Depoimento de Maria Aparecida Pereira de Castro Augusto
Entrevistada por Carol Margiotte e Laura Garibaldi
São Paulo, 1º de novembro de 2018
Entrevista número: PCSH_HV706
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Cidinha, boa tarde.
R - Boa tarde.
P/1 - Obrigada por ter vindo aqui hoje. E, para começar, o seu nome completo?
R - Primeiro, eu queria te agradecer por estar aqui. Meu nome é Maria Aparecida Pereira de Castro Augusto.
P/1 - O local e a data do seu nascimento?
R - Tucano - Bahia.
P/1 - E você sabe por que o seus pais lhe deram esse nome?
R - Então... Eu acho que a história mais engraçada é justamente essa, porque... Eu posso remeter antes do meu nascimento? Assim... Eu sou filha de um incesto, o meu pai é tio da minha mãe. Quando a minha mãe... Eu sabia que você ia fazer essa cara, todo mundo para quem eu conto a história faz essa mesma cara. Mas tudo bem, vamos continuar. Aí é o seguinte: a minha mãe, ela é sobrinha de uma senhora chamada dona Neném. Ela tinha quinze anos e foi morar na casa da tia, e lá ela teve um relacionamento com o marido dessa tia; no caso, o meu pai. E aí ela ficou grávida. Quando ela ficou sabendo que estava grávida - eles estavam aqui em São Paulo - ela fugiu para a Bahia, para a casa da avó. Porque a família não queria... Só que ninguém sabia quem era o pai da criança; no caso, eu. E aí eu fui para lá. Eu fui não, ela foi. Ela estava grávida, eu nasci lá, e quando eu tinha oito meses eu vim. Só que lá, eles me batizaram - tem o batistério - com o nome de Maria Vanusa, porque a minha mãe chamava Aurivanda e ela queria que eu me chamasse Vanusa, porque Vanusa, Wanda... E era na época da Jovem Guarda. Então, ela falou: “Legal!”. Ela, jovenzinha... E foi isso. E aí, o que aconteceu? Quando ela voltou, quando nós voltamos, eu tinha oito meses. Na vinda, com o pau de arara, eu tive um ataque, uma doença, eu morri. As pessoas achavam que eu tinha morrido. Tive um ataque de... Uns dizem que é catalepsia, outros dizem que eu só desmaiei - cada pessoa tem uma versão para essa história. E aí, eles falaram assim: “Olha, nós vamos fazer o seguinte: nós vamos enterrar aqui”. O rapaz, o dono do pau de arara, falou assim: “Eu não posso levar essa menina desse jeito para São Paulo, como é que eu vou levar essa menina morta? Vai feder, vai... Nós temos que enterrar aqui”. Aí, ele pegou uma rede e ia enterrar. Mas a minha mãe falou: “Não, mas não tem outro jeito?”. Aí foram em uma autoridade da cidade - no sertão também, a caminho daqui - e ele falou assim: “Eu posso fazer uma declaração de morte e vocês a enterram aqui no cemitério da cidade”. O meu tio estava vindo em outro pau de arara... Eu tinha um tio, que se chamava Antônio, que era uma pessoa muito... No decorrer da minha vida, quando eu continuar contando a minha história, vocês vão entender a nossa relação. E ele chegou e falou assim: “Mas por que é que vocês pararam aí, no meio do nada?” “Ai, a filha da Wanda morreu”. Ele falou assim: “E vocês vão enterrar aqui, sem as pessoas conhecerem a menina, sem nada? Não, não, ninguém vai enterrar ela aqui não. Vamos colocá-la dentro do carro e vamos embora para São Paulo”. E ele estava em outro carro, em outra caminhonete, e aí ele me colocou lá. Quando eu voltei, eu estava com muito frio e me debati. E todo mundo se assustou. Aí, ele falou assim: “Nossa, meu Deus, ela não estava morta. Então a gente tem que ir…”. Como eles tinham um atestadinho... Lá no lugar mais perto. E foi em uma cidade perto de Guará. Quando chegou lá, a pessoa do Cartório falou assim: “Senhora, o que é que aconteceu?” “Aconteceu que a gente achou que a menina tinha morrido e ela não morreu”. Aí eles falaram assim: “Não?”. “E agora?”. “Agora? Não existe desmorrer. A senhora vai ter que entrar com uma ação”. E agora pensa: em uma ação. Há cinquenta anos. Não dava. Para uma família super pobre, uma menina... E aí foi quando eles resolveram que iam... O rapaz do Cartório falou assim: “Olha, faz o seguinte: traz ela aqui e vamos registrar de novo, esquece Vanusa”. E registrou de novo. E aí o que foi que aconteceu? Eles me registraram novamente, com o nome de Maria Aparecida. Porque o meu tio falou assim: “Olha, vamos fazer o seguinte: isso é um milagre, nós estamos aqui em Guará, Guará é perto da padroeira. Vamos chamar de Maria Aparecida”. E desde então, eu sou Maria Aparecida. Então, essa é a primeira parte da minha história, que não é muito normal. É um dos motivos pelos quais eu estou aqui para contar essa história para vocês, que é maluca. Aí, a minha mãe veio para cá, colocou o bebezinho na casa do meu... Falou assim com as pessoas: “Eu vou colocar na casa do pai dela”. E me entregou na casa da minha tia, no caso, que é a minha... Vocês entenderam... E do meu tio, que, na verdade, era o meu pai. E eles me criaram, a princípio como se fosse adotada. Então, durante a minha infância toda eu imaginei que fosse adotada, eu não tinha dimensão do que tinha acontecido. Só quando fiz doze anos é que a minha mãe - a minha mãe verdadeira - foi lá, porque ela estava grávida de outra criança, de outra pessoa, e ela queria me conhecer. E foi aí que eu descobri, realmente, toda essa história que eu estou contando para vocês. Eu descobri com ela, quando eu tinha doze anos. Mas era só a primeira pergunta. Vamos embora perguntar mais. O meu marido falou para você que ia ser longo, você não acreditou nele.
P/1 - Não. Primeiro eu quero saber o que é que você sabe dessa relação da sua mãe com o seu tio? Como isso se deu?
R - Na verdade, com o meu pai.
P/1 - É, com o seu pai, desculpa. Com o tio dela.
R - Então... Na verdade, a minha mãe e o meu pai... Ninguém nunca falou, claramente, o que aconteceu. O que eu sei é o seguinte: eles tiveram um envolvimento. Hoje, para mim, com cinquenta anos - eu tenho quarenta e sete anos, quase cinquenta anos - eu tenho uma visão de mundo... Na minha adolescência, eu não tinha muito essa visão, e isso era muito duro para mim. Porque é o seguinte: você pensa assim... Em uma sociedade onde nós vivemos hoje, já é machista. E, infelizmente, está ficando mais machista; ao invés de melhorar, a gente está indo para trás - nunca vi isso. Mas a relação deles nunca foi clara, a relação que eles tiveram. Hoje eu penso que pode ter sido mesmo consentido, porque a minha tia... Todo mundo fala: “Mas foi consentido”. Então, não foi um estupro, foi consentindo. Ela quis, mas ela quis e ela tinha quinze anos, gente. “Ela quis, então...”. E ela ficou marcada, eu acho que o grande nó da minha história... Eu demorei muito, Carol, para entender isso, porque as pessoas também vão te plantando coisas. Então, o que eu sei é assim... Eu não conversei com ninguém sobre isso, a não ser com pessoas... Não com os interessados, os dois, eu não conversei. A única pessoa que conversou comigo, um tempo depois, foi essa minha mãe, que é a minha tia, porque ela falava assim: “Você tem que perdoar. Eles... Sua mãe me traiu”. Mas ela nunca atribuiu a culpa a meu pai, e sempre à minha mãe. Mas é... A gente hoje,... Eu hoje tenho uma outra relação com essa história, que eu não tinha quando eu estava com doze anos, gente. Quando eu tinha doze anos, falava: “Pô, que vagabunda, ‘meu’, ela me condenou a uma história difícil”. Porque foi difícil. Hoje eu estou muito bem resolvida, obrigada, mas eu ouvi muitas coisas, eu fui muito julgada por isso, muitas pessoas falavam: “‘Meu’...”. Principalmente da minha família. Tem uma história que eu acho que é a que mais me marcou. Foi quando eu cresci e tudo, a minha mãe - que foi quem me criou - a minha mãe Neném, ela sempre foi uma pessoa muito boa comigo, muito decente, sem falar a pessoa... Porque ela não me tratava como a filha do pecado do marido dela, ela me tratava como a filha dela. Ela falava: “Você é minha e pronto. E não importa o que você é, de onde você veio, importa o hoje”. A minha mãe dizia... A minha mãe era muito sábia, ela falava assim: “A gente tem que ver o hoje. O amor é uma coisa de agora, não é uma coisa de ontem e nem de amanhã, o amor é neste momento”. E eu fui criada por essa mulher incrível. Mas tem um efeito colateral, que são as outras pessoas que torcem o tempo todo para você dar errado, que torcem o tempo todo para ter o prazer de dizer assim: “Olha, é igualzinha à mãe dela”. Então, isso existia muita pressão. E eu lembro de uma situação muito triste. Porque quando a Wanda me trouxe, as pessoas me contam que ela me trouxe e deixou na porta da casa deles como uma trouxa de roupa suja, e toda discussão que tinha na minha família, por problema... Desculpa o que eu vou falar aqui, mas parece aquela (inint) [00:10:21] do PT, que tudo é o PT agora. “Um trem passado, um ET, é o PT”. Era a mesma coisa. Tudo o que acontecia no mundo era o fato de eu ser a bastarda. Então, tinha uma outra discussão, com duas pessoas completamente diferentes, sempre respingava em mim. E as pessoas eram muito cruéis, porque elas citavam exatamente isso: “Essa trouxa de roupa suja”. E eu vivi muitos anos da minha adolescência ouvindo isso: “Sua trouxa de roupa suja”. Porque eu tinha sido colocada... Eu acho que não foi uma boa ideia vir contar a minha história aqui não, desculpa.
P/1 - No seu tempo, Cidinha. No seu tempo mesmo. Se quiser parar em algum momento, ou fazer uma pausa.
R - Não, não, desculpa.
P/1 - De verdade, não tem que pedir desculpa.
R - Fazia muito tempo que eu não lembrava disso. Eu vou falar para o Eduardo que ele é um pilantra. Então... E aí foi uma coisa muito doida que aconteceu. Porque aí eu fui estudar, eu sempre gostei muito de ler, eu aprendi a ler muito cedo, com cinco anos, até não sei como. Antes até de entrar na escola, eu tinha uma fome... Até hoje eu tenho muita fome de leitura, eu adoro ler, eu adoro aprender coisas novas. Estou meio velha já, mas eu gosto bastante. Aí, eu arrumei um emprego - meu primeiro emprego. Assim... Depois que eu me formei na faculdade, eu fui trabalhar em um museu, arrumei uma grana. Trabalhei na Fundação Bienal, trabalhei na Mostra do Redescobrimento, acho que vocês nem eram nascidas ainda. No ano 2000 vocês já eram nascidas?
P/1 - Eu.
R - Então... E eu juntei uma grana, reformei a casa da minha mãe, a casa em que ela morava e tudo, a minha mãe Neném. E eu lembro como se fosse hoje de uma situação, que é o porquê de eu estar chorando. Porque esse momento foi um momento que, até hoje, da minha história, eu acho que é o mais significativo. Estava todo mundo lá vendo a casinha nova que eu tinha reformado e tudo. E uma dessas pessoas do meu passado falou assim: “Nossa, Neném, como a sua casa está bonita, olha que linda, reformaram”. E ela virou e falou para a pessoa assim: “Pois é, foi a minha trouxinha de roupa suja que me deu”. E isso para mim foi tão... As pessoas ficaram todas uma olhando para a outra assim e ninguém teve coragem de dizer nada. Naquele dia, eu entendi uma coisa: que não importa muito de onde você veio, mas o amor que você recebe; a minha mãe nunca me julgar de como eu tinha chegado na vida dela, mas o amor com que ela tinha recebido. E eu acho que o mundo tem muito pouca gente que pensa assim. A minha mãe tinha todos os motivos para me odiar, e ela falava para mim: “Eu não odeio a sua mãe”. Ela falava assim: “Nós, mulheres, temos que nos unir”. Ela falava assim: “Nós temos que nos unir, nós não podemos ficar nos julgando”. E eu acho que a maior lição que a minha mãe Neném me deu, ela falava assim: “Você não pode julgar uma prostituta se você não sabe a história dela. Você não pode falar de uma mãe solteira se você não sabe a história dela. Para você falar de alguém, você tem que vestir os sapatos com que ela caminhou. E as pessoas estão muito aptas a julgar, mas elas não estão muito aptas a caminhar junto”. E é isso, foi isso aí que aconteceu.
P/1 - Posso...
M1: Carol, desculpa. Cidinha, eu posso só pedir para dar uma... Desculpa, super, te interromper. Só pedir uma coisa: para você não bater no microfone que está aqui, está bom? Na gesticulação, quando você aponta para si mesmo.
R - Aí, você quer muito de mim, hein?
M1: Eu sei que é chato, porque isso… Mas não se preocupe com isso.
R - Não dá.
M1: ...Qualquer coisa...
R - Eu posso dar uma tamancada nele?
M1: Não tem problema, eu não quero engessar a sua fala.
P/1 - Não tem como botar isso para ela?
R - Não, tudo bem.
M1: É que fica dentro do quatro, melhor...
R - Qual é o seu nome?
P/1 - É verdade.
M1: É Caio.
R - Não, Caio, tudo bem.
M1: Se a gente ver que...
R - Desculpa, é que eu sou muito emotiva.
M1: Imagina.
P/1 - Não, não, imagina.
R - Me perdoa.
M1: Desculpe eu, porque te interrompi.
P/1 - Não tem por que pedir desculpa mesmo, a gente está ganhando um presente aqui incrível, que é te ouvir.
R - Ai, meu Deus. Vocês vão ficar deprimidos.
P/1 - Não, de jeito nenhum. É mãe Neném?
R - É, a minha mãe Neném é a minha tia. Que, na verdade, ela é tia da minha mãe, ela seria a minha tia-avó, que foi quem me criou. Mãe do meu pai, que também era o meu tio-avô. É isso. O meu pai se chamava José Manoel, ela chamava Neném - Maria Guimarães. Só a chamavam de Neném. E a Wanda era a minha mãe verdadeira.
P/1 - Eu posso identificá-los como seus pais?
R - Quem?
P/1 - A mãe Neném e o seu...
