartório transferir a venda do bar pro cara, do ponto do bar. Nisso a gente foi pedir uma informação para um… Tinha um casal sentado na calçada, o cara estava com a perna engessada, com a muleta do lado e com a moça do lado, quando a gente parou o carro em frente a eles e eu abri o vidro para pedir informação, ele já sacou a arma e começou a atirar no carro do meu pai, aí eu tomei um tiro no joelho - era uma criança, não entendia nada daquilo - e meu pai quase infartou, quase morreu, porque assim: atirou no carro do meu pai e todo mundo entrou para dentro, fecharam as portas e aí não saí mais, e aí nisso o meu pai avançou com o carro, porque quando ele viu que eu estava ferida ele começou a passar mal e bateu com o carro num barranco e ficou lá um tempão até alguém ter coragem de alguém ir lá ver o que estava acontecendo e socorrer, e aí a gente mudou de novo - por isso eu te falei que a gente mudou muito - aí a gente mudou de novo, nessa época a gente tava morando nas casinhas, só que era na parte de cima, e isso aconteceu lá embaixo, lá perto da escola, do posto de saúde; e a gente foi embora de novo, aí a gente foi para Goiás, aí moramos em Goiás um bom tempo, lá a gente se desenvolveu bem. Meu pai foi para lá para construir um frigorífero, um empresário do ramo frigorífico aqui de São Paulo ganhou um direito de construir num matadouro que tinha já na cidade, tinha um matadouro municipal que não… O pessoal ia lá e matava os animais lá, mas não tinha nada de higiene, não tinha as condições corretas e aí o prefeito da cidade cedeu o espaço para esse empresário de São Paulo em troca dele construir um frigorífico lá e dar emprego para a população da cidade e aí o meu pai foi encarregado de construir esse frigorífico, que era do seu Andrea Bofa, aí o meu pai construiu esse frigorífico lá, treinou os funcionários, ensinou, também aprendeu junto lá, porque nunca tinha construído frigorífico. Ele sabia da parte estrutural de pedreiro, ele construiu, mas a parte de treinamento do pessoal ele foi aprendendo com os engenheiros que foram daqui de São Paulo para lá e que ficava pouco tempo lá, passava para ele o que era para ensinar e ensinou todo mundo. Aí eu tenho boas lembranças de lá, de Goiás, foi um período bom para gente até a gente perder tudo de novo, porque lá é a segunda… A primeira renda que a gente tinha era do frigorífico mesmo, a gente morava dentro do frigorífico, era uma espécie de uma chácara, um terreno muito grande, e a segunda renda, que o meu pai resolveu investir na agricultura, plantar arroz e quando ele plantou arroz foi uma época que deu uma descontrolada no tempo e aí a gente perdeu toda a lavoura e aí ele tinha feito empréstimo no banco _______ e aí a gente perdeu tudo, aí saímos de lá sem nada de novo, voltamos para São Paulo, aí não saímos mais daqui. Nisso eu já estava grande, já tinha quinze anos, quando a gente volta para São Paulo, fui trabalhar em casa de família, eu conheci uma mulher lá de Goiás, era cidade de Buriti Alegre - uma cidade muito boa para morar, tem represa, é bem bacana lá, perto de Caldas Novas - e aí uma mulher que eu trabalhei lá… Na verdade o meu primeiro emprego foi com doze anos lá, a gente ficou lá três anos, com doze anos o meu primeiro emprego lá foi para cuidar de uma filha de um gerente de banco da cidade e eu era bem pequena e a menina tinha um probleminha e então eu lembro assim, lembro pouco dessa época, desse trabalho, mas eu lembro assim que era bem humilhante, tanto para mim quanto para própria menina, porque assim eu fui contratada para dar um jeito nela, para cuidar dela, a família também não tinha muito relação com ela não, não lembro assim. Aí depois desse primeiro emprego… Aí um dia ele chegou, aí me demitiram, eu nem lembro porque, e aí eu fui trabalhar num hotel e restaurante, era um bar que servia comida e tinha… Chama hotel, mas era tipo pousada, era bem familiar, tinha os quartos dentro da… A dona morava lá, dona Eudóci, e aí quando a gente volta de Goiás para São Paulo eu fui trabalhar na casa da sobrinha dela, quando a gente estava voltando para São Paulo ele recomendou, ela falou: “Olha, eu tenho uma sobrinha que mora lá em São Paulo, vai lá, fala com ela, e aí ela dá emprego para vocês”, mas eu nem procurei, na época, porque o meu pai não queria que eu trabalhasse, queria que eu estudasse, foi um custo para ele deixar eu trabalhar lá e tudo, mas aí ele falava: “__________”, não levava muito a sério que era um trabalho assim, e quando a gente volta para São Paulo ele queria que eu estudasse, e eu sempre gostei de estudar, de todos os meus irmãos a única que tem formação superior fui eu, e fui a que menos tive oportunidade assim, se por na balança, meus irmãos não, quando eles nasceram já estava mais fácil para estudar, mas na minha época não, era muito difícil, era muito sacrificado, mas eu gostava muito, então meu pai, porque ele não teve estudo, minha mãe também, então eles incentivavam a gente para estudar, mas incentivava assim no sentido de “tem que estudar”, mas apenas isso, mais nada. E nessa época que a gente voltou, a gente voltou a morar de aluguel, Vista Alegre de novo, no mesmo bairro que a gente tinha tido a casa, nesse intervalo um amigo dele ganhou uma bolsa de estudos de Processamento de Dados do Datacenter - que era uma enganação igual até hoje, você acha que você ganhou uma bolsa, mas na verdade você tem que pagar tudo - mas aí ele ficou muito feliz por causa da linha telefônica dele e ele passou para o meu pai, falou: “Olha, se a sua filha quiser estudar, dá para ela”, aí indicou, aí eu fui lá com a minha mãe, aí entramos numa dívida danada, comecei a estudar lá na Datacenter, mas ficava muito longe para a minha mãe ficar me levando, porque era lá no centro, lá na República. Aí minha mãe falou: “Precisa estudar, mas precisa trabalhar também”, aí foi quando o meu pai concordou de trabalhar e a gente procurou a sobrinha dessa mulher aqui em São Paulo, que era a Helenita Macedo, ela trabalhava na… Ela era Marchand, tinha uma galeria de artes na Alameda Itu e morava na [Alameda] Ministro Rocha Azevedo, aí eu fui morar com ela na casa dela para poder estudar, só que assim, quando eu fui para casa dela, a ideia dela não era que eu estudasse, a ideia era dos meus pais, mas a ideia dela era que eu ficasse 24 horas lá, trabalhando, aí ela me contrata, aí a minha mãe falou… Era tipo como se fosse um quarto do salário hoje, eu lembro que era bem pouquinho o salário, e aí era para dormir no emprego, era para morar lá com ela, aí a minha mãe falou: “Olha, o pai dela só vai deixar se ela continuar estudando, se não ele não vai deixar não”, aí ela falou: “Não, tudo bem, a gente vê escola”, e aí quando ela viu que a minha mãe não ia deixar eu ficar lá sem estudar aí ela colocou eu e minha mãe dentro do carro e fomos procurar escola, só que escola na Ministro Rocha Azevedo - não sei se você conhece a região da Paulista, para pobre, não tem - tinha o [Escola Estadual] Rodrigues Alves que era super disputado e já tinha uma lista de espera gigante, aí nisso que ela voltou com a gente de carro, ela foi passando pelo bairro, ela passou na frente do Colégio São Luís, na [Rua] Haddock Lobo, aí eu falei: “Olha uma escola aqui”, aí ela olhou para mim e falou tipo: “Meu, você acha que você vai estudar aí?!”, foi muito engraçado essa cena, porque assim, nossa, ali ela me desafiou, ela falou tipo: “Meu, você acha que você vai estudar aí? Nem minhas filhas estudam aí”, ela falou: “Não, esse colégio aí é pago, é muito caro, nem minhas filhas estudam aí”, aí eu falei: “Ah, tá bom”, aí ela falou: “Olha, a gente foi lá - a gente tinha ido no [Escola Estadual] Rodrigues Alves, botado o nome na lista, tinha mais de mil na minha frente, então a chance deu estudar naquele ano era praticamente zero, aí minha mãe foi embora, me deixou lá, foi embora chateada que não tinha conseguido a vaga e eu falei: “Não mãe, depois eu vou procurar”, e aí ela assim, levantava às seis da manhã para fazer café da manhã, botar as crianças para ir para escola, arrumava o apartamento, era um apartamento gigante, eram quatro quartos, duas salas, era gigante, e era eu e uma outra moça, a Divina. Divina era a cozinheira dela que veio de Goiás com ela, e a Divina cozinhava e lavava e eu arruma a casa e ajudava com as crianças, e como eu era bem esperta aí ela me contratou também para ajudar a levar a Melissa no ballet, Melissa fazia no Magda Tagliaferro, aqui em Pinheiros, eu acho, e eu levava a Melissa no ballet, que é a filha mais velha dela, que hoje é médica, então eu não tinha muito a oportunidade de sair, porque era muito trabalho, a gente ia dormir quase onze, meia-noite, todo dia, mas aí eu aproveitava quando ela saia de casa para dar umas andadas, e eu que ia ao mercado também, ela deixava o dinheiro para eu ir ao mercado comprar as coisas, coisinha que faltava, e nessas, eu me lembro que tava no final do ano, aí ela saiu e eu falei: “Ah, é a minha oportunidade de procurar escola”, aí eu fui lá no São Luís, eu falei para menina que eu estava indo no mercado, lá no Sé, aí eu peguei e fui lá no São Luís, bati lá, aí eu cheguei e falei: “Moça, como que faz para estudar nessa escola?”, aí ela falou: “Ó, aqui é pago, vai lá na secretaria”, aí eu falei: “Mas não tem como pobre estudar nessa escola?”, eu fiquei debatendo com a mulher da secretaria, aí ela falou: “Olha, vai lá na sala do Padre _____, que ele vai conversar com você”. O Padre Quevedo tava naquela época também no São Luís. Aí eu fui lá na sala do reitor, perguntei para ele, falei: “Olha moço, eu queria estudar”, aí eu contei a minha história para ele, ele falou: “Olha, vem aqui quarta-feira a noite, faz uma prova que se você for bem na prova eu vou te dar bolsa e você vai conseguir estudar aqui”, porque o noturno lá eram bolsistas. Aí eu fui, dei sorte que no dia ela saiu de casa e eu consegui fugir de novo, fui lá, fiz a prova rapidinho, fui bem na prova, aí ganhei a bolsa de quase 100%, e aí eu não contei nada para ninguém, isso era tipo novembro, dezembro, não contei nada para ninguém, fiz a matrícula, levei tudo, fiz tudo direitinho. Quando começou o ano, que iam começar as aulas ai eu comprei o caderno, aí no dia que ia começar as aulas ela estava saindo para galeria, falei: “Tia Helenita - porque a gente chamava de tia - tia Helenita, minhas aulas começam hoje e eu vou ajudar no jantar cedo para eu ir para a aula, vou estudar a noite”, aí ela: “Mas onde você conseguiu aula?”, eu falei: “Lá no São Luís” (risos), então assim, eu tenho um… Eu gosto de ser desafiada, quando você fala que eu não consigo uma coisa, aí eu vou lá e consigo mesmo, sabe? Ela ficou de boca aberta, falou: “Nossa, você conseguiu entrar no São Luís?”, eu falei: “É, eu fui uma das melhores notas, consegui bolsa quase 100%”, aí ela ficou feliz, aí ficava se exibindo para os amigos dela: “Olha, ela entrou no São Luís, quem trabalho comigo se dá bem, não sei o quê”. Eram umas coisas assim, sabe? De contar vantagens pros amigos. E ela apresentava a gente como dela, como se fosse propriedade dela. A gente tinha altos jantares lá, a Divina cozinhava maravilhosamente bem, eu ajudava e tudo, então tinha um momento do jantar - se eram pessoas mais íntimas - ela mandava chamar a gente na cozinha: “Olha, essas daqui são minhas”, como se fosse uma propriedade. Era engraçado, mas era a maneira… Da parte dela era a maneira que ela achava que estava sendo um carinho dizer que a gente era dela. Eu lembro dessa época assim, de quando eu fui para lá. Aí eu fiz Processamento de Dados no São Luís. Estudei com a Maria Fernanda Cândido, quando ela começou a ser atriz ela foi estudar um tempo no noturno. É isso. Bem longa essa história.
P/1 - Não, mas foi ótimo. E eu ia perguntar, isso daí, na verdade, é quando você está entrando no que seria o Segundo Grau, hoje é o Ensino Médio, você fez o Técnico em Processamento de Dados?
R - Isso, é isso.
P/1 - Eu quero voltar nesse ponto, e aí eu queria te perguntar sobre como foi estudar no São Luís, mas antes disso - se você me permite - eu quero dar uma voltada, porque parece que no intervalo ali de quatro, cinco anos, aconteceu muita coisa na sua vida, né? E muitas mudanças também. Você falou para a ida à Cajati, né? Aí o seu pai tentou monta um bar lá, não deu certo e ele volta para São Paulo, volta para a mesma região ali do Elisa Maria e do Vista Alegre, e aí você falou que nesse período de volta teve esse episódio que o carro de vocês, teve essa tentativa de assalto e você tomou um tiro, e você falou que nesse momento você não percebeu, demorou para entender o que estava acontecendo, né? Mas você consegue lembrar como foi tudo isso, enfim, você falou da batida do carro, do desespero do seu pai, mas como você estava passando ali naquele momento e como foi, depois, a experiência de recuperação?
R - Então, o cara que estava na calçada, na verdade, ele era um traficante procurado pela polícia, ele tinha fugido da cadeia, tinha trocado tiros, estava até com a perna engessada, ele achou que o carro do meu pai era investigador, ele achou que a gente era da polícia, mas assim, sem noção, eu era uma criança, é por causa que a gente estava muito encapotado por causa do frio, então a gente colocou… Estava de jaqueta, o capuz e tudo, então ele achou assim, o cara estava assustado já, procurado, aí ele achou que a gente era da polícia, e aí ele atirou no carro, nisso quando socorreram a gente eu demorei para perceber que eu estava ferida, o tiro foi no joelho, na verdade ele bateu na porta e a sorte é que naquela época os carros eram… Não eram essa latinha que são hoje, os carros eram bem fortes, era um fusca, então a bala estourou na porta e na hora que ela saiu, ela estourou a lata e me feriu, até hoje eu não fiz mais raio-X, eu não lembro nem se já saiu, se tirou a bala na época, eu acho que sim, e demorei para perceber. Eu estava de calça branca, só quando o meu pai foi me abaixar que ele botou a mão, que ele viu um molhado, e ele viu que estava sangrando, foi quando ele começou a passar mal. Aí tiraram a gente de dentro do carro, socorreram. Nisso, quando a gente volta, na mesma semana, aí o meu pai endoidou para mudar de lá, ficou com medo do cara e colocou… Eu me lembro, dessa parte, essas casas do Elisa Maria eram todas casas invadidas também, eram uma… Quando a COHAB fez, construiu, não deu tempo dela chamar, o povo já invadiu as casas, entrou para dentro, aí eles tiveram que ir lá regularizar todo mundo, e a gente tinha conseguido uma casinha para gente assim também, tinha entrado, aí eles vieram, regularizaram, viram que eles estavam na fila e regularizou, aí o meu pai vendeu de novo lá a qualquer preço, a troco de banana, como diz minha mãe, e a gente estava mudando, no dia que a gente estava mudando no caminhão, a menina que estava com o cara passou e ficou dando risada assim, não sei se ela lembrou, se tinha alguma coisa a ver, mas eu lembro que a gente estava em cima, a gente botou as mudanças no caminhão, as pressas, eu estava em cima do caminhão e ela passou, e ali o meu pai teve certeza que tinha que mudar de lá mesmo, porque era um lugar terrível o Elisa Maria, ainda é, né? Aí a gente mudou de volta lá para o Vista Alegre e logo depois foi a época que eu fui trabalhar lá.
P/1 - Uhum. E nesse tempo também tem a ida para Goiás, né? Foi na sequência. Eu ia te perguntar, como era para você ali, nessa transição da infância para a adolescência, se ver mudando, conhecendo tantos lugares diferentes.
R - Foi horrível.
P/1 - Como que era, como você se sentia?
R - Então, quando a gente foi para Goiás eu odiei, porque eu tinha as minhas amigas de infância já no Vista Alegre, e coisa e tal, e eu chorava dia e noite quando eu fui para lá, eu lembro que eu chorava muito, porque eu queria voltar para São Paulo, mas depois que eu acostumei também eu já não queria voltar para São Paulo, foi mesmo a transição assim, depois eu já entrei na adolescência, comecei a ter o meu dinheirinho, trabalhando mesmo que na casa dos outros, e eu me lembro de uma coisa marcante do meu trabalho, do meu primeiro trabalho lá, foi que na nossa infância nunca faltou nada assim, de comida, só teve um período que a gente passou um pouco de fome, foi a época do Elisa Maria, a gente chegou a pegar na feira, porque foi uma época muito difícil para nós, porque a gente tinha acabo de voltar de Cajati, sem dinheiro, sem nada, e meu pai com pouco trabalho, aí nessa época eu lembro que a gente chegou… A gente ia para feira, a gente ganhava o fubá das… Assim, os outros ganhavam cesta básica e aí o fubá das cestas básicas dos outros, de quem ganhava a cesta básica a gente ganhava. E aí a minha mãe tinha que inventar moda com o tal do fubá, porque era o que tinha, fubá, farinha, essas coisas, e eu lembro que a gente ia à feira, no SECI, numa feira de cesta grande que tinha, e a gente ficava lá perto das bancas que tinham, e uma coisa assim que me marcou muito nessa questão, nesse período foi que você pedia, aí o feirante falava: “Espera um pouquinho, deixa acabar”, aí a gente ficava até duas, três horas esperando a feira acabar, quando acabava e ele não conseguia vender, ele não deixava a gente pegar em cima da banca, ele passava a mão, jogava no chão e a gente tinha que pegar no chão, aí aquilo para mim foi muito traumatizante, muito humilhante. A gente ganhava muito almeirão, porque o almeirão começava a queimar, quebrar a folha e não ia vender no dia seguinte, então a gente levava muito almeirão para casa, alface quase nunca, mas almeirão, escarola, essas verduras amargas a gente ganhava. E eu lembro que a minha mãe cozinhava o fubá com sal e cebola e colocava o almeirão e era a nossa alimentação, era o que sustentava a gente. Quando fomos para Goiás, antes de chegar essa época ruim, arroz, feijão, carne sempre tiveram na minha casa, era mais galinha, ele comprava muita galinha e matava muita galinha, ovo, salsicha não, salsicha era uma coisa que não tinha, meu pai não comprava salsicha, mas assim, carne mesmo, carne de boi e galinha, e eu não gostava tanto, tinha uma época que eu gostava, depois eu… Depois do frigorífico, na verdade, acho que eu comecei eu não gostar de carne mais, mas até o frigorífico acho que eu comia - comia muito pescoço, eu gostava de pescoço e pé - então era assim: a compra do mês era uma saca de arroz, um saco de feijão, uma lata de bolacha maisena ou maria e uma lata de bolacha de sal, daquelas quadradinhas, aquelas simples; então quando a gente pedia para o meu pai um danone, uma bolacha recheada, ele falava que isso era coisa de rico e ele não comprava, nunca comprou, nem no décimo terceiro ele comprava, ele falava: “Não, isso é coisa de rico”, então eu me lembro quando foi em Goiás, quando foi o meu primeiro emprego, a primeira coisa que eu comprei foi uma bandeja de danone e um pacote de bolacha recheada, nossa, aquilo foi assim, a glória, e desde então eu compro, se eu tenho vontade de comer qualquer coisa. Eu tenho dó de gastar dinheiro com remédio, por causa de algumas crenças de remédio que eu tenho, mas assim, comida eu não tenho dó de gastar, se tiver que ir num restaurante mais caro eu vou e vou gastar o meu salário todinho lá, comida é uma coisa assim que eu não abro mão; cozinho muito bem, adoro cozinhar, gosto de comida, e tenho essa lembrança desse primeiro salário aí de comprar bolacha e o danone. (Pausa).
P/1 - Então, Irani, eu queria que você contasse essa experiência sua no Colégio São Luís, aí você tinha por volta de uns quinze, dezesseis anos, e como foi fazer o Segundo Grau lá, enfim, o Técnico?
