P/1 – Bom dia, Felipe. Queria agradecer a sua participação. Para iniciar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – O meu nome é Felipe Pitaro Ramos. Eu nasci no Rio de Janeiro, em dezoito de março de 1978.
P/1 – Em que bairro do Rio você nasceu?
R – Eu nasci em maternidade na Tijuca, mas fui criado até os 21 anos em Quintino, na zona norte da cidade.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meu pai chama-se Fernando dos Santos Ramos e a minha mãe, Silvia Regina Pitaro Ramos.
P/1 – E seus avós paternos?
R – Chamavam-se Fernando da Silva Ramos e Iolanda da Silva Ramos.
P/1 – Parte materna?
R – Nelson Natal Pitaro e Rosinha Carnaval Pitaro.
P/1 – Você sabe a origem deles?
R – Dos meus avós paternos, não muito. A família não tinha uma ascendência clara pra mim. Na parte materna, sim. Os avós da minha mãe vieram da Itália, de ambas as partes. Chegaram aqui muito jovens, por volta de quatorze, quinze anos. Saíram da Itália numa época de guerra e se meteram em um navio sem falar uma palavra de português, com essa idade, tão jovens. E aqui trabalhavam como mercadores de frutas e como transportadores de cargas. Constituíram família, família numerosa e essa descendência é bem clara, eu cheguei a conhecer algumas pessoas. Mas da parte paterna, não.
P/1 – E eles se conheciam quando vieram pro Brasil ou foram se conhecer aqui?
R – As famílias eram conhecidas, se conheciam da Itália. E, na verdade, naquela ocasião, quando os imigrantes chegavam aqui, eles formavam alguns nichos de população em determinados bairros. E da parte materna, o nicho que eles formaram foi em um bairro que hoje já quase não existe mais, chamado Todos os Santos. Era um bairro que hoje foi integrado ao Grande Méier, que ficava na orla da rede ferroviária. Era uma bairro onde as pessoas se estabeleciam em grandes...
Continuar leituraP/1 – Bom dia, Felipe. Queria agradecer a sua participação. Para iniciar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – O meu nome é Felipe Pitaro Ramos. Eu nasci no Rio de Janeiro, em dezoito de março de 1978.
P/1 – Em que bairro do Rio você nasceu?
R – Eu nasci em maternidade na Tijuca, mas fui criado até os 21 anos em Quintino, na zona norte da cidade.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meu pai chama-se Fernando dos Santos Ramos e a minha mãe, Silvia Regina Pitaro Ramos.
P/1 – E seus avós paternos?
R – Chamavam-se Fernando da Silva Ramos e Iolanda da Silva Ramos.
P/1 – Parte materna?
R – Nelson Natal Pitaro e Rosinha Carnaval Pitaro.
P/1 – Você sabe a origem deles?
R – Dos meus avós paternos, não muito. A família não tinha uma ascendência clara pra mim. Na parte materna, sim. Os avós da minha mãe vieram da Itália, de ambas as partes. Chegaram aqui muito jovens, por volta de quatorze, quinze anos. Saíram da Itália numa época de guerra e se meteram em um navio sem falar uma palavra de português, com essa idade, tão jovens. E aqui trabalhavam como mercadores de frutas e como transportadores de cargas. Constituíram família, família numerosa e essa descendência é bem clara, eu cheguei a conhecer algumas pessoas. Mas da parte paterna, não.
P/1 – E eles se conheciam quando vieram pro Brasil ou foram se conhecer aqui?
R – As famílias eram conhecidas, se conheciam da Itália. E, na verdade, naquela ocasião, quando os imigrantes chegavam aqui, eles formavam alguns nichos de população em determinados bairros. E da parte materna, o nicho que eles formaram foi em um bairro que hoje já quase não existe mais, chamado Todos os Santos. Era um bairro que hoje foi integrado ao Grande Méier, que ficava na orla da rede ferroviária. Era uma bairro onde as pessoas se estabeleciam em grandes casarões, alguns cortiços. Eles se estabeleceram ali por indicação, a primeira família que chegou ali foi abrindo espaço para as posteriores. E ali, famílias muito próximas, um irmão foi casando com a irmã da outra, enfim, e formaram uma família maior ainda.
P/1 – Felipe, me diz uma coisa. Você me disse que eles vieram por volta da Primeira Guerra Mundial, é isso?
R – Sim, os primeiros sim.
P/1 – E você sabe me dizer por que eles elegeram o Brasil? Foi uma escolha, você não sabe?
R – Exatamente o porquê, não. O que eu sei é que eles fugiam, além da guerra em si, da fome. O racionamento de comida era muito sério e acredito que eles queriam procurar o país que estivesse o mais distante possível desse tipo de conflito. Mas a razão exata de porquê o Brasil e o Rio de Janeiro, eu não sei.
P/1 – E você falou que eles começaram trabalhando com frutas, é isso?
R – É. A Praça XV era o principal porto da cidade na ocasião. E havia uma descarga muito grande de mercadorias e um grande mercado popular na Praça XV. Então, naquela ocasião, quem vinha de fora e não falava bem o idioma ou quem não tinha uma formação adequada para qualquer outra oportunidade, fazia muito trabalho braçal. E o principal trabalho na ocasião era o trabalho da construção ou o chamado ‘burro sem rabo’: eram pessoas que puxam carrinhos carregados de comidas, de caixotes de verduras ou legumes. Essas pessoas ajudavam na descarga dos navios e entregavam essas mercadorias nas lojas, que não eram lojas como as de hoje, eram barracas, nesse mercado da Praça XV. Então, lá eles fizeram a vida deles, os filhos fizeram suas vidas no início e essa foi uma tradição que perdurou na família durante um bom tempo.
P/1 – E qual era a atividade dos seus pais? Eles seguiram essa tradição?
R – Não. Minha mãe era o que se chamava do lar. Ela fez o ensino fundamental, mas não tinha profissão. A profissão dela foi criar a mim e a minhas irmãs. O meu pai teve várias profissões, foi motorista, chefe de logística, gerente de empresa. Depois ele criou uma empresa pra ele e atualmente ele é autônomo, dirige um carro de entregas.
P/1 – E essa empresa era do ramo de transporte?
R – Era sim.
P/1 – Como era o nome da empresa?
R – Chamava MMS Transportes.
P/1 – E ele atuava basicamente no Rio de Janeiro?
R – É. Toda a área do Grande Rio.
P/1 – Você me falou que tem irmãs. Em quantos irmãos vocês são?
R – Nós somos em três. Eu tenho uma dupla de irmãs, gêmeas, que são oito anos mais novas que eu.
P/1 – Qual é o nome delas?
R – Uma chama Adriana e a outra, Fernanda.
P/2 – Como os seus pais se conheceram?
R – Meu pai tinha uma loja de baterias nesse mesmo bairro, chamado de Todos os Santos, e essa loja ficava bem na esquina da rua que a avó da minha mãe morava. Essa avó foi uma pessoa muito marcante na vida dela, uma pessoa que a criou. E o avô também, que era o italiano, com muito carinho, com muito apego.
Ela morava na rua ao lado e passava muito nessa esquina. Meu pai era muito amigo do meu falecido tio, que namorava a irmã da minha mãe, então esse meu tio apresentou ambos e eles começaram a namorar. Um namoro um pouco conturbado, porque meus avós maternos eram muito rígidos e o meu pai era, na época, um cidadão muito progressista. Eles tinham alguns conflitos, mas os dois, mesmo tendo personalidades muito diferentes, resolveram apostar. Namoraram durante cinco anos, noivaram e casaram. E até ela falecer em 2006, eles tinham trinta anos de casados, mais o tempo de namoro.
P/1 – Você disse que nasceu em um bairro do Rio e praticamente viveu em um outro bairro, na zona norte. Você ficou quanto tempo nesse primeiro bairro que você nasceu?
R – Na verdade foi só o nascimento. Era na Tijuca.
P/1 – E aí vocês já mudaram para um outro bairro?
R – É. Era uma maternidade mais tradicional na cidade. Como era o primeiro filho, eles tinham a preocupação que fosse um hospital que tivesse um pouco mais de confiança. Mas tão logo nascido fui pra Quintino.
P/1 – E você se lembra da casa de Quintino?
R – Lembro. Eu vivi nessa casa até os quinze anos. Era uma casa de vila. Na verdade, chamavam de vila por carinho, era uma rua sem saída bem grande. Era uma casa bem pequena, até.
Eu me lembro que tinha uma garagem grande. A garagem era como um parque de diversões, ainda mais para uma criança sozinha. E era uma casinha de dois quartos, eu tinha um quarto só meu, com brinquedos, TV, o que pra mim era uma coisa sensacional. Tenho lembranças muito boas desse lugar, foi o lugar que eu comecei a conhecer um pouco mais pessoas e formas de me relacionar com pessoas. Tinha uma quantidade de amigos muito grande.
P/1 – Como era esse cotidiano até antes de você ir à escola? Quem eram os seus amigos, como era a sua atividade nessa vila? Você falou também dessa garagem. Conta um pouquinho pra gente desse universo infantil.
R – A minha mãe contava sempre. Eu era o bebê da vila, não tinham outros bebês na vila, na ocasião que eu nasci. Então, a pessoa que era mais velha tinha quatorze, quinze anos, meio que brincava comigo como se eu fosse um boneco. Meu carrinho ficava parado e eles jogavam bola, pingue-pongue, aquela coisa toda, e brincavam comigo. Eu cresci vendo esses rapazes e moças, crescendo e se tornaram pessoas legais, porque eles cuidavam de quem era mais novo. Tinha um clima muito familiar, as casas eram geminadas, coladas. Era muito bom esse convívio, todo mundo se conhecia e todo mundo se preocupava. Quando viam alguma coisa diferente falavam pros pais, ou cuidavam da gente quando eles não estavam. Era um convívio muito legal.
À medida que a gente foi crescendo, outras pessoas foram chegando nessa vila. Eram brincadeiras tradicionais: a gente andava de bicicleta, jogava bola, botão, tinha os pique-escondes, polícia e ladrão, na época que polícia e ladrão era uma relação muito mais romântica que é hoje, muito menos violenta. Eu tive uma infância muito boa, muito boa mesmo. Muito protegida, esse era um espaço que protegia muito. O limite de proteção era a entrada dessa vila com a rua, que eu só fui descobrir depois de doze, treze anos.