R - É, na minha cabeça eles são os meus pais. Eu nunca tive uma relação... Como a Wanda foi embora, eu nunca tive uma relação de mãe e filha, e isso foi muito... Eu faria tudo diferente. É que a gente não pode entrar em uma... Ainda não inventaram isso... De uma máquina do tempo e retomar as coisas. Senão eu faria tudo diferente. Eu acho que quando a gente é adolescente, ou a gente é jovem, a gente é muito prepotente, muito dono da verdade. E eu fui muito dona da verdade também e perdi muito tempo da minha vida me vitimizando, achando que eu não era querida. Quando eu a conheci, ela estava grávida da Joice e eu tinha doze anos. Eu ainda era uma menina e foi muito... Os doze, treze anos para mim foram terríveis, porque eu me sentia muito... Que eu tinha sido... Como eu vou falar para vocês? Que tinha sido uma falsidade, a minha vida era uma mentira, eu não conseguia confiar em ninguém, porque eu falava: “Gente, daqui a pouco tem outra história”. Mas, ao mesmo tempo, meninas, eu entendia algumas falas que antes eu não entendia, algumas situações, algumas festas para as quais eu não fui convidada, ou que ficava meio de canto. Eu comecei a entender um monte de coisas, uma relação fria que a minha avó tinha comigo, mas ao mesmo tempo ela gostava de mim. Mas quando ela estava só comigo, quando ela estava com alguém... E eu achava aquilo muito esquisito. E aí as coisas ficaram muito claras para mim assim, no decorrer desse processo. Eu sinto só que as pessoas condenaram as pessoas erradas, porque ninguém nunca condenou o meu pai, nunca ninguém falou nada dele, ficou tudo bem. Só as mulheres, no caso, que foram vítimas disso. Mas é a questão da sociedade, é a questão da época.
P/1 - Eu queria que você falasse sobre os dois, como eles eram fisicamente, como é que eles eram em termos de personalidade?
R - O meu pai e a Neném?
P/1 - Isso.
R - O meu pai era negro, era um homem muito violento, muito cheio de... Como é que eu vou dizer para você? Da razão. Aquele homem certinho, certinho só que não, aquela postura... Ele foi segurança do Vicente Matheus, trabalhou no Corinthians, era um homem normal e falava pouco com a gente, não tinha relação assim de conversar. Então, ele tinha quatro filhas - eu era uma delas - e era isso. Ele ia trabalhar, voltava, quando ele queria ir para as ‘nigths’ dele, para as festas dele, arrumava uma briga com a minha mãe, a gente já sabia, a gente já cresceu se ligando, e aí ele ia. Eu tenho uma irmã que ela sempre foi a mais que tinha menos... Tem sempre uma que não tem medo de ninguém e ela era essa pessoa. E ela um dia se cansou dessa palhaçada e falou: “Pai, é só você sair. Quando você estiver a fim de sair, sai. Não precisa fazer o que você fez aqui, brigar com a mãe, tentar bater nela, nada disso. Vai embora”. E eu, antes e depois, eu não consegui entender a minha mãe, porque a minha mãe era uma pessoa... Para algumas coisas, tão incrível. A minha mãe era analfabeta, não sabia ler, não sabia escrever, mas ela era tão inteligente, tão empoderada de algumas coisas, e era extremamente submissa àquele homem: “Porque o casamento é uma coisa muito importante que a gente não pode dissolver sob hipótese alguma”. E vivia naquela situação complexa. Eu não sabia o que era aquilo, mas ao mesmo tempo eu ficava na minha. Se ninguém tinha reclamado até ali, eu é que não ia falar nada. Então ficava ali, achando aquilo tudo um cúmulo, mas ela gostava, ela era uma excelente dona de casa, era presbiteriana - porque nós somos de matriz presbiteriana - ela era muito inteligente, era muito articulada, falava coisas assim... Por exemplo, ela não gostava que a gente julgasse as mulheres, as prostitutas, as mulheres que cometeram aborto, as mulheres, ela não admitia que a gente falasse mal de nenhum tipo de pessoa mesmo. A minha mãe sempre falava assim: “Você nunca pode julgar alguém, você tem que sempre perceber que a pessoa é a pessoa”. Então, ela tinha toda uma sabedoria. E, ao mesmo tempo, era refém. Sei lá, nunca vou entender, não adianta eu falar, falar para vocês, eu nunca vou entender, eu acho que é da pessoa mesmo.
P/1 - E você sabe...
M1: Desculpa. Podemos continuar, Carol.
P/1 - E dona Cidinha...
R - Dona Cidinha não, Cidinha.
P/1 - Cidinha.
R - Para você é Cidinha, gata.
P/1 - Sim.
R - Para o Caio, que me enche, é dona Cidinha. Brincadeira.
P/1 - Cidinha, a gente está falando dos seus pais. Você conhece esse histórico deles? Como eles se conheceram?
R - Conheço. A minha mãe Neném e o meu pai,... Assim... A minha mãe é da Bahia, de um lugar chamado Tucano, que foi onde eu nasci, Tucano é uma cidade muito engraçada, ela é perto de Canudos, então ela tem toda uma questão histórica lá. Eu nasci, na verdade, em uma vila chamada Crenhenhém, que é tombada, porque ela é tipo um lugar que os holandeses... Quando o Maurício de Nassau... Uns foram embora e outros fugiram para o sertão. Essa cidade... Você ia amar, Crenhenhém é a sua cara. Então é tombada, é uma vila que foi fundada por holandeses e índias. Também daquele jeito: quando você pensar em um holandês, não vamos romantizar. Os holandeses disseram: “Estupraram as índias e virou aquilo que é aquilo lá”. É a cidade de Othon Bastos. Vocês podem pesquisar - do ator Othon Bastos. Ele nasceu lá. E tem um vídeo em que ele explica isso, que lá não tem muito negro, os negros que tem lá são negros... Hoje tem, é lógico, mas naquela época... Então assim... Que vem depois. E o meu pai é negro, e quando ele chegou à cidade, ele chegou com uma menininha pequena, que era a minha irmã mais velha, a Lúcia. E a Lúcia... Por isso que eu não gosto de celular.
M1: Estava no meu bolso, caiu.
R - Desculpa.
M1: Não tem problema.
R - É que eu sou chata, sou brincalhona, viu?
M1: Tudo bem.
R - Então está bom. Então, quando eles se conheceram, ele veio de Tucano com a minha...
P/1 - Com a Lúcia.
R - ...Com a Lúcia, com a minha irmã. E a Lúcia era pequena, que acho que ela devia... Não tenho ideia, mas era bem pequena. Acho que uns quatro, cinco anos, já de outro relacionamento. Só que aí, eu não sei que paixão louca foi essa da minha mãe pelo meu pai. Eu, por exemplo, jamais, em tempo algum, olha só, pensa bem... Laurinha, veja bem, veja comigo. Você conhece um cara - está certo que foi há quase cinquenta anos - que tem uma filha pequena, de cinco anos, que separou da mulher porque, supostamente, ela o traiu e ele tentou matá-la. E ele pegou a criança e foi embora. Não é suspeita essa história para você? Para mim, é muito suspeita. Eu jamais cairia nessa. Mas tem gente que cai, diz que o amor é uma flor roxa que nasce no coraçãozinho dos trouxas. E aí, a minha mãe, apesar de o meu avô não querer, a minha mãe casou com ele e veio embora para São Paulo. E começaram a vida. Ela era uma excelente cozinheira, trabalhou em uma fábrica de doces, trabalhou em restaurantes, nunca teve filhos, ela nunca teve filhos dela com ele, um primeiro filho teve uma pré-eclâmpsia e morreu. E aí, ela criou a Lúcia, me criou, e ela tem uma criança - que é a minha irmã, que é essa que eu falo que é muito briguenta, que é a Rose - que é também de uma outra pessoa que não podia criar e ela pegou essa criança para criar. E a Joice, que aí que é o grande barato da história. A Joice é a menina... Você lembra que eu te falei que a minha mãe Wanda estava grávida? Era da Joice. Só que não tem nada a ver com meu pai, ela estava grávida de outro cara, e quando a Joice nasceu eu me aproximei dela, porque eu gostava da Joice, ela já tinha... E aí eu já até trabalhava, porque eu comecei a trabalhar com treze anos, e eu gostava daquela menininha. Quando ela fez seis anos - A minha irmã Joice fez seis anos... A minha irmã é autista, então isso foi uma coisa muito... Eu nunca tinha ouvido falar em uma autista, eu nunca tinha... Pensando que o mundo tinha deficiente, o primeiro momento que eu pensei assim: “Nossa, existe um deficiente?”. Foi na época em que eu conheci a Joice. Eu falei: “Gente, existe um deficiente no mundo, o que a gente faz com eles então?” E aí foi uma coisa muito doida que aconteceu, que eu falo assim que a minha vida profissional tem a ver com tudo isso que me aconteceu. Eu sou quem sou hoje, como professora, ou como profissional, graças ao meu histórico de vida. E aí a Joice, ela... A minha mãe morreu em um acidente de carro, a Wanda. E a Joice tinha seis anos e nós não tínhamos ninguém para ficar com a Joice. E eu fui emancipada para ser tutora legal da Joice, e eu sou tutora dela até hoje, porque ela é autista. E aí o que aconteceu? Nesse meio tempo, o meu pai ficou cego, e aí eu tinha duas realidades de deficiência na minha casa, sendo que eu nunca tinha pensado nisso. E aí eu comecei a pensar e comecei a conviver... E eu comecei a achar que era o meu caminho. E hoje eu trabalho com isso. É isso.
P/1 - Mas, e aí? O que é que você fez para... Qual foi o primeiro passo para tentar entender em casa, e você entender que isso seria o seu caminho?
R - É porque assim... Quando a Joice veio para mim, eu já tinha dezessete para dezoito. Não, tinha mais. Porque ela tinha seis. É por aí, dezoito anos. Eu já estava querendo estudar e eu fui fazer Artes, porque eu gosto muito de Artes. É a minha vida. Só que aí eu pensava assim: “Quando a Joice crescer...”. A Joice não aprendia, não conseguia aprender, e eu achava assim: eu tenho que ajudar a minha irmã a conhecer o mundo, você entende? E eu comecei a estudar por conta, por minha conta própria. Eu falei: “Não, eu tenho que estudar isso”. Eu fui estudando e me apaixonei pela área. Fiz Artes, depois fiz Arte Terapia, voltada para a deficiência. E eu alfabetizei a minha irmã, foi eu quem foi lá e falou: “Olha, Joice, vamos nos alfabetizar”. E foi a primeira vez que eu percebi que é muito mágico isso de você ser professora, porque você vai lá e pega o material humano ali, que não tem aquele conhecimento, você é a porta para aquilo. Eu acho que professor... Eu acho que hoje o professor é muito desrespeitado e nós estamos indo para um caminho muito perigoso, que é assim... É marginalizar alguém que tem um processo mágico, que é você ser alguém que é a porta. Você não pode impedir ninguém de ser a porta, de fazer a diferença na vida de alguém. E hoje as pessoas estão achando que educar é qualquer coisa, e não é. Educar é isso. Quando a minha irmã aprendeu a ler e a escrever, eu abri o mundo para ela. E o meu pai... Eu não sou boazinha, no fundo eu achei que o meu pai estava pagando, porque ele aprontou, porque o meu pai era um pilantra, então eu falava assim: “Gente, sei lá”... Isso, você corta. E foi isso, eu achei que ele estava cego porque ele mereceu mesmo. Mas, ao mesmo tempo, era fascinante para mim. Eu falei: “‘Meu’, e agora? Essa coisa de orientação e mobilidade, meu pai precisar de uma bengala...”. Aí eu fui lá no Padre Chico, arrumei uma bengala para ele, a gente foi fazer curso. E foi a época mais legal para eu e ele, porque ele se aproximou de mim, ele conseguia falar comigo. E, das quatro filhas, era a única com quem ele não falava. Se o meu pai trocou, durante vinte anos, antes da cegueira dele, quatro palavras comigo, foi muito. Às vezes, eu tinha a impressão de que eu era um vaso ou uma cadeira, e aí uma vez a minha mãe falou assim: “Nossa, mas você...”. A gente estava falando das filhas e aí ela falou assim uma vez: “Ai, a Vanusa...”. Porque eles me chamaram de Vanusa. “Nossa, a Vanusa é tão inteligente, não que as outras não sejam, mas ela é tão brilhante. Olha, ela aprende as coisas sozinha, ela gosta, ela vai atrás”. Eu tenho uma sede de conhecer as coisas, “Você não acha, Zé?”. Ele falou assim: “Eu não sei de nada dessa menina”. E eu falava assim: “É justamente isso”. E aí, quando ele ficou cego, para mim foi um bônus. Além de ele estar pagando, ele se aproximou, ele queria saber por que é que eu estava fazendo aquilo, queria saber das minhas coisas, aí falava para as pessoas: “A minha filha é professora, a minha filha fez Artes, agora ela está trabalhando com esse negócio de braile, de libras”. E foi assim. E aí, aos poucos, todas as deficiências foram entrando na minha vida. Primeiro, a minha irmã com autismo; depois, o meu pai com a cegueira; depois, eu fui convidada para a Amostra por uma professora da Unesp - porque eu estudei na Unesp - aqui no Instituto de Artes da Unesp, e ela precisava de uma pessoa, um grupo, e falou: “Vai ter monitoria”. Aí eu fui, fiz a entrevista, a prova, e cheguei lá. Fui convidada... Chamaram-me para fazer parte de um grupo que se chama Projeto Diversidade, que foi um grupo, que hoje é muito engraçado, porque as pessoas que trabalham em museu, elas veem muito a acessibilidade, mas não existia há vinte anos, em 1998, quando eu fiz a primeira Bienal - a gente não tinha isso. A gente vinha... Seis xeretas, seis jovens monitores xeretas, em 1998, que falavam: “Vamos fazer esse negócio acontecer”. E foi assim a primeira vez que a monitoria aconteceu no Brasil, uma coisa histórica, que você tem essa coisa do monitor, e nós fomos os pioneiros. E, nesse momento, eu comecei a ter outras coisas, porque as pessoas me chamaram e falaram: “Vamos fazer tal coisa?”. E aí eu fui fazer libras para poder trabalhar com a monitoria. Então, eu já tinha o contato com o autista, o cego, e agora estava tendo esse contato maluco com os surdos. E eu falava assim: “‘Meu’, eu acho que é um sinal, eu tenho que estar mesmo nesse caminho, porque eu não busquei estar aqui. Eu queria estar na monitoria”. Desculpa! E, de repente, eu estava na outra monitoria fazendo uma coisa inédita, diferente, e foi muito legal.
P/1 - E nessa monitoria que você acabou fazendo, que aprendeu a linguagem de sinais, teve alguma apresentação que você fez para algum público, com sinais, que tenha sido marcante por alguma descoberta, alguma coisa que aconteceu entre você e o público?