R - Era legal, porque assim, o pessoal que estudava a noite eram os meninos que eram office boy na Paulista, ali na região da Paulista, a maioria era bolsista, que nem eu, muitas filhas das empregadas ali da região. Eu lembro que tinha uma menina que a gente achava que ela era rica, que era a Marjorie, e ela esnobava muito a gente, era o único casa que dava uma zoadinha, mas o resto todo mundo muito igual, mesmo a Maria Fernanda Cândido, ela era super bacana assim, super entrosada com o pessoal, não tinha assim, não sentia descriminação; os professores eram maravilhosos, nossa, tinha a professora Sueli de Matemática, de Português, meus melhores professores foram de lá e só tinha essa menina, porque aí é engraçado porque no final, quando a gente já tava para sair do colégio, se formar, aí a gente descobriu que ela era a filha da cozinheira de uma mansão que tinha lá na Paulista, quer dizer, ela nem era rica nada, mas tirava onda, falava que tava estudando a noite porque estava estudando em outra coisa, mas é um casinho bobo, mas eu lembro de querer ser melhor, alguma coisa do tipo, até no sentido de humilhar a gente por estar ali era só essa menina, mas era uma boboca, mas o resto, o corpo docente do colégio não, eles tratavam a gente com muito respeito, era muito bom. A gente tinha algumas atividades que eles puxavam mais para o lado da Igreja Católica, como alguns encontros de jovens que eles faziam fora de São Paulo numa fazenda do São Luís, que era mais voltado para questão da religião, mas era opcional também, não era nada obrigatório. Foi uma fase muito boa, eu gostei muito… O São Luís me abriu portas, quando eu fui para lá, porque quando eu fui para o São Luís eu consegui entrar no CIEE e consegui o meu emprego em banco, foi quando eu comecei a trabalhar em banco, fazia meio período. Comecei pelo Banco do Brasil. Eu lembro que quando eu era criança eu fui no centro da cidade com a minha mãe e eu passei em frente ao Banco do Brasil, aquele que tem ali na… Bem no centro mesmo, entre a [Rua] Líbero Badaró e a [Rua] São Bento e eu passei em frente e eu falei para minha mãe que eu ia trabalhar naquele prédio, aí a minha mãe na hora: “Larga de ser besta, menina”. Passamos frente, falei isso, ficou no ar. Aí depois de muitos anos eu volto e o meu primeiro emprego foi lá. Todos os lugares que eu falei que eu ia trabalhar, eu trabalhei, e nem foi uma coisa que eu fiquei perseguindo aquilo, foi uma coisa que acabou indo para aquele lado. Mesma coisa foi no Einstein. Depois no Banco do Brasil eu era estagiária, fui para fazer estágio e foi a época que o fundo de garantia foi transferido de todos os bancos para a Caixa Econômica Federal, o governo centralizou na Caixa e eu lembro que eu fui no pacote, o gerente falou: “Olha, a Caixa também contrata estagiário” e aí teve um problema porque o sistema… Cada banco fazia a gravação do fundo de garantia num sistema diferente, numa leitura diferente do computador, e quando isso foi para Caixa, isso deu muito conflito, e aí eu lembro que eles falaram: “Irani, você vai ser transferida junto com o trabalho porque você entende como a gente grava, como que faz aqui para você fazer na Caixa e dar certo lá”, então eu lembro que o serviço do Banco do Brasil foi transferido para Caixa, lá para a Praça Roosevelt e a gente foi no pacote, e aí quando eu chego na Caixa, conhecendo o sistema do Banco do Brasil, mesmo estagiária eu tive um trabalho mais destacado, tipo, era chefe do grupo, isso foi bom e foi ruim também, porque teve muito ciúmes, muita bobeira, porque eu tinha um conhecimento maior, mas foi bom pra mim, de muito crescimento, e continuei trabalhando na minha tia também; fazia meio período no banco e meio período para ela, aí as crianças já tinham crescido também, já estava melhor a situação para mim; e para ela não me perder lá, abriu mão de meio período, acabou deixando ficar meio período, e aí teve um ano que ela… Eles iam duas vezes por ano para Goiás, que eles são de lá, aí eles foram… A família foi para Goiás, eles foram de férias e foi o primeiro ano que eu não fui passar as férias lá com eles, eu quis ficar em São Paulo, e aí isso eu já estava pensando em trabalho também, em ver alguma coisa na área de trabalho, já tinha parado os estudos. Eu estava descendo o Paulista e vi um cartaz no poste sobre o curso de instrumentação cirúrgica, aí eu fui fazer esse curso e quando eu comecei a fazer o curso, além deu gostar de estar numa cirurgia, tinha a questão que era que eu teria o mais próximo da medicina, seria o curso de instrumentação, porque eu não tinha condições para fazer a faculdade, intelectual até tinha, bastante, gostava de estudar muito nessa época, mas não tinha condições de bancar uma faculdade de medicina, mesmo que fosse de graça, porque a faculdade de medicina nunca é de graça, os livros são muito caros, os recursos são muito caros, então ela nunca vai ser, de fato, de graça, e aí eu não tinha condições, até cheguei a passar em vestibular, tudo, mas não ia rolar. Falei: “Quer saber? Eu vou chegar mais próximo de medicina, vai ser esse curso”. Aí eu fui fazer esse curso no [Hospital] Pérola Byington, com a dona Hayda, era a segunda turma no Brasil, a primeira turma ela deu para médicos, eram os residentes do HC, era a primeira turma de instrumentação e a segunda turma era a nossa, que já pegava pessoas que não eram da área. Ela era uma enfermeira, ela trouxe o curso pro Brasil e aí a gente… Eu me destaquei entre as alunas e passei a ajudar elas nas áreas, e ela gostava muito de mim, então eu passei a ajudá-la nas aulas, acompanhar os estágios de instrumentação, eu formei mais de quinhentos alunos nessa área, acompanhando os estágios. Eu lembro que quando eu me formei e você vê a dura realidade, porque é um curso de status - era, pelo menos, até hoje é um pouco - porque você tem que indique, não é um curso que tem no mercado, você só entra para essa área se você tiver quem te indique, quem te põe lá, e eu não tinha, eu não tinha conhecimento com médico nenhum, e aí Deus me deu uma luz, foi assim que eu me formei. Eu falei: “Vou mandar currículo”, e aí eu comprei um livrinho na banca de jornal, eles vendiam o livro pra tirar papel, não lembro direito, mas eu peguei um livro de convênio médico, e aí na parte de cirurgia eu mandei currículo para todos os cirurgiões, mesmo assim não veio, não vinha, não vinha, aí eu falei: “Eu não vou ficar parada senão eu vou perder a mão”, eu fiquei acompanhando os estágios pela escola dela e eu falei: “Eu preciso pegar a mão, porque senão eu vou ficar fora do mercado”, já não tinha o perfil, porque as pessoas não gostam que fala, mas é a realidade, quando você vai para essa área ou você tem muitos fisioterapeutas, enfermeiras, várias profissões próximas da medicina, o pessoal vai meio que, por uma questão de staff ou assim de casar com médico, tem as sonhadoras que vem pra casar com médico tá no meio, infelizmente, é uma palavra ruim para falar da nossa profissão, mas era uma coisa que era comum, acontecia, era uma realidade, e eu não tinha nenhum perfil, pobre, preta, eu não tinha carro e a questão principal para ser instrumentador, você tinha que ter carro, e ter uma boa indicação, e eu não tinha nenhum. E aí eu lembro que eu fui ao Hospital Cachoeirinha, me deu um start, falei: “Eu já sei como eu vou pegar mão”. Eu cheguei numa sexta-feira num plantão da Cachoeirinha, procurei o cirurgião principal, aí eu falei pra ele: “Doutor, eu preciso pegar mão e eu preciso estar no meio para conseguir um emprego e ser indicada, eu trabalho um ano pro senhor, eu sei que o hospital não contrata instrumentador, o Hospital do Estado, mas se o senhor conseguir autorização da diretoria para eu te acompanhar, eu fico um ano trabalhando como instrumentador para o senhor, e quem sabe eu consiga me inserir no mercado assim”. Aí ele falou: “Fechado”, só que eu mal sabia que ele era o demônio do hospital. O cara era o cirurgião top, mas ele era odiado no hospital porque ele era o cão dos infernos. Ele fazia as enfermeiras chorarem, ele era muito filho da mãe. Aí ele aceitou a proposta e falou: “Tá bom”. Aí eu estava conversando com ele e entrou um baleado. Aí ele falou: “Sobe lá no centro cirúrgico, vai montando a mesa que eu to subindo”. Eu mal tinha pisado no centro cirúrgico, tava me trocando, ele já entrou com o baleado na maca, pingando sangue no hospital inteiro, ele era meio o doutor House, meio doido. Ele entrou massageando o peito do cara e tinha aberto o peito do cara no pronto-socorro, enfiou a mão lá dentro, ficou massageando, subiu com a mão no peito do cara - eu não tinha nem me lavado para montar a cirurgia - aí ele vendo que eu estava devagar, que é aluna, a gente quer fazer bem direitinho, demora. Aí ele pegou, virou a caixa instrumental em cima da mesa, mais de quinhentas peças, “agora instrumenta”. Eu falei: “Eu nem arrumei o material na mesa”, aí ele: “Instrumenta. Tesoura”. Aí começou a gritar, jogar as coisas. Olha, foi terrível, mas eu dei conta. Ele falou: “Ó, passou no teste, vai ser minha instrumentadora”. Aí eu passei a instrumentar para ele. Fiquei um ano lá trabalhando de graça. Toda sexta no plantão dele eu ia para o hospital e foi bacana, conheci muita gente lá. Aí conheci uma menina que acabou me chamando para cobrir um dia a equipe dela e caí no mundo da cirurgia. Faz 26 anos já.
P/1 - E é a área que você atua até hoje, né Irani?
R - Até hoje. (sem áudio).
P/1 - Eu queria voltar novamente ali que você está ainda estudando, mas começando os primeiros trabalhos, mas ainda trabalhando na casa da sua patroa, que morava ali na região da Paulista, do Jardim Paulista, enfim, pelo que você indica as suas saídas eram marcadas pelo trabalho ou por uma coisa útil, ou enfim, por coisas que você precisava fazer, sua rotina, mas você tinha espaço? Você encontrava margem para se divertir? Você falou do pessoal do colégio, muitos dos estudantes do período noturno tinham um histórico parecido com o seu, enfim, de origem trabalhadora e que precisavam da bolsa… Você aproveitou de alguma forma para sair, conhecer outros lugares da cidade nesse momento.
R - Não. Não, não dava, porque sempre tinha jantares lá, e quando não tinham jantares eu estava aproveitando para colocar a matéria em dia, então assim, eu focava muito nos estudos. Da minha turma de infância, Andrea, Márcia, as minhas amigas, e mesmo o restante do pessoal, quando eu saí do Vista Alegre eu falei que eu focaria nos estudos e eu fui numa reta e não… Então assim, não tinha, não saía nem nada. Eu me lembro de um período muito curto, de uma amiga chamada Tatiana Ferrari - ela até mora nos Estados Unidos agora, até se casou recentemente - foi o período eu saí um pouquinho, me diverti um pouquinho com ela, quando eu conheci ela, porque como eu era mais cabeça, a mãe dela só deixava ela sair se fosse comigo, então ela me arrastava para vários lugares. Ia muito na Broadway, uma danceteria que tinha na Engenheiro… Na Engenheiro?
P/1 - Na [Avenida] Itaberaba?
R - Não, ela era na [Avenida] Marques de São Vicente. E aí eu ia nessa Broadway, conhecia o dono de lá, que era o Irã. E eu ia e ela me pagava três guaranas por noite. Então eu chegava, sentava, tomava um guaraná e aí aquela mesa era minha, então a gente tinha que comprar pelo menos três guaranás para ficar na mesa a noite inteira e ela tinha pro fervo, ela ia dançar, ela dançava, ela era uma dançarina assim, ela amava dançar, e eu não tinha o pique para dançar porque eu estava cansada, moída da semana inteira, então eu ficava na mesa, tomava o guaraná, dava uma cochiladinha, depois pedia mais um guaraná, até dar quatro, cinco horas da manhã, e ela não queria ir embora, queria continuar. Falei: “Não, pelo amor de Deus”. Falei: “Ó, vou embora. Sua mãe vai chamar você”. Nessa época foi assim que eu curti um pouquinho, conheci alguns lugares com ela, conheci a Broadway, mas mesmo assim eu nunca fui muito, a minha cabeça nunca foi muito para essa parte de sair, de curtir, tanto assim… Eu nunca tive férias na minha vida, esses anos todos que eu trabalhei, eu sempre emendei um trabalho no outro e mesmo quando eu estava “tecnicamente” de férias eu emendava com outro trabalho. Férias de sair e falar: “Olha, tô de férias, vou curtir”. Nunca existiu, nunca. Agora eu estou com esse desejo de dar uma parada, pelo menos uma vez por ano fazer uma coisa para mim, por mim, mas até agora não deu não. Esse ano ia ser o primeiro, mas teve a pandemia, então não tinha muito espaço para isso. Quando eu não estava trabalhando, eu tava estudando.
P/1 - E nesse tempo, com que frequência você ia ver a sua família? E como era o contato com a sua família enquanto você estava morando…?
R - Então, nesse intervalo a minha família mudou de novo, foi para uma rua de cima, então eu via uma vez a cada quinze dias, uma vez por mês no final de semana, chagava sexta a noite, no sábado de manhã e quando era na segunda cedo eu ia embora. E nessa época os meus pais se separaram e meu pai… A gente mudou para esse terreno porque lá era um matagal, tem duas ruas paralelas lá no Jardim Vista Alegre, que são as duas ruas principais, que era [Rua] Firminópolis e a [Rua] Albacora, então entre a [Rua] Firminópolis e a [Rua] Albacora, um pouquinho para frente, onde era a bar no meu pai, o bar do meu pai era numa curva da Rua Firminópolis, aí quando você começava a seguir reto, tinha a última casa e aí você tinha um espaço de uns três quarteirões até começar as outras casas, nesse intervalo tinha um matagal e tinha uma estradinha que o pessoal tinha cavado com enxada no meio do mata para passar para rua de cima mais fácil, não era um escadão, era uns degrauzinhos cavado no meio do mato, e lá acontecia muito assalto, tinha estupro, assassinato, tudo, porque os bandidos, como tinha muito mato eles assaltavam as pessoas, levava para lá, e tinha cobra, escorpião, e eu me lembro que o meu pai, vendo aquilo, e ele já tinha se revoltado uma vez por causa dos assaltos em São Paulo, aí melhorou quando teve a Rota, deu um pouco de tranquilidade para as pessoas naquele momento, então não tinha mais tanto assalto naquele bairro, deu uma parada um pouco, porque a polícia também matava muita gente, mas o meu pai não tinha medo da polícia nessa época. Aí ele vendo aquela situação, um dia - meu pai era meio doido também - eu dia ele pegou, ficou sabendo que tinha assaltado uma mulher lá, quase tinha matado uma mulher, ele vai, compra uma foice, rolo de arame, dez pontalete e simplesmente ele roçou o terreno inteiro, assim, três quarteirões. Eu lembro que ele ficou mais de uma semana roçando aquele terreno, aí ele achava cobra, achava escorpião, achava tudo lá, achou ossada, e ele roçou esse terreno inteiro, nisso que ele roça o terreno inteiro, ele passou o arame, colocou os pontaletes, cercou todo o terreno e falou: “Aqui é meu”, todo mundo que chegava ele falava: “Não a Eletropaulo que me deu, é meu” - não tinha dado nada, ele que invadiu o terreno - mas ele falava para todo mundo que o terreno era dele. Aí ele fez uma horta gigante que dava verdura para todo mundo, a gente vendia um pouco, eu lembro da gente com carrinho de pedreiro vendendo alface na rua da horta, e ele fez essa horta lá, essa horta serviu muito tempo para todo mundo, o pessoal da rua ia lá pegar e tudo, e aí acontece, nesse intervalo de tempo acontece um incêndio na comunidade que era do lado da escola, lá embaixo, e muita gente ficou sem casa, ficou sem ter para onde ir, e aí o pessoal começou a pedir um pedacinho para ele, lá do terreno. Nessa época o meu irmão já não tá… O meu pai, que ele voltou a trabalhar fixo, registrado, então ele não estava tendo tempo de cuidar da horta, quem cuidava era o meu irmão, e o meu irmão era preguiçoso - não é que é preguiçoso, coitado, era uma criança - mas ele não gostava de levantar cedo, e tinha que levantar de madrugada para molhar a horta, senão o sol queimava as plantas, então você tinha que molhar antes do sol nascer, e aí o meu irmão tava deixando queimar toda a horta do meu pai, meu pai ficou revoltado e falou: “Ah, vou deixar o povo morar”. Aí ele foi e chamou, foi á na comunidade, viu algumas pessoas que ele achou que era mais séria, e aí ele falou: “Olha, eu quero só que você me dê meu… Eu trabalhei uma semana aí, me dê o meu dia de trabalho que eu gastei para fazer isso aqui”. Então ele tipo, como se fosse hoje, cobrou cem reais para cada um, aí ele mediu, falou: “Quem vai medir o terreno sou eu”. Ele mediu o terreno - ele adora fazer conta, ele é analfabeto, só que adora Matemática, ele chegou a fazer Mobral - aí ele fez, pegou caderno, pediu para eu ajudar ele, eu não entendi aquilo, fez um quadrado lá, aí colocou as medidas, aí dividiu tudo certinho, aí ele loteou o terreno inteiro, e passou para as pessoas e deixou dois lotes para a gente. Nesse intervalo ele também se separou da minha mãe, aí ele deixou a gente e foi embora, e nesse terreno onde ele deixou a gente - eram dois lotes, era onde estava construído a nossa barraca e o outro terreno também era nossa - então era um barracão de madeirite, bem forte, que ele mesmo construiu, era grande, confortável. Mas aí quando ele foi embora, que deixou a gente lá, o meu irmão começou a trabalhar, aí meu irmão resolveu construir de tijolo no terreno do lado, então a gente construiu uma casa no terreno do lado, uma casa para minha mãe embaixo, uma casa para o meu irmão em cima, e a gente foi vender o terreno do lado, onde era o barraco. E aí as lembranças que eu tenho de lá, dessa casa, eram poucas. Eu ia muito pouco lá, tanto que quando a minha mãe vendeu lá, eu já estava trabalhando na IBM, eu saí da Caixa quando não podia mais fazer estágio - que eu já tinha passado todo o tempo que eu poderia, não tinha como renovar o contrato - aí eu saio da caixa e vou trabalhar na IBM do Brasil, no projeto que era GSI, Gerdau Serviço de Informática, é uma empresa da IBM dentro da IBM, e eu fui para lá como digitadora, então eu lembro de um dia eu voltando de lá… Aí eu consegui alugar uma casa, aí eu resolvi que eu queria morar sozinha, tava com quase vinte anos e eu resolvi que queria morar sozinha, aluguei um cômodo, mobiliei do jeito que deu, bem simplesinho, então eu ia muito pouco lá. Aí teve algum período que não deu certo ficar morando sozinha, aí eu voltei para casa. Aí eu fiquei em casa, estava já morando lá com a minha mãe e o meu irmão, aí num belo dia eu cheguei do trabalho, a noite, aí fiquei sabendo que o meu irmão tinha vendido a parte dele da casa, a casa dele era… A parte da minha mãe embaixo, a dele em cima, no mesmo terreno. Aí um vizinho se interessou pela casa dele, aí ele vendeu a casa dele para o vizinho, aí ia ficar uma entradinha para acessar a casa da minha mãe que era embaixo, beleza. Quando é no outro dia, fui trabalhar, no intervalo de dois dias eu chego, minha mãe falou assim: “Ah, vendi a casa”, eu falei: “Oi?”, “Não, porque eu quero ir para o interior, vou morar lá com a minha mãe - que era lá em Cerquilho” - e aí ficou aquela situação de: “Ah, você acha que eu devo vender?”, aí eu falei: “Mãe, eu não botei um real aqui, embora o terreno…” Hoje eu entendo que aquilo era de todo mundo, era de todos os filhos. O meu pai fala assim: “Olha, quando eu fui embora eu não deixei vocês na rua, eu deixei vocês num lugar, eu conquistei um lugar para vocês”, mas aí o meu irmão vendeu a parte dele, que era a parte que ele construiu, com o dinheiro dele, trabalhando, e a parte da minha mãe, ela queria vender, aí minha mãe queria vender mais assim, eu entendo que na época mais para pirraçar o meu pai, porque o meu pai foi lá e falou: “Olha, o Adelson vendeu a parte dele, você não venda a sua parte, porque a gente não vende o que tem, a gente já deu cabeçada na vida uma vez”, e aí que ela quis vender mesmo. E aí ela vendeu a parte dela, quando ela me perguntou ela já tinha vendido, mas ela queria que eu falasse, como eu era a filha mais velha, eu falei: “Não mãe, eu não botei um real aqui dentro, entendeu? Esse tempo todo eu estou lá, estou tocando o meu estudo, gastando o meu dinheiro comigo mesma, coisa e tal, a casa é sua, a senhora faz o que achar melhor”, aí foi o aval que ela vendeu. Só que… No outro dia ela falou assim: “Olha, já vendi a casa, já acertei tudo com o homem, agora você tem que arrumar um lugar para ficar, já que você não vai para o interior”, aí caiu a ficha que eu estava no meio da rua, sem ter casa para morar. Fui procurar uma casinha a noite, não consegui, não tem como eu ia achar casa a noite, sei que eu peguei uma casa, eu lembrei de uma moça - nisso eu tava acompanhando estágio lá no Hospital Cachoeirinha - aí eu lembrei de uma moça da enfermagem que morava perto do hospital e ela tinha comentado, que tinha um cômodo para alugar e eu fui lá alugar esse cômodo dela, cheguei de noite e ela falou: “Ó, mas tá uma bagunça o quartinho, eu nem tirei nada porque eu to pensando ainda em alugar”, eu falei: “Moça, eu não tenho a onde dormir, eu não tenho a onde morar”, aí como eu estava com o dinheiro na mão, aí eu dei o dinheiro para ela, falou: “Ó, você não vai reparar que tá uma bagunça”, falei: “Não, tranquilo”. Peguei, meu irmão já levou as minhas coisas, foi um negócio muito rápido, aí deixou minhas coisas lá. Eu tinha um cobertor bem grossão, eu gostava dele que ele era bem quentinho. Aí beleza, eu fui dormir e no outro dia eu ia ver fogão, essas coisas. Eu nunca dormi uma noite naquele cômodo. Ela ficou uns dez dias guardando as minhas coisas lá, paguei três meses depósito, não usei os três meses porque eu não consegui dormir lá, porque nessa noite que eu fui dormir, que foi a primeira noite lá, eu senti um negócio movimentando nos meus pés, quando eu acendi a luz a rata tinha dado cria, em cima do meu cobertor e tinha um monte de ratinho lá, nossa, eu fiquei desesperada. Aí eu sacudi o cobertor, saí chorando com raiva, fui lá para o hospital, aí cheguei no hospital e falei: “Gente, a casa que eu aluguei está cheia de rato, eu preciso dormir”. Aí as meninas deixaram eu dormir na… Não tinha nenhum baleado, não tinha nenhum paciente, as meninas foram lá, arrumaram um cantinho, eu dormi lá na maca dos pacientes, e aí no outro dia eu fui correr atrás de outra casa, e aí tirei as minhas coisas de lá em menos de uma semana, o dinheiro ficou para lá… Era um quartinho de bagunça mesmo, de ferramenta, de coisa velha e era bem horrível, mas aí eu consegui um outro lugar, aluguei, fui morar com a minha amiga, dividia aluguel com uma amiga e depois foi dando certo, aí eu fui alugando casas melhores.
P/1 - Esse momento em que você aluga, e aí você consegue ter uma moradia, que você divide com uma amiga, aí você ta morando também ali perto do Hospital Cachoeirinha?
R - Era, era na Jardim Primavera, ali perto da padaria Cantareira, no alto do Limão, um pouquinho para frente do Cachoeirinha. Era uma casa que saia lá embaixo no… Jardim dos Palmeiras chamavam, entre a [Rua] Inajar de Souza e a [Avenida] Deputado Emílio Carlos, acho que é Ana Carolina, Carolina, algum nome assim o nome da rua, que era uma rua que saí da Deputado e cai na Inajar de Souza, fui morar lá, nessa casa.
P/1 - E nessa época, além do estágio que você estava fazendo de forma gratuita lá no Cachoeirinha, você tava também trabalhando, né? Você estava trabalhando na IBM, né?
R - Isso, era digitadora lá. Eu nunca tive um emprego só, sempre trabalhei em vários. Eu sempre “engatilhava” uma coisa na outra, não sei para que, né? Eu até brincava, eu falava assim: “Gente, eu vou descansar pra eternidade, porque eu vou pro céu”, aí falaram que não é no céu, é vida eterna. O que eu vou fazer com a eternidade? Eu vou dormir, vou trabalhar agora. Então assim, eu sempre brincava com essa situação para justificar o monte de emprego que eu me enfiava, umas loucuras.
P/1 - E aí passado esse período que você tem, que é um período de experiência que você trabalha, faz o estágio no Cachoeirinha, você consegue um trabalho na área, né?
R - Consigo.
P/1 - Como foi essa primeira experiência e, enfim, e de fato começar a atuar na área de instrumentação cirúrgica?