P/1 – Felipe, você contou agora há pouco sobre a garagem, conta um pouco sobre ela.
R – Ela era um espaço que não tinha acesso por dentro de casa, a gente tinha que sair de casa e entrar pelo portão. Era um retângulo muito grande, cabiam três ou quatro carros. Em uma ocasião foi colocada uma piscina, dessas de armar; a gente tinha lá uma caixa de água sem uso que dava pra brincar em cima dela. E lá dava pra jogar bola, e tinha a bicicleta guardada. Quando eu não queria brincar na rua, era o lugar que eu ia: eu fechava o portão, ninguém me via e eu brincava lá dentro. Era um espaço bem grande, mesmo.
Eu gostava muito de carro, eu sempre gostei muito. E uma época o meu pai comprava e vendia carros. Comprava carro de um, reformava e vendia. E eu tinha um primo mais velho que eu que o ajudava nessas reformas. Desde pequeno eu cresci ali entre tinta, massa, mecânica. Eu sabia todos os nomes dos carros, como passava todas as marchas, sabia as diferenças. Fiquei muito envolvido nesse universo de automóveis. E ali era onde eles ficavam guardados, era ali que eu queria ficar porque era ali que eu aprendia a mexer no volante, no câmbio, no rádio. Pra mim era um espaço muito divertido e, ao mesmo tempo, de muitas descobertas.
Cada vez que chegava um carro novo era uma festa. Aquele espaço, pra mim, era um espaço que eu podia estar no meio dos adultos, que era uma coisa que eu também gostava e fui acostumado desde muito pequeno. E era um espaço [em] que eu me divertia mesmo. Mexendo ou só olhando, ou estando dentro dos carros. Naquela ocasião, os carros eram muito mais simples do que são hoje, e talvez isso fosse o barato da coisa. Os mostradores eram todos de ponteiro, era tudo de metal, tudo fazia barulho, era muito alto, ou era muito distante. Isso pra mim era uma diversão só. E eu adorava aquele espaço porque eu saía de casa mas, ao mesmo tempo, continuava protegido. Não tinha problema, tinha acesso fácil, e ali tinha elementos que eu adorava, que eram os carros e o espaço. Então foi muito bom.
P/1 – Você contou muito dessa relação das pessoas na vila. Eu queria que você me falasse como era o cotidiano dentro dessa vila: levantar, tomar café, brincar. Como as relações se estabeleciam dentro de vila, sendo essa grande família?
R – Era aquela coisa do subúrbio. O subúrbio do Rio de Janeiro tem muito cara de família. As pessoas botavam cadeira na porta de casa e conversavam, aquela coisa de uma xícara de açúcar ou farinha realmente se trocava. Do churrasco no final de semana.
Eu me lembro que, quando era pequeno, estudava à tarde. Então de manhã era muito legal, o padeiro na bicicleta com a buzina - dali, muitas vezes, saía a merenda.
Tinha um personagem folclórico nessa região, era o Zé Barata. O Zé Barata era um sujeito já idoso naquela época e é vivo hoje, não sei como ele conseguiu chegar até então. (risos) Ele usava um chapeuzinho de palha, um chinelinho de couro, uma calça de tergal, camisa de botão. Ele tinha um carrinho de doces e ele usava um instrumento - uns chamam de tringueleta -, que era uma madeira com uma haste de metal, que fica batendo pra lá e pra cá. E o Zé Barata passava na rua de três a quatro vezes por dia pra vender aqueles doces. Às vezes a merenda saía dali, ou o doce no meio da tarde, na época das férias. E ele gritava: “Olha o doce! Vai?” E a gente ia, todas as crianças iam.
Tinha uma lenda: antigamente tinha muita bala de tamarindo. Engraçado, hoje eu vejo pouco. Aquela bala tem uma espécie de farinha e as balas dele não tinham aquela farinha, e a lenda era: “O Zé Barata chupa as balas, embala de novo e vende pra gente”. Era um folclore, aquilo era muito engraçado. As pessoas pegavam doce escondido do Zé, depois pagavam, mas era aquela coisa de brincar com ele.
Isso marcava os horários, os horários de acordar, ver televisão ou fazer o dever de casa e o horário de ir pra escola. Eu lembro que eu ia a pé pra escola, eu estudava perto e a minha mãe me levava. A gente passava sempre por uma quitanda - outra coisa antiga do subúrbio, quitanda. E a gente comprava sempre um pacote de biscoito, uma garrafinha de coca-cola, e essa garrafinha ia dentro de uma garrafa térmica, de rosca e tudo. Até hoje, quando eu tenho saudades disso, eu passo de carro pelas ruas que eu andava.
As tardes eram diferentes, parecia que não tinham fim, parecia que aquela rua era um silêncio muito grande. A percepção da criança, que o dia parece muito maior do que é pro adulto. E a gente subia ladeira, descia ladeira, chegava na escola.
Eu me lembro da escola, um tanto quanto escura, não muito clara. Era um cotidiano longo, os dias eram muito grandes. E a expectativa de voltar pra casa e ver televisão, ou encontrar os amigos no final da tarde pra brincar, pelo menos pra jogar um pouquinho de futebol. Era uma coisa muito legal. Mas eu era um menino muito sozinho, não tinha irmãos. Eu fui ter irmãos depois de oito anos, então eu ficava muito no meu mundo: eu tinha meus brinquedos, via a minha televisão, eu ficava muito perto da minha mãe. Isso era um dia muito longo, os dias eram sempre muito grandes e as horas eram sempre muito marcadas por essas figuras: padeiro, vendedor de doces, a hora de comprar a merenda, a hora de chegar em casa e ver os amigos. E o cotidiano nessa vila era assim, as pessoas já ficavam na porta esperando pra mexer, se o cabelo estava despenteado, se estava com a roupa suja. Era realmente um ambiente muito acolhedor, muito legal.
P/1 – Dessa sua primeira infância, quem foi a pessoa que mais te marcou?
R – Dessa primeira infância, dos oito aos dez anos, minha mãe, sem dúvida. Minha mãe era uma figura excepcional pra mim. Eu tive um primo, Luis Carlos, ele era uma figura porque era mais velho e todos os tipos de loucura que ele podia fazer comigo, ele fazia. Ele rodava o meu carrinho, me levava pra passear, me assustava. Ele era uma figura muito legal, eu era muito pequeno e esse era o jeito que eu tinha de fazer coisas que eu não podia fazer. Ele era uma figura muito legal, muito importante, nessa minha primeira infância. Mas acho que minha mãe e meu pai.
Meu pai trabalhava muito, saía de casa às quatro e meia da manhã e, às vezes, chegava muito tarde. Mas ele sempre foi a referência de carinho, cuidado, de conhecer o mundo. Eu passeava muito com ele, ia a muitos lugares. Eu comecei a conhecer as coisas e a prestar atenção. E me lembro que meu pai era uma figura que lia muito, embora não tivesse um ensino superior, ou uma coisa assim. Uma coisa que eu lembro muito da minha infância: toda vez que eu tinha uma dúvida sobre uma palavra, eu perguntava e ele sabia. Eu pensava: “Como é que esse cara podia saber tanta coisa?” E eu ficava perguntando as coisas, eu sempre fui muito atento a esses detalhes do mundo ao redor e isso foi muito marcante.
O cuidado que ela me dedicava; ele, por esse conhecimento que ele mostrava do mundo, essa coragem de fazer as coisas, e esse meu primo, porque era uma figura que me apresentava a coisas novas. Então, são três figuras muito importantes.
P/1 – E você teve algum amigo, apesar de você dizer que era uma vila que você foi a primeira criança e depois chegaram outras. Tinha algum amigo que foi importante pra você nessa fase?
R – Nessa avenida? Tinha umas crianças marcantes, eu posso até me lembrar de alguns nomes: o Marcelo, o Ricardo, o Jean e a Camila. A gente brincava muito. Até os dez, onze anos. Depois alguns se mudaram e a gente perdeu o contato, mas ficaram. Hoje realmente não tenho contato com nenhum desses, infelizmente a gente se perdeu por aí. Mas ficaram amigos da escola, dessa época até hoje, são amigos de 23 anos, já, que nos reunimos até hoje, umas figuras importantes.
P/1 – Felipe, quando você foi pra primeira escola, como ela era? O nome dela, conta um pouquinho pra gente sobre essa escola.
R – Essa escola se chamava Jardim de Infância Mundo Encantado. Era uma escola bem pequena. Eu me lembro de coisas marcantes dessa escola: o refeitório, que era uma sala alta; aquela sala me assustava, porque ela tinha umas grades em cima e não entrava muito luz, então não era um ambiente muito legal. Havia uma piscina, mas a gente quase nunca entrava, e quando entrava a água batia no tornozelo, que era pra ninguém se afogar realmente. Eu me lembro do parquinho da escola, que tinha um brinquedo, um roda-roda que beliscava todo mundo, ele já era velho. E a gente ficava competindo, quem não vai ser beliscado pelo brinquedo hoje. (risos)
Era uma escola bem pequena, mesmo, mas foi uma escola acolhedora. A diretora era uma pessoa muito integrada com as crianças, não tinha uma distância. Mas eu não me lembro dos professores nessa escola, não me lembro. Só me lembro dessa diretora e de algumas festas. Festas [em] que a gente dançava ou fazia homenagem à mãe ou ao pai.
Depois eu fui estudar em um escola que ficava poucos metros à frente, chamada Opus. Essa já era uma escola um pouco maior, tinha quadra. [Eu] já [tinha] por volta de sete, oito anos. Eu me lembro que essa escola pegou fogo e foi vendida para uma outra escola, chamada João Lira. E foi lá que a minha educação aconteceu de verdade, onde fiz os amigos que tenho até hoje, onde eu conheci os professores que foram importantes na minha educação. Era uma escola engraçada, porque ela tinha um uniforme branco e, de uma hora para outra, ela resolveu adotar um uniforme amarelo-ovo; a gente era muito, muito provocado na rua, porque o amarelo era muito feio e as pessoas chamavam a gente de táxi. Mas a gente não tava nem aí porque a escola era realmente legal. Tinha umas árvores, duas quadras, as salas já eram mais arejadas. Lá eu fiz da minha terceira série até a oitava. Eu saí no Ensino Médio pra fazer uma escola técnica, mas não gostei. No terceiro ano eu voltei e encerrei a minha escolaridade fundamental lá.