R - Eu acho que trabalhar com monitoria é emocionante. É muito gostoso a monitoria do museu, porque é uma aula - só que não é aula, é muito gosto. Eu acho que o museu, ele tem uma capacidade de encantamento. Mas tem uma parte... Um dia que foi inesquecível para mim. Inclusive, foi um dia em que um cara... Ai, como é o nome dele? Minerini. José Minerini. Ele tem um livro, que é sobre as histórias da Bienal, e tem uma foto minha... Eu estou horrível, gente, o meu cabelo está horroroso, mas era o que tinha para a época. E, na foto, é justamente do dia em que eu estava fazendo um espaço museológico e encontrei lá uma imagem, que é do manto - na verdade, é um manto. Tinha um manto tupinambá e eu passava pelo manto tupinambá e depois fazia uma monitoria toda pensada nos mantos. Aí, tinha o manto tupinambá e depois o manto do Bispo do Rosário, que era o manto de ver Deus, e acho aquela simbologia de ver Deus maravilhosa. E aí, quando eu cheguei lá, cheguei com aquele discurso pronto de ouvinte. Quando eu cheguei lá, com aquele discurso pronto de ouvinte... É que eu falo da arrogância da gente quando a gente tem vinte anos anos... Os alunos surdos falaram: “Nada disso. É isso, isso e isso, vamos só olhar”. E eu falei: “Poxa vida, eu estou aqui querendo mostrar a minha libra e ele só quer olhar”. É a (inint) [00:33:56]. Então, foi muito bom para mim. Aquele dia não foi bom pelas coisas que eu fiz, mas pelo momento que eu deixei de fazer. E, às vezes, é isso; às vezes, a gente tem muita ênfase... Nossa!... E não... O importante: “Não, não precisa, a gente só precisa olhar”. E aí você tem que ter a humildade, você falar: “É verdade. O que eu estou fazendo com isso? Não é o meu momento, é o momento dele”. Então, eu acho que foi das... É isso.
P/1 - Posso voltar para a sua infância?
R - Pode. Então vou tomar mais água.
P/1 - Pode. Quer que eu pegue mais?
R - Não, está bom.
P/1 - Cidinha, eu queria saber: aqui em São Paulo, a sua infância, onde era a casa em que vocês moravam?
R - Nós morávamos onde a minha irmã ainda mora, lá na Vila Maria. É uma casa antiga. Na verdade, é uma casa junto com a do meu tio Toninho - era no mesmo quintal, a minha mãe morava no fundos com o meu pai, com as crianças, e ele morava na frente. Ele já faleceu. Era uma... Como é que chama? Muito modesta, muito pobre, muito humilde a minha infância, e com as minhas irmãs, o meu pai.
P/1 - Como era a relação com as suas irmãs?
R - Então... A minha irmã Lúcia, ela casou muito cedo e foi embora. Até porque eu acho que essa coisa de que não era muito tranquila essa relação com o meu pai... E era interessante, porque o meu pai não teve filhos homens, só filhas mulheres, e não era muito tranquilo. Então, ela foi e casou muito jovem, eu acho que ela tinha quinze anos quando ela casou. Aí, tinha eu e tinha as outras duas. A Joice era e sempre foi o meu bibelô. Então, eu tenho uma relação com ela até hoje, de mãe e filha. Eu tenho uma relação muito de cuidado. Hoje ela tem trinta e cinco anos, mas eu a trato como se fosse criança - apesar de ela ter uma vida independente. Eu acho a minha irmã uma pessoa de superação. E ela trabalha. Ela aprendeu a ler, como eu te falei, nós aprendemos, ela está na cota... Essas cotas de empresa, de deficiente, ela está atendida pela cota. Então, é uma pessoa muito... Como é que eu vou dizer? Muito independente. E eu sempre tive uma relação muito boa com ela. Com a outra não, porque a outra era muito bocuda, a Rose. A Rose é terrível, ela é uma pessoa... Mas é assim... Hoje eu também a entendo, eu tinha muito medo de desapontar as pessoas; até por causa do meu histórico, qualquer coisa que eu fizesse podia se voltar contra mim no tribunal. Então, eu ficava mais na minha. Ela não, ela sempre foi “porra louca”, ela sempre fez as coisas em que ela acreditava. E a gente, às vezes, tinha muitos conflitos por isso. É uma pena, eu não tenho uma relação muito boa com ela até hoje, eu tenho uma relação com ela, inclusive, de distanciamento. A gente não tem uma relação... Por outros motivos, a gente não tem uma relação legal, mas...
P/1 - E ainda nesse período em que eram só vocês três de filhas - a Lúcia, você e a Rose? Da infância?
R - A Lúcia, como ela é bem mais velha, ela já tinha casado. Então, a minha relação mais próxima... Porque eu e a Rose nós temos três anos só de diferença. A da Lúcia não, é bem maior a idade assim.
P/1 - E vocês tinham divisão de tarefa em casa nessa infância, antes de entrar ainda na adolescência?
R - Não, acho que tinha. Assim... A minha mãe sempre foi uma mãe que falava assim para nós que ela não queria que a gente fizesse coisas de casa, ela queria que a gente estudasse. Então assim... No momento em que a gente estivesse na escola, era coisa da escola. E quando a gente chegasse da escola, ela queria que a gente estudasse. Porque ela falava assim: “Eu nunca estudei”. Então, só mais no final de semana assim, que a minha mãe cozinhava, então a gente ajudava. Mas não era uma relação assim de... E como a minha irmã era muito assim... Não é revoltada, ela era uma pessoa... Ela queria sair, ela queria passear... Principalmente na adolescência, a minha irmã, ela sumia, ela não dava muita satisfação, e foi bem na época, mais ou menos assim, que o meu pai ficou cego. Então aí ela liberou geral, ela falou: “Uhul”. Então, foi uma coisa assim... Não havia uma relação. Eu acho assim: não é uma coisa que eu faria com os meus filhos. Eu acho que eu, hoje, dou mais regras assim: “Você tem que limpar seu quarto”. Sabe essas coisas? Que eu faço e que a minha mãe não fazia. Eu acho que a minha mãe deixava muito a gente... Ela não queria que a gente tivesse... Ela falava: “Eu não quero que vocês tenham o mesmo fim que eu”. Então, ela não queria. E foi ruim para mim, porque eu sou uma péssima dona de casa.
P/1 - E o que é que a menina Cidinha queria ser quando crescesse?
R - Primeiro, jornalista. Porque eu adoro escrever. Eu acho que quando você escreve, você fala da sua alma, é o retrato da alma quando a gente escreve. E quando você escreve, você consegue que as pessoas te entendam. Às vezes você fala - eu sou uma pessoa que fala demais, o tempo todo, e eu uno uma coisa na outra. Então, muitas vezes, eu sou meio confusa - eu sei isso - eu tenho consciência disso. Mas quando a gente escreve, não. A sua ideia fica ali marcada e vai ruminando. Eu queria... Mas aí, depois disso, eu queria ser desenhista, artista, porque eu gosto de desenhar, porque eu gosto de pintar, eu pinto tela, então eu queria fazer essa... E fui fazer Artes. E depois, eu não sei muito bem como, eu virei professora. Eu acho que virei professora no momento em que alfabetizei a minha irmã. Ali nasceu a professora Cidinha, mas não era uma coisa de infância: “Ai, quando crescer eu quero ser professora”. Não, eu pensava em outras coisas. Fiz técnico em moda, eu fiz sempre coisas assim.
P/1 - E você lembra dos primeiros dias, ou os primeiros anos, na escola? A primeira escola?
R - Ah, lembro, lembro sim. Eu estudei em uma escola chamada Escola Estadual Lael de Moura Prado, era uma escola do estado, porque eu sempre estudei no estado. E o que eu lembro... Assim... Eu nunca fui uma pessoa que falasse pouco, eu sempre falei muito. Eu tenho dois momentos na minha infância assim... De primeira a quinta séries, que eu lembro, primeiro é que eu tinha professora, no terceiro ano, muito brava, muito brava, e ela vivia me dando reguada, porque eu gostava muito de falar. E naquela época, não podia falar muito que você levava régua na cabeça, eu lembro disso. E lembro de uma outra, que era da quarta série, que se chamava dona Benê, que eu gostava muito - como a dona Damaris, também - que era do primeiro ano. Não, Damaris, não. Eclair, do primeiro ano. Eu gostava da escola, a escola sempre foi para mim um ambiente gostoso, eu não tenho nenhum trauma assim. Se eu falar assim: “Eu tenho um trauma da escola...”. E eu sempre fui gordinha e também nunca tive trauma, nunca liguei para o que as pessoas falassem de mim, assim: “Ela é gordinha”. Eu nunca tive isso, nem na adolescência. Eu acho assim... Acho que quem ama a gente, ama do jeito que a gente é. Então, eu nunca tive.
P/1 - No começo da nossa conversa, você falou que, na infância, você achava que era adotada.
R - É.
P/1 - E você já falou um pouco sobre isso. Mas teve algum momento que tenha sido fatal assim para você começar a pensar, ou tinha alguma diferença no jeito que lidava com você e com a Rose?
R - Eu acho assim... Não, porque na verdade todas éramos adotadas. Todo mundo era, e ninguém era biológico. Na verdade, no final, eu era a biológica e a Lúcia. Porque a Lúcia era biológica do meu pai. Olha, não. O problema não era ser adotada, o problema eram as coisas que as pessoas falavam que, para mim, era estranho. Por exemplo, uma frase terrível: “Olha só, você está criando cobra, vai te engolir”, para a minha mãe. Ou assim: “Você gosta dela? Da sua mãe?” Eu odeio gente que faz isso, viu gente? Eu odeio! Se tem uma coisa que me tira do sério é isso. “Você gosta? Tem que gostar mesmo”. Eu tenho dois filhos adotados e assim... Eu não admito que as pessoas façam esse tipo de coisa, eu não admito. As pessoas sabem que isso é uma coisa... Eu não gosto desse tipo de coisa: “Você gosta da sua mãe?”. Eu odeio isso, porque mãe a gente gosta mesmo, isso não é pergunta que se faça para uma criança. Então, eu acho que é isso que eu sentia no ar, eu não sentia diferença da minha mãe ou do meu pai, porque o meu pai era esquisito com nós todas, ele não fazia distinção, ele era um cara esquisito. A minha irmã, eu acho, a Rose era ainda pior do que eu. Porque eu, ele não batia em mim. E nela, ela apanhou muito, muito, dele. Muito. Porque era a mais respondona, porque era durona, porque ela falava assim: “Pode me bater, eu não estou nem aí, eu vou”. E ele descia a porrada nela. E eu não, porque eu tinha medo. “Imagina que eu vou falar com esse homem, esse homem vai me quebrar inteira”. Então, não. Então, no final, eu gostava até de ser o vaso mesmo. Pelo menos...
P/1 - E como ele era com a sua mãe, com a mãe Neném?
R - Ele não era bom com ela, ele era um cara violento e distante, mas ela gostava dele.
P/1 - E como era para você ver essas cenas de violência em casa?
R - Era horrível, era tudo que eu não queria em um casamento. Tanto é que a minha irmã, a mais velha, a Lúcia casou com um cara e foi embora. Eu acho que ela fugiu - ela já é falecida - mas eu tenho a impressão de que ela fugiu da situação. A Rose nunca casou, ela namora um cara muito legal, muito decente, mas nunca casou. A Joice não quer nem ouvir falar em homem, ela até gosta mais de meninas, como ela mesmo diz. E eu escolhi um homem completamente diferente do meu pai para me casar. Eu falava assim: “Gente, eu não posso”. Qualquer homem que tivesse um vestígio que fosse do meu pai... E o meu pai era legal para os outros, o meu pai era um homem bonito, um homem cheiroso, divertido, inteligente, mas não era bom para a família.
P/1 - Se você se sentir à vontade e achar que faz sentido, Cidinha, tem alguma cena de violência que, por algum motivo, tenha sido muito forte?
R - Tem. O meu pai era... Por isso que eu sou uma militante contra o armamento da população. Sou assim e é por isso... Eu vou explicar para vocês. Quando eu tinha sete anos, o meu pai trabalhava como segurança do Vicente Matheus, ele tinha uma arma em casa - eu nunca vou esquecer daquele dia, eu vou viver duzentos anos e não vou esquecer daquele dia na minha vida. Ele começou uma discussão... Era um domingo, umas dez horas da manhã assim, estava um dia tão bonito, e a minha mãe era uma pessoa que ia à igreja. Então nós nos vestimos para ir para a igreja, nos penteamos - as filhas delas. E ele arrumou uma confusão com ela, sabe quando você não lembra? Eu não lembro, eu só lembro da história. E ele começou a discutir com ela e falou assim: “Você merece morrer”. Ele foi onde estava... Era em cima do armário... Para você ver como são as coisas; para mim, naquela época, era um lugar muito alto, mas não era, era um armário - quanto de medida tem um armário? E ele tirou uma caixa de sapato assim e enfiou o revolver na boca dela. Gente, eu e minhas irmãs saímos correndo assim, e foi a primeira vez na minha vida... E aí, a minha irmã - que é essa - deu um empurrão assim no meu pai e eu me enfiei na frente, e ele apontou a arma para mim, ele falava assim: “Sai daí”. Aí eu falei: “Não, você vai me matar, mas você não vai matar a minha mãe”. E nessa confusão toda a arma disparou e caiu assim. Sabe quando alguém jogou... A gente não sabe... E a perna dele foi atingida. E ele deu uma surra na minha mãe, mas uma surra horrorosa, porque ele tinha se ferido. As pessoas querem arma em casa? O meu pai era um homem de bem, ele pagava imposto, ele tinha emprego, ele tinha porte de arma, mas ele não era um bom pai e era um péssimo marido, por isso eu sou militante, sim. Se Jesus Cristo descer à Terra e falar assim para mim: “Olha, só vai para o céu quem tiver arma em casa”..., pois, Carol, eu vou para o inferno, porque esse assunto me deixa transtornada. Sabe por quê? Porque eu vivi isso. Uma coisa é você achar, outra coisa é você viver. Eu não estou dizendo que toda pessoa que tenha arma... Eu não estou dizendo isso, eu estou contando a minha vida e a minha experiência. Desculpe, bati de novo, filho.
M1: Imagina, não tem problema.
R - E é isso. É você saber que, se não fosse a coragem dessas crianças, talvez ela tivesse... Talvez não, talvez ele tivesse só feito isso. E eu lembro de uma outra muito engraçada, esses dias conversando com a minha prima... Eu tenho uma prima muito querida, filha desse tio Toninho, e ela falava assim: “Nossa, mas o tio, para os outros ele era tão legal”. E o meu pai era mesmo, o meu pai era um cara carismático. E lá dentro de casa, ele era outra pessoa. Você já assistiu Patetas? Que tem um desenho que ele é um cara gente boa e quando entra no carro dele, ele se transforma em um maluco? Às vezes eu tinha a impressão de que o problema era a casa. Eu falava assim: “Gente, eu quero o meu pai fora daqui”. Por isso que eu falo: Deus que me perdoe, mas quando o meu pai ficou cego, a gente fez assim: “Ufa”. Foi um alívio. É muito triste falar isso, vocês devem estar pensando que eu sou uma pessoa horrível, mas foi um alívio, a gente começou a falar: “Nossa, que legal, agora a gente vai poder respirar”. Mas foi bom quando ele levou o tiro, porque a arma não saiu do guarda-roupa, foi embora. Ficava no trabalho dele, onde tinha que ter ficado sempre. Mas eu nunca vou esquecer esse dia. Então, esse assunto é um assunto que mexe muito comigo, porque realmente eu não tenho partido, eu não sou partidária a ninguém, eu acho que nesse bordel não existem virgens, então todo mundo nesse bordel é a mesma coisa, são meretrizes no poder. Mas eu não admito arma na minha casa. O meu filho quer fazer colégio militar, eu falei: “Faça colégio militar, você quer? Você vai ser feliz?”. “Mãe, eu quero”, “Ótimo, mas aprenda: arma aqui, não”. Porque, na minha casa, eu não quero viver aquela cena de novo. E eu demorei muito tempo para conseguir falar disso sem chorar. Quer dizer: não!