R - Então, foi assim, tinha uma moça chamada Sônia, uma instrumentadora do famoso Macedo - o Macedo do Einstein - ela trabalhava com o (Sizenando?), no Hospital Santa Helena. O Hospital Santa Helena é um hospital que era da comunidade alemã e aí era assim: o Oswaldo Cruz era da mesma entidade. O Oswaldo Cruz é o hospital que eles construíram para os donos de fábricas, os empresários, os industriais; e o Santa Helena foi um hospital que eles construíram para atender os funcionários da cervejaria Antártica. A história do Santa Helena é uma história bem bonita, que tinha o seu Antonio e a dona acho que Petra - esqueci o nome da mulher dele - mas era Antonio (Herzner?), que eram alemães, da colônia alemã. O hospital, que hoje é o Santa Helera, era uma casa, uma casa muito grande que era deles, aí eles morreram e deixaram de herança para a colônia e a colônia fez o Hospital Santa Helena para atender os funcionários, o pessoal mais operário, e aí a Sônia era instrumentadora do (Sizenando?), que trabalhava nesse Santa Helena, e a Sônia vem para mim e fala: “Olha Irani…” Ela me conhecia de nome, que eu fazia questão de dar o meu nome, meu cartão e meu telefone para todo mundo para ver se entrava alguma coisa, aí ela marca comigo, me encontra lá no metro Dom Pedro, ali perto da Sé, e foi marcante, porque no dia que ela combinou de encontrar comigo lá, ela vem com uma sacola cheia de pinça laparoscópica dentro, falou assim: “Olha, esse é o material do doutor (Sizenando?) e do doutor - esqueci o nome do outro médico - é o material da equipe, ele fica com você. Quando for usar você tem que chegar mais cedo no hospital e um dia antes esterilizar tudo para eles usarem, porque amanhã eu começo com o Macedo - e com o Macedo ela ia ganhar dez vezes mais do que ela ganhava com o (Sizenando?), tipo, uma cirurgia que ela ganhava trezentos, a gente ganhava trinta, e aí ela passou a equipe para mim e falou: “Olha, falei com o doutor (Sizenando?) por telefone, você vai trabalhar para a equipe dele a partir de agora” e foi assim que eu caí nessa, comecei a instrumentar. E o que acontece quando eu comecei a instrumentar para eles, lá no Santa Helena, lá é um hospital de convênio, então o cirurgião já não ganha grandes coisas, aí quando é para passar para a instrumentadora é pior ainda, porque infelizmente os médicos de convênio não pagam para as instrumentadoras o que eles deveriam pagar, que são os dez por cento do valor total da cirurgia, eles não pagam, e muitas vezes o próprio convênio nem pagava a instrumentação, eles tinham que tirar do deles, então eu ganhava trinta reais por cirurgia, mas eu gastava quarenta, 42, 45 para chegar de táxi na madrugada lá, porque eles ligavam só de madrugada e aí as cirurgias eletivas ficavam para as outras instrumentadoras que já conheciam a equipe, aí eu falei: “Meu, eu estou pagando para trabalhar, mas é o que tem para hoje”, eu fiquei vários anos indo para essas cirurgias e trocava o dinheiro do táxi pelo dinheiro que ganhava da cirurgia, fora que eles pagam a cirurgia depois de noventa, 120 dias, tinha cirurgia que a gente fazia em janeiro e ia receber em novembro, dezembro, era bem sacrificado. E aí eu comecei lá no Santa Helena, na cirurgia da equipe geral; lá no Cachoeirinha cheguei a fazer ortopedia com os estágios e lá no Santa Helena cheguei fazendo já a parte de cirurgia geral, aprendi laparoscopia na marra, não tinha cursos para as cirurgias mais avançadas, a gente aprendia junto com a equipe, e aí nesse intervalo também eu conheci uma outra equipe, que eu fui trabalhar com eles achando que eu ia para o céu e foi a maior decepção, porque se trinta lá era ruim, na outra equipe foi muito pior, porque eu trabalhei mais de um ano nessa equipe, que era com um figurão da cirurgia geral, o professor Bruno Zilberstein, eu me lembro que a nossa equipe era gigante, eram oito instrumentadores que tinha na equipe, tinha quatro equipes médicas, ele era o cara que era uma sumidade na cirurgia geral e na laparoscopia, que estava chegando no Brasil naquela época, que são aquelas cirurgias com câmera hoje, que faz só os furinhos da barriga, e toda vez, quando chegava perto de receber, a gente ligava lá, “Ah não, não saiu ainda”, e isso foi enrolando mais de um ano, quando deu um ano eu falei: “Ah meu, um ano é muito palhaçada”, aí eu fui lá receber, quem pagava na clínica era a esposa dele, a dona Sara, são da colônia judia, e aí a dona Sara que fazia os acertos financeiros, o Bruno Zilberstein operava, as equipes operavam, mas quem controlava o dinheiro era ela. E aí eu cheguei lá para receber, levei minha listinha, tudo organizadinha, falei: “Olha, eu estou falando a mais de um ano na equipe, eu nunca recebi, não sei o que”, aí ela falou: “Não, mas não tem nada para você receber aqui, não tem o seu nome na planinha”, “como não? Estou a mais de um ano aqui com o seu marido”, aí ela falou: “Olha, vou chamar o Bruno”, aí ela foi chamar ele. Aí ele veio, olhou para minha cara e disse assim: “Deixa eu te falar uma coisa minha jovem, na vida a gente é pago com duas moedas: uma é experiência, a outra é o dinheiro, se não tiver a primeira, o dinheiro não vem. Eu te dei experiência, então eu te paguei”. Essa foi a resposta que o cara me deu, depois de um ano trabalhando, eu fiquei chocada com aquela resposta, mas também pensei: “Meu…”, aí assim, eu não gosto de lamentar quando eu perco alguma coisa, eu procuro procurar uma coisa de bom naquilo, falei: “Meu, aprendi laparoscopia, agora eu consigo em qualquer equipe, deixa esse infeliz, deixa ele”, e aí eu saí de lá de cabeça erguida, já comecei a montar meu currículo, falei: “Olha, já tenho… Eu sei instrumentar laparoscopia” quase ninguém sabia na época, e eu sabia tanto instrumentar como mexer no equipamento, porque tem um equipamento que fica de fora que você tem que saber operar, e aí eu fui conseguindo outras equipes, hoje eu estou a mais de dez anos com o meu atual chefe. Faz só dez anos que eu cheguei onde eu queria chegar na instrumentação, porque todo o resto era trabalhar para comer, vender almoço para comprar a janta, porque é uma profissão de status, mas não é uma profissão de dinheiro, paga muito pouco, mas quando você está no topo, lá com a elite, aí você já ganha bem, tipo assim, hoje, numa cirurgia que eu ganho mil reais, as meninas ganham cinquenta reais, a mesma cirurgia, no mesmo tempo, no mesmo hospital, mesmo convênio, só que o meu chefe hoje só opera particular, ele não opera nada por convênio, ele é um bam-bam-bam da área, a gente faz urologia e opera bem menos, enquanto elas fazem cinquenta cirurgias por mês, eu faço quatro, mas eu ganho o que elas ganham cinquenta, então vale a pena desse ponto de vista, mesmo de prestígio, porque a gente só opera em hospital particular hoje em dia, só em hospital bom, mas demorou muito para chegar lá, e a maioria não chega, oitenta por cento não vai chegar nesse nível, porque os médicos também, quando tem instrumentadora, não trocam, é meio que vitalício, você se aposenta com o médico, então enquanto ele tiver operando, você está operando também, e aí tem a relação de confiança, da equipe se entrosar, com ele não, porque como ele é professor, ele é muito exigente, então assim, nunca nada está bom, ele sempre reclama, mas é dele, do jeito dele, mas a equipe que eu tinha anterior dele, que ele me roubou dessa equipe, que era a equipe de uns meninos surfistas que são urologistas e são mais cuca fresca, e eram uns médicos muito bons, eles têm pegada para fazer cirurgia laparoscópica e tudo, porque os velhão já não tem, porque não tem mão, eles falam assim: “Os médicos de agora já tem que ser da geração dos joystick, senão não da conta de operar laparoscópica, porque o negócio é muito delicado os movimentos, tudo, e os velhão não, já mete a mão, já acaba com tudo, e aí essa equipe que era antes dele, a gente se dava tão bem, a gente tava num nível - eu fiquei dez anos com eles também - e a gente tava num nível que assim, a gente não se falava durante a cirurgia, eu ia colocando o material na mão deles, só de olhar e acabava a cirurgia e a gente não tinha praticamente se falado assim, porque… Já com ele não, aí ele faz questão de pedir todos os instrumentais, nome a nome, científico, às vezes ele nem pede o nome do material e fala que ele quer uma pinça para fazer tal tempo, aí eu tenho que adivinhar qual pinça que é, porque ele é bem exigente, ele fica testando a equipe, mas ele é perfeccionista, ela é muito bom no que ele faz, então é meio que justificado por isso, e ele é professor, então assim, ele fica ensinando o tempo inteiro, ele faz questão de ensinar, e ele foi instrumentador, então tudo que a gente dá de desculpa para ele, ele fala: “Ó, não dá desculpa para mim porque eu já fui instrumentador”, mas hoje em dia to bem com ela, embora seja uma profissão que não registra, então eu sou uma autônoma que não tenho fundo de garantia, não tenho nada, na hora que parar, parou, e hoje eu estou começando a ficar preocupada com o meu futuro, porque… Antes mesmo de ter esse governo que corta tudo da gente, que a gente não tem dinheiro a nada, eu já não tinha nada, aí imagina agora, eu já estou começando a ficar preocupada com a minha velhice, mas ainda estou correndo como autônoma, não tenho um real guardado, o que eu ganho é o que eu gasto, mas também não vivo tão mal.
P/1 - E Irani, eu vou fazer uma pergunta, vai parecer uma pergunta de leigo, porque eu não conheço muito da área, mas se você puder explicar como que é o trabalho de uma instrumentadora cirúrgica, como que é esse trabalho? De que maneira que atua, por exemplo, numa situação de uma cirurgia? Você se citou, por exemplo, a laparoscopia, como é essa atuação? E aí eu queria que você falasse também de outro aspecto que você está me colocando que são essas relações trabalhistas, né? Enfim, que até você conseguir uma posição de confiança de um profissional, você precisou pagar para trabalhar, em relações de trabalho que não tinham o mínimo de segurança, eram muito precárias... Então se você puder falar do que consiste o trabalho e dessas relações trabalhistas.
R - Instrumentadora de hoje, e a maioria das instrumentadoras, antigamente eram também secretárias dos médicos, então o que a gente faz? A gente desde a marcação das… Eu, hoje, não marco, na clínica que eu trabalho é muito definido o posto de cada um, com o meu chefe, quem marca é a secretária, mas a instrumentadora desde a marcação da cirurgia, a partir do momento que marcou a cirurgia até a cirurgia acontecer, ela fica em cima daquela informação, daquele paciente, então assim, a secretária marcou a cirurgia ela já me passa: “Olha, tem uma cirurgia R.T.U., - que é uma retirada de tumor, é uma ressecção de tumor de próstata - marquei uma R.T.U no hospital”, então eu já ligo pro hospital: “Olha, tá tudo ok com o material?”, eu já deixei previamente… No meu caso eu deixo uma… Tem tudo no computador, deixo todas as cirurgias dele com a relação do que precisa de material, aí uma ou outra coisa que ela tem dúvida ela me pergunta ou manda eu entrar em contato com o hospital, mas a minha função, a função da instrumentadora é checar se está tudo ok, se foi reservado sangue para esse paciente, se tem material… Se tem algum material que vem de fora do hospital que você tem que ver se esse material vai chegar mesmo, porque são empresas terceirizadas que levam, e depois que essa material chega, se ele foi esterilizado, se ele precisa ser esterilizado, a gente chega todas essas informações. Chegou o dia da cirurgia, a gente chega uma hora mais cedo, que o que todo mundo, a instrumentadora e a anestesista são as primeiras da equipe que chega, então a gente chega uma hora mais cedo para rechecar se realmente está tudo ok e vai poder abrir o paciente, aí o anestesista vai lá, assina o termo e a gente traz para a sala, quando está vindo para sala eu aviso o meu chefe: “Olha, está chegando”. Paciente está vindo para sala, nisso o meu chefe também já está chegando no hospital - depois de uma hora que eu cheguei - aí é realizado a cirurgia, durante a cirurgia a gente passa o material para o médico, ele pode pedir esse material por gesto ou falar o nome do material, e a gente tem que ficar em cima. Por muitas vezes, no passado, hoje não, é proibido, a equipe de enfermagem abriu uma guerra contra as instrumentadoras, porque assim, a enfermagem é enfermagem e a medicina é medicina, só que a instrumentadora está no meio disso tudo, não existe assim… Hoje existe um colégio brasileiro de instrumentação cirúrgica, mas é um negócio, uma empresa que inventaram, mas cientificamente não tem nada dessa profissão, e aí quem garante a gente? São os médicos, porque o médico assim… A enfermeira é a chefe do centro cirúrgico, mas quem manda mesmo é o médico, então se o médico não levar o paciente para lá, não vai operar lá, então não adianta ter muito poder, então elas ficam muito mais com os ônus do que com os bônus. E aí os médicos falaram: “Não, a minha instrumentadora vai entrar e acabou, e entra. E hoje, com muita luta do pessoal da enfermagem, conseguiu estabelecer algum critério, então a gente tem que ter uma formação, que antigamente até seis meses formava instrumentador, agora tem que ser no mínimo um ano de formação, hoje em dia eles exigem que faça o curso de enfermagem ou de auxiliar, que não tem nada a ver, a instrumentadora ela só trabalha no tempo cirúrgico, ela não cuida do paciente, então quem cuida do paciente durante a cirurgia é o anestesista, nem o médico cuida, o anestesista quem responde clinicamente pelo paciente. A equipe cirúrgica faz mesmo a parte técnica da cirurgia, então a gente não é subordinado a enfermagem, a gente é subordinado diretamente ao médico, então praticamente é o médico que garante a nossa entrada e saída do hospital e quem paga para a gente também. A gente está inserida na equipe médica, isso gerou muito problema, muita polêmica, muita ciumeira, porque a gente estava em um nível diferente, por isso que eu falo que é uma profissão de status, e aí as enfermeiras conseguiram, com muita luta, e nisso eu já tive essa sacada também que eu poderia me prejudicar lá na frente, então eu já fui lá, fiz o curso de enfermagem, falei: “Olha, eu também sou técnica, então me deixa em paz”, e essa situação dos instrumentadores melhorou muito ao longo dos tempos, mas ela só melhorou quando, em Campinas, uma enfermeira não permitiu que a instrumentadora entrasse na cirurgia e o médico, estava só ele e o assistente, faltou mão na cirurgia, o paciente morreu e o médico processou o hospital e a enfermeira alegando que se ela tivesse deixado a instrumentadora entrar o quadro poderia ter sido outro, porque ele teria mais mãos para poder salvar a vida do paciente. Depois desse episódio o Coren [Conselho Regional de Enfermagem] parou de perseguir a gente, mas a gente foi muito perseguida, a gente chegava pra cirurgia e eles não deixavam entrar, teve muita “treta”, aí tiveram alguns médicos que não viviam sem instrumentadora, compraram nossa briga e a gente acabou… Hoje é um pouco mais respeitado. Hoje em dia é um mercado também que eles contratam muito instrumentadores para trabalhar com as empresas que fabricam materiais cirúrgicos, porque as empresas não podem entrar no centro cirúrgico, eles não têm informação, não tem nada, então o que eles fazem? Eles vão lá, contratam os instrumentadores, porque através dos instrumentadores eles entram. Eles contratam os instrumentadores, na verdade, para serem vendedores, que é para vender o material para o médico, mas aí eles mandam pro médico: “Ah, vou te mandar a instrumentadora, você não precisa pagar”, porque a empresa paga e aí nisso eles conseguem atingir o objetivo de vendas deles, e o médico tem uma instrumentação. Mas é bem por aí. A outra pergunta que você me fez?
P/1 - Eu tinha perguntado sobre a questão trabalhista, mas eu acho que talvez essa pergunta fique melhor… Essa área que é regulamentada?
R - Então, hoje é regulamentada por uma emenda da Marta Suplicy, a gente pediu ajuda para ela, tem uma regulamentação, tem, na verdade assim, dizendo que… Eu cheguei a trabalhar no Hospital Santa Paula, cuidando dos materiais, contratada como instrumentadora e quando eu saí de lá já tinha até um código da profissão na Caixa Econômica Federal, mas não tem muita coisa. Tem um sindicato que é em Minas, de uma enfermeira maluca, tem problemas de ordem particular, pessoal, aí o pessoal não põe muita fé e acaba não indo pro colégio dele lá, pro sindicato dela, ela teve um caso com o Roberto Carlos, tá na internet, ela enlouqueceu. Então assim, o pessoal não está botando muita fé no trabalho dela mais, que é uma pena, mas era o único colégio que defendia muito os instrumentadores e que tinha um respaldo. Em São Paulo a gente tem a ANIC, que é uma Associação Nacional dos Instrumentadores Cirúrgicos, mas que também não faz nada pelos instrumentadores, só cobra uma taxa lá e fez alguns acordos com alguns hospitais, falaram assim: “Olha, quem tem a carteirinha da ANIC pode entrar, mas tudo isso caiu por terra quando os médicos compraram a briga, na verdade a nossa relação de trabalho é uma relação autônoma mesmo, como se fosse pedreiro que você contrata lá, que não é um engenheiro, entendeu? E por sua conta e risco, é meio parecido assim. O seu Zé, que é pedreiro do bairro lá, antigamente, não tem formação nenhuma, mas manda bem pra caramba na construção, então é meio isso, a relação de trabalho é bem injusta com o instrumentador, não tem assim oficialmente, a gente não vê curso… Igual agora a gente está tendo as tais cirurgias robóticas, que está sendo o diamante do século, está todo mundo querendo fazer robótica, não tem diferença nenhuma pra cirurgia convencional, é uma bosta, entendeu? Mas tem… Aí, desculpa.
P/1 - Não, imagina.
R - (Risos). Não tem diferença. É muito mais risco para a vida do paciente, porque o cara está fechado, você está com um monte de pinça dentro dele, se dá uma merda lá, até você abrir, você matou o paciente, e está todo mundo fazendo, entendeu? Mesmo para os médicos é uma novidade, porque você pegar a mão… Os médicos mais novos fazem super bem porque é a geração do videogame, então eles têm muita destreza nas mãos, estão se dando super bem nesse tipo de cirurgia, mas se acontecer alguma coisa, ferrou. E assim, as alegações… E aí o mercado, Estados Unidos, alegação, que “Aí, menos tempo de recuperação do paciente, coisa e tal”, médio, não é bem assim, então tem alguns argumentos que estão caindo por terra e vão cai. No futuro vai, de novo, parar com tudo isso e voltar lá atrás. O que eu tenho visto muito na medicina e na vida mesmo, é que a tecnologia chegou, todo mundo acha fantástico, aí fazem vários estudos, mostra que é excelente, depois você chega lá na frente para voltar lá atrás e falar: “Não, tinha que ser daquele jeito”, e assim a robótica está acontecendo, então a gente tem visto muitos cursos assim, cinco mil reais num curso de robótica, e é uma cirurgia que são seis pinças, não precisa mais do que isso, você não vai operar um robô, porque o robô tem uma pessoa específica para ele, então é uma enganação, é uma maneira assim, só para dizer que você tem um certificado da cirurgia robótica, eu não tenho e eu sou uma das primeiras instrumentadoras que fez robótica em São Paulo, uma das primeiras equipes, e não tenho. Sei tudo de robótica, instrumento, sem problema nenhum, mas aí começa o pessoal que vai ganhar dinheiro com a mudança dos tempos, então tem vários cursos abrindo de cirurgia robótica, não sei o que, e não tem sustentação para isso, então é outro tipo de exploração com o nosso trabalho.
P/1 - No caso dessa cirurgia da indústria robótica, a pessoa que está na função de instrumentador, instrumentadora, tem que já prever tudo que vai ser preciso ser usado durante a cirurgia do…
R - Não. Sim, continua, a preparação da cirurgia fica na cabeça do médico e da instrumentadora, o médico diz qual técnica que ele vai utilizar e ele comunicando com a técnica que ele vai utilizar, a gente também já sabe que tipo de material ela vai utilizar ou não, fica muito mais na nossa cabeça porque assim, ele vai utilizar a técnica A, mas se no meio do caminho essa técnica A não der certo, eu já tenho que pensar na B e providenciado, ou pelo menos saber que existe. Teve material que assim, no meio da cirurgia: “Olha, a gente não reservou”, “como que a gente não reservou?”, falei: “Não, a gente marcou a cirurgia tal”, “não, mas não deu certo, e aí?”. E aí não tinha no hospital, então já tiveram muitos desses casos de ficar esperando material, no passado. Nas minhas até que não, porque eu sempre fui exagerada, eu baixo a farmácia dentro da sala cirúrgica e não tem problema. O pessoal da farmácia me odeia, porque depois tem que retornar, eles têm que estornar tudo e voltar pro estoque, mas assim… E eu sempre trabalhei com médico estressado, então a gente usa o nome do médico para justificar a gente: “Olha, é para o doutor Fulano, você que sabe, se você não quer dar…”, aí vai. Então a gente sempre tudo lá, próximo para usar. Hoje em dia essas relações melhoraram bem, a gente fez… Desde que a dona (Raida?) morreu, que era a professora de instrumentação que eu tive, e como ela foi pioneira nessa área, a gente deu, dia seis de maio, que é o dia da morte dela, como o dia do instrumentador cirúrgico, então desde então a gente tem feito congressos junto com as enfermeiras, dos hospitais que tem visão, a gente tá falando de hospital de outro nível, Einstein, Sírio, Oswaldo Cruz, esses hospitais fizeram muitos congressos envolvendo as áreas para falar a mesma língua, porque o paciente é o mesmo, então entendeu-se que ou a gente fala a mesma língua e faz melhor para o paciente ou não vai dar certo, então nesses hospitais a gente tem um atendimento muito diferenciado dos outros que a gente faz, que a gente já chega como inimiga das enfermeiras, mas graças a Deus não é geral, é muito melhor do que pior, de nível de relação, mas a nível de trabalho é bem difícil, porque as pessoas aceitam trabalhar, para estar no Einstein aceitam ganhar cinquenta reais, cem reais, e aí eu tive uma menina que me substituiu em uma das minhas cirurgias, e ela foi para uma cirurgia com o meu chefe, chegou lá e a cirurgia tinha sido cancelada, e ela virou para o médico e falou: “Doutor, a cirurgia foi cancelada, você me deve oitenta reais”, ele falou: “O quê? Não teve nem cirurgia, nem eu ganhei, não sei o que”, ela falou: “Doutor, para eu sair da minha casa eu tenho que pagar uma pessoa para ficar com o meu filho, para eu vir aqui trabalhar para você, você não me avisou que a cirurgia tinha cancelado, eu peguei um táxi - ela pôs tudo - eu estou com fome, eu vou chegar na minha casa fora do horário de almoço… Ela fez uma continha e apresentou para ele. Foi a hora que eu tive noção que a gente, a partir do momento que a gente saiu de casa, a gente já está pagando para trabalhar, então você tem que ter um retorno, e ela me abriu muito a visão nesse sentido assim, de enxergar os gastos que a gente tem quando sai de casa. Eu, por exemplo, não tenho carro, agora tenho né? Mas o meu carro fica com o meu genro que trabalho de uber com o meu carro, mas eu nunca tive carro e estou há 26 anos na profissão. O pessoal, quando fica sabendo que eu não tenho carro, eles falam assim: “Nossa, como você consegue?”, eu falo: “Eu não tenho carro”, mas eu estudei todas as linhas de ônibus, de metro, da cidade de São Paulo, eu conheço tudo, eu tenho uma puta colaboração com o metro de São Paulo, que foi uma coisa engraçada, que eu sempre tive loucura de vários trabalhos, então assim, eu bato rango dentro do metro, no ônibus, onde estiver, sem problema nenhum, hoje em dia eu tenho um tempinho para sentar e comer, mas eu já tive época que eu não tinha, e aí o que eu observava? Que as plataformas do metro não tinham lixeiras, essa questão da lixeira é questão de pouco tempo e graças a mim, porque eu comecei a ligar lá na ouvidoria, ligava em tudo quanto era número, eu falava: “Como não tem lixeira no metro?” e eu fazia um escândalo, era a encrenqueira. Até que um dia eles me ligaram: “Olha, a gente está ligando para falar pra senhora que graças as suas reclamações o metro tem já”, então é aquele saco transparente que eles colocam no lixo do metro, mas não tinha aquilo, quem andou de metro há muitos anos, se for recordar, não tinha, porque o metro é um negócio tão limpinho, tão limpinho que as pessoas também não tem coragem de jogar e sujar, e aí eu achava um absurdo porque eu comia, às vezes eu levava um marmitex, alguma coisa dentro do metro, eu saía do vagão e não tinha onde eu jogar, tinha que botar na minha bolsa e levar até achar uma lixeira na rua, e aí eu ficava indignada: “Como que o metro não tem?”, então essa é uma das brigas assim, de coisas que você vai percebendo e começa a querer brigar por aquilo. Nem sei como eu entrei nessa história do metro, mas... Ah, sim, porque eu não tenho carro, mas aí eu saio de casa muito mais cedo, entendeu? Eu já vejo qual ônibus… Às vezes eu pego quatro ônibus, mas faço um tempo menor, já faço o caminho do rato, como dizem os médicos, então nunca atrasei, nunca cheguei atrasada em cirurgia porque eu estava no trânsito ou porque eu não saí no horário, sempre cumpri direitinho, e quando eu via que não dava para chegar, eu também avisava e já chamava alguém de perto, eu sempre tive uma agendinha boa do nome das pessoas e onde elas moravam para poder chegar no hospital, então nunca tive problema com isso, mas é critério você ter o carro;
P/1 - Sim. Irani, essa sua experiência como instrumentadora tem algum momento, alguma cirurgia, enfim, alguma situação que você considere marcante dessa trajetória? Marcante por ter sido inusitada ou aconteceu algo que você não esperava, você ou equipe que estava envolvida...