P/1 – Você falou que foi aí que você teve sua formação e os professores que realmente influenciaram na sua formação. Que professores foram esses? Quem, desses professores, te marcou e por quê?
R – Era uma escola chamada tradicional, daquelas que quando o diretor entra você tem que levantar. Tinha uma inspetora que chamava dona Zeli, na verdade ela era orientadora educacional e virou inspetora. Já era uma senhora e era uma figura muito rígida e, ao mesmo tempo, muito sagaz. Então, ao mesmo tempo em que ela era rígida, ela fazia uma brincadeira. Ela cuidava muito da gente, aquela coisa de mexer na orelha: “Seu moleque!” E a gente tinha nela uma figura de muito respeito. Embora fôssemos meninos e ela fosse uma pessoa muito rígida, a gente gostava muito dela.
A gente teve alguns professores que foram muito importantes: O Osvaldo, de Língua Portuguesa, era um cara que falava muita bobagem, era muito engraçado e tinha uma relação muito próxima. Tinha um outro chamado Alfredo, que tinha dias que ele entrava em sala e não dava aula, separava a gente em filas e fazia um jogo de perguntas e respostas - esse estilo de trabalho diferenciado. E tinham pessoas muito tradicionais também, que chegavam, botavam a matéria no quadro, mandavam a gente copiar, discutia e ia embora.
Essa troca de estilos foi fazendo perceber de que tipo de educação a gente gostava, que tipo de pessoas a gente gosta de lidar. Esses caras que eu falei foram importantes. E essa senhora, fundamentalmente, foi uma pessoa muito legal pra gente porque ela acompanhou toda a nossa escolaridade; foi diferente dos professores, que muitas vezes mudavam de um período pra outro. Ela acompanhou.
Nessa escola todo mundo morava muito perto, todo mundo ia a pé, todo mundo se conhecia. E o mais legal dessa escola eram os trabalhos em grupo, quando a gente ia na casa do outro fazer trabalho. A gente passava as tardes juntos, tinha lanche e as mães tratavam a gente muito bem. E a gente via televisão. Acho que a única coisa que não se fazia era trabalho, o restante tudo se fazia.
A gente trocava muita informação e ia descobrindo muitas coisas, um do outro, nesses encontros. E uns se apaixonavam pelas irmãs mais velhas dos outros. Esse convívio sempre muito próximo do familiar era muito legal. Tanto que algumas amizades persistem até hoje, vinte e tantos anos depois. Muitos já têm filhos e a gente fica olhando e pensando: “Será que esses meninos e meninas vão fazer o que nós fizemos? Será que eles vão ter essa chance?” Nessa escola, a gente formou um grupo muito forte e esse grupo foi determinante pra que a nossa educação fosse algo realmente significativo.
P/1 – Quem foram esses amigos marcante nessa fase? Alguns nomes...
R – Eles estão aí até hoje. Um trabalha comigo na Fundação, o Wagner, tem o Paulo, que hoje é policial militar aqui na cidade do Rio, o Winston, que é uma outra figura sensacional. Nós quatro formamos um grupo muito próximo. A gente está sempre um na casa do outro, se telefonando, fazendo coisas. Um é padrinho de casamento do outro.
Esses são os mais importantes. São 23 anos de um convívio que só cresceu, não diminuiu em nada. Mas outras figuras passaram nesse período e foram marcantes também. Os que ficaram um pouco mais agregados, a gente de vez em quando encontra: o Rodrigo, que morava um pouco mais longe, que era um bairro chamado Inhaúma, o bairro do cemitério. Quando a gente ia lá, a gente ficava brincando com o bairro, porque era bem feio. E tinha um grupo de pessoas que saía de lá pra estudar. Então, tinha o grupo de Inhaúma, o grupo de Cascadura, o grupo de Quintino. Lá tinha o Edson, a Ludmila, a Carla. Eram figuras que a gente brincava muito, pelo lugar onde eles moravam. Mas era brincadeira carinhosa, nada depreciativa, tanto que a gente vivia muito lá, fazia almoços por lá.
Mas esses três que eu falei, Paulo, Winston e o Wagner são os que até hoje estão. E os pais, as mães, todo mundo se conhece. Até hoje as mães às vezes ligam pra saber se a gente está bem, aquela coisa de cuidar, mesmo. Essas são figuras importantes na minha vida, na minha formação afetiva e social.
P/1 – Felipe, essa escola, que você passou tanto tempo nela e que você traz na sua narrativa que ela foi extremamente importante pra sua formação. Quais valores, ensinamentos, ela lhe deu pra você se constituir o Felipe que é hoje, que trabalha com Educação?
R – Acho que o grupo, a escola possibilitar o nosso convívio tão intenso, tão próximo. Eu acho que o espaço da escola era um espaço muito caseiro. As salas não eram “prédios”, eram “pequenas casas” dentro desse espaço, já aproximava bastante. O que essa escola me deu de melhor foi as pessoas com quem eu pude conviver. E sou muito grato, porque o que eu aprendi com esse convívio significou o que a escola me ensinava em termos científicos, culturais. Eu resumiria nisso.
P/1 – Felipe, nessa fase de juventude, pré-adolescência, o que vocês faziam pra se divertir? Vocês praticavam esportes, iam ao cinema? Conta um pouquinho pra gente o que vocês faziam.
R – A gente fazia bastante coisa, sim. Toda vez que terminavam as provas, a gente era liberado. Como ninguém tinha dinheiro, tinha o equivalente a dois, três reais, hoje, a gente juntava e alugava uma quadra pra jogar bola em um clube próximo. Isso era sempre depois das provas. A gente tinha festas nas casas de uns e outros - aquelas festas americanas, leva um doce, um salgado. E a gente começou a ir, não a boates que a gente não podia nem entrar, mas eram matinês.
Aqui no Rio, uma época, houve uma febre de um banho de espuma, que era uma loucura. Depois de um determinado tempo no baile, tinha uma máquina que enchia o salão de espuma e a gente ficava molhado. A gente ia muito nesses lugares, aos domingos, principalmente. Tinha um antigo cinema no Méier que se chamava Imperator, que não sei porque acabou, era um espaço sensacional. Tinha uma outra casa de espetáculos chamada Blue Garden, um clube antigo, que está até hoje; Mackenzie, era um clube de futebol que tinha bailes nos finais de semana. A gente ia para esses lugares porque lá era o lugar pra namorar, pra conhecer as meninas. Dançar ninguém dançava, até porque era todo mundo muito tímido, mas o bom era estar ali, naquele movimento, naquele tumulto. A gente fazia muito isso.
Depois, quando eu comecei a estar mais próximo do pessoal da minha rua, o pessoal mais velho, teve uma figura que pra mim foi muito importante. O nome dele era André, mas o pessoal chamava ele de Bill. Mas por que Bill? Porque a irmã dele era Beatriz. O pessoal chamava ela de Bia e, como ele era muito parecida com ela, chamavam-no de Bill. E aí ficou essa coisa, né? Hoje ele é falecido, acabou enveredando por uns caminhos não muito interessantes e foi assassinado, mas ele era a figura que representava a liberdade. Ele era o cara que fazia tudo que ninguém fazia.
P/1 – Tipo o quê?
R – Tudo. Ele namorava todas as meninas, era o cara que todo mundo respeitava e ninguém brigava com ele, era o líder do grupo, era o cara que tinha as boas ideias. Ele era “o” cara, vamos dizer assim. E sempre teve comigo uma relação de muito carinho, muito mesmo. Ele era uma figura que sempre esteve muito perto. Eu era o mais novo da turma, então, pra mim, essas figuras eram emblemáticas. Eu ficava olhando e pensava: “Pô, queria ser assim.” E ele puxava o pessoal.
Comecei a viajar com esse grupo de pessoas, já com quatorze, quinze anos. Também tive uma liberdade muito legal em casa, a gente ia pra Barra do São João, pra Cabo Frio. Tinha umas pessoas que moravam em frente a minha casa, duas irmãs, Gláucia e Glauciane, que tinham casa em Cabo Frio e elas também entraram no grupo. E se tornou um grupo adolescente muito legal. A gente passou a sair pra outras coisas, pra boates na zona sul. Essas viagens eram muito interessantes. E a gente começou a jogar bola na rua. Aí, eu comecei a descobrir a rua.
P/1 – E como foi essa descoberta?
R – Foi impactante.
P/1 – Por que?
R – Porque era um universo que eu não imaginava, não tinha acesso. Não podia ir a lugar nenhum, não podia fazer nada, nunca tinha namorado ninguém. Então, quando eu vi que aquilo podia ser meu, que eu podia pegar naquelas coisas eu fiquei maluco. Não parava mais em casa, era o dia inteiro fora. E a gente ficava um na casa do outro, escutava uma música. Começou a coisa do vídeogame, que eu nunca fui muito ligado, mas eu ficava no bolo, vendo eles jogarem. E a gente saía muito mesmo, ia muito pras casas de show.
Você, adolescente, começa a descobrir algumas coisas, e o pessoal na rua começou a descobrir algumas coisas mais pesadas, principalmente ligadas a drogas. Foi uma coisa que eu nunca tive coragem de experimentar, o pessoal experimentava. Eu ficava perto e o pessoal falava: “Ele não vai falar pra ninguém, não. Deixa ele ali.” Eu acompanhava, mas não participava porque eu tinha realmente medo dessas coisas. Não estava na minha criação, nunca tinha estado perto disso, e sempre fui orientado que isso era uma coisa que eu não deveria fazer, mas eu não deixava de gostar deles por isso.
Mas você vai descobrindo: um dia, uma cerveja, um dia, um vinho, e você vai começando a aprender a dissimular, a não perder tanto o controle. E você vai conhecendo. As pessoas vão te considerando numa conta de respeito mais alta, porque você é uma pessoa que não perde o controle, não trai os combinados do grupo. Ao mesmo tempo, você se respeita e respeita a eles. Nisso eu fui começando a ganhar um pouco mais de desenvoltura, ficar menos tímido, a conversar mais com as pessoas.
Eu me lembro que a primeira vez que eu fui conversar com uma menina pra tentar um beijo, uma coisa assim, eu tremia. Depois disso, não. Depois desse convívio, vendo as coisas acontecendo, eu comecei a ganhar mais confiança. Parei um pouco de sair com esse pessoal da rua e me aproximei de um primo, que era basicamente da mesma idade que eu, que morava em um bairro próximo. Esse era o bairro onde as coisas aconteciam, chamado Abolição. Eu comecei a frequentar esse bairro com meu primo e fiz outras amizades. E começa uma outra etapa na minha vida.