P/1 - Eu vou pegar mais água.
R - Acho que estou precisando.
P/1 - Vou pegar um jarrinho. Tudo bem, Caio?
M1: Claro, claro.
R - Desculpe, viu, gente.
F1: Imagina.
M1: Rodando. Carol, quando quiser...
P/1 - Cidinha, voltando. Eu queria entrar agora na época da adolescência. Era uma casa praticamente de mulheres, a mãe Neném conversava com vocês sobre como era a época da adolescência?
R - Não, ela tinha muita vergonha. Assim... Ela achava que não tinha que falar, mas ela uma pessoa assim muito... Como é que eu vou dizer para você? Eu acho que ela era muito humilde, então falava assim que ela não queria falar disso e, ao mesmo tempo, tinha todo um peso. Eu tinha doze anos quando descobri que era filha de um... Hoje eu penso em um abuso, mas na época era uma... “Ai, a minha mãe transou com o meu tio”. Ai, meu Deus do céu, pense numa coisa dessas. Então, ela queria que a gente falasse menos de sexo possível em casa. Então, não se falava muito disso, não se tinha esse...
P/1 - E como foi ficar mocinha?
R - Então... Eu tenho uma prima chamada Sônia, que é muito próxima, ela é um pouco mais velha do que eu. Ela e a mãe dela, que é a do meu tio Toninho, que tem... A minha tia... Elas eram aquelas pessoas que davam esse suporte de família - sabe a família normal? Papai, mamãe, três filhos, todo mundo feliz, normal, a margarina Doriana? Então... Elas davam esse suporte para a gente, porque era tudo intenso na minha casa, era uma coisa muito intensa. Então assim... “Ai, eu fiquei mocinha”. Era a minha tia que ia lá, comprava absorvente, me mostrava como é que era. A minha mãe falou: “Você pode dar esse…?”. “Sim”. Então era muito... Um detalhe: a minha mãe era bem mais velha. Quando eu nasci, ela era bem mais velha, ela já era uma senhora. Porque o meu pai... A diferença do meu pai para a minha mãe Wanda é muito grande - o meu pai nasceu em 1922, a minha mãe nasceu em 1948. Vocês entendem isso? Vocês têm a dimensão do que eu estou dizendo? Então, é uma coisa que... A minha... Se eu não me engano, a minha mãe Neném era de 1924. O meu marido sabe direito, porque o meu marido estava vendo uns documentos dela. 1924. Então assim... Todo mundo da década de 20, então era muito... Para ela era um tabu muito grande.
P/1 - Sim. Mas quando aconteceu para você, você sabia o que era?
R - Não sabia. Como eu estava no mesmo quintal, eu fui lá, gritei a minha prima, minha prima falou: “Não é nada demais, você está mocinha”. E aí ela me explicou, mas não foi uma coisa assim... E sempre dependia mais daquela família.
P/1 - E nessa época de adolescência foi quando a mãe Wanda apareceu.
R - É, apareceu.
P/1 - Se for repetitivo, se não tiver problema para você contar, se tiver que repetir.
R - Não, não tem problema nenhum, imagina. Sem problemas.
P/1 - É porque eu queria entender como é que foi receber essa mulher em casa. Em que situação ela apareceu?
R - Foi um dia muito maluco assim, parecia filme. A minha mãe estava fazendo um bolo, porque a minha mãe fazia muito bolo - às vezes fazia para vender, ela era uma boa cozinheira, alguém encomendava, então ela estava sempre na cozinha, sempre fazendo comida. Quando eu lembro da minha mãe, eu lembro dela fazendo comida. E ela estava fazendo a comidinha lá, o bolo, e de repente... A minha casa é assim: a casa do meu tio é aqui, é um sobrado. Aí, tem um corredor comprido e aquela casa lá atrás, uma casa simples lá atrás. E aí, quando bateu palmas, a minha mãe falou assim: “Vai lá ver quem é”. Quando eu vi era uma moça, porque a minha mãe era muito de... A minha mãe tinha quinze anos quando eu nasci, então eu acho que ela não tinha nem trinta anos. Quando eu olhei assim, eu vi aquela moça, tudo, aí fui lá, falei: “Oi”. “Oi”. Aí ela falou assim: “Você é a Vanuza? Você é a Vanuza, não é?”. Eu falei: “Sou”. Ela falou: “Eu sou sua mãe”. Aí eu falei: “Só um minutinho”. Aí eu saí correndo, entrei em casa e falei: “Mãe, tem uma louca ali fora falando que é a minha mãe”. Aí ela virou assim, pegou, tirou, abaixou o fogo e falou assim: “Olha, daqui uns cinco minutos você desliga o forno que eu vou lá conversar com ela”. Naquele momento, eu falei: “(Inint) [00:55:57]” Porque se eu chego para você e digo: “Olha, tem uma louca lá...”. O que você vai falar? “Ai, que louca”, não é? Para você falar - “Você fica aí que eu vou conversar com ela”. Eu falei: “‘Meu’, lascou agora tudo”. Mas eu sempre pensei que fosse adotada. “Então ela é a minha mãe biológica. E agora? Eu vou embora com ela? Eu vou ter que ir embora?”. Sabe umas coisas assim? Nossa, milhares de coisas passaram na minha mente. Aí elas demoraram eu não sei quanto tempo, eu não sei se eu achava que era muito tempo porque foi terrível, ou se foi muito tempo mesmo, eu não tenho essa dimensão na minha mente. Aí, depois, a minha mãe veio, me chamou. A minha mãe era uma pessoa muito calma, muito diferente, a minha mãe era uma pessoa muito diferente, a minha mãe Neném, de todas que eu conheci até hoje na minha vida, ela era muito especial. Ela tirou o bolo, cortou o bolo, fez o café, mandou todo mundo sentar “Vamos conversar”. Aí ela pegou, falou: “Vanuza, essa é sua mãe”. Eu falei: “E aí?”. Aí ela falou: “A gente tem uma coisa para te contar. Você, na verdade, é filha do seu pai, do Zé Manuel, do Zé Castro. É filha mesmo dele”. Eu falei: “Com você?”. “É”. Só que, ao mesmo tempo, isso explicava muita coisa, mas para mim não era, não foi uma coisa tranquila.
P/1 - Natural.
R - Foi uma coisa terrível. Eu falei: “Então a mãe mentiu para mim agora?”. “Não, eu não menti”. “Mas para mim foi mentira”. “Não, eu omiti, omitir não é mentir”. “Como assim, não é mentir?”. Então virou um negócio muito complicado para mim. A minha irmã Lúcia não estava em casa, porque a minha irmã Lúcia ela tinha um poder de apaziguar as coisas, se ela estivesse ainda lá ela falava assim: “Deixa isso para lá, eu vou pegar o meu violão”. Porque tudo para ela terminava em uma festa e uma boa música. “Vou pegar o meu violão”. Mas ela não estava lá e eu fiquei em uma situação assim... E aí ela contou que ela estava grávida novamente de outro cara, que não tinha dado certo, que ela tinha voltado para São Paulo, que ela ia se estabelecer ali perto e ela queria ter contato comigo. E aí foi muito difícil no começo, porque ela veio ficar me procurando. Aí a minha mãe falou assim para mim... Eu falava assim: “Eu não quero ver essa mulher”. Aí ela falou assim: “Mas essa mulher é sua mãe”. Eu falei: “Não, como assim ela é a minha mãe? Você acorda e você lembrou que você tem filho? Alô”. Só que a minha mãe, ela tinha um outro olhar sobre isso, ela falou assim: “O que é que você faria se você tivesse quinze anos, sozinha?” Ela falou assim: “Ela fez muita coisa errada fez, você não pode julgar ninguém, ninguém pode julgar as coisas que ela fez e deixou de fazer, ninguém erra sozinho”. E é verdade, Carol, o erro é uma coisa muito... Esse tipo de situação é... E aí eu fui aquietando meu coração.
P/1 - Mas o seu pai chegou a tempo, em casa, de encontrá-la?
R - Não, não.
P/1 - E qual foi a reação dele quando soube que aquilo tinha acontecido?
R - Nada, a minha mãe chegou para ele e falou assim: “A Wanda esteve aí, contou para a Vanuza”. Ele: “É, está bom, que bom. Está tudo certo?”. Ela falou: “Está”. “Então está bom”.
P/1 - E foi nessa conversa que você descobriu que ele era tio da sua mãe?
R - Não, eu fiquei sabendo... Não, porque assim... Eu falei: “De onde saiu essa mulher?”. Aí, a minha mãe me contou. “Não, ela é filha da...”. Eu falei: “Como assim?”. Ela falou: “Não, ela é filha”. E aí eu lembrei de um monte... Por exemplo, eu lembrei de uma situação em que tinha tido uma festa e aí, nessa festa... E as pessoas falaram para mim assim... Aí, chamou todo mundo, a minha prima Sônia ficou toda feliz porque ia ter a festa... Aliás, lembrei... Era festa de quinze anos dela e ela queria que eu fosse, porque até hoje a gente é muito próxima. De todas as pessoas da minha família, ela é a pessoa mais ‘guti-guti’. E ela queria... Aí, ela até me deu, de presente, um vestido... Sabe aquela coisa? Que ela queria que eu fosse. E no dia, ela falou assim: “Olha, você não vai poder ir”. Eu falei: “Como assim? Por quê?”. “Porque não querem que você vá, não sei quem…”. Aí, eu não entendi direito, ela falou assim: “Mas eu vou trazer bolo para você”. Eu falei: “Está”. E aí eu fiquei sem entender. E ela é quatro anos mais velha do que eu, então ela tinha quinze anos, eu uns onze anos - foi um pouco antes - e eu fiquei muito chateada, porque imaginei milhares... Imagina quando você tem onze anos. Você imagina milhares de coisa. E aí eu imaginei que não, que a Wanda já tinha vindo e ela ia estar na festa. E as pessoas não queriam que eu fizesse a relação, aquela coisa toda. Só que aí aconteceu uma coisa muito engraçada: a minha mãe acolheu a Wanda e tudo, mas aí, no momento em que eu me aproximava, a minha mãe deu “piti” assim... Um “piti” que eu digo é assim: a Wanda arrumou um emprego legal e ela resolveu porque ela queria fazer uma festa de quinze anos para mim. E as duas entraram num pé de guerra por causa dessa festa, menina. Eu sou a única pessoa no mundo que tive uma festa de quinze anos a que eu não compareci. Aí, eu tenho uma prima chamada Cláudia, que tem a mesma idade que eu, até hoje ela brinca comigo “Pô, Vanuza, eu cantei parabéns e apaguei suas velinhas”. E elas brigaram, foi uma confusão, até hoje eu não entendi porque teve aquela briga toda por causa da bendita da festa. Era uma questão, assim, meio de poder. Então: “Você vai fazer a festa?”. “Não vai”. E ninguém vai fazer, e ninguém vai, e foi aquela confusão. E eu sei que eu fiquei em casa nesse dia, e foi uma loucura. Eu não me afeiçoei à Wanda tanto assim. Gostava dela, sabe que ela era uma pessoa que, se eu tivesse conhecido em outra situação, eu gostaria dela? Era uma mulher empoderada, uma mulher forte, uma mulher que fazia as coisas que dava na telha dela, então, era uma mulher com quem eu simpatizo muito. A pessoa dela. Mas, ao mesmo tempo, eu não podia ter muito afeto, eu não me permiti amá-la, eu achava um absurdo. Hoje eu faria tudo diferente, me aproximaria mais dela, eu a chamaria de mãe. Porque no tempo em que a gente conviveu, ela reclamava muito que eu não a chamava de mãe, em nenhum segundo, em nenhuma situação, e isso foi uma coisa que, para mim, pegou muito depois que ela morreu.
P/1 - E eu queria entender como é que ficou essa relação com a mãe Wanda? Em que momentos vocês saíam? Como foi esse começo?
R - Esse começo foi difícil, porque ela foi morar lá perto da minha casa, ela fez questão. A minha tia, que é essa daí, mãe da Sônia, falava assim: “Nossa, mas ela está provocando muito a sua mãe e o seu pai. Precisa dessas coisas?” Mas eu não sei se era provocação ou se é porque ela queria mesmo. Aí, ela casou de novo, ela casou com um cara que não era o pai da Joice, era um outro cara já, porque ela teve muitos namorados, ela era muito namoradeira, menina. E aí ela foi, voltou. Ela trabalhava no Pão de Açúcar e depois eu arrumei o meu primeiro emprego - porque eu fui trabalhar muito cedo - e aí a gente se encontrava para almoçar, às vezes. Eram coisas assim, não era uma coisa muito... Eu trabalhava de dia, trabalhei em uma transportadora, foi ela quem me arrumou o meu primeiro emprego, porque ela tinha um amigo. Então, era uma relação muito mais de amiga do que de mãe, porque ela tinha... Um dia... Eu lembro de que ela falava assim: “Ai, você é muito velha!”. Porque eu era uma pessoa velha, muito careta. Porque eu era mesmo, sou careta até hoje. Mas era o jeito que eu era, que eu fui criada, e ela não, ela era muito... Ela era da mochila nas costas, e vamos para o mundo. E um dia ela falou para mim: “Você nunca vai me chamar de mãe?” Aí eu falei assim: “Mas, Wanda, eu não consigo, não consigo te chamar de mãe. Mas eu gosto de você, você é uma pessoa que eu quero bem, eu curto a sua companhia. Não está bom?” Ela falou: “Não, ainda não é suficiente, mas um dia você vai me amar”. Eu falei: “Vou sim, eu te amo”, “Não, mas vai me amar como você ama ela”. eu falei: “Ela quem, meu Deus?”. “Ela”. Ela entrou em uma de competição. Aí depois ela morreu, foi...
P/1 - Então, e como foi receber a notícia do falecimento dela?