R - Ah, tem alguns casos, tipo tem um que era da Cachoeirinha - quando eu estava lá ainda, na época de estágio - que a gente... Chegou um monte de mulher grávida, tudo ganhando nenê, foi uma loucura, aí dois médicos entraram em duas salas para fazer parto normal, aí a cesária coroou, mas não saia, aí teve que fazer uma cesária, aí eu entrei de assistente nessa cirurgia, aí acabou nascendo a criança, foi super bem, foi só eu e a médica, era para eu ser instrumentadora e dois médicos, o médico e a assistente, aí não tinha mais médico, eu entrei e ajudei nesse parto. Eu já fiz em casa mais de três partos, sem planejar, sem querer, assim, aconteceu a situação, eu fui lá e resolvi, de tanto a gente ver, pela experiência e tudo. Eu sou também doula e faço orientação de parto, esses negócios, mas assim, tudo pela experiência na instrumentação, no trabalho mesmo, e teve uma outra… Desses 26 anos, a gente só perdeu dois pacientes, um foi no estágio, não conta, que era aquele baleado que eu… Ah, tem uma história muito marcante - lembrei agora - foi no Mandaqui. Eu estava no Mandaqui, já tinha saído do Jardim Vista Alegre, não morava mais lá há alguns anos, e na minha época de Vista Alegre eu tinha muitos amigos, conhecia bastante gente, amigos tinha poucos, mas eu conhecia muita gente, e eu tinha um em especial que foi amigo num grande período, ele foi namorado de uma amiga minha, então ficou muito próximo - que era o Ademar - e ele era roqueiro, tinha um cabelo grande, loiro, cabelo lisinho, eles são do Sul e tinha esse Ademar, conhecia ele, super gente boa, beleza. Como fazia muitos anos que eu não ia mais para o Vista Alegre, nem sabia que ele tinha “rapado” a cabeça, eu conheci ele cabeludo, então nem lembrava que ele tinha “rapado” a cabeça, não sabia na verdade, nem me atentei; e eu estava de plantão no Mandaqui, eu estava de plantão acompanhando estágio no Mandaqui das meninas, e quando a gente tava indo - não teve nada o dia inteiro, nenhuma cirurgia, a gente secando o plantão e nada de acontecer as cirurgias, porque só quando tinha cirurgia que as meninas podiam entrar e botar a mão na massa, e eu orientar elas - e a gente já estava indo embora, já tinha trocado de roupa, a gente tava indo embora pra casa, quando o médico chegou, ele falou: “Volta, volta, volta, eu não quero estagiária, é você que vai entrar, estou com um baleado. Estou subindo um baleado”, aí eu falei: “Beleza”, aí eu peguei, voltei, troquei, falei para as meninas: “Ó, reveza para vocês assistirem e a professora vai instrumentar”, então eu troquei, comecei a montar a mesa, quando o paciente entrou na sala eu estava de costas montando a minha mesa, e aí eu terminei de montar, ele falou: “Olha, massageia o peito dele aqui pra mim” - subiu com o peito aberto também, que é uma técnica que os médicos fazem para massagear o coração mais rápido, quando está chocando o paciente, eles abrem o peito - e aí ele falou: “Você tá pronta?”, aí ele tirou a mão, coloquei a minha, fiquei massageando o coração do paciente enquanto o médico se lavava para entrar na cirurgia, aí fizemos a cirurgia... A bala, ele tava lavando o carro e aí foi bala perdida, aí atravessou o rim dele, pegou o intestino, foi uma tragédia. Aí tiramos ele do choque, salvamos a vida dele, beleza, fechamos o paciente, as meninas adoraram, o médico agradeceu, porque eu já tinha experiência do Cachoeirinha, foi super tranquilo. Estou saindo do centro cirúrgico, vem um amigo meu - que é o irmão do paciente, o irmão do Ademar - “Nani, como está o meu irmão?”, eu falei: “Que irmão?”, “o Ademar, ele está aí, você não acabou de sair da cirurgia dele?”, eu falei: “Oi?”. Eu tinha massageado… Eu massageei o coração do meu amigo. Hoje eu encontro com ele eu falo assim: “Ó, te conheço por dentro e por fora”, porque eu massageei o coração dele direto, e depois disso ele foi parar na minha mão de novo, porque ele acabou perdendo o rim - foi muito grave o que aconteceu com ele, ele acabou perdendo o rim por outros motivos, mas aí o rim já tinha sido lesado pela bala e ele acabou perdendo - e aí ele acabou passando pela minha mãe de novo lá no hospital do rim, porque aí eu já estava no transplante. Eu trabalhei dez anos no transplante do hospital do rim, e aí ele passou lá na minha mão de novo para ser transplantado. Essa é uma das histórias.
P/1 - Uhum. Uma entre muitas, né?
R - Nossa, tem muitas.
P/1 - E Irani, você falou que sempre teve envolvida em várias outras ocupações, e nesse período, além da instrumentação cirúrgica, quais foram as atividades que você foi se envolvendo, atuando?
R - Então, aí eu fui morar… Eu acabei indo… Conheci uma pessoa, engravidei, tive minha filha e eu fui morar no Tucuruvi, que era mais próximo da casa dele - hoje eu moro lá, na região do Tucuruvi - mas eu fui morar pra lá por conta do pai da minha filha e aí eu já estava trabalhando no Hospital Sanatorinhos, em Carapicuíba, e em tantos outros. Porque instrumentador assim, ele não tem um hospital certo, ele acaba trabalhando em vários, pra onde o paciente marca a cirurgia, você vai, então você trabalha em muitos hospitais ao mesmo tempo. Mas eu trabalhava lá, nessa época, registrada, no Sanatorinhos, e comecei a pagar aluguel no Tucuruvi, uma coisa é você pagar aluguel no Jardim Vista Alegre, trezentos reais, e 1500 no Tucuruvi, então tava pesando a questão da moradia, para mim, e aí eu soube que tinha uma reunião de moradia para conseguir aparatamento do governo e eu comecei a frequentar essa reunião, e aí quando eu comecei a frequentar essa reunião eu chamei minha cunhada que mora em Osasco, ela ia também, a gente ficou nesse grupo um tempão, aí eu achava muito organizado porque eles tinham… Era bem organizado, a gente chegava na reunião, eles já tinham a pauta da reunião impressa, então a gente acompanhava direitinho, lia o papel, mas entender que é bom, eu não entendi nada, mas eu entendia porque eu sempre gostei muito de estudar, procurar, saber o que acontece, mas 99% das pessoas não sabiam nada do que estava acontecendo ali, e eu comecei a frequentar essa reunião, aí eu passei para titular - lá eles tinham o titular e o suplente, então você nunca entrava como titular, você entrava como suplente, para vagando você ir para frente como titular - e aí eu passei a titular e fiquei sabendo que o apartamento que eu ia morar chamava Ilhas Gregas, é um condomínio lá na [Avenida Coronel] Sezefredo Fagundes, e a gente foi, chegou a conhecer onde era o local e tudo, nesse intervalo de tempo, o que aconteceu? Foi quando a política entrou, entrou a politicagem no meio, aí o cara que fazia reunião com a gente não era da região, ele fazia reunião com um grupo grande lá naquela região do Vila Madeiros, mas ele não era da região. Os políticos locais se reuniram, viram que o cara estava com muito destaque na região, ficou com medo de politicamente atrasar o lado deles e passaram a pressionar o padre da paróquia que emprestava o salão para ser a reunião da moradia. O padre pressionado pediu o salão pro cara, falou: “Olha, você não vai poder fazer reunião de moradia aqui, porque os políticos locais estão me perseguindo, não estão mais dando dízimo na minha igreja, e coisa e tal”, aí ficou… E aí que eu falo que a ocasião faz o ladrão, porque até então a gente acreditada piamente que aquele movimento era sério, que eles iam entregar a moradia para a gente, de fato, a gente estava acompanhando, eles trazendo os documentos da Caixa, mostrando para a gente, mostrando os nossos nomes lá e tudo, e aí nesse intervalo de tempo que aconteceu isso, o que ocorreu? O cara não era da região, então ele pegava os coordenadores que era da região e falava: “Olha, preciso arrumar um lugar para fazer reunião”, então cada mês a nossa reunião era num local diferente; nisso, se você faltava uma vez, você ficava para trás e não conseguia mais acompanhar o grupo, e eu tive cirurgia de emergência e tive que faltar, minha cunhada não foi, não veio de Osasco para ir no dia, que ela só ia porque eu ia, o que ocorreu? Eu perdi o contato, aí que eu fui ver que as pautas que eu tinha, porque lá no final tinha telefone, endereço, tudo, nada ali era real, aí eu fui atrás dos telefones, os telefones não existiam, aí eu fiquei indignada, falei: “Não, tem que existir”, fui no endereço, o endereço era no meio do nada em Cajamar, também não existia, e eu achei estranho porque o cara era conhecido. Quando eu comecei nesse grupo, eu fui na Caixa Econômica, falei: “Olha, você conhece o Enéias?”, todo mundo conhecia ele, ele tinha entregado vários empreendimentos, eu falei: “O que está acontecendo?”, aí eu tomei raiva, falei: “Esse negócio de movimento social é tudo enganação, é tudo mentira” e eu fiquei com uma bronca danada por muitos anos, falei: “Não vou entrar mais nisso, não”, mas estava na veia mexer com isso. Aí eu desenganei, não procurei mais, e a gente dava uma taxinha lá de contribuição, que a gente sabia que era para a luta, não era para a compra do nosso apartamento e tudo mais. Um belo dia - já tinha passado alguns anos - eu estava na casa de uma amiga que vendia roupa em casa, e aí tinha outra moça e a gente escolhendo as roupas lá, aí foi falado de como podia, entrou no assunto do aluguel, que estava caro, não sei o que, aí eu lembro que a gente era membro do mesmo movimento, na mesma época, ela falou para mim assim: “Ah, vamos lá ver como que tá hoje, quem da nossa turma conseguiu entrar lá e morar lá no Ilhas Gregas”, aí eu falei: “Vamos”. Aí ela estava de carro, a gente pegou e foi no tal do condomínio que a gente deveria ter ido morar, chegando lá, um monte de gente estranha que a gente nunca viu, falei: “Gente, mas não tem ninguém…” e aí fiquei preocupada, “Mas não tem ninguém da nossa época aqui”, estranho né? E o cara que deixou a gente entrar ficou acompanhando e ouvindo as nossas conversas, aí quando a gente foi embora ele falou: “Olha, eu estou com dó de vocês, eu vou falar a verdade, mas se vocês falarem que eu falei, eu vou mentir, vou falar que eu nunca falei isso para vocês, aqui a gente comprou”, falei: “Como assim comprou?”, ele falou: “É, a gente deu cinco mil reais aqui, todos nós somos policiais, cada um de nós deu cinco mais e o Enéias colocou no nosso nome e não no de vocês”, nós compramos as vagas, entendeu? E como quem detêm essas vagas fica na mão do movimento, e não do governo, até você negociar, tava legal, pela Caixa estava legal, os dados foram mandados, as pessoas estão lá, da parte da Caixa não tem o que fazer, o cara agiu de má fé com a gente e a gente foi prejudicado, só isso. Aí beleza, aí fiquei com mais raiva ainda do movimento de moradia, aí um belo dia eu estou na igreja - já tinha virado evangélica - aí estou assistindo o culto, me levanto uma maluca no meio do culto: “Gente, vai ter inscrição do ‘Minha Casa, Minha Vida’, não sei o que”, nossa, virou um tumulto na igreja, no meio do culto o pastor quis matar a figura, era uma mulher que tem um probleminha, ela é meio “pancadona”, a Luci, e ela usava muletas, tinha um problema nas pernas, de nascença, aí ela falou isso, eu falei: “Aí, não é possível que Deus ia deixar eu ficar enganada dentro da igreja, né?”, falei: “Não, agora eu acredito, agora é de verdade”, aí lá vai eu, cheguei no dia onde ela tinha falado, gente, o salão estava “estrumbado” de gente, a rua estava lotada, fechando a rua de tanta gente que tinha por causa dessa notícia da moradia, mas era verdade porque foi na época do governo Lula, quando teve a implantação do “Minha Casa, Minha Vida”, e tinha mesmo, estava se fazendo mesmo o cadastro, só que aí era um movimento de moradia, e aí eu falei: “Não, dessa vez ninguém vai me enganar”, beleza. Eu ia para reunião, não faltava em nada, todas as atividades que tinha eu ia, a mulher… Como eu tinha sido enganada no outro movimento, eu quis saber onde eu estava entrando, então eu fazia muita pergunta, enquanto as pessoas não perguntavam nada, eu fazia muita pergunta, e a mulher formou uma raiva de mim, ela chegava… Eu falo assim, que aquele filme “O diabo veste prada”, sabe? Que ela chegou com a bolsa e com o casaco, joga na mesa da secretária, e entra na sala, ignora todo mundo, era desse jeito, ela chegava com a bolsa e com o casaco dela na reunião, jogava lá na mesa e aí começava a reunião: “Ah, porque é muito bom, não sei o que”, aí eu levantava a mão: “Aí…”, eu perguntava coisas para saber se era de verdade aquilo, se não era uma enganação, não é… Eu tinha que fazer aquilo porque eu tinha sido enganada no outro, gente, a mulher me ignorava, ela deixava eu fazer a pergunta, ela deixava eu passar vergonha, aí depois ela virava assim, eu estava lá atrás fazendo a pergunta, ela virava para o cara que estava na frente dela: “O senhor perguntou mesmo o quê?”, ignorava, não me dava a resposta, ela me humilhava demais na frente daquele povo, mas aí foi passando, eu falei: “Ah, mas eu não vou desistir, se Deus permitiu que a mulher tenha falado dentro da igreja, é porque é Deus, vou ficar aqui”, coisa de evangélico, coisa de crente. Aí fiquei. Fui ficando, fui ficando. O que aconteceu? Saiu uma remessa de apartamentos lá no [Rua] José Bonifácio, em Itaquera, ela ganhou quarenta vagas, só que só o nosso grupo tinha umas duas mil pessoas, e ela ganhou quarenta vagas, ela tinha oito grupos, ela deu cinco vagas para cada grupo dela, mas para quem ela deu aquelas vagas? Para os coordenadores, pro pessoal que ajudava ela na reunião. Os coordenadores, que eram muito mais humilhados que a gente, porque ela era o cão, a Carmem era terrível, mas fazia, a mulher, se possível, saia na mão com os juízes para defender o povo da moradia, e aí ela deu para esses coordenadores, que estavam cansados da maneira que ela tratava e tudo, e esses coordenadores fizeram o quê? Pegaram as chaves e nunca mais voltaram na reunião para falar: “Olha gente, é verdade, o apartamento saiu”, eu achei muita ingratidão aquilo, sabe? Mesmo sabendo que ela tinha um gênio do cão, mas assim, pessoas de gênio do cão me atraem, eu sempre estou envolvida com alguns deles. E eu achei aquilo um absurdo, porque eles foram embora e abandonaram a reunião, a gente chegava lá, ficava lá quase uma hora, na chuva, no sol, esperando ela chegar para fazer a reunião, tudo do lado de fora do salão, e eu achava aquilo um absurdo. E eu tinha comprado um computador, tava feliz da vida que tinha computador, estava aprendendo a mexer, tava uma loucura, aí eu falei: “Quer saber? Eu vou melhorar essa situação”, o que eu fazia? Eu sabia onde o dono do salão morava, eu ia lá na casa dele e falava: “Olha, a Carmem mandou eu pegar a chave”, mentira, não tinha mandado nada. Aí ia lá, catava a chave com ele, ia lá, abria o salão, às vezes tinha tido festa a noite, estava tudo sujo, aí eu pegava meia duzia de gente na fila e falava: “Vamos limpar para quando ela chegar estar tudo certo”, aí limpava o salão, botava as cadeiras pro povo sentar, levava planilha, nunca tinha tido, era um negócio muito desorganizado, e era para ser daquele jeito, tinha um motivo para ser daquele jeito, então nunca tinha… O pessoal anotava o seu nome num papel de pão, num caderno, arrancava a folha, um negócio desorganizado. Como eu tinha comprado o meu computador, levava as planilhas, levava prancheta, tudo bonitinho, passava a prancheta… Quando ela chegava, eu passava para ela a prancheta… Levava água, café da minha casa, tratava o povo super bem… Então quando ela chegava para fazer a reunião, aí eu entregava, falava: “Ó, Carmem, todo mundo já assinou a lista de presença, tá aqui, agora é só fazer a reunião”, aí ela começou gostar, falou assim: “Nossa, menina, não é que você leva jeito para a coisa mesmo?! - olha só que filha da mãe - agora eu vou te responder todas as perguntas que você fez e que eu nunca te respondi”, eu falei: “Olha que filha da mãe”, ela sabia, ela fazia de propósito. E aí ela passou, pegou um papel, colocou o telefone dela, o endereço dela, o e-mail dela, todas as informações que eu tinha pedido e ela nunca me deu, ela falou assim: “Agora sim, você vai na Avenida São João uma vez por semana, na quinta-feira, tem reunião de todos os movimentos de moradia e você vai entender todas as perguntas que você me fez, lá. E aí eu passei a ir, só que aí eu fiz uma inovação, porque só ia nas reuniões quem eram convidados por eles, a cúpula, eu fiz a inovação, falei: “Não, acho que o povo tem que saber, tem que acompanhar, saber o que está acontecendo”, aí eu ia, mas eu levava duas, três pessoas do movimento para eles entenderem e para a gente multiplicar pro grupo, e ela gostou, aí eu virei meio que coordenadora dela, quando ela tinha alguma coisa para pesquisar na rua, ela ligava para mim, então assim, as ocupações que tiveram em São Paulo, em 2009, eu fui a pessoa que foi no cartório para levantar se aqueles terrenos… Aqueles prédios a gente ocupou 53 prédios numa única noite, em São Paulo, para fazer um protesto de moradia, e eu fui a pessoal que foi lá no cartório, pesquisei um a um, porque as pessoas acham que o movimento… A mídia vende uma imagem assim: movimento de moradia é tudo vagabundo, que quer casa de graça. Não é nada disso. Então tem umas estratégias, tem umas coisas que eles fazem para desviar da lei, para não chocar com a lei, então uma das coisas era: vai ocupar um prédio, qual é a situação desse prédio? Então tinha esse cuidado, que as pessoas não viam, então eu ia ao cartório para ela, ela me instruía o que eu tinha que fazer, eu ia lá e levantava tudo. Então os prédios que foram ocupados pelo MSTC, pelo Movimento pela Frente de Luta por Moradia, que é a Frente é maior do que o MSTC, eles foram todos pesquisados, não foram escolhidos aleatoriamente: Ah, tá vazio, vou entrar. Eram prédios que o proprietário já devia milhões para a prefeitura, que a prefeitura já deveria ter tomado aquele imóvel e não tomou, porque não quer arrumar inimigo político, então tinham essas questões; e eles fizeram essa ação em 2009 para mostrar para o mundo que em São Paulo tinha um monte de prédio deteriorando e as famílias não tinham onde morar, então a ideia das primeiras ocupações eram assim, falar: Olha governo, aqui tem imóvel que dá para ser usado e você não está usando, e tem um monte de gente querendo morar. Era essa mensagem. Então eu fui para essas ocupações… A primeira ocupação que eu fiz, eu fiz enganada, eu não sabia o que era uma festa, ela chegava na reunião e falava: “Gente, vai ter festa”, e o povo ficava doido. E aí ela falou assim: “É, mas vocês sabem que festa tem que ter comida, então vocês têm que levar mochilinha, com uma bolacha, uma coisa que dá para comer, coisa e tal, uma garrafa de água, uma garrafa de café”, e eu nem para cair a ficha. Aí beleza, chegou o grande dia da tal festa, aí ela: “Irani, eu quero que você leve os idosos, bastante mulher com criança…” e eu achando que ela tava querendo prestigiar os idosos e as crianças, falei: “Deixa comigo”, lotei dois ônibus, foi super fácil, chamei o povo, lotamos os ônibus, aí saiu. Isso era dez horas da noite; e eu achando estranho que o ônibus não saia nunca. Marcou para às oito e a gente saiu dez horas lá do bairro, lá no ________. Lotei gente, peguei todas as velhinhas do grupo, e o povo confiava em mim, porque teve uma mudança de quando era os coordenadores dele e de quando eu passei a ajudar, porque funcionava assim: ela mordia e eu assoprava. Então ela ia lá, detonava a pessoa, a pessoa saia chorando, eu ia atrás da pessoa: “Não, não liga para ela não, pensa no foco, pensa na sua casa, eu estou aqui passando por isso também, vou conseguir minha casa”, então eu animava as pessoas, eu trazia as pessoas para o movimento, beleza. Falou da festa, e ela não me falou o que era festa, ela achou que eu sabia, eu acho, nem sei, mas enfim, aí ela falou: “Vai ter festa”, beleza, vai ter festa, chamei o povo, lotei os ônibus, quando a gente… Dez horas o ônibus saiu do bairro, aí chegou no Centro - aí ele foi bem devagarzinho também - aí chegou no Centro quase onde horas, e nada da gente achar… Falei: “Mas gente, não vai parar? Onde que está sendo a festa?”