P/1 – E esse bairro, conta um pouquinho dessa coisa do Abolição. Você falou que lá era o bairro onde as coisas aconteciam. Que coisas eram essas?
R – Ah, lá acontecia de tudo. (risos) Havia também uma tradição de festas juninas de rua e lá era o lugar que tinha uma festa junina muito famosa. Nessa festa junina, você já imagina, tinha de tudo. E foi lá que comecei a me relacionar mais seguramente com as meninas, que eu comecei a namorar mais, a conhecer mais pessoas. Lá eu comecei a sair mais, comecei a conhecer outros bairros, outras coisas da cidade do Rio de Janeiro. E lá nós começamos a ter as nossas aventuras, do tipo: “Vamos fazer alguma coisa diferente, alguma coisa engraçada hoje.” A gente ia pros lugares, inventava alguma coisa engraçada pra fazer. E nessa fase, esse meu primo Rodrigo, Julio… Tinham os que bebiam mais pra ficar engraçados, e aí dançavam, faziam umas coisas diferentes. Às vezes a gente saía: “Hoje a gente não vai namorar ninguém, hoje a gente só vai beber e se divertir.” E nisso a gente ficava reparando nos outros e brincava, fazia amizade. A gente realmente conheceu muita gente, era convidado pra festas em outros lugares, pra viajar com outras pessoas.
Essa foi a fase mais divertida e mais sociável da minha juventude. Foi quando eu conheci mais pessoas, mais lugares. E a gente tinha um código de amizade muito sólido, muito forte. Aquela coisa dos meninos, principalmente. Um namorava uma menina, terminava, surgia a oportunidade de outro namorar: “Posso namorar? Ela foi sua namorada.” Ou então: “Não, não quero.” Ainda meninos, mas querendo se respeitar como homens, com código de fidelidade alto.
Isso só se rompeu, mesmo, quando eu comecei realmente a trabalhar com Educação Física, foi quando eu comecei a trabalhar mais distante. A Fundação era em Itaipu, eu morava em Quintino. Trabalhava em Itaipu, eram duas horas e pouco pra ir, mais duas horas e pouco pra voltar. Comecei a ter um tempo reduzido e me distanciei desse universo da juventude.
P/1 – Essa fase sua, que você diz da juventude, na época do Abolição, você tinha quantos anos, mais ou menos?
R – Quando eu comecei a ir pra lá eu estava com dezessete, indo para os dezoito anos. E isso foi até os 22, 23 anos.
P/1 – E você morava no mesmo local?
R – Sim, não na mesma casa, mas no mesmo entorno.
P/1 – Por que a opção de se fazer um curso ligado a Educação Física?
R – Isso foi muito doido, porque eu trabalhava na transportadora. Eu comecei a trabalhar muito cedo com o meu pai, trabalhava com o pessoal que carregava e descarregava os caminhões, com motorista. Era um trabalho muito pesado, muito difícil, mesmo. Não tinha hora, era a hora que tivesse que trabalhar. E a minha família passou por uma situação de necessidade muito grande.
Nós tínhamos um sócio, ele deu um desfalque na empresa. A empresa ficou realmente cheia de dívidas e a gente não tinha como pagar; a gente chegou a passar uma necessidade financeira muito grande, de isso se refletir na alimentação, no vestuário, da gente não ter quase o que comer. E eu me lembro que o meu pai entrou num processo de depressão muito sério numa época.
Era eu quem trabalhava, eu ganhava 300 reais na ocasião. E por muitas vezes eu vi a minha mãe não comer para que nós pudéssemos comer. Então ficou na minha cabeça uma coisa assim: eu preciso fazer alguma coisa na minha vida, senão, como é que vai ser isso?
Eu me lembro que fui tentar fazer um curso pré-vestibular, mas eu não tinha dinheiro pra pagar, só consegui pagar o primeiro mês. Mas eu queria de alguma forma estudar. E o que eu fazia? Erradamente, mas fazia. Eu destacava o boleto e ficava um canhoto no talão. E havia uma conferência desse talão, era isso que permitia você entrar no curso, mas essa pessoa não conferia a autenticação do banco. Eu entrava, entrei por dois meses no curso, ninguém sabia meu nome, eu não comprava apostila. Eu copiava o que eu podia porque tinha que trabalhar e, às vezes, chegava muito cansado. Aí desisti do curso, não tinha mais como, não tinha horário, e fiquei com aquela coisa na cabeça: “Eu preciso estudar.” Eu me lembro que fui guardando um pouquinho de dinheiro aqui, ali, pra tentar fazer o vestibular no final do ano.
Uma vez, nesse curso, eu escutei um sujeito falar que ia fazer Educação Física. Isso não passava pela minha cabeça: “Educação Física... De repente...” E fui ler o que poderia ser trabalhado. Sempre gostei muito de falar, de estudar. Eu pensei: de repente, ser professor é uma coisa que vai me completar. Mas foi. No final do ano eu fiz as inscrições do vestibular e lembro que eu fiz pra três carreiras totalmente diferentes: Propaganda e Marketing, Biologia e resolvi fazer Educação Física, pela UFRJ, Federal do Rio de Janeiro. Lá em casa a gente tava passando um período muito difícil, eu não consegui pegar um caderno nesse período todo, não peguei nada, não estudei absolutamente nada. E eu me lembro que no dia que eu fui fazer o vestibular eu tinha uma agenda, era uma agenda com capa que parecia um estojo. Eu cheguei na UERJ, que era onde eu iria fazer prova pra UFRJ. Eu olhei as pessoas, com apostilas, com tudo, eu me sentei: “O que eu estou fazendo aqui? Eu não sei nada. Já que estou aqui, agora vou fazer.” Eu me lembro que eu subi os doze andares de rampa, fui o primeiro a entrar na sala, me sentei e fiz. Aí, quando saiu o resultado eu olhei, eu estava classificado, mas não estava ainda aprovado. Eu falei: “Não vou criar expectativas.”
Eu me lembro que próximo do Natal, se não estou enganado, ia sair realmente a aprovação. Eu me lembro que eram cinco horas da manhã, eu estava chegando no moinho pra trabalhar e eu comprei a Folha Dirigida, o jornal, mas eu não tive coragem de abrir. Aí, o vigilante do moinho falou: “E aí? Passou ou não passou?” “Eu não tenho coragem...” “Abri aí pra gente ver!” “Acho melhor não.” “Então eu vou abrir”. Ele saiu da guarita, sentou do meu lado. Falei: “Não, sou eu que vou abrir.” Abri e o meu nome estava lá. E eu não sei dizer qual foi a sensação. Não sabia se eu ria, se eu chorava, não sabia o que iria fazer.
Aquele ano foi muito difícil pra gente, muito difícil. A nossa família estava com muito problema financeiro. Eu entrei pra fazer Educação Física, mas sem ainda muita certeza. Começou uma outra etapa, que foram outras pessoas que eu conheci e são amigas até hoje. E eu fui começando a entender qual era o sentido do trabalho com Educação, que só foi se consolidar, se fechar, realmente, com a minha entrada na Fundação, em 2001.
P/1 – Você disse que seu pai tinha uma empresa transportadora e você foi trabalhar com ele na fase que você estava fazendo colegial, é isso?
R – É.
P/1 – E você foi trabalhar por que? Pela necessidade ou porque você foi incentivado a começar a trabalhar cedo?
R – As duas coisas: ele precisava de ajuda e acreditava que, trabalhando, eu teria uma visão diferente do mundo. E eu comecei a ajudá-lo.
P/1 – E essa transportadora ficava onde?
R – Na verdade, a gente não tinha uma sede. A gente trabalhava no centro do Rio; a sede foi colocada num bairro chamado Rocha Miranda, depois de muito tempo. A gente guardava os caminhões lá perto de casa, mas não tinha uma sede. A gente não, realmente, condições financeiras pra tanto. A sede mesmo era no lugar que a gente trabalhava aqui no centro do Rio, de frente ao porto.
P/2 – E como era o seu trabalho lá?
R – Eu organizava os caminhões para carregar, via o que tinha que carregar, pra onde tinha que ir, quem iria pra onde. Quando eu comecei a dirigir e a ter um carro passei a ir aos clientes, acompanhar entrega, resolvia problemas de cobrança, coisas do tipo. Eu fazia realmente o trabalho de fazer a coisa funcionar, enquanto ele negociava os contratos pra transportar as mercadorias.
P/1 – Que tipo de mercadoria vocês transportavam?
R – Farinha de trigo. Mas chegamos a transportar sabão, coca-cola, cimento. O que pintava pra transportar a gente transportava. Mas a farinha de trigo era o grosso.
P/1 – Felipe, você falou que foi trabalhar no moinho. Como se dá essa sua saída, quando você narra a entrada na faculdade? Eu não entendi muito essa parte. Quando você sai da transportadora pra ir ao moinho, como é?
R – Não, a transportadora prestava serviço ao moinho. Então, eu trabalhava lá organizando a nossa transportadora. Eu ficava lá no lugar de carregamento. Era um trabalho bem conjugado.
P/1 – E quando o sócio deu o desfalque na empresa, você já estava atuando na transportadora?
R – Já estava. Foi depois de uns dois anos de ter começado a trabalhar.
P/1 – Quando você entra na faculdade, como se dá isso numa situação de necessidade? Você tendo que ir um período pra faculdade. Conta pra gente como foi isso, como os seus pais receberam a sua entrada na faculdade?
R – Eles ficaram eufóricos, porque durante algumas gerações na minha família eu era o primeiro a ter um curso superior. Meu pai foi uma pessoa que tentou três faculdades e não conseguiu concluir nenhuma. Isso, pra minha mãe, foi… No dia da minha formatura ela quase se afogou de tanto chorar, porque a Educação sempre foi uma coisa muito importante em casa, sempre muito forte.
Fui estudar à noite pra poder trabalhar durante o dia, eu trabalhava o dia inteiro e à noite ia pra Universidade. Influenciou mais o trabalho na universidade que a universidade no trabalho. Tinha dias que eu não conseguia ir à aula, chegava mais atrasado, ou não conseguia estudar do jeito que eu queria naquele momento e tinha que recuperar um pouco depois. Mas o trabalho deu maturidade porque a gente realmente tinha que se sustentar.