R - Foi terrível, foi terrível. Porque é como eu falei para você, eu não me permiti amá-la como ela merecia, ficou (inint) [01:05:13] para mim, ficou. Porque assim... Ela morreu em um acidente, ela não estava doente, em um acidente de carro, e eu... Sabe quando você guarda um silêncio, que eu falava assim: “Gente, eu poderia ter dito tanta coisa para essa mulher, eu não disse nada”. E ela veio até mim, ela veio me procurar, ela veio em uma cruzada para que eu gostasse dela. Eu lembro da última vez que a gente falou ao telefone, ela perguntou para mim... Foi numa quinta-feira, no sábado de manhã ela morreu. Ela falou assim: “Eu posso te pedir uma coisa? Duas coisas”. Ela falava, eu falei: “Pode”. Ela assim: “Você pode ficar com a Joice no sábado? Que eu troquei meu horário e vou trabalhar de manhã”. Eu falei: “Posso, eu não trabalho”. Ela falou assim: “Não, então você fica com ela?”. Eu falei: “Eu fico. Onde? Na minha casa ou na sua?” Ela falou: “Não, eu passo aí e levo a Joice”. Eu falei: “Está bom”. Aí, quando foi... Aí depois, quando ela ia desligar, ela falou: “Eu posso te pedir outra coisa?”. Eu falei: “Pode”. “Você podia falar que me ama?”. Eu falei: “Eu te amo”. “E que eu sou sua mãe?”. Eu falei: “Aí eu já não posso”. Então assim... Ela estava brincando, eu podia ter entrado na brincadeira, eu podia ter feito as coisas de um jeito mais suave. E aí ela falou: “Então, beijo”. “Beijo”. E desligou. E eu não falei mais com ela, foi a última vez, ela morreu. E aí eu falei: “‘Meu’, por que eu fiz isso? Por que eu não fui... Não era mais fácil eu ter falado assim? “Eu te amo, beijo. Se cuida, sua doida”. Só. Mas, não! Então é isso que eu acho que às vezes pega, mas eu não posso voltar atrás, eu só posso ir para a frente. Por isso que eu falo: hoje eu sou uma pessoa que fala mais ‘eu te amo’ no mundo. Falo ‘eu te amo’ para o meu marido, para os meus filhos, eu queria todo mundo falando “Eu te amo”. “Eu também te amo”. “Laurinha, eu te amo”. Porque pode ser a última vez. Então, eu faço isso hoje com os meus filhos, com as pessoas de quem eu gosto. E eu perdoo muito mais do que perdoava, porque quem perdoa, ganha; quem não perdoa, perde. E foi isso que aconteceu. E aí ela me deu um presente, porque a Joice é um presente, sempre foi. Foi isso. Mas a gente almoçava muito juntas.
F1: Cidinha, eu queria saber como foi a chegada da Joice como responsabilidade para você?
P/1 - Foi terrível. Por quê? Porque eu era uma menina, eu falava: “Pô, eu andei tão direitinho para não engravidar, para ninguém falar de mim, para não ter nada de empecilho na minha vida, e agora você me aparece? Para”. Só que eu não tinha o que fazer. O rapaz, o namorido da minha mãe, não era pai da Joice. E eu não podia cobrar dele uma coisa que... E ele falou para mim, ele foi bem claro... Ele era bem mais jovem que a minha mãe - era dez anos mais novo, tinha quase a minha idade. E ele falou assim: “Não vai rolar, você me desculpe, eu estou estudando”. Eu falei: “Não, você não é pai dela. Toca a vida aí, embora viver”. Eu fui, peguei-a um dia... Aí, primeiro eu cheguei na minha mãe e falei: “Mãe, temos um problema”. Ela falou: “Qual?”. “Então...”. Ela falou assim: “Você foi no enterro?”. Eu falei: “Lógico, mãe, eu fiz tudo”. Porque a minha mãe não foi, minha mãe achou por bem que ela não deveria ir, ela achou que podia pegar mal, as pessoas poderiam interpretar de forma incorreta e indelicada, ela achou que... Ela falou: “Vai, cuida de tudo, resolve tudo o que você precisa”. O meu tio foi muito gente boa, me ajudou bastante. As pessoas foram muito solidárias naquele dia, inclusive quem eu não imaginava que fosse, foi. E aí, eu tinha um outro tio também - o tio Manuel - que foi bárbaro, nesse momento eu acho que ele foi uma pessoa assim que uniu a família. Sabe aquela pessoa que vem e fala? “Não, agora vamos parar de palhaçada, vamos todo mundo resolver as coisas”. E ele falou para mim: “Você está pronta? Você quer que a gente dê um jeito?”. Eu falei: “Não, quero... Eu quero ficar com a...”. Eu queria ficar com ela. E aí eu cheguei para a minha mãe e falei assim: “Eu estou com um problema”. Ela falou: “Qual?”. Eu falei: “A Joice”. Ela falou: “Não, isso não é problema, isso é solução. Você vai trazê-la... Não trouxe ainda por quê?”. Eu falei: “Ela está lá na casa do tio Manuel”. Ela falou: “Mas o Manuel não tem como criar menina, ele é homem solteiro. Não, deixa, vamos ver aqui, quem come um, come dois, vamos embora”. E aí ela veio morar com a gente e a minha mãe foi mãe dela também, com todo amor que ela... Acho que a Joice foi a grande companheira da minha mãe na velhice, porque a minha irmã é autista, ela é uma autista leve, ela conversa com você normalmente... Aliás, ela seria uma história fabulosa aqui, porque ela é de uma riqueza. A Joice é um exemplo para mim, de superação, de vontade. Não gosta muito de gente, mas fazer o quê? Ninguém é perfeito. E foi assim. Ela foi lá para casa, eu continuei trabalhando - porque eu já trabalhava, já estudava, estudava à noite, estava me preparando para o vestibular, estudava muito no final de semana, porque eu vim de escola pública, na minha época não tinha cota, estudava no estado à noite. Aí, eu levava a Joice à biblioteca comigo e eu ficava o dia todo com ela na biblioteca. E eu falava que era piquenique. Aí, foi lá no piquenique, o piquenique demorava horas, porque eu tinha que estudar. Mas não me atrapalhou em nada, não. Fui, passei na Unesp, estudava de manhã, troquei meu horário, fui trabalhar no Mappin. Vocês não sabem o que é Mappin? Sabem? Trabalhei no Mappin. E foi isso.
P/1 - Unesp de qual?
R - Aqui em São Paulo - Instituto de Artes. Eu fiz... Aí, eu fiz quatro anos de Artes lá.
P/1 - E como foi ver o resultado do vestibular?
R - Foi um momento de superação. Sabe por quê? Porque as pessoas não acreditam muito. E é muito gostoso isso. Porque quando você vem de uma história... Hoje é muito difícil, talvez vocês não entendam a dimensão disso, mas para mim, que conheço a minha história, e para as pessoas que conhecem a minha história, que conviviam comigo, os meus amigos daquela época, foi uma coisa muito especial. Porque eu coloquei na minha cabeça que eu ia fazer essa faculdade nem que fosse a última coisa que eu fosse fazer na minha vida, e eu me dediquei demais todos os dias, com muito foco. E quando eu vi o resultado, eu fui a décima quinta colocada, eu fiquei muito emocionada, eu me emociono até hoje. Mas eu acredito muito em Deus, acho que foi Deus quem me colocou lá dentro, que foi uma obra de Deus na minha vida. E foi muito legal, porque a minha mãe ficou muito orgulhosa. Porque eu ia ser a primeira das filhas dela que ia fazer faculdade. Nossa, ela contou para todo mundo que você imaginar, até para os cachorros da rua. Mas aí foi só o começo do problema. Porque era de manhã - das sete às duas - eu falava: “Pô, agora eu tenho que trabalhar a que horas?”. Porque eu era arrimo, eu ajudava em casa, eu trabalhava para ajudar em casa, o meu pai estava cego já, a minha mãe parou de trabalhar - ela já tinha uma idade - então tinha uma aposentadoria, mas não era muito dinheiro. Então, eu falei: “‘Meu’, como é que eu vou fazer?”. Aí eu saí e fui atrás. Fui no Mappin, consegui trabalhar lá até meia noite - acho que era das duas à meia noite, das três à meia noite, não lembro direito, acho que era das três. E eu trabalhava ali em frente ao Teatro Municipal, ali que era o Mappin. Hoje ali é a Casas Bahia. E eu trabalhava, era muito cansativo, mas foi uma experiência maravilhosa.
P/1 - O que você fazia lá?
R - Eu fazia artes plásticas.
M1: Desculpa. Cidinha, eu posso te pedir um favor? O seu cabelo do lado esquerdo, você pode pôr um pouquinho para trás? Perfeito. Isso mesmo, pode continuar.
P/1 - O que você fazia lá no trabalho?
R - Eu era caixa, muito cansativo, pelo amor de Deus. Mas era o que eu precisava. Trabalhei lá, depois trabalhei em uma empresa de telefonia terceirizada da Telesp - não era Telefônica ainda. Fui me virando até conseguir uma bolsa, porque eu tinha bolsa BAAE, que era uma bolsa para alunos carentes, mas mesmo assim o dinheiro que eles me davam para material... Porque o material de artes plásticas é muito caro. Então,, eu usava todo esse material. E aí eu saí do Mappin porque não estava dando mais horário. Porque, a partir do segundo ano, eu fui fazer estágio. Aí eu trabalhava... Eu entrava às sete horas, ia até as duas; aí depois eu ia para o estágio, às seis horas eu ia para casa, dormia um pouquinho - até às dez - e às dez eu saía da Vila Maria, ia para a Liberdade e trabalhava da meia noite às seis. Era um caco humano. Foi quando eu conheci o meu marido. Eu o conheci em uma festa na USP, foi muito engraçado conhecê-lo assim. E foi bem nessa época em que eu não tinha vida, só estudava. E um belo dia, uma amiga minha, que fazia Filosofia na USP, mas também fazia Artes - a doida fazia dois cursos, um de manhã e um à noite - ela falou: “Hoje você está de folga?”. Eu falei: “Eu estou”. “O que você vai fazer?”. “Eu vou dormir, filha, porque é o que eu mais gosto de fazer”. Ela falou: “Não, hoje não, hoje você vai comigo em uma festa. Para, você só trabalha e estuda, vai ficar velha e não vai em uma festa? Altas festas na faculdade”. Eu falei: “Meu Deus do céu, então vamos”. Aí, quando cheguei ali na praça para subir, não tem o elétrico? O ônibus que vai para a USP? Estou eu lá com ela, no ponto, conversando, dando risada, aí ela pegou... Ele veio e perguntou: “Esse ônibus passa na USP?”. Eu falei: “Passa, nós estamos indo para lá”. Ele falou: “Que legal, eu também estou indo para lá”. Aí, depois, eu falava assim: “Nossa, você não sabia?”. Ele: “Não, eu pegava aquele ônibus todo dia naquele mesmo lugar”. E aí, a gente começou a namorar. E ele teve muita paciência comigo, porque eu dormia muito. Toda vez que a gente se encontrava, eu estava dormindo. E estamos aí já.
P/1 - Mas quando vocês perceberam que tinha algum sentimento rolando entre vocês?
R - Eu acho assim... Eu o conheci em uma festa, eu tinha acabado de romper um relacionamento com uma pessoa que não era muito legal, que, na verdade, era um relacionamento meio que também fake, não era bem um relacionamento, porque eu não tinha muito tempo para a pessoa também, eu não tinha muito tempo, a minha vida era muito cheia, eu não conseguia encaixar alguém na minha história. Porque, até aquele momento, eu era muito focada em entrar na faculdade. Quando eu entrei, eu era muito focada em sair da faculdade. Porque entrar só não adianta, você tem que entrar e terminar. E eu era muito focada. E aí, quando eu conheci o meu marido, ele estava fazendo Física, depois fez mestrado, depois fez doutorado em astrofísica - o meu marido é astrônomo - e eu falava para ele: “Nossa, mas isso não vai dar certo. Quando é que a gente vai namorar?”. Ele: “A gente dá um jeito”. Então ele foi me conquistando porque ele foi muito insistente, ele queria namorar; aliás, ele era muito insistente, ele queria namorar, queria noivar... E aí a gente foi namorando, namorando, com muita paciência. Eu também falei para ele que a minha família não era uma família fácil... E, no ano em que eu o conheci, o meu pai morreu, e aí foi um ano... E eu falei para ele: “O meu pai é cego”. Aquela coisa toda. “Não é uma família muito normal”. Eu contei toda a minha história para ele, e aí ele falou: “Não, mas isso não tem nada a ver, o que importa somos nós dois”. E aí a gente foi namorando, ficamos noivos e estamos aí há vinte e quatro anos juntos. Passa muito rápido, gente. Quantos anos você tem?
P/1 - Vinte e oito
R - Você tinha quatro anos. E você?
F1: Dezenove.
R - “Ixa”.
P/1 - E quando foi a primeira vez que você o levou para casa?
R - Demorou, viu? Foi assim... Eu não queria que as pessoas soubessem que eu estava namorando, porque eu tinha muito medo de namorar, eu vou te explicar por quê. Como a minha mãe tinha sido mãe solteira, eu sempre associei que eu não poderia ter um relacionamento porque as pessoas já iam achar que eu ficar grávida. E eu não queria ninguém discutindo a minha vida, muito menos a minha vida sexual. E eu acho que a relação... O meu pai gerou... Essa relação do meu pai, doentia... Porque a relação do meu pai não era saudável, com a minha mãe, gente, não dá para mentir para vocês. E isso trouxe muitos traumas, não só para mim. Nenhuma das filhas teve uma vida, a princípio normal, de relacionamento. Eu não queria relacionamento. Então, eu foquei nos estudos, a minha outra irmã, a Rose, tinha uns relacionamentos... Ela também ficou grávida e teve um relacionamento com um cara que era traficante, mas depois ela desistiu. Aí, ela foi fazer enfermagem, ela é enfermeira-chefe, tem um trabalho legal. Mas ela, hoje, vive com um cara, um namorido, mas ela não assumiu como casamento. A Joice, ela tem uma sexualidade muito assim... Ela é bissexual - uma hora ela gosta de meninos, outra hora ela gosta de meninas. Então... E as pessoas também achavam que eu era meio assexuada, ou que eu era homossexual às vezes, porque eu não tinha ninguém, nem meninos e nem meninas. Muitas pessoas da minha família perguntavam: “Mas você não gosta...”. Não, é porque eu estava muito focada. Então, eu era assexuada. Por exemplo, eu não queria que ninguém desse palpite, então eu fui deixando esse relacionamento. Nos dias de folga, a gente ia ao cinema, a gente namorava, a gente ficava junto, mas sem ninguém ficar... Mas aí ele começou a cobrar “Não, mas eu preciso conhecer a sua família, você precisa conhecer a minha”. E aí teve uma festa de família, eu primeiro contei para os meus tios e para a minha prima e eles deram maior força, e aí nessa festa, ele foi. E foi muito legal, porque eu comecei a ver que não era nenhum bicho de sete cabeças, que eu podia ter um namorado. Mas demorou muito para eu relaxar, para eu falar: “‘Meu’, eu posso ser feliz”. Nada que aconteceu me desabona. Foi legal, foi legal porque... Aí, foi bom, porque eu me aproximei de outras pessoas da minha família, você entende? Eu acho que eu mesmo ficava meio assim, e de repente eu estava livre, eu podia ser quem eu quisesse - já estava na faculdade, já estava namorando, aí depois eu fiquei noiva. E eu tenho uma relação muito interessante, porque eu fui criada dentro de um lar presbiteriano, pela minha mãe. A minha mãe tinha muito essa coisa e eu também gostava muito, eu falava assim: “Mas, meu marido, ele não é da mesma religião que eu”. Mas, ao mesmo tempo, ele era um cara tão diferente do meu pai. Eu dizia: “‘Meu’, é esse cara. Eu vou perder esse cara? Esse cara é demais, ele é muito sensível, muito romântico”. E aí, a gente foi se relacionando, eu fui embora, fui morar com ele. Namorei um ano, morei com ele um ano e depois eu me casei. Foi em 1995.