. Aí eu falei: “A gente vai chegar e já vai ter acabado tudo, não sei o que”, falando desse jeito com as pessoas, aí achei estranho, uma movimentação estranha, a gente foi lá pra Santa Cecília, tinha mais de cinquenta ônibus lá e um… Aí foi a hora que eu achei estranho, um movimento sinistro, a polícia passando para lá e para cá, e nada, e muito ônibus, os ônibus tudo com a janela fechada, o nosso motorista tava nervoso já. Aí eu ouvi ele falando no rádio: “O combinado era onze horas, não era meia-noite, não sei o que”, aí começou a xingar, aí eu falei: “Meu, está acontecendo alguma coisa”, aí eu fui lá para frente pra ficar perto do motorista pra escutar a conversa, e a mulherada animada dentro do grupo, tinha uma grávida de nove meses, a Brígida - hoje ela é do meu movimento - e aí eu fui lá pra frente, e veio a mensagem no rádio: “Todo mundo… Cada um pro seu posto, cada um para o endereço que foi passado”, aí ele foi. O nosso era na [Avenida] Rio Branco, número 47. Quando chegou na Rio Branco, a polícia já estava chegando também, o cara atravessou o ônibus no meio da Rio Branco, fechando as duas pistas, aí já apareceram uns caras, abriram a porta do ônibus e falou: “Vem, vem, tira elas daí”, empurrando as pessoas e mandando entrar no prédio, foi a hora que caiu a ficha que aquilo era uma ocupação, não era uma festa, era uma ocupação que a gente estava fazendo, e a gente não sabia que estava fazendo uma ocupação. Aí tinha um buraco no meio da parede, que eles tinham quebrado, que era no antigo Hotel Lincoln, e eles fizeram um buraco na parede para entrar, porque a porta estava lacrada e aí passaram, empurraram as suas famílias lá para dentro e eu fiquei desesperada, aí as famílias foram, eu não sabia o que fazer, polícia vindo, e aí eu acabei ajudando a entrar também, e fiquei por última, para assessorar as mulheres a entraram, porque era um buraco pequeno, tinha que abaixar para entrar, aí quando entrou a última família, que eu fui entrar, a polícia chegou, jogou gás de pimenta em mim, aí eu saí de lá de perto, aí fui ligar pra ela: “O que está acontecendo?”, ela falou: “Olha, a gente está fazendo uma ocupação. Ah, Irani, você não sabe o que é ocupação?”. Eu falei: “Eu não sei, eu nunca participei de uma ocupação”, aí eu fui descobrir o que era uma ocupação dessa maneira, a primeira, as outras eu fui consciente, mas a primeira foi isso, e aí ela conseguiu me explicar: “Irani, a gente faz ocupação porque o governo precisa entender que ele tem que tomar uma atitude em relação a regularização fundiária, ao uso da propriedade”, foi me explicando todas as coisas e aí eu entendi o que era. Essa primeira ocupação as nossas famílias ficaram presas lá, porque você tem um prazo para você transformar uma invasão em uma ocupação. O primeiro momento, quando você entra num terreno, num prédio, aquilo é uma invasão perante a lei, porque ninguém sabe quem é você e você está invadindo lá, mas se você entrar e fechar a porta, e ficar 72 horas lá, não é mais uma invasão, passa a ser uma ocupação, porque ninguém te tirou de lá, a polícia não tem o poder de tirar, a polícia vem para acompanhar, para que não aconteça alguma depredação, alguma coisa assim, nenhuma encrenca, mas a polícia ela não pode, ela não tem o poder de tirar, ela só vai tirar se você abrir a porta, por exemplo, se a polícia chegar, bater na porta e você abrir, ela entra e fala pra você sair; se você não abrir a porta, manter com a porta fechada, você consolida uma ocupação em 72 horas, está previsto na lei, a lei prevê isso, entendeu? Só que a impressa vende uma outra coisa para a sociedade, aí são outros quinhentos, aí a gente ficou nessa ocupação do Rio Branco, aquele prédio que caiu, que incendiou, aquele foi um dos prédios que a gente olhou e avaliou que não tinha que ser ocupado. Quem ocupou aquele prédio, quem manteve ele não foi o movimento social sério, foi bandido. Então não pode achar… A imprensa não pode chegar hoje e falar: “Olha, a ocupação, movimento social…”, não pode culpar o movimento social, o movimento social rejeitou aquele prédio, porque quando nós estudamos ele, a gente sabia que a Polícia Federal tinha saído de lá porque o prédio apresentava riscos, então por isso o movimento social não ocupou lá, quem ocupou lá foi outro ramo, outra história, outra conversa, não tem nada a ver com o movimento social, então eu fiz essa ocupação com a Carmem, em 2009 foram vários movimentos, foi um acordão dos movimentos de moradia, de fazer essa ocupação, ocupar os 53 prédios do Centro, que estavam rastreados por nós, foi CMP, Frente de Luta por Moradia, União, todos os movimentos acordaram isso, e a ideia, naquele momento, era o seguinte: nós vamos entrar, nós vamos segurar e a gente vai negociar com o governo, era só isso, depois todo mundo vai pra sua casinha, não tem problema nenhum, só que não foi o que aconteceu, e foi quando eu decidi que eu não ocuparia mais, porque o que aconteceu foi o seguinte, a gente entrou com as nossas famílias lá, conseguiu segurar as famílias lá, teve um dos homens que entrou, na hora da correria, não no nosso prédio, no prédio detrás, que foi o espigão da [Avenida] São João, o movimento da (NET?) tinha ocupado lá, na hora de entrar deu confusão lá, e por isso não teve tanta no nosso, que era duas ruas paralela, a gente estava num lado e eles estavam no outro, entrando em um outro muito maior, aí o homem perdeu a filha dele no meio da entrada, daí a menina ficou perdida lá no Centro, teve gente que perdeu o emprego, porque como eles não contaram pra gente o que era, pra gente se preparar, porque também ninguém ia, o pessoal não tem coragem, o que aconteceu? Muita gente que foi, na hora que entrou, os meninos fecharam a porta e falaram: “Ó, agora vocês só vão sair daqui três dias, aí as pessoas perderam emprego, muita gente perdeu muita coisa naquele momento, mas depois entendeu, quando ela veio, explicou, alguns acabaram entendendo a luta, ficaram lá, seguraram, outros foram embora, mas aí chegou mais gente para ocupar o lugar, então assim que se deu as primeiras ocupações de moradia de São Paulo, dessa minha leva. Tinha alguns de terreno e coisa e tal, mas de prédio no Centro essa foi a primeira que a gente fez, e eu entendi a luta: a gente tem, de fato, que pressionar o governo, então eu aceitei aquela ocupação, que no primeiro momento eu não aceitava, depois dela eu fiz mais três, uma na [Rua] José Bonifácio, junto com ela, fiquei três meses presa lá dentro para dar apoio moral para as família conseguirem se segurar lá, saí de lá carregada. Eu lembro que o primeiro banho que eu tomei na minha casa foi sentada num banco, porque eu não conseguia levantar as mãos, de tanto que eu tinha trabalhado lá dentro para deixar o prédio pronto para eles ficarem lá e morar, porque não tinha condição de habitar, e foram assim as primeiras ocupações. O que eu vi ao longo desse tempo? Que as ocupações viraram - não todas, mas a maioria - elas viraram uma espécie de especulação de lugar para as pessoas ganharem dinheiro, de explorar família, isso me fez repensar a questão da ocupação. Hoje em dia eu não ocupo, não sou contra quem ocupa, acho que cada um sabe a luta que quer seguir, como quer fazer, eu não ocupo, eu não tenho coragem de chamar as minhas famílias para ocupar, porque eu acho que é um sofrimento muito grande para a família que vai segurar aquilo ali, e muitas vezes o sonho que a gente vende: “Ó, nós vamos ganhar isso aqui”, não ganha. Quando chega lá na frente, não vai ganhar aquele prédio, no máximo vai para uma fila, se você conseguir uma boa negociação, você vai conseguir um apartamentinho no fim do mundo, mas a maioria desiste antes, porque demora demais, então eu acho que é uma luta, que eu, Irani, no meu movimento, eu não faço, porque eu acho que é muito desgastante pro trabalhador, para pessoa. E aí eu parei de fazer, mas depois que tem uma ocupação estabelecida, é ocupação e precisa de alguma ajuda, de algum conhecimento, eu ajudo, não consigo virar as costas. Recentemente teve uma lá no meu território, eu falei que não ia ajudar, falei: “Eu não faço ocupação, eu não vou ajudar”, mas depois as famílias vieram bater na minha porta, eu não consegui dizer não, aí eu to orientando eles, falando o que eles tem que fazer, como eles têm que se comportar, porque tem toda a parte da visão do governo para eles, agora, então eu vou lá e ajuda eles, não cobro nada, não recebo nenhum real deles, nem de ninguém, mas falo para eles o que eu sei, como funciona e ajudo, de alguma forma eu ajudo as famílias. Aí eu faço essa mediação de conflito, entre o Estado e a sociedade, no caso as comunidades. Ajudo hoje… Hoje eu estou com muitas comunidades, seis comunidades, praticamente, que eu dou uma ajuda pontual, então pegou fogo, eu faço campanha lá no meu “zap”, peço, consigo. Ta faltando um colchão para Fulano, eu vou lá levar um colchão, mas tudo assim, articulação com os amigos, nada do meu bolso, nada da política, tudo assim, faço um apelo, o pessoal e eu vou lá e ajudo. Eu levo de quem quer doar, para quem quer receber, eu faço essa ponte. Enquanto isso eles ficam lá tentando ganhar um tempo para ver se um dia consegue negociar, e aí a partir da minha visão também, o tipo de visão que eu fiz da luta, da compreensão que eu fiz da luta, eu consegui ajudar muita gente, porque o que o movimento - a maioria dos movimentos fazem - eles têm uma raiz política, tem uma raiz de um partido político, tem uma diretriz, e tem uma visão do governo, direito, esquerda, não importa, eles têm uma visão do que eles conseguem naquele tipo de governo, então o que é feito? Eles traçam estratégias para conduzir o processo, e uma forma deles conseguirem abrir a negociação com o governo, é ter essa lista, essas pessoas com eles, então os movimentos não fazem um cadastro direto na COHAB, tipo a pessoa entra, faz lá o cadastro da pessoa na COHAB, por quê? Porque eles querem ter as pessoas na mão para negociar com o governo, eles não dão lista pro governo do nome de ninguém, eles seguram a lista até o último momento, quando o governo bater o martelo: “Tá bom, vou te dar trezentas casas”, “tá, vou te dar trezentos nomes”, essa é a troca. Eu já não vejo assim, eu vejo que a pessoa que quer lutar por uma moradia de verdade, ela tem que ir para as audiências públicas onde são discutidas aquela moradia, onde é que vai sair o dinheiro daquela moradia, então a primeira coisa que eu faço no meu movimento é cadastrar a pessoa no cadastro da COHAB, porque hoje, o cadastro da COHAB, é o cadastro oficial do governo. Como eu digo que eu tenho trezentas pessoas? Isso aí é uma articulação política, uma malandragem que a gente faz. Falar: “Olha, eu tenho quinhentas pessoas, e aí o número é assim, eu tenho quinhentas, eu falo que tenho mil, duas mil, porque quanto maior, melhor, por quê? Porque quando eu estou falando para o governo que eu tenho quinhentas famílias, mil famílias que precisam de moradia, o governo tá enxergando na minha testa três mil votos na próxima eleição. Se eu atender ela, o marido vai votar em mim, o filho vai votar em mim, eu tenho três votos garantidos sem desembolsar nada do meu bolso, usando a máquina pública, então essa é a linguagem que se faz, e aí eu não acho certo, eu coloco lá, e é o que eu explico para as minhas famílias, eu falo: “Olha, quando eu entro na Associação” - eu tenho uma Associação de luta por moradia hoje - quando entra na Associação eu falo o seguinte: “Olha, primeiro cadastro que a gente faz é o da COHAB, porque ele é o cadastro oficial, o resto, tendo ele ali e eu tendo a sua numeração, eu vou chegar perante o juiz e falar: ‘Olha, seu juiz, a dona Maria está cadastrada na COHAB, quem não atendeu foi o governo’”, então eu mudo a lógica, eu mudo a conversa e eu entendo de fazer a luta dessa maneira, expor a pessoa o menos possível. Outra coisa, o tipo de pessoa que vem na minha Associação, é o pessoal que já paga um aluguel, então não da para a pessoa pagar um aluguel, fazer essa luta de ocupação, seja lá do que for e trabalhar, tudo, é muito sacrificante, eu entendo isso porque eu já passei por isso muitas vezes, então a gente faz uma briga diferente, então a gente tem um acordo assim: todo mundo que pode ir nas audiências públicas, tem que ir, e aí eu conto a histórinha da minha testa do governo, falo: “Olha, quando o governo… Eu falo pro governo que eu tenho mil famílias, o governo enxerga na minha testa três mil votos, então esses três mil votos tem que aparecer na audiência pública”, então eu incentivo eles a irem, porque eu falo assim: “Quando chega lá na audiência pública, o movimento tiver mais gente, é um movimento que o cara vai respeitar”, porque ele vai fazer uma campanha política sem gastar nada, na cabeça dele, porque na minha eu oriento muito bem das pessoas não votarem em gente oportunista que vem pedir o nosso voto em ano de eleição, que vem pedir o nosso voto com uma coisa que ele deveria pedir de graça pra gente, porque isso é política pública, é obrigação deles fazerem, então eu oriento o meu povo ao contrário, eu falo: “Olha, quem está ajudando a gente é Fulano de tal, beleza, mas é obrigação dele fazer, então não puxa o voto de cabresto também” - que também é uma coisa que o movimento faz. No nosso movimento a gente fala quem está fazendo, porque está fazendo, a gente já dá meio que uma análise de conjuntura para pessoa se situar, mas ela vota em quem ela quiser, eu acho que isso é o certo, e aí eu perco muito por isso, porque fica mais difícil para mim, mas eu sei que o que acontece, que o que recebeu, recebeu de uma forma honesta. Hoje, por a gente fazer muito cadastro da COHAB, o que está acontecendo com a gente hoje? Que é um reflexo da época que a gente cadastro, em 2016, nossas famílias estão sendo chamadas naturalmente, e eu não tive que articular e vender a minha alma pro diabo, eu só tive que fazer a coisa certa, e a coisa certa é falar para a população: vai demorar, vai demorar quatro, seis, oito, dez anos, porque vai depender de quem a caneta vai estar na mão, vai depender se a gente vai conseguir fazer pressão, eu explico tudo, a pessoa não entra enganada no nosso movimento, ela entra muito bem sabendo onde ela está pisando, porque a gente faz cada coisa, explico tudinho, pode se voltar contra mim, eu tenho ciência disso, mas eu falei a verdade e aí quem fala a verdade a história julga, se eu tiver que pagar alguma punição por isso, eu também não estou preocupada. Hoje a minha situação melhorou, eu não pego mais moradia junto com eles, quando eu comecei o movimento, a gente ia ser vizinho, tomar café na casa do outro, hoje em dia a minha condição financeira melhorou muito, graças a Deus, não serei mais vizinha deles, mas enquanto tiver uma família, pelo menos da primeira leva, eu vou estar lá junto e forte. Tem dias que eu levanto que eu falo: “Meu Deus, porque eu to fazendo? Pra que eu to fazendo isso? Essas pessoas rebeldes, essas pessoas cretinas…” eu fico com raiva do povo, muitas vezes. Aí tem dia que eu levanto, eu falo: “Não quero levantar da cama, não quero fazer nada disso”, aí parece assim que Deus fala: “Ah não ‘fia’, pera aí”. Essa semana aconteceu isso, eu tava muito desanimada, porque eu me prejudiquei muito com a questão da pandemia, porque a maioria dos meus empregos não tem retorno financeiro, só cirurgia, que foi cancelada todas, agora está voltando, graças a Deus, mas eu fiquei muito apertada, porque eu quis dar uma de salvadora da pátria e eu não tive coragem de dispensar os funcionários, tenho duas funcionárias, uma na Associação e uma na minha casa, e eu não tive coragem de dispensar, não é nem dispensar, é assim eu sei que elas só contam comigo, como eu podia deixar elas desamparadas numa hora dessa? Aí elas falaram: “Você não vai me mandar embora não”, eu falei: “Não, enquanto eu tiver salário vocês têm também”, só que o meu salário caiu pela metade, e aí tá difícil manter minha casa, pagar aluguel alto e pagar elas, mas fiquei pagando, fiz empréstimo, entrei numa bola de neve que vocês não têm noção, mas elas não ficaram sem o dinheiro delas. Aí nesses dias eu levantei tão desanimada com isso, falei: “Meu, estou toda endividada porque eu quis comprar os problemas dos outros”, eu tinha um amigo que falava assim: “Não compra o problema dos outros, porque ninguém vai comprar o seu”, ele era vendedor, é claro. Mas isso ficou marcado na minha cabeça, falei: “Meu, comprei os problemas dos outros, porque eu não tenho coragem de falar não. Essa menina mesmo, a senhorinha, ela tem sessenta anos, que trabalha, faxineira maravilhosa, ela está na minha casa há muitos anos, e aí todas as patroas dela eram patroas de ano também, cinco, dez, vinte anos, quando deu a pandemia, todas as patroas… Ela falou: “Olha, quando passar a pandemia a gente conversa”, ela. Só que ela paga aluguel, a aposentadoria dela não saiu ainda, como ela ia viver? Eu falei: “Não Jailda, enquanto eu tiver salário, você também tem, fica tranquila”, e fui sustentando até hoje. Hoje, venceu o pagamento delas essa semana, junto com o meu, aí eu vou pagar a Rafaela hoje, que eu consegui o dinheiro, porque entrou o dinheiro de uma cirurgia minha, eu vou pagar a Rafaela; da Jailda eu ainda não tenho todo, mas já entrou um dinheirinho na Associação, que eu também vou passar ela e vamos lá, assim a gente vai, mas é difícil. E aí você está confusão: como é que eu tenho uma Associação e eu não falei dela ainda, né? (risos).
P/1 - Eu ia perguntar sobre ela agora, mas sabe o que eu ia te perguntar…
R - É muita história. Você chamou a pessoa errada, rapaz, é muita história.
P/1 - Não, é a pessoa certa, a gente é o Museu da Pessoa e a gente faz história, acaba aprendendo com as histórias de vida.
R - É história de mais, você não tem noção (pausa).
P/1 - Então Irani, a gente ia entrar bem na parte que eu ia perguntar pra você… Primeiro você contou uma experiência de alguém que começou a ser uma multiplicadora nesse seu envolvimento, a princípio individual, nos movimentos de moradia, você se viu ali, tendo que ocupar um lugar de uma multiplicadora, de uma facilitadora também das informações, pra muita gente que muitas vezes não entende essa burocracia, não entende também as próprias questões políticas que envolve, o direito a moradia, e como foi, para você, constituir um movimento próprio, enfim, constituir um movimento no qual você tava liderando, teve esse momento que você começou a não se sentir tão a vontade com a coisa das ocupações, não concordava muito com essa estratégia, e aí decidiu constituir um movimento próprio, como foi isso?