P/1 – E esse trabalho, você continuou fazendo na tranportadora?
R – Sim, continuei.
P/1 – Que lembranças marcantes você tem da época da faculdade?
R – Ah, eu casei com uma pessoa que conheci na faculdade. Tenho um amigo que trabalha comigo hoje, indicado por mim, tenho outros amigos, que estamos sempre juntos. Novamente, a lembrança marcante foram as pessoas, esses caras foram figuras importantes pra todos nós, pra gente levar a universidade. Porque a universidade pública é muito difícil de levar.
A UFRJ é uma universidade enorme que tem problemas de organização seriíssimos, então a gente se organizava pra pegar informação, pra estudar junto, pra se indicar para empregos. E tem uma coisa que eu tenho muito orgulho. Quando eu era criança, eu passava em frente à universidade, via escrito Universidade Federal do Rio de Janeiro - antiga Universidade do Brasil, vinha escrito embaixo -, e eu dizia assim: “Um dia eu quero estudar aqui”, porque eu achava bonito. Meu maior orgulho é ter estudado lá, ter feito esse concurso nas condições que fiz, porque não deveria ter passado e passei.
A universidade é um lugar que te ensina a pensar no Brasil em si. Nós tivemos um professor espetacular, chamado Vitor Andrade Melo. Esse cara foi um cara que despertou uma visão sobre o contexto da Educação e do Brasil muito forte. Ali a gente aprendeu a pensar politicamente sobre Educação e a nossa função na Educação brasileira como professores, profissionais e pessoas que tiveram o privilégio de vir do sistema educacional público. Isso foi muito poderoso pra mim, isso eu trago até hoje. Essa veia, esse orgulho de ter vindo dessa universidade.
P/1 – Que tipo de reflexão e valores esse professor trouxe que você agregou na sua formação profissional?
R – Curiosidade, vontade de saber, ética, o investimento no conhecimento - no conhecimento humano, não no técnico. Isso foi o fundamental que o curso ensinou. Engraçado que ele foi professor de uma matéria que talvez fosse oposta a tudo isso, que era Teorias do Lazer. Mas pela riqueza cultural que ele nos trouxe, ele nos fez pensar a pobreza cultural e social que a população vive hoje no Brasil. O quanto as pessoas precisam de cultura e educação, de humanidade, no seu processo de formação. Esse foi o principal legado que esse cara deixou pra gente. Não tem quem hoje não fale nesse lugar, dele.
Hoje boa parte da minha turma, ou é mestre, ou é doutor, ou trabalha em ONG, ou tem trabalho de pesquisa. Isso foi tão poderoso que as pessoas não pararam aí, elas pegaram uma carreira que é totalmente deturpada no Brasil, que é Educação Física e transformaram numa carreira de educação integral. Isso, pra mim, também foi muito forte, muito bom de ter vivido lá nesse período. Hoje eu sei que não está mais assim, a gente tem estagiários que vem de lá e reclamam um pouco de como está a organização do currículo, mas a minha época foi uma época muito boa.
P/1 – Você falou que trabalhava e estudava. O que era o seu lazer? Você tinha lazer nessa época?
R – Não. (risos) Não muito. Primeiro porque não tinha dinheiro, não tinha muito como acessar. E às vezes não tinha realmente tempo. Quando eu comecei a namorar essa pessoa, que hoje é minha esposa...
P/1 – Como é o nome dela?
R – Ana Paula. Quando eu conheci a Ana e a gente começou a namorar, ela que meio me puxou pras coisas. Tipo assim: “Vamos sair, vamos fazer.” Porque realmente não tinha.
P/2 – E na faculdade você fez licenciatura?
R – Fiz bacharelado.
P/2 – Você teve que fazer estágio, alguma coisa assim?
R – Tive. Fiquei um ano e pouco trabalhando em uma academia sem receber nem um real, mas eu queria conhecer. Eu conciliava um tempinho que eu tinha com o que eu tinha que trabalhar na transportadora, aí o meu pai flexibilizava, com esse tempinho lá. Depois fui trabalhar em uma escolinha de natação com um professor chamado Milton. A escola chamava “Professor Miltinho”. Foi ali que eu tive o primeiro contato com criança realmente, mas foi um estágio que eu aprendi pouco; trabalhei muito, mas aprendi pouco. Logo depois, veio a Fundação. Eu fiz pouco estágio, não tinha tempo também de estagiar.
P/1 – E como você chegou na Fundação?
R – Isso foi uma coisa muito engraçada. Eu estava duro, financeiramente. A minha namorada, Ana, na ocasião trabalhava num colégio chamado Santa Mônica e esse colégio faz até hoje um congresso de Educação Física. Você podia trabalhar como divulgador e ganhava um percentual em cima da divulgação. Eu falei: “Vamos lá, vamos fazer.” Eu me lembro que fiquei com a área da Ilha do Governador. Já tinha pessoas na Ilha do Governador, mas me deram e eu falei: “Vou lá na faculdade”, resolvi ir mesmo sabendo que já tinha divulgação.
Eu tô subindo a rampa da universidade, de carro, e está saindo uma professora, chamada Angela Breda - outra figura marcante, foi minha professora na faculdade, na pós-graduação, enfim. E ela falou assim: “Você mora em Niterói, né?” Eu falei: “Não.” Aí, a Ana falou assim: “Mas se for emprego ele quer.” (risos) Aquele ímpeto feminino que eu agradeço sempre, né? E a Angela falou: “É que tem um amigo meu que está começando uma Fundação lá em Niterói, não sei se é Gol de Placa, Gol de Letra, uma coisa assim, e ele tá precisando de gente.” Aí, me deu o telefone.
Eu fui pra minha casa. Quando cheguei lá, a Ana falou pra minha mãe assim: “Obriga ele a ligar porque ele já ficou desanimado porque é Niterói, é longe.” Eu falei: “Não”. Ela falou: “Vai ligar, vai ligar.” Liguei. O Wilson era a pessoa que estava começando, o coordenador da época. Eu estava no oitavo período, terminando. “Estou terminando”. Ele falou assim: “Então vamos marcar uma entrevista, você vem aqui conversar comigo” e me explicou.
Pra ir, era pro outro lado do mundo. Na ocasião, eu não sabia onde era e falei com o meu pai: “Vamos comigo lá, você vai me indicando o caminho.” Fui. Cheguei na Fundação, no que eu olhei, era um espaço maravilhoso. Lindo, o espaço. Eu falei: “Nossa, isso vai ser um trabalho bonito de futebol.” Pra mim era futebol também, Gol de Letra. Mas eu nem sabia que era de Raí, Leonardo, nada disso, eu não tinha essa ideia.
O telefone toca, era ele e fala: “Olha, desculpa, mas eu estou com o carro enguiçado. Eu estou até perto, estou aqui em um lugar chamado Largo da Batalha e eu não vou poder estar aí agora. Você me desculpe. Você quer voltar outro dia ou você pode vir aqui?” Eu falei: “Não, eu vou aí.” Cheguei lá, o carro tava num posto de gasolina, enguiçado. Aí eu procurei e falei: “Cadê o moço do carro aqui?” Ele me deu as características, o rapaz do posto falou: “Ele foi lá embaixo comprar um peça.” Tá bom. Aí, quando ele chegou: “Oi, tudo bem? Eu sou o Wilson. Não tem nem onde a gente se sentar, vamos sentar aqui na calçada, mesmo.” Sentamos na calçada e começamos a conversar. Eu não tinha experiência realmente, a minha experiência era pouca e eu não estava formado.
Fiz essa entrevista, muito bem. Voltei pra casa, falei: “Não sei.” Na outra semana toca o telefone: “Olha, eu quero te chamar para uma outra conversa.” Dessa vez estava presente a Sônia London, ela participou da minha seleção. Sentamos e conversamos longamente. Eu falei, falei, e ela só balançava a cabeça. Eu pensei: “Nossa, o que essa senhora está pensando?” Na semana seguinte eles ligaram lá pra casa, minha mãe que atendeu, e disseram: “A gente queria convidá-lo, a gente vai ter um grande prazer em trabalhar com ele aqui na Fundação.” Eu falei: “Bom, vou ser estagiário.” Quando cheguei lá pra terceira entrevista, ele disse: “Não, você vai ser professor.” “Mas professor? Eu não tô nem formado.” Ele falou: “Não quero saber, você não quer ser professor?” “Quero.” “Você já não está terminando?” “Tô.” “Então, é a tua responsabilidade fazer.” “Muito obrigado pela sua confiança e vamos lá.”
Começou um período de treinamento e no dia dez de setembro a gente teve a inauguração. No dia onze de setembro, enquanto Bin Laden derrubava as Torres Gêmeas, eu começava a dar aula. E eu comecei a dar aula pras crianças de seis a dez anos, os bem pequenos. O primeiro dia que eu me vi cercado por aqueles caras eu pensei: “O que eu vou fazer? Não tem nada, não, vamos conversar.” E conversando, brincando, tô eu aqui até hoje.
P/1 – Felipe, você fala muito do espaço, que o espaço era maravilhoso. O que é esse maravilhoso?
R – Era muito bonito, muito amplo. E depois eu vim a entender que tudo que a gente acreditava de Educação Integral, educação pra liberdade, poderia acontecer ali com toda facilidade do mundo. As crianças tinham contato com a natureza, com um espaço amplo, um espaço bem cuidado, apropriado para que eles pudessem ser educadas sem risco e sem opressão. Depois que a gente entendeu o conceito de Educação Integral, isso ficou mais maravilhoso ainda, porque era um espaço totalmente voltado a um desenvolvimento pleno. Coisa que as comunidades não ofereceriam porque eram comunidades feitas sem muito planejamento, com pouco cuidado e que oprimiam essas crianças. Esse espaço não oprimia, pelo contrário, ele provocava experiência.
P/1 – Na sua entrevista com a Sônia, você diz que você falou, falou… Você lembra o que você dizia? (risos)
R – Eles me perguntaram o que eu achava que era possível fazer com Educação Física, aí eu peguei todos os conceitos da faculdade que eu achava que valiam e fui falando.
P/1 – O quê? Quero que você conte.
R – Que a gente podia trabalhar por meio das brincadeiras, usar meios como TV, internet, conversa e que a gente podia fazer as brincadeiras de tal maneira, e falava das brincadeiras. Falava o que eu achava de mundo e fui emendando uma ideia na outra. Nem eu me lembro o que eu falei, mas falei muito.