P/1 - E como foi terminar a faculdade?
R - Como assim?
P/1 - Teve festa, comemoração?
R - Então... A minha irmã veio do Amazonas, a Lúcia. Foi muito legal, foi a última vez que eu a vi viva, porque depois ela teve doença de chagas e morreu. A minha mãe estava viva ainda, o meu pai já tinha falecido, a Wanda já tinha falecido. Então, eu acho que foi o momento de orgulho assim, eu acho que o meu diploma foi um divisor de águas para um monte de gente, não era eu só que estava me formando, a minha família tinha alguém que estava se formando e isso ia abrir a porta para um monte de gente que veio atrás, e veio mesmo. A minha irmã fez Enfermagem, a minha prima fez Pedagogia - que é essa de quatro anos que é mais velha do que eu, foi fazer Pedagogia. Então, nós tivemos... Aí depois eu fui fazer Pedagogia com ela. E foi mágico, é mágico quando você passa para um patamar que as pessoas não acreditam, e quando você está em uma comunidade pobre, ou quando está em uma relação que às vezes é mais humilde... Porque, para uma pessoa que tem um padrão de vida, fazer uma faculdade é uma coisa comum, normal. Hoje eu falo assim: “Meus filhos vão estudar, depois eles vão fazer faculdade; depois, se eles quiserem fazer mestrado, eles vão; se eles quiserem fazer intercâmbio a gente paga, dá um jeito, pega um pouquinho mais de aula e dá”. Mas na minha realidade não, na minha realidade foi uma conquista muito importante para mim e para as pessoas que estavam ao meu redor; então, foi mágico.
P/1 - E, Cidinha, eu queria saber como foi esse começo de vida a dois? Você não falou o nome do seu esposo.
R - Anselmo. Foi bom, foi tranquilo. O meu marido sempre viajou muito, então eu tive uma vida assim... Eu falo que eu sou casada há vinte e poucos anos, mas é como se eu tivesse casado há muito menos, porque se você enxugar os dias... O meu marido trabalhou com a Astronomia muitos anos, hoje ele trabalha no IBGE, mas ele trabalhou... Então, ele viaja muito. Ele ficou em Atacama, no Chile, ele fez muitas coisas assim diferentes no tempo do mestrado e do doutorado, mas eu deixava ele ir, porque eu achava assim: “Não é porque você casou que você não tem que continuar sonhando”. E eu falava: “Não, vai de boa”. A gente nunca teve isso, nós temos uma relação muito tranquila em relação ao que o outro vai fazer, principalmente essa coisa de estudar. E foi tranquilo, eu me senti um pouco sozinha, porque eu falava: “‘Meu’, eu estou longe da minha mãe”... Porque eu vim morar no Jaraguá, mas foi gostoso, é bom, eu não tenho o que reclamar. Como eu te falei, eu não tenho o que reclamar do meu casamento, porque o meu casamento é uma coisa muito tranquila, eu tenho os meus filhos. A única coisa triste que aconteceu foi quando eu perdi a minha filha, eu tive uma... Foi assim: na verdade, eu tive várias gravidez de alto risco, então eu tive seis gestações, mas eu tenho um filho só, biológico, que nasceu, que é o André, que hoje tem quatorze anos. E tem os gêmeos - mas eles são adotados - hoje com seis anos; quando eles vieram para nós eles tinham dezessete dias, e hoje estão com seis anos.
P/1 - Calma, vamos ter que voltar aí.
R - Por quê?
P/1 - Antes de chegar nos filhos, porque os filhos vai ser um tempo bom para a gente conversar.
R - Diga.
P/1 - Ainda com o Anselmo. Você chegou a acompanhá-lo em alguma viagem?
R - Sim. Assim... Porque eu trabalho na Prefeitura, ela sabe. Mãe e professora. Então, realmente, é muito difícil a gente poder viajar assim com ele, mas algumas viagens, que ele foi para Congresso, algumas coisas, eu tive a oportunidade de ir. Eu fui para os Estados Unidos com ele, lá no Observatório de Griffith, lá no negócio do Hollywood. Fui à Itália. Fui em alguns lugares com ele, quando ele foi trabalhar. Então, para mim, era uma experiência e era uma experiência muito doida. Sabe aquelas coisas assim: “Nossa, eu estou no Vaticano. Poxa, eu nunca imaginei que eu ia estar aqui dentro”. Ou quando eu fui para Griffith: “Nossa, eu estou em Griffith, esse negócio aqui, eu não sei nem falar Inglês. Mas, Nossa, eu nunca imaginei que eu ia estar em um lugar desses”. É muito esquisito, mas é muito legal. Foi muito bom esse período em que ele viajou, porque eu também viajei bastante. Ou então fui visitá-lo quando ele estava. Ele ficou muito no Pico dos Dias ali, que é um lugar maravilhoso em Minas, que é onde é o LNA - Observatório Nacional de Astronomia. Todo mundo deveria ir lá, é mágico, é lindo. E é um lugar em que ele ficava e eu ia. Mas aí eu fiquei grávida do André também, e aí é complicado, porque uma coisa é você ser casada e sem filhos - porque aí eu pegava a minha mochila e falava assim: “É um feriado, você não pode vir? Opa, eu vou”. Então eu ia. Quando o André chegou, já não podia ser assim mais. E aí foi quando eu comecei a cobrar dele: “Muda de emprego, este emprego não está rolando não, eu sei que é ótimo, mas não dá”, .E aí a gente foi se organizando e hoje ele está no IBGE, que é o emprego... Ele viaja ainda um pouco, mas é um outro ritmo.
P/1 - E antes do André chegar, como foram essas gestações?
R - Na verdade, eu tive uma antes do André. Eu tenho um problema de saúde, que o médico não detecta a minha pré-eclâmpsia. Eu caminho todos os nove meses, quando chega no parto eu tenho a bendita. E aí a criança já está formada. Então, dessas crianças, a maioria eu tive que sepultar, natimorto, porque elas morrem. E aí o que acontece? Um foi antes do André, depois o André nasceu no HU da USP, então é um lugar mais... Eu acho que... Sei lá, mais organizado e tudo, e aí eu consegui ter o André. Depois eu tentei mais umas quatro vezes e aí eu não consegui. E aí aquilo ficou uma coisa muito na minha mente, na minha cabeça: “Pô, eu não vou conseguir mais ter nenhum”. Porque, psicologicamente, eu já estava derrubada. Porque você tem todo um processo e quando você chega lá: “O seu filho morreu”. Você não tem mais cabeça para engravidar, e aí eu decidi que não ia engravidar mais. Mas, ao mesmo tempo, eu queria mais uma menina. Aí, nós decidimos adotar.
P/1 - Mas todas as quatro, depois do André, chegaram aos nove meses?
R - Duas chegaram até os nove meses.
P/1 - E aí, como era acompanhar?
R - É terrível. Eu fiz muita terapia depois, porque só com terapia para você fazer... Assim... O que eu acho que foi ruim... É assim... Porque a gente põe a culpa no... Eu tive duas experiências engraçadas: a primeira, eu passei pelo Servidor, pelo SUS, pelo Servidor, porque as pessoas falam: “No Servidor é ótimo”. E não foi, foi horrível. Aí eu fiz um convênio caríssimo, porque disseram: “Não, faz pelo convênio, porque aí você vai...”. E foi horrível também. Então, não importa. Na verdade, dos dois jeitos foi ruim. Porque as pessoas meio que não sabem o que fazer com você quando o negócio... E foi traumático. Esse último, de 2008, eu acho que foi o mais traumático de todos. Porque eu já estava numa idade... Eu queria a criança, eu pus na minha cabeça que tinha que ser mãe de novo e fui, tentei, tentei, e não rolou. E aí nasceu natimorta a Amanda, e eu fiquei muito mal. E eu não conseguia, entrei em uma depressão profunda. E falava assim: “Pô, Cidinha, você sempre foi tão guerreira, nada te abalou e agora isso vai te abalar?”. Mas eu fiquei mal, foi a primeira vez que eu falei: “Gente, está osso para mim”. Só que aí o André já precisava de mim, ele estava vivo, ele é uma criança muito próxima e eu falava: “Não, eu preciso sair dessa por causa do André”. E aí o André me deu todo o apoio, porque era muito pequeno. E o Anselmo foi muito presente, o Anselmo largou tudo que ele estava fazendo para cuidar de mim e eu sou muito grata a ele por isso. E aí, foi isso.
P/1 - E quando os gêmeos apareceram?
R - Foi assim... Aí nós decidimos... O Anselmo falou assim: “Para de se torturar, chega dessa palhaçada”. Ele falou: “Não quero mais que você engravide, eu não quero mais isso, nós não vamos passar por isso de novo, porque eu não tenho psicológico para isso mais. Então você quer ser mãe?” “Quero”. Ele falou assim: “Simples assim: vamos adotar”. E aí a gente foi na Vara, eu fui reprovada de primeira, ele foi aprovado, porque ele falou que a minha cabeça não estava boa, não estava mesmo. E aí eu fui e esperei mais seis meses, voltei lá, fiz todo o trâmite de novo.
P/1 - Qual é... É uma prova? O que é?
R - Não, é uma análise. É uma análise muito complexa, porque você tem que passar pela assistente social com todos os seus documentos, depois você vai e passa pelos psicólogos, eles analisam toda a sua vida, não é assim... “Eu quero adotar”. Quando você estiver apto, aí você entra na fila, no cadastro. Aí, considerados aptos - eu o Anselmo - nós entramos. Só que a gente elaborou um perfil, o perfil que eu queria: eu queria uma menina, não queria que fosse branca, podia ser qualquer cor, só não podia ser azul porque aí é Avatar, brincava que era... Nem amarela, não, amarela. Indígena podia, não podia ser, sei lá, de bolinha roxa, sei lá. Podia qualquer raça, podia ser menina e ter até três anos. E aí o cara estava demorando... Aí, um belo dia, a Vara me ligou e falou: “Você não quer mexer nesse perfil? Esse perfil está muito difícil. Todo mundo quer menina, está difícil demais”. Isso em janeiro. Aí eu peguei e falei assim: “E agora, o que eu faço? O que vou fazer?”. Eu queria uma menina. Aí, a moça falou assim: “Vamos fazer o seguinte: por que você não põe gêmeos?”. Aí eu ri e falei: “Mas como assim?” Ela falou: “Porque aí é mais fácil de vir uma menininha, uma menininha é mais fácil, de repente”. Aí eu falei: “Está bom, então põe aí”. Mas eu nunca imaginei... Mas, na verdade, olha só, hoje eu penso que eles já meio que sabiam, porque foi em janeiro, meus filhos nasceram em junho, então quer dizer, já estava na forma.
P/1 - Planejado.
R - E aí, passou. Quando chegou lá, me ligaram de novo, da Vara, em junho. Ligaram para o meu marido, na verdade, e ele falou: “Ai, mô, a gente tem que ir lá na Vara”. Aí eu falei: “De novo?”. Porque eu não tenho muita paciência, ele é mais calmo, ele é mais paciente, eu não, eu não sou. Eu falei: “De novo, para quê? Para ficar perguntando o que eu quero?” Ele falou: “Não, vamos lá”. Quando eu cheguei lá, a moça falou assim: “Eu tenho uma boa notícia: a sua menina nasceu”. “Nasceu?”. “Nasceu, é recém-nascida, é linda, a mãe fez pré-natal, não é usuário de droga, tudo de bom”. Aí, você sabe... Carol, aprenda uma coisa com a titia: quando a esmola é muita, o santo desconfia. Eu falei: “Mas alguma coisa tem essa criança”. Ela falou: “Não, sabe o que é? Vem com bônus”. Eu falei: “Como assim, com bônus?”. “É porque ela é gêmea”. Aí ela mostrou lá a foto do garoto: “Vai lá visitar”. Aí nós fomos lá, no Pequeno Cidadão. Gente, olha, o meu coração fez assim. Mas tinha que conhecer primeiro. Quando eu cheguei lá no abrigo, eles tinham acabado de chegar. Porque eles ficaram três dias no hospital, que a mãe deixou lá, ela saiu com a desistência, então por isso que eu ia poder pegar lá de antemão, porque ela tinha o direito de abortar e não fez isso. Porque foi violência sexual, foi estupro. E aí, quando eu cheguei lá no abrigo, tinha aquele monte de bercinho com aquelas crianças lindas, todo mundo lá, e ali, no meio assim, a posição ali que está o... É Cássio?
M1: Caio.
R - ...O Caio, de repente eu vi um bebê. Mas pensa em um bebê gostoso, pensa em um bebê lindo, depois eu vou mostrar a foto para você dizer que ele é lindo. E aí eu falei assim: “Que lindo, eu posso pegar?”. Aí a moça do abrigo falou: “Pode”. Aí eu peguei no colo e falei assim: “Que lindo. Eu não posso ficar com esse não? Eu tenho que pegar os gêmeos?”. Mas eu nem tinha visto os gêmeos. Ela falou: “Você quer esse?”. “Pode”. Eu falei: “É sério?”. Ela falou: “Não, sua boba, esse aí é um dos gêmeos, mas tem que levar os dois”. Aí, eu já tinha me apaixonado pelo menino e eu já queria a menina... A menina não, a menina é mais séria assim, olha para você assim, mas é linda também. E aí, depois de dezessete dias, depois dos trâmites, nós fomos buscar. Foi super rápido. Depois, um ano e oito meses saiu a guarda definitiva. Ele se chamava Pedro mesmo e ela se chamava Joana. Aí eu coloquei Pedro Arthur, porque Arthur era um nome que o meu sogro queria, o meu sogro é uma pessoa especial para mim, é o meu segundo pai assim, acho que era o primeiro, e coloquei Ana Laura, porque eu tive uma aluna com EPC, com paralisia cerebral, fantástica, ela está até no meu Face, chama-se Ana Laura, maravilhosa, inteligentíssima, e eu falava: “Quando eu tiver uma filha, Ana Laura, eu quero que ela seja como você: inteligente, tudo de bom”. E aí, chama-se Ana Laura. E hoje eles têm seis anos, mas eles foram aqueles que me tiraram do poço assim, eu posso dizer que eles foram divisores de água na minha vida. Muito do que eu sei hoje, de ser mãe... Porque o André é o filho da mocidade, da loucura. “Vamos pegar ele moleque e vamos viajar”. E eles não, eles vieram depois de uma dor grande, de uma depressão fortíssima, que eu não conseguia nem levantar da minha cama. E daí eles estavam lá. Então, eles foram meio que uma cura, uma cura para a família toda. Porque o meu marido ficou derrubado, a minha irmã Joice também, ela ficou muito assim, sensibilizada, com medo de me perder. Porque eles achavam que a qualquer momento eu podia me matar ou dar cabo da minha vida, porque eu estava muito mal. E eles vieram para eu voltar a ser quem eu era. Porque eu sempre fui uma pessoa divertida, da piada na hora, com o tempo da piada, e, de repente, eu me entristeci. E eles vieram para retomar isso, essa alegria que eu tinha antes, que eu tinha perdido. Essas gestações sugaram a minha alegria e eles trouxeram de volta, são os dois anjos da minha vida.