R - É, na verdade assim, eu não queria constituir um movimento próprio, na verdade foi o acaso, o acaso não, estava no meio, mas o que ocorreu? Nesse intervalo de tempo que eu estava lá no movimento, o que eu percebi? Que as famílias da Zona Norte eram chamadas pra luta por moradia, mas quando você ia lá para mesa negociar - e eu fui várias vezes, até para servir de testemunha, que havia uma negociação, uma seriedade do trabalho - eu não via nada sendo negociado em nome da Zona Norte, não que ela não fosse atender as famílias da Zona Norte, estavam na conta sim para ser aprendida, mas era pra ser atendido lá na Zona Leste, e o que eu entendia das famílias da Zona Norte é que as famílias da Zona Norte não querem morar em outro lugar, elas querem morar na Zona Norte, e aí era a hora que conflitava para mim, eu falava: “Gente, o povo da Zona Norte quer morar na Zona Norte, mas o povo está negociando lá na Zona Leste, como é que é isso?” E aí eu comecei a ficar chateada com isso, e eu não via uma transparência para as famílias dizendo: “Olha, a gente está negociando na Zona Leste, e eu até pedi explicação, e foi explicado para mim o motivo, eu super entendi o motivo, na Zona Leste o terreno é muito mais barato do que na Zona Norte, então tem várias coisas que facilitam a negociação, para a Zona Leste, pra Sul, e na Norte e Noroeste não. A Norte, além dela ser uma Zona cara, ela é uma Zona que quando você encontra o terreno, ou ele tá lá embaixo, na Barrocada, ou ele está lá em cima no morro, é muito declive, aclive, não sei o que. E aí beleza, eu entendia isso, isso encarecia, porque quando você pegava esse terreno você tinha que contratar um pessoal que ia ter que fazer uma terraplanagem, isso ia encarecendo uma coisa que não ia conseguir chegar na mão do trabalhador, eu super entendi, mas eu acho que tinha que ter explicado isso para as famílias e não era explicado, então isso me irritava. E aí chegou um momento, em 2013, quando o Haddad anunciou o Conselho Participativo na televisão, eu já acompanhava o Plano Diretor desde 1990, e eu sempre fiz acompanhamento dessas coisas de governo pra saber… Eu queria aprender, sabe? Era sede de aprender que era uma coisa de louco, e aí eu ficava acompanhando esses negócios, falava que tinha audiência, eu estava lá, macaquinha de auditório, era audiência e curso, curso gratuito, fala pra mim: “Vou ensinar a fazer pão”, estou lá, vai ensinar Direito, tô lá, não importa, é de grátis, eu estou lá. E aí eu ia muito para as audiências, por conta do Plano Diretor, quando anunciou o Conselho Participativa na televisão, eu achei aquilo o máximo, porque falaram assim: “Olha, você vai fiscalizar o governo”, eu falei: “Nossa, é isso que eu quero, fechou”, aí eu fiquei super entusiasmada com o anúncio do Conselho Participativo e aí fui falar para ela: “Olha Carmem, vai ter Conselho Participativo”, nossa, ela jogou um balde de água fria, falou: “Você é besta! Você não tem que entrar nisso, isso é política, você não está preprada pra isso, você não tem que entrar nisso, não sei o que”, aí você falar pra mim não fazer uma coisa, você já viu, né? Aí é que eu falei: “Não, se ela tá falando que eu não tenho que entrar, é porque eu tenho que entrar mesmo”, aí é que eu quis entrar no negócio. Aí foi quando eu anunciei pra ela, falei: “Carmem, eu entendo o movimento como sério, sou testemunha sua que você é super guerreira, que você de fato luta pelas famílias, eu não tenho nada contra...” - não é que eu não tenho nada contra - na verdade eu sinto, hoje, que o movimento não me representa, eu moro na Zona Norte, eu quero continuar morando na Zona Norte, a Zona Norte também tem _____ pra gente brigar, e eu não vejo o movimento fazendo isso, até porque já tinham os terrenos que precisavam para a briga deles, entendeu? A Zona Norte só ia engrossar o caldo deles, era isso, na prática. Eles iam atender toda a Zona Norte, mas lá na Zona Leste, que o povo não queria, e aí eu achei isso errado, aí eu falei para ela: “Olha, eu sinto que hoje o movimento não me representa, então eu queria sair..., eu sempre falei para as pessoas que o dia que eu saísse do movimento é porque tinha coisa errada, então para corrigir essa minha fala eu queria que você se apresentasse junto comigo na reunião, para a gente contar para as pessoas que eu estou saindo por um motivo particular, que não tem nada a ver com o movimento, para as pessoas não debandarem”, aí ela: “Não, depois a gente vê isso”, e ela foi me enrolando, enrolando, isso foi em outubro e ela foi me enrolando, enrolando… A eleição do Conselho Participativo era em dezembro, e aí quando chegou em dezembro ela foi para Brasília, e aí para encher minha bola ela falou: “Irani, estou indo para Brasília, está tudo em sua responsabilidade, você está me representando”, aí eu falei: “Mas Carmem, e a reeleição do Conselho”, isso o mentor dela, o Manuel del Rio já tinha feito reunião com eles e explicado a importância do Conselho Participativo, que os movimentos de moradia tinha sim que estar representado, e ela não tinha tido essa visão, eu tinha, e ele já tinha feito reunião com os movimentos de moradia, falando que os movimentos de moradia deveriam entrar no Conselho Participativo, era mais uma ferramenta, e aí ela já estava mudando a ideia dela sobre o Conselho, tanto que ela foi pra Brasília e falou: “Irani, acha uma foto boa minha lá, pega uma foto sua, da ________, vamos fazer uma chapa” - na primeira eleição podia fazer chapa - falou: “Vamos fazer uma chapa e vamos entrar no Conselho. Você quer entrar no Conselho? O seu problema é o Conselho? Nós vamos entrar no Conselho”. Aí ela falou isso pra mim, eu fiquei super feliz, tinha a gráfica do movimento que fazia serviço para o movimento, eu criei os textos, puxei as histórias dela, um pouquinho das histórinhas , criei todo o material, panfleto, fiz tudo, isso eles foram para Brasília... As cúpulas do movimento foram para Brasília resolver coisa com a Dilma. Fui à gráfica, mandei colocar o material, entreguei o material pro menino, beleza. Só que nesse intervalo de tempo, o que aconteceu? Ela ligou na gráfica, mandou tirar o meu nome da chapa e ela passou essa chapa para todas as ocupações dos movimentos, mas não passou para mim, só tinha elas na chapa, então ela me boicotou. Eu sempre tive um sexto sentido muito forte, sabe? Aí chegou o final de semana da reunião, daí eu não entendi, eu falei: “Gente, mas não me mandaram o material para dar para o povo”, não tinha mais tempo hábil também para dar para o povo, tinha que ser meio que no SMS, não tinha “zap” ainda, e eu fiquei preocupada, eu falei: “Quer saber? Eu não vou mexer com isso não”. Aí beleza, fui dormir, deitei. A eleição foi no domingo. A eleição ocorreu, nisso eu já estava achando estranho. Algumas pessoas me ligaram e falaram: “Ah, mas você não é canditada? A gente quer votar em você. Cade o seu número”. E eu achei que eles tinham mandado para as pessoas, mas não mandaram. Aí teve gente que falou: “Irani, eu recebi uma coisinha aqui, mas não ta o seu nome”, eu falei: “Meu, já era”. Beleza. No domingo foi a eleição, eu acordei de manhã no domingo, fazia muitos anos que eu não falava com uma amiga minha chamada Andreia, lá do Vista Alegre, aí liguei para Andreia, falei: “Oi Andreia, tudo bem? Não sei o que”, papo vai, papo vem, naquela época era muito comum, ali no Vista Alegre, que a escola fica embaixo, tem uma quadra, o pessoal gosta muito de usar a quadra da escola, as famílias vão muito para escola para comer, coisa e tal, e a escola estava lotada de gente e a Andreia estava lá com a filhinha dela, aí eu falei: “Andreia, eu estou candidata em um tal de Conselho Participativo? Aproveita que você tá aí na escola, que eu acho que tem eleição aí, aproveita e vota em mim”, e Andreia é assim… Ela é muito engraçada, ela: “Gente, Irani é candidata, contou para todo mundo”, aí todo foi lá, entrou na escola e votou em mim. Isso eu não sabia, eu fiquei sabendo depois. Aí beleza, quando foi na segunda-feira, que saíram os resultados das eleições do Conselho Participativo e eu vi ela, a Carmem, lá no Facebook, não, no Orkut, era Orkut, dando parabéns para todo mundo: “Fulano, parabéns, entrou, não sei o que”, e não falou nada de mim. Eu falei: “Não entrei, né?”, aí nem… Fiquei quieta, só fiquei vendo as conversas alheias. E ela parabenizando todo mundo, Manuel del Rio, todo mundo… E todo mundo sabia que ela tinha me boicotado, o movimento também, porque eu já tinha avisado para ela que eu ia sair do movimento, então foi uma forma dela, acredito, quebrar as minha pernas. Aí beleza. Estou eu lá em casa, quando deu umas duas horas da tarde, meu telefone começa a tocar: “Ah, dona Irani, parabéns para a senhora, porque a senhora foi a mulher mais bem votada da Vila Maria, que a gente conhece - os vereadores da região me ligando - que a gente conhece o seu trabalho, a gente quer apoiar a senhora, vamos conversar, meu gabinete ta aberto”, eu: “Oi? O que está acontecendo?” Aí me liga o prefeito da Vila Maria, o Gilberto Rossi: “Dona Irani, a senhora entrou para o Conselho Participativo da Vila Maria, a posse vai ser dia tal, seja bem-vinda, a porta está aberta”, eu falei: “Meu Deus, o que está acontecendo?”. Aí eu fui descobrir, fui ligar na secretaria e descobri que tinha entrado, com os votos do Jardim Vista Alegre eu entrei em primeiro lugar na Vila Maria, e ninguém me conhecia, do Conselho da Vila Maria, que tinha se candidato, porque eu não conhecia ninguém de lá, era só do movimento. Ah, quando eu descobri foi uma sensação que você não tem noção, aí eu falei: “Ah, é, mas ninguém do movimento estava acreditando em mim, pera aí”, aí lembrei que segunda-feira era dia de reunião só da cúpula, só das lideranças do movimento, não era com o povo, o povo era na quinta, me arrumei, peguei minha bolsa e fui lá pro Centro, aí cheguei… Assim, não sabia nem o que eu ia falar, mas fui. Aí quando eu cheguei lá no Centro a reunião lá é assim, você entra lá no fundo pela escada e a reunião é lá na frente, o salão é lá na frente, aí eu subi a escada e vi, a mesa, todo mundo em volta da mesa, as lideranças tudo num “papaiada danada”, aí eu fui vindo assim do fundo, todo mundo me vendo chegando, aí o pessoal fica meio assim, aí eu vi que foi acabando o assunto, ficou um silêncio total, aí quando eu cheguei perto da roda, aí o Osmar - o Osmar era o braço direito do Manuel del Rio - falou: “Ó Irani, você está por aqui”, eu falei: “Pois é, Osmar, apesar do boicote na Zona Norte, eu é que sou forte”, daí virei as costas e fui embora, aí ficaram tudo tentando entender. Aí o Osmar: “Mas o que foi?”, eu falei: “Sabe o que é, Osmar? Eu fui a mulher mais bem votada daquela merda daquela região, você acredita nisso, Osmar? Vai lá olhar”, e fui embora. Aí uma amiga minha que estava na reunião ficou e falou que o povo endoidou, aí o Manuel del Rio falou assim: “Como que vocês perderam uma liderança dessa? Me explica. Como vocês conseguiram perder uma liderança dessa? Vocês não tinham boicotado ela?”, falou: “Então, mas ela tinha outra carta na manga”, eu tinha os meus amigos de infância que votaram em mim. E aí foi muito engraçado isso. E aí foi quando eu rompi definitivamente com o movimento, achei muita sacanagem aquilo. As primeiras reuniões do ano seguinte, que isso foi em dezembro, o pessoal ainda achava que eu ia voltar para o movimento, não voltei, me fizeram um milhão de propostas, não voltei. Falei: “Não, já deu o meu tempo aqui, não quero. Agora que eu fui eleita conselheira participativa eu quero lutar pelo povo lá”, aí eles: “Mas não tem salário”, eu falei: “Mas nunca tive salário no movimento, não tem importância”, vai dar elas por elas, só que agora eu estou fazendo uma coisa sem ter chefe, eu sou a chefe. E aí eu fui muito atuante no Conselho Participativo da Vila Maria, a gente tinha uma dupla dinâmica, que era eu e a professora Camila Gomes, que a gente batia muito no Haddad, a gente ia pra cima dele, a gente arrancava as coisas do governo, assim, foi muito boa a nossa participação naquele Conselho… Assim, o Conselho inteiro era muito bom, era um monte de gente briguenta que no fim a gente entrava em um acordo, e aí eu fiz um bom mandato do Conselho, aí fui reeleita de novo por um segundo mandato, só que quando eu fui reeleita para um segundo mandato eu percebi muita gente que entendeu o que era Conselho e já entrou com uma visão política e eu falei: “Eu não quero ficar nisso”, aí eu saí fora, pedi para sair, porque vi gente que foi lá para resolver o problema da rua dele, não da população no geral, e aquilo, para mim, fugia de Conselho, aí eu peguei e pedi pra sair. E aí nesse intervalo de tempo o que houve? Isso foi em 2013, que foi a eleição do primeiro Conselho, em fevereiro de 2015, teve o primeiro mandato, aí eu fiquei meio vai-e-vem, aí em fevereiro de 2015, bem antes de fevereiro - fevereiro foi quando eu fundei a Associação - mais tipo assim, em 2014 ainda, logo que eu saí do movimento, fiquei só de Conselheira, estou na minha casa, me bate palma lá, dona Flora - dona Flora era uma velhinha que tinha quatro filhas na Associação da Carmem, e cada reunião ela ia representando uma, porque só ela acreditava na luta, as filhas não, as filhas só queriam o apartamento, aí como ela acreditava ela ia, e representava todas as filhas, fazia todas as atividades propostas, cada uma no nome de uma filha, para ganhar pontuação, dona Flora era um espetáculo - aí dona Flora me chega - eu já tinha saído lá da Carmem - a dona Flora bate lá no meu portão: “O que foi dona Flora? A senhora tá bem?”, “Não, eu estou ótima” - ela é bem arretada - ela falou: “Eu estou ótima, o negócio é o seguinte: você saiu da Associação, você sempre falou que se você saísse, tinha coisa errada”, eu falei: “Não tem nada de errado, não dá para me representar, mas não tem nada de errado, pode continuar lá com a Carmem”, “Não, só que a gente não acredita nisso. Depois que você saiu, metade do movimento saiu também”, eu falei: “Meu Deus do céu, é agora que eu tenho uma inimiga pro resto da vida, eu estou lascada”. Mas saiu mesmo assim, acabou o movimento, ficou meia duzia de gente, ela acabou encerrando a reunião lá, porque o pessoal saiu tudo. Mas eu não falei nada, eu nunca denegri, nunca falei nada de mal deles, até porque não tem o que falar, entendeu? Ela tem o jeito dela, eu falo que tudo que eu aprendi foram por causa dos “nãos” dela, porque quando ela falava “não” eu ia correr atrás e eu ia aprender, então eu devo muito o que eu sei de moradia para ela, então por esse motivo eu nunca vou ficar… Assim, ela tem um gênio de cão, que eu também tenho, se eu fosse filha dela eu acho que eu não seria tão parecida, só que assim, eu sou dura, mas assim, eu sei o que as pessoas sentem, eu sei explicar e assim, eu sei adoçar. E aí a dona Flora falou assim: “Como a gente faz para ter um movimento igual o da Carmem?”, eu falei: “Oi?”, ela: “É. Ó, eu já tenho as pessoas, todo mundo que saiu dela quer ficar com você”, eu falei: “Mas dona Flora, eu não tenho movimento, eu estou sendo Conselheira Participativa, eu não tenho nem intenção de ter movimento”, “não, mas você deve isso pra gente”, quando ela falou: você deve isso pra gente, caiu a ficha, eu falei: “Gente, olha o que eu fiz, eu arrastei essas pessoas sem querer, agora eu tenho que dar uma devolutiva”. Eu falei: “Tá bom, dona Flora, a senhora quer saber o que tem que fazer para ter um movimento? Primeiro você tem que ter pessoas que queiram fazer a luta, que queiram participar das coisas públicas, para poder correr atrás”, “ah não se preocupe porque isso a gente já tem, eu anotei o nome de quarenta pessoas”, eu falei: “A senhora já fez isso dona Flora?”, “já fiz, tá aqui ó: Fulano, Ciclano, tudo quer ficar com você. É só você falar o que a gente tem que fazer que a gente faz”, falei: “Então, dona Flora, tudo bem, a gente tem quarenta pessoas, só que a gente não tem um projeto, a gente não tem um terreno para indicar pro governo, para correr para as nossas famílias, a gente não tem isso”, “Ah, o problema é terreno? Aí ela fez assim: pera aí”, ela era bem baixinha - é muito engraçado, eu lembro da cara dela até hoje no meu portão - “pera aí”, e saiu andando. Falei: “Gente, que velhinha maluca”. Aí entrei para dentro, beleza, passou uma semana ela bateu na minha porta, chegou com o um cara num carro. Eu falei: “O que foi?”, “então, esse aqui - como que era o nome dele? Zé Pedro - esse aqui é o Zé Pedro, ele é corretor de imóvel, conheço ela a milianos, desde que começou a fundar esse bairro, ele sabe tudo onde tem terreno para ser moradia”, ai trouxe esse cara, ele indicou um terreno pra gente, lá na Sezefredo Fagundes, 3333, ele indicou esse terreno lá pra gente indicar pra moradia; aí ela falou: “Você já tem o terreno, agora você tem que fazer a Associação”, pensei: “Caramba, me encurralou a ‘véia’”, falei: “Tá bom, dona Flora, vamos fazer uma reunião e explicar para o povo qual é a nossa ideia”. Aí ela chamou as pessoas, aí a gente foi, me deu a lista, chamei as pessoas, a gente fez a primeira reunião, falei: “Gente, o negócio é o seguinte, eu não tenho nada contra o Carmem, eu acho que o projeto deles está muito, anos luz na nossa frente, a gente vai começar engatinhar agora atrás dessa moradia, dona Flora trouxe um terreno para apresentar - e aí eu soube que ela tinha usado a aposentadoria dela pra pagar o corretor pra trazer o terreno, pro cara indicar, dar o nome do terreno, depois que eu soube - a dona Flora trouxe um terreno, vocês são um grupo, se vocês quiserem eu posso utilizar o que eu sei para gente fazer”, e foi aí que a gente criou a ALMEM [Associação de Luta por Moradia Estrela da Manhã], aí fizemos a carteirinha, tudo bonitinho, coisa que nem tinha no outro movimento, a gente criou carteirinha com presença, com data antecipada das reuniões, fizemos tudo bonitinho, e estamos até hoje com essa Associação. Só que a ALMEM, apesar dela lutar desde 2014 e a gente tem essa comprovação pública, porque a gente foi para todas as audiências públicas de orçamento, de habitação, de educação, de cultura, de saúde, todas. Quando as pessoas entram eu falo: “Olha, a gente tem uma média de doze audiências públicas importantes no ano, a gente não vai fazer as doze porque a gente não tem perna pra isso, mas aqui eu faço, em média, nove ou dez, falta em uma ou outra, que eu não entendo. Mobilidade urbana eu não sabia nem o que era, então eu não participava, hoje eu participo, e aí eu falo assim, dessas doze vocês tem que ir em pelo menos quatro, tem que ir na de Orçamento, Habitação, Zoneamento e na da Saúde” - porque a gente tem que fortalecer o movimento da saúde - então a gente combina isso com a população. E aí a gente criou as regras da Associação. Associação tá desde 2014, o Dito me ajudou, eu fiz um estatuto super bacana, bem elaborado e eu fui pro cartório pra registrar o estatuto e não registrei, então a nossa Associação tem quatro anos agora, de registro no cartório, de CNPJ, mas ela tem uma atuação desde 2014 e mesmo lá em 2014 eu tendo feito o estatuto, eu acabei não registrando. Eu fui pro cartório, sentei, peguei a senha, na hora de registrar eu desisti, não sei, teve uma coisa que falava pra mim: “Não registra, não registra”, aí eu segui a minha intuição, entreguei a senha e fui embora pra casa e guardei o documento em casa, não registrei. E assim, tem gente que chama de intuição, tem gente que fala que é Deus, que é o Universo, mas assim, o que aconteceu foi que se eu tivesse registrado a Associação naquela época, eu estaria lascada hoje, porque as pessoas que estavam na composição da Diretoria se mostraram pessoas que não eram hedonias, pessoas que tentaram se aproveitar de uma forma ou de outra, então assim a melhor coisa que eu fiz foi não ter registrado o nome daquelas pessoas, porque eu ia ficar na mão delas, e graças a Deus isso não aconteceu. Aí depois quando estava com mais maturidade, sabendo quem era quem eu fui lá e registrei, então hoje a gente tem quatro anos de CNPJ, temos dois projetos indicados no governo, um é esse terreno da Sezefredo, o terreno que a dona Flora trouxe, que a gente ta com problema com ele hoje, porque ele está sendo considerado terras do Incra, terras rurais, então a gente tem que resolver essa questão do Incra pra poder andar, mas a gente tem um outro, que é na Lauzane Paulista, que é um terreno na [Avenida] Direitos Humanos com a [Avenida Doutor] Francisco Ranieri, que é um terreno que me rendeu muita inimizade política, e até ameaça de morte, porque é um terreno que está no meio de um bairro que hoje é considerado classe média, mas o terreno está indicado pra moradia há séculos lá, só que o governo fez, entrou governo, saiu governo fez, aí a gente tomou a briga. E aí quando a gente tomou essa briga, o que aconteceu? A gente recebeu ameaça de morte, teve um pessoal que começo a fazer embate contra a gente, do local, que não queria o movimento de moradia, não queria pobre morando perto, mas a gente conseguiu vencer, a gente se aliou a um… Tinha um vereador que sempre corria atrás de mim: “Aí, vem ser a minha assessora, entra no meu gabinete, não sei o que”, e eu sempre mantive distância, não quero saber de política, de partido, não sei o que, e aí quando chegou esse momento que começaram a ameaçar a gente, que a gente viu que a gente ia perder o terreno, porque do dia para noite, dentro da prefeitura apareceu que o terreno ia ser uma ZEIS cinco, que uma grande consultória construiu um condomínio de luxo lá, eu falei: “Opa, está na hora de pensar politicamente no negócio”, aí eu fui atrás desse vereador - não sei se pode falar o nome dele - mas eu fui atrás dele e falei: “Olha, não votei em você, meu povo não votou em você, mas eu preciso da sua caneta, eu preciso de você”, aí ele deu risada e falou assim: “Como assim você vem falar pra mim que não votou em mim e quer me ajuda?”, eu falei: “Ó, eu não votei em você, mas já que você se elegeu a vereador de São Paulo, você tem que atender a demanda de São Paulo, independente se você votou em você ou não. Ou estou errada?”, ele falou: “Não, a sua visão está correta”, falei: “Então… E outra coisa, eu não votei você no passado, mas se você nos ajudar, de fato, eu vou contar pra população que você que ajudou e onde você ajudou, e aí quem sabe na próxima eleição a gente vai garantir a sua eleição” - e de fato a gente garantiu, a gente arrastou seis mil votos pra ele dentro da Zona Norte, na eleição de 2016 - aí beleza, ele ajudou a gente, aí ele conseguiu colocar, eu escrevi o texto em nome do movimento, ele conseguiu rodar lá nos 55 vereadores, conseguiu as assinaturas suficientes pra indicar o terreno pra gente de volta, e não para a construtora que ia construir para os ricos, então o nosso movimento cresceu muito por conta disso, lá no Lauzane Paulista, e era um terreno que… Eu pedi ZEIS dois no terreno, pra você construir predinho de cinco andares, pra família de baixa renda e coisa e tal, só que o aspecto do entorno do terreno hoje não permite mais que seja só uma ZEIS dois ali, não da pra ser um Conjunto Cingapura, COHAB, alguma coisa do tipo, lá é uma ZEIS três, e aí qual a diferença da ZEIS três pra ZEIS dois? É a mesma área e o mesmo terreno, é um terreno que precisa ser adensado e você precisa construir, o que diferencia é pra quem que vai ser e quantas unidades vão ser, essa é a diferença. Então enquanto na ZEIS dois você pode construir predinhos de cinco andares para trabalhadores de baixa renda de até 1800 reais, em que 75% da demanda vão ser essas pessoas; na ZEIS três é o contrário, você constrói quatro vezes o potencial de construção daquele terreno, então ao invés de ser trezentas unidades, vai ser mil e duzentas, só que você vai fazer 50% pra quem ganha até três salários mínimos, que na verdade é para quem ganha até um salário mínimo e meio, e os outros 50% pra todo o resto da demanda, até nove salários mínimos. E aí a gente entrou num acordo, quando eu vi que ele tinha pedido como ZEIS três e não dois, como eu mandei, nossa, eu liguei pra esse vereador, mas eu xinguei ele demais. Falei: “Você está pensando que vai me enganar? Não sei o que”, ele falou: “Irani, vem aqui que eu vou explicar o que são ZEIS”, eu nem sabia o que eram ZEIS. Aí ele foi lá, me explicou, ai eu falei: “Ah é…”, aí ele falou assim: “Irani, 10% de nada, é nada, vocês precisam entender como que está a situação hoje, porque quando o terreno foi indicado lá atrás, há trinta anos, ele era uma ZEIS dois mesmo, mas ele não é mais, o entorno evoluiu”, porque enquanto a ZEIS dois tá no meio do nada, a ZEIS três está no meio da classe média, então a visão política tem que mudar também, porque ela está sendo atendida por esses equipamentos públicos, então ele aumenta também a entrega”, aí eu entendi, falei: “Ah, tá bom, se é assim, tá bom”. Aí ele falou isso pra mim, eu nunca esqueci: 10% de nada, é nada. Não adianta você ter 0% de tudo”, aí eu entendi o processo, aceitei, e a gente passou a lutar. Então todas as audiências públicas que a gente tem na região da Casa Verde, Santana ou Tucuruvi, a gente registra que queremos moradia naquele lugar, a gente está batendo isso há anos. Agora a gente tem um acordo, mudou a direção da habitação, mudou o secretário, mas a gente já tem… Vai ter uma reunião marcada com ele, já tem o entendimento que ele vai receber o nosso movimento, considerar o nosso movimento como um movimento da região, e que de fato representa as pessoas da região, então eu não preciso fazer um acordo político, porque a minha demanda é daquela região, e o que diz o edital é que os critérios de habitação que tem demanda local, e depois o resto, então assim, o nosso movimento, hoje, vai atender as famílias ali. É isso.
P/1 - E quantas famílias hoje, fazem parte, estão vinculados ao movimento?