Eles só balançavam a cabeça, e eu pensando: “Caramba, deve estar horrível isso.” (risos) E eu queria mostrar que sabia alguma coisa que poderia ser usada ali, isso era o principal.
P/2 – E o treinamento? O que foi o treinamento?
R – Ah, sim. Havia a construção de um método de trabalho com base em alguns teóricos, como Jean Piaget, Vygotysky, Paulo Freire. O treinamento foi nos envolver com esses conceitos e nos esclarecer com que público nós trabalharíamos. Nós tivemos palestras, oficinas, visita à comunidade, justamente para entender o contexto onde aquela metodologia seria aplicada.
P/1 – E quem dava esse treinamento?
R – Wilson e pessoas que viam de São Paulo: Marcelo Jabour, a própria Sônia, pessoas que já eram da equipe de São Paulo, como a Bia, que era uma pessoa que cuidava de saúde, a Célia, que era assistente social. Acho que não esqueci de ninguém.
P/1 – E o que te chamou a atenção nesse processo de treinamento?
R – Os conceitos. Havia conceitos de Educação, ali, que eu não conhecia.
P/1 – Tipo o quê?
R – Ah, a teoria construtivista, sócio-interacionista. Os conceitos de Piaget e Vygotsky. O conceito geral da teoria de Paulo Freire, que eu não estava inteirado. As características do público, e, principalmente, a intenção da instituição.
P/1 – Que era...?
R – Que era trabalhar a educação sob uma perspectiva que eu nunca tinha visto. Eu falei: “Nossa, como uma instituição que não é escola, não é poder ´público, quer fazer isso com tanta profundidade? Quer fazer uma coisa tão complexa?” Isso foi muito sedutor. Era um tipo de conhecimento que depois você pensava: “Caramba, depois disso eu vou ser um professor e tanto.” Porque é tanta coisa boa, tanta coisa que você pode acreditar, que excitou a todo mundo, todo mundo saiu pro trabalho muito excitado e com muita expectativa positiva.
P/1 – E quais atividades te marcaram nessa primeira fase da Gol de Letra?
R – Principalmente as atividades coletivas. A gente tinha uma sexta-feira, que eles chamavam de ‘sexta-feira sem lei’: era todo mundo trabalhando junto e as crianças iam aos locais onde elas queriam ir. Esse trabalho integrado, música com dança, leitura e escrita com atividades de artes, educação física, desde a brincadeira até o esporte. Essa junção de visões, essas sextas-feiras eram dias especiais. Eram trezentas crianças no espaço fazendo várias atividades: pipa, percussão, futebol, elástico, corda, pintura, roda de leitura. Tudo isso no gramado, em espaço aberto. Isso era muito marcante, esse movimento das crianças. As crianças sempre sorriam muito, davam sempre a impressão de estarem muito felizes ali. E isso chamava muito a nossa atenção, como dava certo essa proposta de juntar coisas diferentes.
P/1 – Vamos voltar no seu primeiro dia, dia dez. E no dia onze, Bin Laden destruindo, e você começa a construir com um grupo de crianças. Como foi esse seu primeiro dia, qual foi a sua sensação? Você lembra a atividade que você desenvolveu?
R – Lembro. A minha sensação foi terrível. Eu falei: “Eu não vou dar conta. Eles são muito intensos, muito violentos, eles correm pra lá, gritam, não escutam a gente.” A minha sensação foi de muito cansaço. E as atividades que eu fiz… A gente fez uma roda de conversa, a gente jogou bola junto, a gente brincou na areia, tinha uma caixa de areia, eles brincaram de pique. Eram três turmas de manhã e três turmas à tarde. E o intervalo era de vinte minutos, era muito intenso, muita correria.
Eu cheguei em casa, olhei pra Ana e falei: “Nossa, não sei se vou conseguir, não.” E minhas primeiras impressões sempre foram assim, eu estava inseguro, tentando encontrar um espaço, uma forma de me comunicar com as crianças. Tinha crianças que eram muito rápidas, subiam e desciam do poste, batiam um no outro, e algumas eram apáticas, não vinham, não queriam brincar. O desafio foi encontrar como trazer esses que não se vinculam, porque estão fora, com esses que tem uma energia de sobra e vão criando outras frentes de atuação. E aí foi o princípio do estudo mesmo, de formação da equipe. Na verdade, a equipe foi formada no trabalho.
P/1 – Essa ideia de se trabalhar com vários programas, Jogo Aberto. Como é que vocês eram inseridos dentro desses programas e qual era a preocupação pedagógica que tinha atrás desses programas?
R – Nós éramos inseridos por uma capacitação constante. Toda sexta-feira nós tínhamos reuniões, discutíamos questões práticas do atendimento e os conceitos que nos levavam a atender as crianças. Isso foi primordial pra nossa formação. À medida que a gente ia conversando, iam surgindo as demandas de atendimento e os programas iam sendo adequados.
O programa Dois Toques foi o inicial. Do Dois Toques foram surgindo os FAC, formação de agente comunitário, foi surgindo o programa Aprendizes. Depois o Jogo Aberto. Eles surgiam da demanda que a gente discutia e surgiam da nossa ideia em como ser mais profundo nos temas que a gente oferecia.
P/1 – Então, vamos voltar. Eu quero que você fale o que era cada programa, o que era o Dois Toques, o Jogo Aberto. Quero que você fale um pouco qual era a proposta pedagógica e qual a preocupação pedagógica que estava por trás desse programa.
R – O que iniciou o trabalho no Rio de Janeiro, em Niterói, foi o Dois Toques. Dois Toques era um programa que complementava o horário escolar na perspectiva de Educação Integral. A criança ia para a escola em um turno, trabalhava com as disciplinas habituais e no outro trabalhava conosco em disciplinas que ela pudesse exercitar o corpo, a criatividade, o senso crítico e a linguagem, fundamentalmente. O Dois Toques trabalhava com dança, música, leitura e escrita, informática, educação física e artes. As crianças tinham, semanalmente, três atendimentos nessa linguagem. Então tinha um dia que eles tinham leitura e escrita, depois informática, educação física e dança. No outro dia, leitura e escrita, educação física e música. E, na sexta-feira, tinham todas as oficinas. Aí, a gente tinha os jovens de treze pra quatorze anos.
Do primeiro pro segundo ano a gente tem uma perda de jovens considerável, então a gente pensou o seguinte: por que perdeu esses jovens? A gente criou um projeto chamado Aprendizes, era um projeto onde esses jovens teriam a oportunidade, em um ano, de aprofundar as disciplinas que eles tinham tido no Dois Toques. Esses jovens tinham uma grade específica deles, com leitura e escrita, educação física, música e dança. Durante um ano isso aconteceu. Ao final desse ano a gente falou assim: “Bom, e agora?” Porque esses jovens ainda não estão prontos, na nossa perspectiva, pra sair.
Foi criado um projeto chamado Monitores. A gente fez uma pré-seleção, não teve como ficar com todos os aprendizes. Nessa pré-seleção nós selecionamos dois monitores para cada área, monitores que tinham um desempenho melhor, um interesse maior numa determinada área, frequência mais assídua, que tinha um compromisso com o trabalho. Eles passaram a acompanhar os educadores no trabalho do dia a dia.
Em 2004 foi criado um projeto chamado FAC, que deriva de um projeto de São Paulo chamado A Cara da Vila. Esse projeto tinha a ideia de formar lideranças comunitárias a parte da formação de jovens. Criamos em Niterói um atendimento de esportes e comunicação. No esporte nós teríamos os jovens que estariam sendo formados para ser agentes comunitários, e jovens que eram atendidos em modalidades esportivas. Assim como os alunos do Dois Toques, só que esses tinham entre treze e dezesseis anos.
Esse atendimento era noturno, então, acabava o Dois Toques, e à noite, de cinco e meia às nove e meia, começava o FAC. Tínhamos dez jovens em formação específica para agente comunitário, mais 130 participantes no Esporte. E 25 jovens em formação na Comunicação.
O que esses projetos geraram? Geraram ações desses jovens nas comunidades. Os meninos dos esportes criaram animações esportivas na praia e em escolas da região. E os meninos e meninas do vídeo fizeram filmes de curta metragem onde escreveram o roteiro, filmaram, fizeram tudo, e criaram um cineclube chamado “Olhos de quem sonha”, que era uma exibição de filmes nas escolas. Eles pegavam os filmes, discutiam os filmes, criavam o material de divulgação, se reuniam com a direção da escola, discutiam como passariam o filme e no dia a gente levava o equipamento e passava o filme para os alunos.
Em 2005, a Fundação resolve que precisa ir mais pra perto da comunidade em Niterói e que precisa abrir uma frente de trabalho no Rio de Janeiro. Foi feita uma pesquisa: “Como isso vai ser feito?” Em Niterói buscou-se a Fundação Municipal de Educação, órgão da prefeitura que controla as escolas e no Rio de Janeiro foi feita uma pesquisa junto ao setor de responsabilidade social da Firjan e ao Observatório de Favelas, para identificar que comunidade teria o perfil de receber o nosso projeto.
Em Niterói, tudo fechado com a Secretaria de Educação, o projeto foi transplantado dessa sede para dentro de uma unidade pública, que ficava no bairro do Jacaré. Lá foi feita uma cópia do projeto Dois Toques, só que adaptada em função das demandas da escola; de 300 crianças que eram atendidas no Dois Toques, passaram a ser atendidas 150 crianças. E no Rio de Janeiro foi criada uma cópia do projeto FAC Esportes. Esse projeto funcionou em 2006 e 2007 em Niterói. No início de 2008, ele foi extinto por falta de recursos. O Rio de Janeiro ficou com o seu projeto de esportes que já tinha incorporado na grade a leitura e escrita e informática para os monitores porque nós copiamos o projeto de monitoria e tínhamos doze jovens em formação, além do atendimento. A única diferença do FAC de Niterói é que o atendimento aqui era feito a crianças a partir de sete anos, que foi uma demanda da comunidade.
Em 2008 nós fizemos uma reformulação nesse projeto e ele passou a ter, além do esporte, a leitura e escrita e informática para todos os participantes. De 2008 pra 2009 nós inserimos a biblioteca para todos os participantes também, e o projeto de Educação Ambiental chamado Mensageiros da Água, que foi uma inserção feita em parceira com a France Libertés, instituição da Danielle Mitterrand, pra desenvolver uma consciência de meio ambiente no Caju. Isso à princípio era feito com jovens, mas agora é feito com as crianças.