P/1 - Como é que foi a chegada deles em... Era isso?
F1: Pode perguntar.
P/1 - É? A chegada dos gêmeos em casa?
F1: Sim.
P/1 - É isso que você queria perguntar?
R - Foi uma alegria, uma alegria que não dormi mais, é óbvio, porque você tem duas crianças dentro de casa, recém-nascidos, de repente. Porque no mesmo mês eu descobri que ia ser mãe, dezessete dias eu tinha... Não deu tempo de me preparar, e a casa também. E foi aquela confusão, mas foi tão legal, foi cansativo, mas foi legal. É muito legal quando você adota, porque a adoção gera uma rede do bem, as pessoas querem te ajudar, querem te presentear, essa rede do bem ela vai... Sua mãe deve conhecer, eu recebi chá de bebê de gente que eu não sei nem quem é. Do Rogê, do David, tudo escolas lá perto, que eles sabiam: “Uma professora da EMEBS, que trabalha no Mário Lago, adotou gêmeos”. E aí as pessoas começaram a fazer um monte de chá de bebê e, de repente, eu tinha tanta fralda que eu comecei a doar. E foi uma coisa muito louca assim, de pessoas que eu não conhecia. E foi muito legal, porque eu acho que o amor contagia, o bem contagia, assim como o mal também contagia, mas o bem é uma coisa que, se bem administrado, ele prolifera. Então assim... Eu acho que uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida foram os gêmeos.
P/1 - E para o André, como foi?
R - Então... No começo, foi muito bom. Porque eu estava destruída, eu não era mãe dele mais, aquela mãe carinhosa, dedicada, do bolo da tarde. Era muito difícil, porque eu não conseguia nada, eu não conseguia levantar da cama. Então, para ele foi bom. Porque eu fiquei um tempo internada também, depois da pré-eclâmpsia do último. Então ele ficou meio se sentindo órfão, com medo de me perder. Só que eles brigam muito, ele é adolescente, ele tem o quarto dele, não pode nem entrar no quarto, sabe aquelas coisas de adolescente? Mas eu acho que ele encarou bem, ele encarou. Para ele não tem essa diferença, lá em casa não tem esse negócio de adoção, a gente só fala de adoção em uma situação como essa. Eles sabem, eu falo para eles: “Olha, mamãe não podia mais ter bebê, aí Deus mandou um anjo, esse anjo chamava Marli, e a Marli resolveu me dar vocês. E eu estou com vocês aqui agora, entendeu? É isso que vocês precisam saber, vocês não precisam saber mais nada, é só isso”. E foi por aí, foi nesse caminho que a gente decidiu. Quando eles nasceram, eu e meu esposo fizemos uma coisa: a gente perguntou para o André o que ele queria ganhar de presente mesmo: “Eu quero ganhar um jogo, eu quero ganhar tal coisa”. Nós embrulhamos separadamente, via Sedex, e mandamos pelo Correio: um como se fosse a Ana Laura que estivesse dando e outro como se fosse o Pedro que estivesse dando. Então, quando os gêmeos chegaram, ele já tinha sido presenteado. E aí ele falava assim: “Foi a Ana quem me deu”. Então, até hoje ele tem um jogo lá - eu não sei o nome - que o pai comprou. “Aquele que a Ana me deu”. Na cabeça dele foi ela quem mandou para ele, até hoje. Hoje ele tem quatorze anos, mas ele fala: “Foi a minha irmã quem me deu”. Eu fiquei pensando: “Foi sua irmã quem te deu? É, é verdade”. Então, eu acho que são pequenos gestos que acabam facilitando as coisas.
P/1 - Você chegou a conhecer a mãe dos gêmeos?
R - Não, porque a Vara não permite. Mas eu sei a história, porque eu acompanhei o texto, tudo. Mas você não conhece. Aliás, quanto menos você conhecer é melhor, porque senão você se envolve na situação. Às vezes, você fica com medo. As histórias de quem abre mão do pátrio poder materno, da coisa de ser mãe, são histórias muito tristes. Eu mesma... Eu sei... Do que me foi dito - porque eu li lá o processo e tudo - sei que ela tinha autorização legal para tirar, mas, infelizmente, eu sei que foi uma violência que ela sofreu. Mas, ao mesmo tempo, ela me deu a coisa mais... Ela foi um instrumento de Deus para mim, para a minha vida, ela me deu as maiores alegrias, ela salvou a minha vida, ela teve um ato de amor. Foi isso.
F1: Eu queria saber como foi a chegada dos gêmeos e a Joice. Como ela reagiu quando soube que ia ser tia de dois meninos?
R - A Joice, ela não gosta muito de me dividir. Para ela não é muito tranquilo não, mas não é tranquilo nem com o André. A Joice, ela tem uma relação comigo muito de posse. Mas agora, depois de um tempo, ela já se acostumou, ela já os trata como sobrinhos. Mas é que ela não gosta muito de criança, ela não tem essa relação com criança. Tanto é que hoje ela mora na casa em que nós morávamos quando pequenas. Sozinha. Ela mora sozinha. Porque ela não quer vir morar... Ela passa as férias em casa louca para ir embora, porque ela quer... Do que ela gosta? Ela gosta de me ligar, de eu ir na casa dela, ela pôr um filme no Netflix e a gente assistir, “Eu vou fazer pipoca para você”. Mas é para você. Às vezes, ela fala: “Deixe as crianças aqui”. Mas é muito raro. Às vezes fala: “Deixe as crianças aqui”. Mas ela falava: “Mas vem buscar, porque eles fazem muita bagunça”. Já com o André, ela tem uma relação mais... Tanto é, por exemplo, que quando ela vai para lá, apesar de o quarto dos gêmeos ser mais espaçoso, tem uma cama, ela não dorme, ela prefere dormir no chão no quarto do André. Ela tem uma relação mais de conversar com o André, de proximidade com o André, que ela não tem com os gêmeos. Até porque, eles são muito barulhentos mesmo - eu não posso mentir para vocês - eles são barulhentos. Mas eu acho que é por causa também do autismo - autista não gosta muito de barulho, de bagunça, eles gostam muito de ordem, de coisas muito... Creio eu que seja isso.
P/1 - Eu queria saber da parte profissional agora. Como foi depois da faculdade? Que caminho que você tomou? Como você é reconhecida pelo que faz hoje?
R - Então... Eu comecei como professora no museu, como eu falei para vocês. Trabalhei muito tempo com esses projetos de diversidade, depois eu fui trabalhar na Prefeitura de São Paulo - fui trabalhar na EMBS, trabalhei com surdos, dando aula de Artes para surdos. Eu sou muito grata a Deus, porque na minha trajetória de vida eu fui muito premiada como professora. Eu fui prêmio Paulo Freire, fui prêmio do Territórios Sensoriais Tomie Ohtake, e segunda-feira eu virei Professora Giz de Ouro, lá de Barueri. Então assim... Eu sou muito feliz pela minha trajetória. Só que eu acho assim: prêmio é legal, não vou dizer que não foi bom ganhar um prêmio de vez em quando, é bom. Ganhei também o Professora Maluquinha, da Melhoramentos, há muitos anos. Foi o primeiro prêmio que eu ganhei. Mas, na verdade, prêmio é bom para o seu currículo, é lógico, mas tem que ser de verdade. As coisas têm que existir de verdade, ninguém faz um bom trabalho sozinho, você só faz um bom trabalho se você tiver bons colaboradores. E o professor bom é aquele cara que sabe isso. Porque educar é generosidade, então você tem que ser generoso. Todo mundo que é generoso, é competente. Guardem isso, meninas, para a vida de vocês: toda pessoa generosa... Toda pessoa competente é generosa. Gente que fica com muito (inint) [01:47:29], é sinal de que o cara não sabe muito daquilo que ele está dizendo que sabe, porque ele tem medo de que os outros saibam. Então, não faz muito sentido. Assim... Eu ganhei alguns prêmios no decorrer da minha vida, aí eu fui trabalhar com surdos e depois surgiu a Pietra, que eu acho que é o ponto-chave da nossa conversa. Porque na Pietra eu consegui aplicar toda a minha experiência de vida, na vida dela. Quando eu conheci a Pietra - foi há dois anos - foi uma história muito doida, acho que foi o momento que mais eu vi que Deus age mesmo na vida das pessoas. Eu estava lá na minha sala de aula, dando a minha aula, de repente o meu diretor bateu na porta, lá de Barueri, e falou assim: “Cidinha, o pessoal lá da Secretaria está te chamando”. Eu falei: “Eu?”. “É”. Aí eu pensei: “Pronto, algum pai foi lá me denunciar por alguma coisa que eu tenha dito e eu nem falei nada demais”. Aí, gente, é muito perto. Eu peguei o carro, foram os cinco minutos mais difíceis de chegar. Eu falava: “‘Meu’, o que será? Eu vou ter que dizer o quê quando chegar lá?”. Quando eu cheguei lá, estacionei o carro, entrei, “É para você falar com fulano de tal”. Aí, quando eu cheguei lá, a pessoa falou assim: “Você que é a Cidinha?”. Eu falei: “Sou”. “Você que é professora de Artes do Rita de Cássia?”. Eu falei: “Sou”. Ela falou: “Então... Você não trabalha com surdos-cegos”? Falei: “Eu trabalho na Prefeitura, em São Paulo, na EMBES, já tenho alguns cursos pela (inint) [01:48:59], algumas coisas assim. Mas por quê?”. Ela falou: “Porque eu liguei para não sei quem...” - sabe uma coisa muito louca? “E a pessoa me indicou você”. Só que a pessoa... Porque é assim... A pessoa ligou porque ela queria um professor de surdos-cegos, e queria contratar um professor. E a pessoa virou para ela e falou assim: “Não, mas espere aí, você não precisa contratar ninguém, você tem uma professora no município de Barueri que sabe trabalhar com eles”. “Tenho? Onde? Eu não sei onde é. Onde?”. “Eu sei que ela é professora de Artes, chama-se Cidinha. E ela procurou... Ela se chama Janaína, e a Janaína procurou e me achou. Engraçado que eu já tinha conversado com ela meses antes e ela não sabia que era eu, foi uma coisa muito de Deus, assim. E aí eu fui lá conhecer a Pietra. Passou o ano, virou o ano, eu aceitei. Quando eu cheguei lá e encontrei a Pietra, eu falei: “Ai, meu Deus, vai ser muito mais difícil do que eu imaginei”. Porque a Pietra não tinha nenhuma comunicação. Vocês assistiram Black? Então assistam. É um filme indiano maravilhoso, vocês vão me entender quando vocês... Eu me senti no filme Black. Eu falei: “‘Meu’, como eu vou fazer agora?”. Ela não sabe nada, não sabe pedir para ir ao banheiro. As crianças ficam com medo dela, chamando-a de Samara. Sabe a Samara do... Então, essa daí. Aí eu falei: “‘Meu’, o que eu vou fazer?”. E aí eu fui começando a trabalhar com ela. No começo foi muito difícil, mas aí eu fui aplicando todas as coisas que eu já sabia e experimentando novas, porque ali era um “kinder ovo”. Eu falei: “Meu Deus do céu”. E hoje se passaram dois anos e foi por isso que eu ganhei o prêmio do Giz de Ouro, na segunda-feira. A Pietra, ela tem duzentas palavras em libras tátil, ela se comunica comigo e ela se comunica com a família. E foi muito maravilhoso, eu acho que foi o momento-chave da minha profissão. Foi eu poder dar a possibilidade dessa mãe falar com essa filha. Então, aí eu fico pensando que Deus me preparou todos esses anos para a Pietra, parece meio louco o que eu estou dizendo, mas eu me sinto como se, assim... Tudo o que eu tivesse vivido no decorrer da minha história com a minha irmã, com o meu pai, lá na Bienal com os surdos, tudo desembocou na Pietra, porque ela é surda, ela é cega, ela tem atitudes repetitivas como os autistas e eu consigo trabalhar com ela de boa, porque eu tive... Essa trajetória foi-me dada, eu não vejo como uma coisa... Uma coincidência. Não pode ser coincidência, porque nós temos um encontro de almas ali e a gente faz um trabalho juntas muito legal. Então assim... Eu tenho mais três anos para trabalhar com ela, porque eu vou estar com ela até o nono ano como professora mediadora - como guia intérprete e professora mediadora. Mas ensinar, eu já tinha feito muitas coisas, graças a Deus, na minha trajetória como professora, mas ensinar uma garota surdo-cega, sem comunicação nenhuma, para mim foi o maior presente, a maior oportunidade que Deus me deu. É isso.
P/1 - Como se apresenta o mundo para uma pessoa que é surdo-cega?
R - Eu faço um método que é assim... Por exemplo... Eu vou te dar um exemplo: essa semana... Todos os dias eu trago para ela uma palavra-chave, todos os dias. Durante esses dois anos, todos os dias, inclusive o sábado e o domingo, com a ajuda dos pais, eu preparei uma palavra-chave, mesmo nas férias. Então, eu tenho uma lista de palavras e essas palavras... Por exemplo, gelo. O gelo, no dia do gelo, eu trouxe gelo. E aí a gente fez toda uma experiência de gelo. No dia de carro, eu trouxe um carrinho, levei-a ao estacionamento. Então eu trabalho a parte de palavras-chaves. E agora está ficando mais complexo, porque agora eu estou trazendo sentimentos e é muito mais complexo isso. Porque, como é que eu ensino? Por exemplo, quando você trabalhar com libras isso aqui é cuidar, mas quando é uma libra tátil é cuidar. Então, o corpo é utilizado para comunicar. Quando eu descrevo, por exemplo, um espaço... Se eu tivesse que descrever aqui esta sala, eu faria um desenho nas costas, exato da sala, e iria descrevendo que existem duas moças bonitas aqui, o rapaz simpático ali no fundo, a posição, as duas moças que estão aqui na frente, então tem uma posição triangular, tem dois refletores de luz colocados de forma simétrica. Então você vai... É tudo por sensações e descrições corporais. E ela está aprendendo a contar, comigo. Então, o avanço dela foi tão incrível que até eu me surpreendi e tem sido uma experiência mágica, assim, única na minha vida. Eu acho que foi a maior oportunidade que eu tive profissionalmente até hoje.
P/1 - Como é que você sabe que ela compreende?