R - Então, hoje a gente tem 3474 famílias cadastradas, a gente tem mil cento e poucas famílias ativas e aí o ativo, que eu chamo, é o cara que vai à reunião e que não tem três faltas consecutivas, mas a maioria está indo bater as três, então a gente tem assim, se fosse para atender no critério sério mesmo, de escolher e de levar a ferro e fogo, seriam umas setecentas famílias, mas a gente tem as outras, “ah, fiquei doente…”, aí vai lá, volta pro movimento e a gente aceita. Essas famílias têm um potencial da região, porque a gente arrastou seis mil votos numa eleição, porque a orientação foi o seguinte: esse é o cara que anda com a gente, a gente tem a obrigação de manter ele pra continuar mantendo as nossas coisas, então a gente precisa do nosso voto e de mais cinco, então traz mais cinco votos, de amigo, do pai, da mãe, e aconteceu, e foi super bacana, porque ele, de fato, andou com a gente. Mas hoje em dia quando eu faço acolhimento, eu explico como é a nossa relação política, explico que eles são livres pra votar em outro partido, em outro candidato, mas como liderança é a minha obrigação falar quem anda e quem não anda com a gente, quem vota no tipo de pauta que a gente defende e quem não vota, eu acho que a gente tem obrigação de falar isso. Eu não posso dizer: “Olha, você tem que votar”, não, mas eu tenho que contar história. Tanto que a gente está inaugurando… Com essa história de pandemia a gente não pode ter mais aglomeração para ter reuniões presenciais, a gente está inaugurando o nosso “zap”, a gente tem quatro grupos de “zap”, tem duzentas e poucas pessoas em cada um, então a gente está inaugurando o “zap” com… Eu falei pra menina fazer um post pra mim contanto a história, então eu vou contar a história de como é a nossa relação com esse candidato, como que se deu essa relação, até onde ele nos atende - porque ele também nos atrapalha muito - porque quando ele faz… Ele não é da base aliada do governo, os partidos de esquerda até considera, mas ele não é, porque ele faz a crítica no governo, e quando ele faz a crítica no governo, o governo vai lá e dá pau em quem está com ele, então assim, ele também nos causa problemas, e a gente também tem que avaliar isso, até onde dá para andar politicamente, então tudo isso eu explico para as pessoas. Nos ajudou nisso, nisso e nisso e nos atrapalha nisso, faça a sua avaliação, o voto é seu, entendeu? A gente tem essas pessoas e a gente tem dois trabalhos na ALMEM, que é a Associação de Luta por Moradia Estrela da Manhã, a gente tem um trabalho com os nossos associados, os nossos associados, às vezes… É, a gente tem um índice de inadimplência muito grande, só que é o que eu falei, eu não sou traficante para botar a faca na garganta de ninguém pra fazer me pagar, é assim, existe uma taxa de contribuição que eles fazem, eu gasto cada centavo… Faço questão de gastar todos os centavos dessa contribuição, porque essa contribuição já rendeu problema pra mim e pra minha família, já me trouxe risco por conta de mexer com dinheiro, então hoje em dia a gente não deixa dinheiro em caixa, a gente não tem. A gente enfia um monte de projeto pra gastar o dinheiro que entra, então hoje a gente tem cinco alugueis que a gente paga, que são os espaços onde a gente faz reunião; a gente tem um projeto que chama “Mulher Acolhe” onde eu tiro a mulher, vítima de violência, da comunidade, usando o meu trabalho de PLP, alugo uma casa para ela; então hoje a gente tem uma mulher que está escondida, ela era vítima de uma violência dentro de uma comunidade, ela ia ser morta, a gente resgatou ela de madrugada, alugou uma casa pra ela, mobiliou a casa, a gente paga água e luz dela, paga o aluguel dela, com o dinheiro da Associação, da contribuição da Associação. Todos os associados sabem disso - não sabem quem ela é, nem onde ela tá, nem nada - mas sabem que o dinheiro é usado pra isso também; então a gente paga cinco alugueis, eu faço vários projetos, projeto de mulher grávida, por exemplo, vai ter neném, a gente compra enxoval, ajuda a comprar as coisas. “Aí, está faltando comida, não tem sexta básica”, a gente da associação compra sexta básica e da para a família. Eu sei que juridicamente isso pode me render um problemão, porque isso não está previsto no meu estatuto, dessa forma, entendeu? Só que família chegou pra mim com fome, tem dinheiro na caixa, vai ganhar comida. O resto depois eu vou lá e me defendo. Eu sou adulta, eu sei me defender, mas eles não, então assim… Sou contra assistencialismo, totalmente contra, faço Serviço Social, mas não faço assistencialismo, tudo que eu faço pra população tem contrapartida, e aí tem um negócio nisso tudo, esses serviços sociais que a gente faz não são para os nossos associados, a gente não ajuda os nossos associados, só tem dois projetos que os nossos associados se beneficiam pela Associação, é o projeto “Limpa nome”, que é um advogado que faz e o projeto de… O convênio com a Anhanguera, com as faculdades, a gente tem convênio com as faculdades, eles participam disso. Os projetos sociais que eu faço não são dentro da ALMEM, são nas comunidades do entorno, então eu entendo que quando eu vou lá e ajudo a comunidade a melhorar, a adquirir um título, a lutar por algum espaço, eu estou tirando a comunidade da minha frente na fila da COHAB, então eu vou ter o meu retorno de alguma forma, então hoje a gente faz isso, a gente tem seis comunidades que a gente ajuda as custas dos associados, e aí eu falo pros associados que eles tem que ter um trabalho social, uma participação social, além de irem nas audiências públicas. Tem gente, por exemplo, que fala assim: “Irani, eu trabalho de segunda a segunda, eu não consigo ir numa audiência pública”, “mas você consegue ajudar num projeto de enxoval”, a pessoa vai lá e ajuda, ela está colaborando de alguma forma. É claro que eu não to trocando projeto social pela ajuda, porque eu acho ruim isso, porque senão a pessoa: “Ah, tudo bem, não preciso ir à reunião, vou lá dar um dinheirinho”, ta me comprando. Então eu explico para eles, eu não dou pontuação máxima para doação. A pessoa fez uma doação, o máximo que eu dou é trezentos pontos, porque mil pontos é a presença dela na audiência, e eu quero ela na audiência, eu necessito da ajuda dela pra fazer o projeto social, mas eu prefiro ela na audiência do que me doando qualquer coisa. Eu já vi, em outros movimentos, o cara abrir o armário da família, tirar comida da família pra dar pro movimento, sendo que ele não tinha nem pra ele, só pra ganhar ponto. Está errado. Então eu não quero que o pessoal da nossa Associação tenha essa visão, de comprar pontos, eu não quero que eles venham com essa visão, eu quero que eles venham com a visão de que eles precisam participar das audiências públicas com a gente, porque é assim que a gente vai chegar lá. Pode demorar? Vai demorar, pode demorar, mas a gente vai conseguir de uma forma honesta, correta; e já está vindo as provas disso aí, tem uma PPP do Tucuruvi que foi inaugurada agora, foi o último ato do governo, foi botar placa no terreno falando que foi uma PPP. E aí tem as recessões da gente, em relação as PPPs, porque a PPP não é tão boa assim pro povo, mas é o que a gente tem pra hoje, nesse governo. Então nós vamos pegar o povo que tem esse perfil e vamos colocar lá. Eu não vou fazer embate, “Ah, não é o que eu quero, não é o que eu acredito”, eu vou fazer embate pro governo, não é do meu partido, eu não faço isso. Onde dá para colocar gente nossa, a gente vai colocar e vamos continuar lutando pro povo para as outras esferas, mas acho burrice fazer esse embate e prejudicar toda uma demanda por questões políticas, “que não é do meu partido, porque eu não gosto”, entendeu? Eu tenho sérias restrições ao Governo Federal, nem pronuncio o nome, porém a ação que ele tá fazendo agora vai ajudar muita gente, baixar os juros de habitação é importante, e ele não está fazendo porque ele é bonzinho, ele está fazendo porque ele está numa jogada de achar que vai conseguir os votos do Lula no nordeste, é por isso que ele fez isso daí, só que da pra gente se beneficiar disso, é o que tem pra hoje? Então vamos nos beneficiar disso. Não vamos votar nele, não vamos fazer nada disso, mas a gente vai saber aproveitar cada oportunidade que ela traz pro nosso movimento. Essa é a minha visão.
P/1 - Irani, acho que a gente já vai se encaminhar pro final da entrevista, mas eu queria te perguntar o quanto a sua trajetória pessoal influencia nessa sua luta por moradias? Luta que não é só sua, mas é uma luta que você está encampando também no nome de outras pessoas.
R - Acho que muito. A gente teve casa própria no passado, meu pai vendeu, deixou a gente meio que na rua. Hoje eu tenho dois filhos biológicos e dois filhos do coração, e que eu trabalho numa profissão autônoma, por isso o nosso envolvimento, eu acho importante a gente falar então, abrir um parêntese para falar o “1000 Mulheres”, porque quando eu comecei a trabalhar com o movimento de moradia, eu entendi que ia demorar muito, e eu não vou pegar o microfone lá na frente, na reunião, e inventar, encher linguiça pro povo ficar no movimento, entendeu? Eu vou falar a verdade - e as pessoas não gostam de ouvir a verdade - falar: “Ó, vai demorar”. E eu dou sempre aquela ilustração, o cara está com aquela picareta, cavando, cavando atrás do diamante, quando falta uma paredinha fininha ele desistiu e foi embora, e perdeu a benção. Então eu falo muito sobre isso com as pessoas, eu falo: “Olha, vai demorar, até lá o que a gente vai fazer? Seja lá onde a gente for morar, a gente vai querer que tenha um posto de saúde, que tenha uma escola, a gente vai querer outras políticas públicas, então porque não lutar por essas políticas públicas até chegar a nossa?”, e assim a gente faz, a gente vai para as audiências públicas de saúde, a gente tira delegado em tudo quanto é conferência, nessa visão. Então a gente fala: “Olha, dona Maria mora na casa alugada e a rua está escura”, “vamos atrás da prefeitura para colocar iluminação lá”, a gente corre atrás dos direitos enquanto isso. Se os nossos associados têm um problema de qualquer esfera, é no nível de vim discutir relação sexual comigo, nesse nível é a minha relação com as famílias da ALMEM, da mulher vir reclamar: “Irani, vi que você é feminista, o que você acha disso?”, eu falo: “Olha, eu não tenho que achar nada, quem tem que achar é você. É assim, assim, assim, você tá preparada pra mudar?”, eu falo a real. Aí jé entra em uns assuntos íntimos delas, mas elas têm essa confiança, elas sentem que… E esse termo “família ALMEM a gente”, eu sempre uso esse termo, falei: “Não é associado, é família ALMEM, então nós vamos ser uma família, vamos morar no mesmo lugar, e coisa e tal”. Hoje eu não incluo mais, porque a minha renda está acima, então eu não consigo mais entrar com eles, mas… E aí eu falo pra eles: “Olha, é igual aquela passagem bíblica, eu vou ser Moisés, vou levar o povo pra terra prometida e não vou entrar nela, mas amém, vocês entrando, é isso que importa pra mim. E aí quando a gente vê qualquer coisa que beneficie a população, que vai trazer alguma coisa de bom pra eles, a gente insere eles, então eu entrei pra Rede Social da Zona Norte, já tem uns dez anos que eu estou na Rede, porque eu vou em tudo quanto é reunião, falou que é reunião da região, eu estou lá, e eu entrei pra Rede. A Rede passou por várias estruturações, várias mudanças, uma delas foi quando o SEBRAE assumiu a… Não é articulação, mas assim a interlocução com a Rede, tendo o pessoal do SEBRAE junto, e começaram vir as coisas do SEBRAE pra dentro da Rede e eu comecei a colocar o meu povo lá. Quando saiu a proposta do “1000 Mulheres”, foi uma proposta da Rede também - numa das reuniões da Rede com o SEBRAE - as meninas falaram: “Irani, você tem um monte de mulher lá…”, porque antes dessa proposta do “1000 Mulheres”, a gente tinha um negócio que chamava “Café com Proposta”, a gente fez o “Café com Proposta” no governo Haddad, alguém chegou do governo e falou: “Ah, o Haddad queria tomar café com as mulheres”, eu falei: “Ah, ele quer tomar café com as mulheres, pera aí”, aí eu fiz um convite para as mulheres e coloquei “Café com Propostas” e o nome pegou na Zona Norte, e a gente fez o Café, no dia ele não pode ir - que foi uma pena - mas a gente lotou aquele auditório de mulher, cada uma levou uma coisa, fizemos uma mesa maravilhosa de café e a gente tomava café e discutia política, e ele ficou sabendo, as meninas da secretaria contaram pra ele, a PAGU, e ele achou fantástico, aí ele aproveitou e usou o nosso gancho pra chamar “Café com Propostas” com as mulheres das outras regiões, mas fomos nós que colocamos isso lá na Zona Norte, e aí a gente falou: “Quer saber? Vamos reunir a mulherada, pelo menos uma vez por ano”, então uma vez por ano eu faço um almoço ou um café, um chá de mulheres - e aí o “Chá de Mulheres” é copiando a igreja evangélica - e chamo elas e a gente faz uma tarde, fala sobre vários assuntos, e aí que teve a ideia da gente trazer elas pro projeto “1000 Mulheres”, falei assim: “Tem um monte de mulher que precisa se emponderar, precisa…” A Ciziam mesmo é uma - que eu cheguei a tocar no nome dela pra você - a Ciziam, nossa, quando ela chegou no movimento ela era… Ela mesmo fala, era uma pamonha, uma bobona, agora a mulher tá tão emponderada, porque tudo que a gente coloca, ela vai lá, ela entende: “O dona Irani - aí ela me liga, ela vai lá, faz o cursinho aí ela me liga - quando ele falou tal coisa, tal coisa, ele tava querendo dizer isso?”, eu falei: “Não Ciziam, ele tava querendo dizer isso”, ou às vezes eu falo: “Não, era isso mesmo”, então ela está se achando o máximo. E é uma pessoa que assim, sofreu muito na vida e quando eu fui escutar a história dela, assim, ela teve muito sofrimento na vida dela com a família e tudo mais, e agora está deslanchando. E quando veio o projeto, a gente colocou no nosso grupo, a gente chamou sessenta mulheres, a ALMEM foi uma das madrinhas do projeto, eu fui a madrinha do projeto, então arrumei o local pra fazer o projeto, arrumei o lanche, a comida, pra levar pra elas, e convidei, falei: “Olha, o melhor lugar pra gente fazer esse projeto, o primeiro - a gente vai fazer mais um agora - é lá no CEU do Jaçana, porque a gente tem um monte de mulheres lá”, e aí eu tinha o espaço de graça pra fazer - o CEU foi de graça também - mas eu tinha um espaço melhor pra fazer e eu não levei porque elas teriam que pegar condução, até pra pegar condução era ruim, porque elas não tinham dinheiro, então a gente pediu o espaço do CEU, a Daiana, que era uma das mulheres que está com a gente - a Daiana tem uma história incrível também - e aí a Daiana conseguiu - ela estava trabalhando lá, por uma indicação até nossa - aí a Daiana conversou com o pessoal, conseguiu o espaço, a gente fez lá, foi um sucesso. Tem um monte de gente que saiu de lá emponderada, que está com outra visão, tem muita gente que não conseguiu nada, mas que já sabe o que quer. Naquela época elas nem sabiam o que queriam, e isso abriu a visão delas. Aí agora que tem a pandemia, tem uma lá que já está fazendo batata recheada, ela coloca no grupo, vende pra caramba; outra está fazendo feijoada; outra está fazendo pizza, elas tão andando, e esse que é o bacana, que alguém foi beneficiado porque você tinha um conhecimento e passou, ou uma informação. Isso me faz lutar todos os dias, saber que tudo o que eu sei não é meu, é pra ser compartilhado, então eu tenho que reproduzir isso, porque quem me paga é Deus, e Deus me paga muito bem, porque graças a Deus, olha, eu sou autônoma, eu dependo de coisas e nunca faltou nada, e nunca precisei vender a alma pro diabo. É isso.
P/1 - E Irani, o que representa se, enfim, você tem múltiplas ações aí, mas eu acho que eu posso pensar então como uma articuladora, ________ e enfim, mediadora também, e o que representa fazer esse trabalho de articulação, mediação na Zona Norte, na região Norte de São Paulo, uma região que você passou boa parte da sua vida?
R - Para mim é muito importante, e necessário, porque a Zona Norte, ao contrário das outras Zonas… Ó, você vê, acontece alguma coisa na Zona Leste, meu, o povo vai pra rua, fecha a rua, queima pneu, faz o escarcéu, o povo reage. A Zona Norte não tem isso, o povo está muito acomodado. Eu ouvi uma coisa uma vez - e eu quase levantei pra bater no secretário, e depois eu entendi que ele tinha um pouco de razão, embora eu não tenha gostado do deboche dele - ele falou assim: “Eu não sei porque vocês defendem a Zona Norte, a Zona Norte é um povo que está na merda, mas tá andando de salto alto pra não sujar o pé de merda”, nossa, aquilo me deixou louca. E depois eu fui raciocinar: “Não é que é mesmo?”. Aí eu falei: “É mesmo”, porque assim, o índice de inadimplência das prestações da COHAB, por exemplo, dos empreendimentos que já estão pronto, com gente morando na Zona Norte, é de 70%, cara. A gente está falando de uma prestação de 55 reais, quer dizer, não é um absurdo. E aí quando você vai lá na casa dessa pessoa, ela fez móveis planejados com o marceneiro, ela tem um carro zero na porta, que ela também não paga, está prestes a perder, mas é o estilo do povo, entendeu? O povo não entendeu nada, e não é nem que chegou fácil, não chegou nada fácil pra eles, mas eles entenderam que é deles, que não precisa pagar, que não precisa conservar, que não precisa cuidar, então esse povo precisa ser politizado, não sei se politizado seria o termo correto, mas a gente precisa ajudar essas pessoas a entenderem como que ela funciona naquele espaço, naquele local. O governo tem muita restrição de fazer projetos tipo Cingapura, COHAB, por quê? Porque sabe que vai tirar o povo da favela e a favela não vai sair do povo, então porque a gente não vai lá na favela fazer esse trabalho de conscientização antes deles conseguirem, porque quando eles conseguirem, eles vão com uma visão diferente, é isso que eu tento fazer hoje. Eu falo pra mil, dez me escutam, mas dez funcionou. E eu vou continuar falando, vou continuar. Hoje eu tenho um acesso muito livre, ninguém me bloquei, ninguém fica me indagando dentro das comunidades, sabe que as comunidades estão todas na mão do terceiro, quinto poder, sei lá que poder é esse, que é o poder do crime, mas eles não fazem embate contra mim porque eles entendem o que eu estou falando, porque eu estou falando, que é o que a população de fato precisa ouvir, e isso precisa ter essa mudança. E a Zona Norte precisa acordar, porque é um lugar caro, todo mundo está de olho em fazer uma reservinha num apartamentinho na Zona Norte, porque 80% do efetivo da polícia está na Zona Norte, a gente tem a melhor água - que é a da Cantareira, água da Cantareira, não. A nossa água, da região que eu to, vem de Mogi, que é a melhor água, depois vem a Cantareira, depois vem os outros - então tem muita coisa que quem é da alta sociedade entende e sabe o valor, e a gente que não sabe como funciona, a gente não está valorizando isso e entendendo isso, porque é tão difícil para nós? Então eu fico numa posição de que eu preciso alertar as pessoas, muita gente nem acredita, fala: “Ah, é louca, é briguenta, gosta de brigar”, mas é isso, entendeu? O meu papel… Por muito tempo eu neguei a política, por muito tempo falei: “Não gosto de politicagem”. Eu não gosto de politicagem, política eu gosto. Então hoje em dia, quando eu me apresenta numa coisa pública, eu falo: “Olha, eu sou articuladora política, não de partido - porque também quando você fala de política o povo vê partido, não tem nada a ver com partido político - eu sou articuladora política e sou mediadora de conflito entre o Estado e a comunidade. Então assim, se tem briga na comunidade, eu me intrometo, eu vou lá, eu dou uma carteirada no juiz, essa história é incrível. Lá na [Rua da] Baracela chegou um pedido de reintegração de posse, o povo endoidou, as mulheres passando mal, enfartando, os velhinhos lá, todo mundo morrendo. Quando houve ocupação, eu falei: “Eu não participo de ocupação”, não fui. Eu estava cuidando do lado debaixo, porque a Baracela é divida em duas, a parte debaixo tem vinte anos, está no Escritório Modelo, ajudo muito eles, eles me ajudam com a comunidade debaixo, e tem a parte de cima, que é a ocupação nova. A ocupação nova eu fui contra desde o início, mas hoje eu acudo muita família de lá, porque eu acho que muita família não tem culpa, quem tem é quem está por trás, quem está fazendo coisa errada, então a família não tem culpa, então acabei ajudando. Mas não ajudo tanto também não, a parte de cima. A parte debaixo, eu estou lá desde o começo ajudando eles, quando eu cheguei eles já estavam lá, então eu não fiz parte de ocupação nenhuma, não tenho envolvimento com nada disso, mas eu tenho que ajudar, porque eu tenho conhecimento que eles não têm. E o que ocorreu? Chegou essa reintegração de posse lá, nosso, teve mulher que infartou, homem que passou mal, foi uma tragédia. As mulheres com neném no colo, tudo chorando, você precisava ver o desespero do povo, eles nunca tinham recebido uma reintegração de posse. Aí me ligaram, a liderança que tinha lá dentro, me ligou: “Irani, eu estou no Tatuapé resolvendo coisa do meu marido, pelo amor de Deus, vai lá na Baracela que o oficial de justiça tá lá e ninguém quer receber a notificação”. Falei: “Mas tem que receber, gente. Como é que vocês vão saber do que estão sendo acusados?”, “Não, eles estão com medo”, falei: “Recebendo ou não recebendo a reintegração vai andar, então é melhor saber do que se trata”. Eu estava botando a comida no prato, eu larguei o prato na mesa, peguei o uber e bati lá. Cheguei lá, o povo todo desesperado: “Dona Irani, salva a gente, não sei o que”, e tem uns lá que me chamam de “doutora”, eu falo: “Eu não sou doutora, eu não tenho O.A.B, eu nunca estudei Direito, não me chama de doutora que eu não sou”, “não, mas para nós você é”, eu falei: “Não, mas não quero isso não, porque depois vão falar que eu estou inventado, me apropriando de uma coisa que eu não sou. Eu entendo um pouco da política, da parte de justiça, entendo um pouquinho de casa coisa, o que eu entender eu vou traduzir pra vocês”. Aí o oficial me agradeceu, porque ele tava já querendo ir embora, seguraram o nome lá, eu falei: “Pode deixar que eu assino”, aí eu assinei. Aí o que era, uma empresa de Guarulhos, que tem um terreno que foi invadido uma vez, achou que a Baracela está no terreno dela, porque foi assim: A Baracela estava tão escondida esses anos todos por um matagal que tem na beira da Fernão Dias, que ninguém nunca soube que eles estavam lá - eles estão lá a mais de vinte anos - a DERSA [Desenvolvimento Rodoviário S/A] resolveu cortar o mato das beiras das rodovias, quando a DERSA cortou o mato, a comunidade apareceu. Um jornalista mal-informado da região escreveu um artigo: “Ah, a Favela dos Pallets voltou”, quando o cara da empresa viu “A Favela do Pallets voltou”, “ué, é meu terreno”, o cara entrou com o processo e nem foi saber se era o terreno dele mesmo. Nossa, isso deu um B.O., aí só podia ir lá na audiência com o juiz - e era em Guarulhos - os moradores da Baracela - eu não sou moradora de lá - e as pessoas que estavam enroladas no processo. Aí foi. Quando chegou o dia da audiência eu falei: “Ah, não, eu quero ir também”, aí eu cheguei lá, o cara falou: “A senhora não pode entrar, a senhora não está no processo”, eu falei: “Então você fala pro juiz que eu sou PLP do grupo de habitação, para ele deixar eu entrar”. Aí o cara foi lá, falou, aí voltou dando risada e falou: “O juiz falou que você pode entrar”, aí quando eu entrei… Aí entrei com todos os processos que eu tinha… O Conselho Participativo me ajudou tanto nisso, você não tem noção, porque tudo que tinha no Conselho Participativo eu imprimia - o pessoal colocava num pendrive, eu imprimia, então eu imprimia todo o mapa da região da Vila Maria, tudo eu tinha ali comigo, na minha mão. Aí eu entrei, ele começou a dar risada, falou: “Ó, as PLPs de Guarulhos me dão muito trabalho, mas a senhora é a primeira que me dá uma carteirada, viu?”, aí eu falei: “Mas o senhor vai entender e vai me agradecer, fique calmo”, ele deu risada, ele falou: “Pode assistir, não tem problema não”. Eu falei: “Eu sou a primeira que se declara como sendo do segmento de moradia…” - porque as PLPs são mais do segmento da Lei Maria da Penha, da questão da mulher, não tem nada a ver. Os promotores nem gostam que a gente use esse termo, tem isso - e aí eu falei: “Não, eu sou do segmento da moradia, acompanho a luta pela moradia há mais de vinte anos na cidade de São Paulo, então eu sou uma PLP da moradia”, ele falou: “Ah, beleza, então tá explicado”, e começou a dar risada, porque ele sabia que eu estava dando carteirada nele mesmo. Aí os advogados começaram a bater boca, interessante, porque os advogados não sabiam o que eles estavam fazendo lá. O advogado: “Não, porque essa área é nossa”, aí a outra: “Ah, mas eu não sei, não sei o que” e ninguém conseguia defender a comunidade, nem a comunidade e nem a empresa, virou um negócio, o juiz começou a ficar irritado, eu falei: “Pera aí, deixa eu acabar com essa confusão. Nós estamos em Guarulhos, no fórum de Guarulhos, querendo determinar em uma área de São Paulo, é isso?”, aí o juiz falou: “Não, mas não é Guarulhos?”, eu falei: “Não, não é Guarulhos, tá aqui no mapa, tá aqui. O plano de metas da Vila Maria, está aqui a Baracela, está em São Paulo. Não tem nada a ver com Guarulhos”, aí o juiz falou: “Não acredito”. Aí os advogados olharam um para cara do outro, falaram: “Não, mas não é Guarulhos?”, falei: “Não, não é Guarulhos. Baracela é São Paulo, está aqui a prova”. Aí eles viram, chegaram num acordo, a nossa advogada, que eu paguei com o dinheiro da minha Associação, porque não tinha ninguém para defender eles na hora, aí tivemos que pagar uma advogada, estava mais perdida que cego em tiroteio. Ela só foi por boa vontade, coitada, mas estava assim, perdidaça, não sabe nada de habitação ou regularização fundiária, nada. Eu vi que ela estava perdida, eu falei: “Eu preciso salvar ela, se não eu to lascada”. E aí ele viu no Plano de Metas, viu lá no mapa. Aí eles reconheceram, mas já tinha aberto o processo, não da para voltar atrás assim, precisa de provas, aí o juiz falou assim: “Vamos determinar que um perito vai lá na área, para estudar a área, e a gente resolver essa pendência e fechar esse processo, porque não tem nada a ver”. Aí eles pediram desculpas, os advogados da empresa, falou: “Olha, a gente vai mandar o perito lá”. E aí para nossa surpresa, quando o perito foi, o que a gente descobre? 5% do terreno era deles sim, mas o que aconteceu? Ao longo da história - isso antes de fazer a Fernão Dias - eles mudaram o curso do rio, a intervenção do homem mudou o curso do rio, nessa mudança de curso do rio e do documento original da empresa, 5% ficou do lado de São Paulo e todo o resto do lado de Guarulhos. Aí eu falei: “Tudo bem, 5%...” - vai ter audiência agora dia treze de dezembro sobre isso, inclusive, e aí eu já estou criando a minha estratégia, eu não sou advogada, mas já vou lá pra palpitar - aí eu falei: “Tudo bem, 5% da empresa está do lado de São Paulo, está comprovado, é fato, não tem o que falar, mas vocês vão construir uma ponte em cima da Fernão Dias para usar os 5%, porque não tem acesso pra vocês de outra forma, vocês vão ter que fazer uma ponte? Não vai, então vão ter que doar pra comunidade”, não é nem pra comunidade, vai ter que doar pro Estado, porque o terreno é da CDHU, o terreno foi doado por uma família falida, que não quis mexer e é a disputa hoje da comunidade em cima desse terreno. Aí se eu não tenho os papéis do Conselho Participativo, se eu não tenho essas informações, o povo estava tudo na rua, então informação é importante, você ter e você compartilhar, e isso salvou… Pelo menos um dos processos da Baracela a gente salvou, agora vamos ver os outros, porque tem um monte. Tem outro lá, que está para entrar, multa de um milhão - aí é da ocupação de cima - eu vou pensar se eu vou ajudar. Não, eu vou ajudar sim (risos). Eu vou ajudar sim. Eles tão com a multa de um milhão porque eles derrubaram Pau Brasil, só que é o seguinte, tinha o terreno da CDHU, determinado que é o Estado, e se eles sabiam que tinha um Pau Brasil lá, porque esse Pau Brasil não foi cercado, identificado e protegido? Aí você quer culpar o Zé que não sabe nem o que ele está derrubando, vão derrubar isso daí. Juiz vai entender, entendeu? Então saber articular a informação é importante, e é isso que eu faço, eu presto esse papel.