No Caju, também em 2006, nós tentamos um projeto FAC Música. Achamos que a música seria uma linguagem importante para o bairro porque o bairro não tinha nada [dessa] cultura, só que esse projeto não foi a frente. Ele foi transformado em um projeto de informática, que também abandonamos em função do desinteresse dos jovens.
Todas as modificações que foram sendo feitas de Niterói pro Rio foram sendo feitas em função da demanda que a gente tinha pra atender diferentes públicos. Em 2003, ainda em Niterói, foi feito um projeto em parceria com a prefeitura chamado Arte e Ação Jovem. Esse projeto era feito em parceria com a Secretaria Especial de Políticas da Juventude, Fundação Gol de Letra e Secretaria de Saúde. Nós fazíamos a parte de formação social e esportiva, a Secretaria de Promoção de Políticas para a Juventude a parte social, e a de Saúde, de Saúde Sexual e Reprodutiva. Esses projetos foram circulando pra gente tentar ampliar o atendimento ao público.
P/1 – Vou retomar. Eu queria que você falasse qual era a preocupação pedagógica desses programas.
R – O programa de criança, que era o Dois Toques, fundamentalmente era tornar a educação das crianças algo de maior qualidade. Efetivamente entrar com o conceito de educação integral. Você trabalhar com a capacidade criativa, com as artes, com o corpo, instrumentalizar a criança para uma educação mais profícua. Pros jovens era um processo de inserção e formação de referências nas comunidades, porque as lideranças comunitárias não eram tão representativas e a gente queria criar uma referência com base na educação. E, de uma maneira geral, era entrar nas comunidades e fortalecer o sentimento comunitário de desenvolvimento, de identidade. Pra isso nós tínhamos eventos com as comunidades, eventos com as escolas, que se tornaram projetos contínuos como os cursos de cidadania, onde nós entrávamos na escola e na comunidade e oferecíamos serviços, chamávamos instituições parceiras. A ideia era fortalecer um conceito e uma vivência de educação e cultura nesses locais. Essa era a preocupação chave dos projetos.
P/1 – Nesse primeiro momento, quando você entra na Gol de Letra, que vocês estão em Niterói e na primeira fase do espaço maior e melhor. Qual era o nome da comunidade?
R – Eram cinco comunidades.
P/1 – Essas cinco comunidades. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre que resultados você viu ou em que os programas contribuíram nessas cinco comunidades.
R – Eu costumo dizer que o melhor resultado que a gente obteve foram os nossos meninos e meninas, principalmente esses jovens que foram aprendizes de monitores; esses jovens realmente se tornaram lideranças. O que a gente conseguiu fazer nessas comunidades foi fazer com que as famílias começassem a se importar com a educação dos seus filhos. E fazer com que as famílias começassem a se importar com elas enquanto famílias.
Conseguimos entender mudanças de relacionamento, mudanças de valorização de si, mudanças de ideia sobre a própria comunidade. As pessoas tinham um valor muito depreciado das comunidades e passaram a valorizar mais o lugar onde moravam. Então eu acho que a gente conseguiu criar uma ideia de que aquelas pessoas poderiam fazer coisas e ser pessoas melhores. Esse é um ganho subjetivo, mas foi uma ideia muito forte na cabeça dessas pessoas. Tanto que uma série desses jovens estão na universidade, muitos jovens que vinham de famílias que tinham problemas, ou com trabalho infantil, ou com a criminalidade, esses meninos não se envolveram. A gente teve poucos casos de gravidez na adolescência, que era um perfil forte na comunidade, na ocasião. Então a gente influenciou muito o comportamento e criou espaços de cultura e de lazer. Os espaços da Fundação, seja na sede, seja na escola, se tornaram espaços que as pessoas iam pra curtir espetáculos, eventos, pra ter serviços. Nós nos tornamos uma referência de mudança de comportamento, acho que esse foi o ganho principal.
P/1 – E você tem um caso concreto que te marcou muito, de transformação de um jovem, algo que você possa nos contar?
R – Eu tenho alguns. (risos) Eu tenho alguns casos de meninos como Ana Carla, Diego, Michele, Tiago, Luan. Esses meninos, todos, eram meninos que começaram com a gente com doze, treze anos, vieram de famílias muito, muito simples e hoje são meninos e meninas universitários. Acho que isso é uma transformação, não pelo fato de estarem na universidade, mas pela consciência que desenvolveram sobre suas vidas e famílias. Hoje são meninos e meninas que ajudam suas famílias e que atingiram um nível de compreensão muito alto.
Mas eu tenho um caso que não é de uma transformação duradoura, efetiva; é um caso de uma transformação que nos transformou. A gente recebeu uma família, entrou esse menino, chamado Benício, e mais dois irmãos. Esse menino vivia em situação de rua, embora tivesse família. A família morava em um cômodo, eram sete filhos e a mãe sozinha. Esse menino, por viver em situação de rua, não se vinculava a ninguém, não se deixava tocar nem tocava ninguém. Eu me lembro que no primeiro dia que esse menino entrou na Fundação, na hora do lanche ele comeu seis ou sete sanduíches e quando a gente olhou, cadê? Ele pulou o muro e foi embora. Ficou o desafio: como é que a gente vai pegar esse sujeito e vai trabalhar com ele? E a gente começou a tentar. A gente ia, corria atrás dele, tentava pegar.
Na ocasião eu já não era mais professor, era assistente de coordenação. A minha estratégia foi estar ao lado dele o dia inteiro, inclusive de mãos dadas com ele. Ele resistia e eu falava: “Não, não vou te soltar porque se eu te soltar você vai se machucar e a gente não está aqui pra você se machucar. A gente está aqui pra você ser cuidado.” Com o tempo eu comecei a negociar com ele, eu andava quase o dia inteiro. Às vezes eu tava trabalhando, ele sentado ao meu lado. Quando ele ameaçava: “Pera aí.” Sentava, abraçava e ele trabalhava do meu lado.
Esse menino ficou conosco uns dois ou três meses até que ele começou a se vincular, a participar das atividades, mas toda oportunidade que ele tinha, ele ia embora. Eu me lembro que uma vez eu corri atrás dele, fui pegar ele na festa de Itaipu, já era noite. Peguei, levei na porta de casa, entreguei na mão da mãe, falei: “Tá aqui o seu filho, é você que tem que pegar.”
Esse menino foi retirado da família, a Justiça retirou o poder pátrio da mãe. Ele foi colocado sob a guarda de uma família substituta. Ele não lia, não escrevia, já tinha onze anos. No último dia dele na Fundação, ele pediu pro irmão dele fazer uma folha de caderno escrito assim: “Deixe o seu recado pra mim.” E ele foi de professor em professor, pedindo pra deixar um recado ali pra ele, porque ele ia botar no quarto dele e queria lembrar da gente. Naquele dia, ele cumpriu rigorosamente todas as regras, todas. Foi a criança mais amável do mundo. E nesse dia não houve quem não se emocionasse com esse garoto, todo mundo chorou com ele porque a gente conseguiu mexer em alguma coisa, pena que não deu tempo pra mexer em mais.
Pra mim, isso resume o espírito do trabalho que a gente faz, né? Que não precisa aparecer aqui, mas está aqui.
P/1 – Felipe, eu gostaria de retomar a história. Como é o nome dele?
R – Benício.
P/1 – Você nos traz uma história que tocou em todos vocês. Eu queria que você falasse no que mexeu em você, o que tocou a história em você e qual é a percepção do impacto dessa história dentro da própria organização.
R – Dentro da organização, ficou um sentimento de frustração pela não-continuidade e até pela condição do menino, porque a gente não conseguiu fechar o atendimento. Mas em mim ficou a ideia da transformação, do quanto que você é capaz de promover algum tipo de transformação pelo processo educativo. Eu acho que independente do que os meninos vão aprender, se vão aprender música, leitura e escrita, se vão aprender esportes, não importa. Importa a consciência que esse menino tem do processo pelo qual ele está passando. E essa situação trouxe pra mim essa ideia do quanto a gente, enquanto educador, tem que buscar estratégia pra atingir o outro, o quão é importante o nosso papel como mediadores de um processo de trabalho, de um processo cultural.
Hoje essa população vive em um processo de contracultura, população mais empobrecida. A gente está funcionando como um elemento de retomada, mas ainda muito tímido. E o quanto a gente ainda tem que caminhar enquanto parte do sistema educacional pra envolver, incluir essas pessoas, além do dado concreto, além do percentual de crianças estudando, do percentual de atendimentos. Esse foi o desafio fundamental que culminou com esse menino, mas que vinha desde o início e que se propaga ainda hoje. Então, é assim: como é que a gente pode fazer um trabalho de qualidade, de conscientização, pra importância do processo educativo? Isso é o que ficou.
P/1 – Você lembra que mensagem você deixou pra ele, quando ele te pediu?
R – (risos) Acho que eu lembro. Eu escrevi que eu ia sentir muitas saudades dele e que eu esperava que um dia ele se tornasse, pra ele, um grande homem. Porque pra mim ele era um grande cara. Eu espero que um dia ele consiga ler, porque na ocasião ele não lia, mas eu prefiro lembrar mais do abraço que eu dei nele, que foi muito legal, e ele em mim. Ele não resistiu, aquele foi um dia que ele não resistiu ao toque, foi muito bacana. E eu fiquei muito feliz porque ele estava feliz, ele falava: “Eu vou ter um quarto! Eu vou ter um lugar novo!” Eu falei: “Caramba, alguma coisa na cabeça desse garoto vai mudar realmente. Ele está indo para uma perspectiva diferente, isso pode ser legal.”
P/1 – E vocês têm notícias dele?
R – Não, hoje não mais. Isso já faz uns quatro anos, tem um tempo.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho pra gente como você se envolvia nesses programas.
R – Eu já fui um pouquinho de cada coisa na Fundação. Eu já fui professor de Educação Física, de 2001 até meados de 2003. Em 2003 eu assumi uma Assistência de Coordenação. Trabalhei como assistente de coordenação do programa Dois Toques em 2003, 2004 e 2005. Em 2005 eu recebi uma segunda incumbência: eu me tornei Coordenador do Programa FAC Esportes e FAC Comunicação. Fiquei [em] 2005; em 2006 eu fui designado como Educador Comunitário, leia-se também Coordenador, para implantação do projeto no Rio de Janeiro, no Caju. Trabalhei até o final de 2006 dando aula e coordenando. Do final de 2006 ao início de 2008 fui Coordenador Pedagógico da unidade Rio de Janeiro. Em 2008 eu me tornei Coordenador Geral da unidade de projetos.