R - Então... Esse é o trabalho muito difícil, porque assim... Eu dou a palavra naquele dia. Eu só vou saber... Eu só catalogo, faço o catálogo daquela palavra como ela tendo aprendido, no momento em que ela me dá o respaldo, no momento em que ela me dá a resposta. Na verdade, eu já dei milhares de palavras para ela, mas, por exemplo... Eu vou te dar um exemplo: foi muito engraçado, todo dia eu faço um sinal de intervalo e tudo, ela já tinha dado sinal de intervalo. Um dia, nós fomos em um evento, com a mãe dela e tudo, e chegou uma hora em que ela estava com fome - três horas da tarde - e ela parou com a mãe e fez para a mãe que ela era o intervalo, que ela estava com fome, estava na hora. E aí, foi a primeira vez que ela fez uma frase para a mãe, e essa mãe... E essa mãe começou a chorar, menina. E essa mãe me chamou de onde eu estava, eu fiquei apavorada, eu falei: “Aconteceu alguma coisa”. Quando eu cheguei lá, essa mãe me agarrou assim e começou a chorar: “A minha filha falou aqui”. E aí eu falei: “Como é que você sabe?”. É porque ela avisou tal sinal. Então é isso que é o mágico, é você saber que, naquele momento... Outro dia foi muito bom também. Eu já tinha dado o sinal de brincar e de música, e nós fomos em um outro evento. Porque a gente sai muito. Eu, esta semana, estive na Pinacoteca com ela, eu vou a jogo, em vôlei, vamos em uma escola de samba agora no final do mês. Então, a gente faz muita coisa fora, a minha aula é toda fora, porque a minha aula é para aprender o mundo, então eu não posso ficar na caixinha da sala de aula. E o mais legal é que onde eu trabalho, na Prefeitura, as pessoas me dão carta branca. Se chegar amanhã e falar assim: “Eu vou para a praia com a Pietra”. “Vai precisar de gasolina? Quanto dá o pedágio?”. São só essas perguntas que eles vão fazer para mim, mais nenhuma, eu tenho total possibilidade de fazer o que eu quiser, eu acho que é um trabalho de primeiro mundo, é um trabalho assim que ninguém tem em lugar nenhum. Tem até uma... Estão convidados a conhecer... A gente tem até uma casa de brincadeira, uma casa mesmo, uma casa modelo, onde eu ensino para ela onde ela põe as coisas: o armário, a cama, a cozinha, tudo lá, tudo bonitinho lá para ela. Então, são coisas assim que a gente tem lá e que eles me dão essa possibilidade. E eu não posso me resumir à sala de aula, porque nesse momento ela precisa demais. Depois, talvez, eu volte para a sala de aula. Mas agora não - eu saio. Eu estou falando da música. Aí, nós fomos lá no evento da capoeira, e aí ela ficou encostadinha assim na caixa de som e, de repente, ela fez música. Aí eu falei: “Ela sabe que está tocando uma música”. Aí eu pego o meu caderninho vermelho, que eu tenho, e anoto lá: “Música ela já sabe”. Então, é um trabalho de formiga. Às vezes, a mãe me liga, “Olha, tal sinal você fez com ela?”. “Sim, fiz”. “Ela já sabe, porque ela repetiu aqui no contexto”. Então, a gente espera esse contexto acontecer para a gente poder catalogar essa palavra. É um trabalho muito demorado e muito minucioso para ela poder... É muito Black mesmo. Assistam Black que vocês vão entender. É mágico, é maravilhoso.
F1: Cidinha, eu queria saber o momento em que você sentiu que estava indo para o caminho certo no trabalho com a Pietra?
R - Quando ela começou a me dar respostas. Quando ela começou a falar assim: “Estou com fome, quero ir banheiro”, coisas que para a gente são muito simples, mas para quem trabalha com surdo-cego sabe que não é. Quando ela está com raiva... A primeira vez em que ela ficou com raiva, que eu peguei e parei tudo e fiz o sinal de raiva. E que eu também estava com raiva. E aí passou, ela ficou quieta, parada. E depois de uns dias, ela levantou por uma outra situação e fez que ela estava com raiva. Porque antes ela batia e quebrava tudo, e naquele momento ela não precisava mais quebrar, ela podia sinalizar que a raiva dela estava ali, sem destruir nada, sem ser chamada de Samara por ninguém, sem que as crianças ficassem com medo dela. Então assim... Eu fico pensando que um surdo-cego, ele vive em um cubo onde ele não escuta nada, onde ele não vê nada, mas, às vezes, não tem como: “É óbvio que eu vou quebrar tudo, você não está entendendo”. Mas quando você tem esse respaldo, você tem alguém que te ensina: “Olha, esse sentimento aqui é que eu estou nervoso, ou eu estou triste, ou eu estou feliz, ou eu estou em paz, ou eu estou calmo”. Tudo isso é ensinado, tudo pode ser ensinado, tudo pode ser ensinado para qualquer pessoa. Você precisa de duas coisas: vontade de fazer as coisas acontecer e parceiros. Porque também ninguém faz nada sozinho, esse negócio: “O professor faz”. Não faz. Se você não tiver parceiros... E também tem parceiros que atrapalham, a gente tem aí vários exemplos de gente que atrapalha a relação professor-aluno. Aliás, a relação professor-aluno deveria ser professor e aluno. Tem um monte de gente aí nesse caminho todo que não entende que esse é o processo. Porque se eu não tivesse esse respaldo da minha direção dizer assim: “Essa mulher ficou seis horas um dia trancada no banheiro com essa menina”. Não podia ter sido assim, mas não foi, foi assim: “A professora está aí no banheiro trancada e ninguém vai usar, porque ela está ensinando alguma coisa para essa menina”. É diferente, não é? E foi isso que funcionou. Por isso que eu fui premiada. Eu falo assim: “Eu não fui premiada porque o meu trabalho é bom, eu fui premiada porque eu tenho parceiros bons que acreditam no meu trabalho, que fazem o meu trabalho acontecer, porque senão não sai, porque senão não flui. É isso”.
P/1 - Com a Pietra, quando é que você vai sentir que é missão cumprida?
R - Quando ela estiver alfabetizada em braile e quando ela puder ir para o ensino médio aprendendo conceitos, como todos os outros. Eu não vou desistir da Pietra. Eu não vou desistir. Assim... Para muitas pessoas lá, eu já tive missão cumprida, porque assim... A menina, há dois anos, não se vestia, não ia ao banheiro sozinha, não se comunicava, hoje ela se comunica. Para as pessoas já é muito, para os pais já é muito, para mim ainda não. Porque a Pietra tem possibilidade de entrar em uma Universidade, a Pietra tem possibilidade de aprender. Demorou? Demorou. Eu a peguei, ela tinha onze, dez anos. Se eu a tivesse encontrado antes, não é? Mas eu vou sossegar - eu já falei isso para os pais, já falei isso para a minha direção - na hora em que eu conseguir... Agora eu estou nesse processo de alfabetização dela em braile... Na hora em que eu conseguir que ela seja alfabetizada e que ela possa entrar em uma sala, pegar a reglete dela e ter aula como todos os outros. Aí eu vou poder ir para casa. Enquanto isso não acontecer, eu não posso. E eu tenho tempo para me aposentar, viu? Daqui a três anos eu já posso pedir a minha aposentadoria, mas eu não quero me aposentar enquanto eu não ver a Pietra desse jeito, porque eu alfabetizei a minha irmã e a minha irmã não fez faculdade porque não quis. A Pietra também pode falar assim: “Cidinha, eu não estou a fim, eu não quero”. Mas tem que ser escolha dela, não pode ser escolha de uma sociedade que quer que ela fique lá, a coitadinha. Tem que ser a escolha dela. A gente tem que respeitar as escolhas das pessoas, e a gente tem essa mania feia de taxar que “esse pode, esse não pode”. “Esse, coitado, não vai poder mesmo”. E todo mundo pode. Eu posso contar uma última história da minha irmã, rapidinho? A minha irmã estudava em uma escola da Prefeitura e ela aprendeu a ler, eu ensinei, ela tinha mais ou menos uns doze anos, onze anos, quando ela aprendeu a ler mesmo, assim. E ela começou a ir para a escola normal, ela era autista e tudo, com laudo, porque laudo às vezes é uma miséria, como dizia a minha mãe. Às vezes é bom, mas às vezes é ruim. E aí, um belo dia, na biblioteca lá, na sala de leitura... Você sabe o que é sala de leitura, não sabe? Na sala de leitura, a minha irmã pediu um livro para a professora da sala de leitura, a professora da sala de leitura falou: “Esse não, Joice, pega esse”. E aí deu um livrinho para ela, sabe esses livrinhos de pintura que tem no farol, que desenha assim? Aí a Joice olhou aquele livro e falou assim: “Mas você já me deu esse semana passada, eu não quero esse, eu quero aquele outro ali, o Moby Dick”. Mas ela não falou Moby Dick, ela falou: “Eu quero aquele ali”. “Não, esse não”. Aí, a Joice teve um ataque e quebrou a sala de leitura toda. Meu Deus, que vergonha! A minha mãe esperou eu chegar e falou assim: “Você não vai à escola hoje não”. Eu falei: “Por quê?”. “Porque ela quebrou tudo, você tem que ir comigo lá”. Aí peguei e fui. Quando chegamos lá, tinha uma reunião com todos os professores, todo mundo lá, porque eles queriam que a gente desse medicamento para ela, porque ela estava mal, ela estava surtando. Aí eu escutei todo mundo, mas eu perguntei para a Joice, falei: “Joice, mas por que você quebrou tudo?”. “Por que ela não queria me dar o Moby Dick”. Era o livro do Moby Dick. Eu falei: “Está bom, então vamos lá, vamos por partes”. Aí cheguei lá com toda paciência do mundo, escutei as maiores barbaridades que os educadores são capazes de dizer quando não têm conhecimento de causa, acham sempre que a culpa é da família, aquela coisa toda, e aí foi muito engraçado porque uma das professoras falou assim: “Mas ela não sabe ler, ela não é alfabetizada”. Aí eu olhei assim para ela, falei assim: “Ela não é alfabetizada?”. Aí eu abri a porta e chamei a Joice, peguei o livro e falei: “É esse o livro da discórdia, leia Joice”. Ela abriu e leu. Aí ela leu, você precisava ver, gente, a cara das pessoas... Porque ela sabia ler. As pessoas não sabiam. Ela estava há quatro anos na escola e ninguém sabia que ela sabia ler. Você percebe o que eu estou querendo dizer? Eu falei: “‘Meu’, como é que pode? Como é que você pode estar em uma escola, com um aluno deficiente, e não saber se ele sabe ler ou não? Isso é muito básico. Isso chama-se avaliação diagnóstica e eu nem sou professora ainda”. Entenderam qual é o problema? Antes de chegar a pessoa, as pessoas enxergam a deficiência dela, as pessoas enxergam a condição social dela, a religião dela, sei lá, a opção sexual dela, todo mundo enxerga tudo antes, você tem que enxergar primeiro a pessoa e é isso é que é o grande problema da sociedade hoje. Enquanto a gente não se transformar, as Pietras vão ficar por aí trancadas em casa. Ou a gente arregaça as mangas e vai fazer acontecer o negócio. É isso.
P/1 - Eu acho que agora a gente está chegando ao fim, não sei se tem mais alguma história que...
R - Eu acho que não, acho que já foi tudo.
P/1 - Eu tenho mais duas perguntas, mas antes... Então, a primeira é: como é que você se sentiu hoje contando a sua história para a gente?
R - Feliz, porque eu sempre achei legal assim o Museu da Pessoa. Eu sempre achei bárbara a ideia de vocês e toda vez que eu conto a minha história... Antigamente eu contava mais, hoje eu já não conto tanto a minha história para as pessoas, mas algumas pessoas que são da minha época, da minha vida, amigos de infância, eles falam: “Cidinha, conte sua história no Museu da Pessoa, porque a sua história é muito legal, você tem uma história de vida tão legal, sua trajetória é tão legal”. Então eu estou feliz, eu espero contribuir com alguém, com algumas coisas, a gente nunca sabe. Então eu vim para isso, para contribuir, é isso.
P/1 - E a próxima eu acho que você já falou um pouquinho, mas quais são seus sonhos?
R - Sonhos. Hoje eu não tenho muitos sonhos mais assim, eu sou uma pessoa que, graças a Deus, me sinto muito realizada. Eu tenho uma família que amo, eu me perdoei, eu perdoei o meu passado e estou de boa assim. O que eu quero, assim, profissionalmente eu tenho um sonho sim: é poder fazer da Pietra alguém independente, ao ponto de ela poder galgar sozinha uma educação de qualidade, um ensino, isso eu tenho como sonho. Na minha vida pessoal, ver os meus filhos felizes, formados, pessoas de bem, de caráter, porque às vezes a gente fala assim... Quando uma criança nasce, a gente fala assim: “Tomara que ela tenha saúde”. Vocês não são mães ainda, não é? Um dia vocês vão ser e vocês vão entender. Aí, você fala assim: “Ai, Deus, me abençoa porque eu quero que o meu filho seja criança saudável”. Eu peço isso também, lógico, eu sou mãe, mas eu quero muito mais do que isso, eu quero os meus filhos pessoas que façam diferença no mundo, que sejam pessoas de caráter. Então, o meu sonho é esse: que os meus filhos continuem crescendo em parecer e formosura, como diz a Bíblia, sendo pessoas boas, que tenham filhos bons, que possam ser felizes. Para a minha vida profissional eu quero que a Pietra... O meu foco é a Pietra, e depois me aposentar. E para o mundo, eu quero que as pessoas sejam mais tolerantes, que sejam como a dona Neném, que olhem as pessoas e sempre imaginem que elas podem ter um motivo - a gente esqueceu que as pessoas podem ter motivos diferentes dos nossos. E eu espero que o mundo todo seja assim. É isso.
P/1 - Eu falei que eram duas, mas eu estou numa luta comigo para ver se eu faço essa pergunta ou não.
R - Pode fazer.
P/1 - E se um dia você estiver fazendo bolo e tocarem a sua campainha e você mandar um dos gêmeos atender?
R - É, eu tenho muito medo disso. Eu tenho muito medo disso porque eu sei que não é fácil, não é nem talvez para mim, mas para eles, é um sofrimento muito grande você não saber quem é. Eu tenho muito medo, o meu marido fala que é loucura da minha cabeça, mas eu tenho sim. Eu não vou mentir para você não, eu gostaria que isso nunca acontecesse, mas se acontecer, eu vou abrir o forno, vou pôr o bolo em cima da mesa, vou fazer o café e vou mandar ela entrar, como a minha mãe fez. Porque eu acho que ela deve ter feito... Eu não sei como seria de outro jeito, mas foi o que ela escolheu e eu acho que não me tornei um ser tão ruim assim. Então é isso que eu vou fazer, é isso.
P/1 - Muito obrigada.
R - De nada.
P/1 - Foi lindo. Obrigada mesmo, Cidinha.
R - Nada. Imagina, eu é que agradeço.
[02:10:50]
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