P/1 - Irani, pra gente chegar nessa parte final, e fazendo uma pergunta relacionada a sua vida pessoal, você falou que tem dois filhos, que são seus filhos biológicos e outros dois do coração, eu ia pedir pra você falar os nomes deles, pra gente ter esse registro, e dizer o que representou a maternidade na sua vida?
R - (Risos). Essa é uma pergunta uma capciosa. Eu nunca quis ser mãe, acho que eu não leve jeito para ser mãe, eu sou muito bruta, eu falo que eu sou uma pedra de gelo, na minha maneira de transpor isso para outra pessoa. Você fala assim: “Meu pai morreu”, “aí que pena, né? Deus abençoe”, eu não vou ficar… Eu não tenho muito trato. Eu aceito as adversidades da vida com muita naturalidade, e mãe é carinhosa, não sei o que, tudo que a minha mãe não foi, mas assim, pela falta que ela tinha e tudo, mas eu nunca quis ser mãe, aí eu me apaixonei e tudo que eu quis ser foi mãe, apesar que foi um acidente a minha primeira filha, mas o meu segundo filho foi planejado, e aí eu tive a minha primeira filha, que é a Amanda. Amanda Dias Francisco. Depois eu tive o Mateus. Mateus Dias Francisco. A diferença deles é de três anos. A Amanda hoje tem 21, o Mateus tem dezoito. Eu sempre fui uma mãe muito dura, sempre ensinei para eles o que é correto, eu sei que eles tem muito orgulho de mim. Meu filho fica indignado... A Amanda nem tanto, a Amanda é igual o pai dela, mas a Amanda é mais largada. O Mateus não, o Mateus observa muito as coisas. Ele falou: “Mãe, você ajuda um monte de gente e ninguém ajuda você”, eu falei: “Mas Deus me ajuda Mateus, falta alguma coisa pra você? Olha onde a gente chegou, a gente tem uma casa boa, não é nossa, é alugada, mas a gente tem um conforto que muitas famílias não têm, isso com o suor do meu trabalho…” Eu não tenho assim, eu to concluindo agora as minhas faculdades, mas eu não tinha faculdade quando eu comecei, quando eu tive a minha primeira casa, do jeitinho que eu queria e com salário que muito trabalhador não consegue. Eu ganho em um dia, em uma hora de cirurgia, o que muita gente fanha em um mês de trabalho. Tudo bem que se eu for pra conta real, o médico está me roubando, porque eu merecia mais pela continha dos 10%, mas em relação aos outros trabalhadores eu estou no lucro, então assim, Deus me abençoou muito, e eu quero a paga de Deus, não quero a paga do povo. A paga do povo esquece, sabe? Jesus curou dez, só voltou um para agradecer, quem sou eu para querer agradecimento, tudo. E aí ele fica revoltado, porque ele fala: “A senhora ajuda um monte de gente e ninguém te ajuda”, eu falei: “Não filho, Deus prepara quem vai me ajudar, fica tranquilo”. E aí eu tenho esses dois. Quando foi… Eu tenho um irmão que é perdido nas drogas, e tem muita a ver… Toda nossa família sente muito uma certa culpa porque o meu irmão com 32, 33 anos que ele piorou e se perdeu de vez nas drogas, foi quando ele foi pro psicólogo do CAPS - ele teve que ir - e minha mãe foi junto, a gente foi acompanhar a primeira consulta, e a gente descobriu, naquele momento, que ele, hoje, com 33 - agora não tem mais que 33, já tem quarenta - mas com 33 anos de idade que a gente foi descobrir que ele se drogava desde os doze, e a gente nunca viu, a gente não percebeu isso, e a gente sempre foi muito unido, muito junto e misturado, como a gente não viu isso? Então tem aquela questão da culpa na história. E esse meu irmão estava… Há mais de cinco anos que eu não via ele. Eu sabia que ele estava no mundão, e aí foi uma escolha dele, porque ele também é uma pessoa extremamente inteligente, um trabalhador, nossa, o patrão dele falou que no dia que ele sair das drogas de verdade, ele manda qualquer funcionário embora pra pegar ele no lugar, porque ele é bom no trabalho que ele faz, ele é inteligente, ele é honesto, tudo, mas tem que parir dele, não é da gente, ele tem que querer, e ele não quer. E aí já tinha cinco anos que eu não via esse irmão, tocou meu telefone - 2016. 2016? 2014. Minha filha tá com seis anos, 2014.- tocou o meu telefone numa quinta-feira, na maternidade do Cachoeirinha, falou: “Olha Irani, se a senhora não vier buscar a criança que está aqui, a gente vai mandar a criança pro abrigo”, eu falei: “Oi? Ta falando o que minha amiga”, “Não, porque o filho da Cristiana...”, eu falei: “Mas não conheço nenhuma Cristiana, gente. Mas tá bom, eu vou aí”, falei: “Deve ser…” - porque eu tinha feito inscrição para ajudar a adotar criança, levar pra casa no final de semana, essas coisas - falei: “Vou lá ver o que está acontecendo”. Cheguei no hospital, era uma quinta-feira, aí ela falou assim: “Olha, esse RN é da Cristiana, é uma menina, a Cristiana é uma usuária de droga, ela não vai sair com o nenê do hospital, a gente vai levar o nenê pro abrigo se a senhora não pegar. A mãe dela já foi comunicada, falou que não quer nem conhecer a criança porque já cria dois dela”, eu falei: “Mas como o meu nome foi rolar nessa história, gente?”, ela falou: “Olha, o seu Roniele - que é o meu irmão - foi socorrer ela na hora do parto” - e ele tinha um rolinho com ela também - e ele socorreu ela na hora do parto e pediram um telefone de contato, e o único que ele lembrou foi o meu, que o meu telefone é o mesmo, não muda há anos, aí ele deu o meu telefone como contato e sumiu, e segundo ele o filho não era dele, ele só socorreu ela, usuária de droga que nem ele, nos mesmos espaços, beleza. Aí eu fiquei ________, falei: “Olha, se é para ir pro abrigo, então eu vou assumir a criança, você só me fala o que eu tenho que fazer”, “então, a senhora tem que ir atrás do pai - que a Cristiana alega que o pai é o Roniele - a senhora tem que ir atrás dele para ele vir registrar a criança”. Fazia cinco anos que eu não via, que eu não tinha contato nenhum com o meu irmão, mas eu tinha mais ou menos uma noção de onde ele estava, ele estava muito pertinho de casa, estava do outro lado do muro, na verdade na rua que a minha mãe morava, dentro de uma cracolândia que é muito maior que a cracolândia do Centro e fica lá no Jardim Elisa Maria, é onde eram as pedreiras, você não tem noção de como é aquele lugar. Lá vai eu lá dentro, e cachorro, e gente, um monte de zumbi vindo em cima de mim, querendo saber quem eu sou, o que eu estava fazendo lá, eu falei: “Ó, sou irmã do Roniele, estou atrás dele”, aí um cara: “Ah, o Roniele é gente boa, ele está ali”, mostrou, eu fui lá, tinha um barraco de lona, pau a pique, sei lá. Fui lá, achei ele lá, drogado, drogado, drogado. Falei: “O negócio é o seguinte - ele sempre me respeitou como a irmã mais velha, tudo que eu falava pra ele, ele respeitava - você vai levantar daí agora, você vai na casa da mãe, vai tomar um banho, vou te levar no cabeleireiro, você raspar esse cabelo - porque não tinha condição de pentear o cabelo, de tão duro que tava - você vai raspar essa cabeça e você vai virar homem”. Aí cheguei com ele, tirei as coisas da minha mãe de dentro do banheiro, porque a gente tem muito medo da situação que eles ficam lá, dei cândida pra ele lavar o pé, dei sabão, uns negócios lá, dei shampoo, falei: “Mãe, faz uma garrafa de café que ele é movido a café, ele vai tomar café, ele vai acordar, ele vai lá no cartório comigo registrar a menina. “Ah, mas eu não sou pai”, falei: “Não me interessa, agora você é, você vai assumir essa criança, porque eu não vou ficar sem essa criança”. Aí ele foi lá, assumiu a paternidade - hoje a gente sabe que é filha dele mesmo - foi lá, assumiu a paternidade da menina e aí eu pude pegar a menina, e ficou comigo, não foi pro abrigo. No começo… Eu não conheci a menina, aí a assistente promoveu o nosso encontro, eu falei: “Olha, o hospital está tirando a sua filha, você diz que é filha do meu irmão, eu sou a melhor oportunidade que você tem de criar a sua filha. Um dia, se Deus quiser, você vai sair dessa, você pode voltar que a filha é sua, eu não vou tirar o seu lugar de mãe, mas nesse momento ela precisa de uma mãe”, aí ela chorou muito, concordou, aí beleza. Aí ficou rondando a minha casa por uns tempos, aí eu falei: “Não, na minha casa você não entra desse jeito não, você vem aqui limpinha, sem droga, que eu deixo você ver ela”, mas ela nunca… Acabou desandando, ela não quis. Aí beleza. Passaram dois anos, estou eu na minha casa, me liga de novo: “A senhora não vai vir buscar a criança?”, eu falei: “Que palhaçada é essa?”, “Não, porque nasceu mais um da Cristiana e a senhora tem que pegar”, falei: “Puta merda”. Nisso a minha família já estava achando tudo isso um absurdo, porque eu já tenho a minha vida corrida, os meus filhos, eu criei, mas assim, numas. Eu sustentei, dei o máximo que eu pude, mas não fui uma mãe presente, 24 horas por 48, e aí eu peguei a Ana Raquel, que me prendeu mais ainda dentro de casa, e agora vem mais um? A minha irmã ficou sem falar comigo, ela falou: “Você não tem condições de pegar mais um filho, você não tem que pegar, não é problema seu”, eu falei: “Tá bom, amanhã ou depois - que é a Ana Raquel, minha primeira filha adotada, o Júlio César é irmão dela, pelo menos são da mesma mãe, se é do mesmo irmão ou não, é outra história, mas pelo menos é da mesma mãe - amanha ou depois a Ana Raquel vai falar: ‘Ah mãe, eu sou adotada, não tenho família…”, vou falar: “Não, você tem um irmão perdido por aí”. Como eu vou falar isso pra menina? Falei: “Não, filha. Aqui é pobre, onde come um, come dez. Vou pegar mais esse”. Aí peguei, mas aí também já fiz uma história diferente. Fui lá no hospital, peguei a mãe dele. Falei: “Olha, eu quero que vocês coloquem chip nela”, nossa eu falei com todo mundo daquele hospital, pra colocar ela no programa, aí conseguimos colocar ela no programa. No dia que tinham as consultas ela estava drogada, eu ia lá, arrastava ela, levava. Aí colocaram chip nela, não vai engravidar pelos próximos cinco anos, pelo menos, já estou no lucro. Na segunda gravidez dela… E os dois já nasceram e vieram pra minha casa, então a mãe que eles conhecem sou eu. Inclusive a justiça já mandou o parecer, que é para passar pro meu nome definitivamente, eles já perderam a guarda definitiva. Eu ainda não fui mudar o nome deles, porque eu tinha esperança até agora, de que eles se recuperassem, pelo menos um dos dois, pra assumir essa maternidade, essa paternidade, mas eu já vi que não tem jeito, então talvez eu mude o nome deles, talvez não. Eu quero mudar por uma questão de direitos, de segurança, se algum dia eu tiver alguma coisa, eles serem beneficiados, quero mudar nesse perspectiva, não de assumir o lugar de outra mãe - apesar que a mãe que eles conhecem sou eu, não tem jeito - mas no nascimento do Júlio, a psicóloga e a assistente social chegaram a propor da gente fazer uma guarda compartilhada com a mãe, deu deixar a mãe ir lá amamentar ele, e coisa e tal, e assim, eu relutei muito, porque eu nunca quis, mas aí pra não dizer que “Ah, ela tá querendo tomar o filho da outra”, peguei e deixei, falei: “Tá bom, eu vou aceitar”. Ela foi seis vezes na minha casa, duas vezes ela foi drogada, eu não deixei ela entrar, eu falei: “Você não vai amamentar a criança desse jeito, pode sumir daqui”, as outras seis ela foi limpinha. Eu via que ela se esforçada, ela estava querendo a cura, mas crack é um negócio muito terrível na vida da pessoa, e ela acabou não conseguindo, acabou sumindo. Nunca falei pra ela: “Não vem mais”, nada disso. Ela sumiu por si só. Aí depois eu soube que ela estava na cracolândia de novo. As meninas dela - tem duas meninas que estão com a mãe, que a mãe cria - a mãe não queria conhecer as crianças, aí eu fui lá na casa da mãe dele e falei: “Olha, essa aqui é sua neta, a senhora pode não ter condições de criar, mas a senhora precisa saber que ela existe. Eu vou criar ela com amor e carinho, se um dia a senhora quiser, mais pra frente, conhecer, tudo bem, mas vai ficar difícil também explicar essa história pra criança”. Deixei claro isso também. E estão comigo até hoje. A afinidade que eu tenho com os meus filhos do coração é muito maior do que o que eu tinha com os meus filhos biológicos. Meus filhos biológicos puxaram muito o lado do pai, e eles são muito frios também, e eu também. Mas a Ana Raquel e o Júlio César, eles são um poço de amor, é muito amor. O Júlio César chega de noite e ela fala: “Te amo mamãe”, nossa, meu coração até dói, eu falei: “Aí senhor, será que o meu filho vai morrer?”, eu fico pensando essas coisas, essas paranoias, porque eu nunca vi uma criança assim, as coisas que eles falam, nunca vi num filho normal, não sei, é diferente, porque eles chegam e falam pra gente é… Você fica com medo de acontecer alguma coisa, porque é muito amor. Pra você ter uma noção, a Ana Raquel… Eu tenho uma pinta no pé, pois você acredita que ela tem uma pinta no pé? Meus filhos não têm, e ela tem uma pinta no pé”. Falei assim: “Se não for a minhã filha, foi barriga de aluguel” (risos), porque são demais. A maternidade me ensinou muita coisa. Eu acho que assim, o mais importante da maternidade pra mim, foi o medo, eu não tinha medo de nada, eu desafiava bandido, falava: “Eu não tenho peito de aço, nasci de um homem, quer matar mata, quem manda na vida é Deus”, eu nem ligo. Mas depois que eu fui mãe, eu falei: “Meu, agora eu tenho alguém que depende de mim, eu não posso morrer, não possa vacilar, não posso sair fora de hora, então assim, você fica com uns receios, com uns medos que não tinha antes. Antes nada me impedia de… Hoje eu penso muito antes de fazer uma atitude, fazer uma coisa, nos meus filhos. E eu nunca pensei nisso, nunca liguei pra isso. Falava: “Ah, se morrer, morreu”, tava nem aí. Não que eu não amasse a minha vida, amo minha vida, mas assim, eu não tinha esse receio, esse freio do medo te parando pra repensar. A maternidade, pra mim, foi fundamental pra minha mudança de personalidade, minha melhora como ser humano, tudo.
P/1 - E Irani, a gente podia fazer essa entrevista aqui em pelo menos duas ou três partes, mas a gente precisa chegar num encerramento, pelo menos dessa primeira parte dessa entrevista de história de vida, porque teria a possibilidade de fazer muito mais, mas eu preciso te perguntar, pra você o que é empreendedorismo e o que é ser uma mulher empreendedora?
R - Empreender, para mim, é você dispensar algo que você tem - no caso sua atenção, o seu trabalho, focar - pra aumentar o que você tem, não sei se eu estou usando as palavras corretas, mas assim, quando eu empreendo em alguma coisa, eu estou apostando em alguma coisa, e aquilo tem um resultado se eu fizer a coisa certa, então o empreendedorismo pra mim… E ele é muito mais do que isso, empreendedorismo para além de ser… Quando você fala “empreender” hoje em dia, você tá falando de negócio, ta falando de dinheiro. Mas pra mim é mais que isso, empreendedorismo pra mim é empoderamento, é você se emponderar, aprender, fazer algo que vai te melhorar como pessoa, que vai te dar algum retorno financeiro sim, mas que você vá aprender e vá crescer. Então empreendedorismo pra mim é muito importante. E como mulher empreendedora… O meu empreendedorismo hoje é no social, ou é na informação, que não deixa de empreender melhor na vida das outras pessoas. Para mim pode ser só passar informação, “Ah, tem um curso ali, vamos fazer não sei o que”, mas eu vou estar transformando, é transformador, é transformar vidas, eu vou transformar a vida de outras pessoas. Então o meu empreendedorismo, hoje, está focado nisso, no empreender pro conhecimento da política pública e do seu direito, do que você consegue fazer, que você pode fazer, das oportunidades que você tem no mercado, na sua região e pra além disso, ele me faz ser uma pessoa melhor, me fortalece, me traz algo que pode não ser contado, financeiro, mas ele me cresce, me empondera, aumenta alguma coisa, seja conhecimento, poder da informação, qualquer coisa. Então empreendedorismo, quando eu ouvi essa palavra eu fui procurar o que era, fui tentar entender o que era, aí eu falei: “Isso é importante”, e as pessoas gostam também de palavras novas, né? Porque é trabalho, é focar, é procurar onde você se dar bem. Pra mim é um teste vocacional. Eu lembro que quando a gente estava no São Luís, a gente fazia os testes vocacionais pra ver do que você ia dar pra vida, quais as possibilidades que você tem. O empreendedorismo, quando ele chega pra periferia, pra comunidade, ele chega assim, é uma saída, uma maneira de você aprender a desenvolver aquilo que você quer, aquilo que você nem sabia que você queria, às vezes. Teve uma menina que fez um… Ela gostava de cozinhas, mas não sabia que poderia usar isso pra crescer, pra ter algum retorno financeiro, e ela ficou abismada com o que ela conseguiu, e ela nunca tinha sonhado com aquilo, então empreendedorismo vem para salvar e empoderar as mulheres.
P/1 - E teve alguma coisa que você queria contar e não contou nessa entrevista?
R - Ah, nem vou falar se não a gente vai ficar aqui até amanhã (risos). Ainda tem a minha parte da UBM, União Brasileira de Mulheres, eu sou do GMB, Grupo de Mulheres do Brasil, ainda tem todas essas ramificações, eu só falei de um trabalho. Fica pra uma próxima. PLP, entendeu? Deixa pra próxima fase, se tiver um segundo… Contando a minha história daqui dez anos, eu vou ter muito mais história pra contar.
P/1 - Sem dúvida. E aí a minha última pergunta é, o que você achou de ter participado dessa entrevista?
R - Nossa, eu ganhei umas cinquenta sessões de psicologia (risos), falei, falei, falei, ninguém me interrompeu, falei, falei (risos), foi muito bom. Lavei a alma, fui buscar coisas que eu nem lembrava mais, sentimentos que eu nem sabia que vinham. Eu não sou chorona, não sou de chorar em público, eu gosto de chorar sozinha, mas assim, lavou a alma você relembrar o passado como vocês conduziram, desde o início, achei que você ia falar pra mim: “Então, como que - você falou do “1000 Mulheres” - como é empreender?”, achei que o negócio ia daí pra frente, entendeu? Aí eu ia falar: “blá blá blá” e acabou. Não, o negócio foi lá no passado, trouxe essa pessoa. Nossa, eu gostei muito. Muito bom. É lindo esse projeto. É lindo.
P/1 - Que bom.
R - Saber que a minha história vai estar registrada, né?
P/1 - É, o objetivo era esse mesmo, poder, enfim, que você se sentisse a vontade pra se apresentar, a gente te conhecer. Claro que isso aparece também, esses temas que eram mais específicos aparecem, mas faria pouco sentido se a gente não pudesse conhecer quem é a Irani, a trajetória da Irani, e acho que foi uma possibilidade de te conhecer melhor, enfim, foi um prazer enorme, Irani, queria aproveitar aqui, eu, a Luiza também está aqui, em nome do Museu da Pessoa a gente queria te agradecer muito por sua disponibilidade ao longo dessa entrevista, e agradecer muito você ter compartilhado a sua história com a gente. Muita bonita...
R - Eu que agradeço.
P/1 - Foi um momento muito especial desse projeto, sem dúvida.
R - Obrigada. Eu que agradeço e gratidão sempre.
P/1 - A gente que agradece, e quem sabe em breve a gente possa fazer uma segunda parte da entrevista.
R - Aí, tomara, porque tem muita história (risos). Senta que lá vem história. Obrigada, gente. Obrigada mesmo. Eu agradeço de coração.
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