P/1 – O que faz um assistente pedagógico? O que você realmente fez em cada função que você teve?
R – O assistente era a pessoa que cuidava do dia a dia, da rotina dos professores, que cuidava do cumprimento dos prazos dos projetos, que orientava as atividades do dia a dia, que cuidava dos documentos pra passar ao coordenador, que fazia os relatórios do atendimento, que atendia problemas de relacionamento e comportamento dos alunos. Eu cuidava do funcionamento do dia a dia, ver se as demandas estavam sendo cumpridas, se os professores estavam atendidos, se a equipe estava dentro do cronograma de planejamento. Essa era a minha função.
P/1 – E quando você assume a Coordenação esse papel passa a ser...
R – Quando eu assumi a Coordenação eu não tinha assistente, então eu continuava fazendo isso e ainda respondia por todos os processos, assinava os relatórios, lidava com a comunidade, fazia toda essa dimensão de prestação de contas do processo.
P/1 – E a sua relação com a comunidade, enquanto coordenador, era fazer o quê?
R – Era encontrar pessoas que pudessem colaborar com as nossas ações, discutir os espaços onde faríamos os eventos, participar das reuniões com os pais pra poder dizer pra eles como era feito o trabalho, conversar com as escolas pra tentar, de alguma maneira, fazer um trabalho em conjunto. Era isso que eu fazia.
P/1 – Durante esses processos, a questão metodológica se transformou durante esse período, quando você iniciou na Gol de Letra até agora? Houve uma transformação?
R – Acho que houve um amadurecimento. A lógica é a mesma, os ideais são os mesmos, os conceitos são os mesmos, mas a forma de fazer foi mudando de acordo com a comunidade que a gente trabalhou. A gente teve que fazer adequações na forma de atender, no tempo de atendimento, na linguagem oferecida, pra atender a comunidade e, às vezes também, dirigidos pelo recurso que a gente tinha disponível.
P/1 – Você nos traz a questão da sede inicial que você conheceu, que era um espaço maravilhoso, e vai para uma escola que é do poder público. Por que vocês saem de um lugar para outro?
R – Eu não fui para essa escola, eu vim pro Rio. Foi até mais impactante, porque além de ser um outro espaço é um outro lugar. Nós saímos dessa sede, primeiro por realmente desejar compartilhar o dia a dia da comunidade, isso era fundamental. E estar próximo do sistema de ensino, porque a gente gostaria muito de influenciar a política pública; a gente sempre teve em conta que o nosso trabalho tinha uma qualidade. Em 2005 nós fomos avaliados por uma avaliadora externa e ela constatou. Então, a ideia era: vamos levar essa política de trabalho direto à comunidade. E segundo, porque já estava começando a ficar difícil captar recursos para aquele espaço. Realmente, o espaço era muito bonito, em um lugar que não era a comunidade, então as pessoas tinham o mau hábito de olhar e dizer assim: “Não, vocês não precisam de nada, está tudo muito bom.” E não era isso, a gente realmente precisava. Essa mudança ocorreu numa forma de tornar sustentável o trabalho da instituição e de disseminar a nossa política e metodologia de trabalho.
P/1 – Por que essa vinda ao Rio, qual foi a decisão estratégica de se vir ao Rio e por que a comunidade de Caju?
P/2 – E aproveitando: qual foi o impacto desse fechamento de Niterói para a comunidade que era atendida?
R – Começando por essa questão, o impacto foi muito negativo. A comunidade não esperava. Na verdade, nem nós esperávamos que isso fosse feito naquele momento. A coisa foi feita muito rapidamente, até em caráter emergencial, porque ela começou a ameaçar a sustentabilidade da organização como um todo, pela falta de recursos e o projeto tinha um custo caro. A comunidade ficou negativamente impactada, como algo que começou, que tinha toda uma promessa de desenvolvimento espetacular, mas que não foi à frente. E não houve um tempo de esclarecimento para a comunidade muito bom. A escola também ficou muito impactada, essa impressão negativa foi comentada e acabou se tornando uma impressão quase coletiva.
O Rio sempre está nas manchetes pelo problema social, seja a violência, a desorganização. E a ideia dos instituidores era a de efetivamente fazer um trabalho que formasse opinião na cidade. Niterói era um trabalho importante, sério, positivo, mas numa dimensão pequena comparada ao que o Rio poderia trazer, até para que a sustentabilidade na instituição se garantisse. E aí, por que o Caju? Com essa parceria com a Firjan e o Observatório de Favelas, pedimos o seguinte: gostaríamos de saber de comunidades que não tem, ou tem pouquíssima estrutura de assistência social e educacional. Eles nos levaram a várias: fomos à Vila Kennedy, à Serrinha, ao Morro Santa Marta, à Maré e fomos ao Caju. Quando chegamos ao Caju: oito comunidades, mais de trinta mil moradores, criminalidade presente, pouquíssima infraestrutura, comunidades extremamente degradadas. A gente falou: “Ôpa.” Nenhum projeto social funcionando. Cinco escolas da prefeitura, uma do estado e uma federal, com um índice de analfabetismo de 15% da população, 50% da população distante da escola. Nós falamos: “Pera aí, aqui tem alguma coisa interessante.”
Sentamos com a comunidade na ocasião, que era representada por uma instituição chamada Câmara Comunitária, que reunia as oito associações de moradores em um único órgão. Eles expuseram pra gente: “Aqui o problema é com a criminalidade. As crianças não têm oportunidade de lazer, o bairro não tem nada para complementar o horário escolar”. A gente falou: “E o que vocês desejam de atendimento?” Eles expuseram, nós expusemos o nosso projeto, chegamos a um acordo e criamos um projeto lá.
P/1 – Quais eram as necessidades deles?
R – Atendimento a crianças a partir de sete anos, um trabalho educacional que complementasse a escola, porque o trabalho das escolas era considerado extremamente frágil. Um trabalho com a comunidade em si, porque não tinha nada que mobilizasse as pessoas, ou que trouxesse qualquer tipo de atenção ou serviço. Enfraquecimento das lideranças locais, que não tinham mais como articular com nenhuma ordem de poder. Carência, mesmo, de espaços de cultura e esporte organizados. Essas eram as principais.
P/1 – E qual foi a estratégia de vocês para dar conta desse mundo?
R – Justamente apresentar o nosso projeto e, junto com eles, estabelecer: a gente pode atacar por essa vertente e essa vertente, a vertente do esporte que vai gerar integração, lazer, cultura e organização das crianças e adultos. Pela vertente da mobilização comunitária, que vai trazer serviços, visibilidade pra vocês. E com uma orientação constante às lideranças pra criar um processo mais sólido. Foi assim que a gente propôs. E quando eu vim pra implementar, fui eu que comecei o projeto. Ia conversando com um e outro, às vezes de porta em porta, até a gente conhecer as pessoas, as pessoas confiarem na gente e se vincularem.
No primeiro ano a gente teve 80% de evasão, porque as pessoas pensavam que a gente era uma escola de futebol que iria gerar oportunidades pra crianças tentarem sair dali para um clube de futebol. Quando eles viram que não era isso, eles falaram: “Pô, então a gente vai sair.” Aí, eu fiquei feliz. Fiquei feliz com 20% porque ficou quem quer, quem acredita. E esses 20% foram gerando uma mobilização. A gente caiu pra 15% no segundo ano, no terceiro a gente tem uma média de rotatividade, não é mais de evasão, de 10% e uma fila de espera. Quer dizer, foi sendo criada uma cultura com esse tipo de trabalho.
P/1 – E quais foram as dificuldades encontradas no início?
R – Falta de mobilização das pessoas, elas não se motivavam pra vir à Fundação. Cobranças de elementos que a gente não tinha pra dar como, por exemplo, dar dinheiro, cesta básica, fazer jogador de futebol, reformar espaço. Essas cobranças eram intensas e a gente sempre tinha que explicar que a nossa proposta não era essa. “Mas a Fundação tem dinheiro.” “A Fundação não tem dinheiro, a Fundação recebe dinheiro pra fazer o seu trabalho, não resolver todos os problemas da comunidade.” Mas essa falta de mobilização foi o pior porque o bairro é pulverizado, as pessoas vêm de diversos espaços. Até fazer com que elas acreditassem no trabalho e viessem estar conosco, a gente levou um tempo, isso foi muito difícil.
P/1 – Como é chegar nessas comunidades, pessoas estranhas, que vem com uma proposta, mas, por outro lado, eles tem todo um histórico de promessas e coisas que vem e vão e vão embora? Como é lidar com isso? Você falou na aproximação com a Associação, mas vocês tiveram dificuldades, boicotes com relação a isso?
R – Tivemos. Acho que o principal é a persistência e você não abrir mão dos seus objetivos. Porque se você faz uma concessão, essa concessão vira uma regra. E todo o trabalho de implantação da filosofia da instituição pode ser destruído aí. Os desafios fundamentais: você fazer valer o seu método, a sua filosofia, então você vai ter que negociar constantemente, sentar com as pessoas repetidas vezes. Todos os anos eu reuni as pessoas das associações e fiz um balanço de tudo o que foi feito, do que era prometido, pra fazer uma comparação, e eles verem como a coisa caminhava. Sempre estar se cercando de pessoas que tenham algum tipo de influência positiva na comunidade. As famílias são um caminho fundamental. Prestar toda a assistência às famílias é um bom caminho pra conquistar a comunidade. E, efetivamente, prometer o que está dentro do seu cronograma, e cumprir esse cronograma. Se você abre mão, negocia coisas que não estão ao seu alcance, ou não é extremamente objetivo nas coisas que você propõe, você acaba se complicando, porque como as interpretações são variadas, são variados os interesses, a instituição pode ser enfraquecida e sofrer os boicotes.
A gente só não sofreu mais com os boicotes porque as famílias se posicionaram ao nosso lado. As pessoas que esperavam que a Fundação fosse gerar algum tipo de lucro imediato, elas se afastaram.
P/1 – Que tipo de boicotes vocês sofreram?
R – Afastamento, pessoas que fariam a ponte com a comunidade, que facilitariam a nossa estada se afastaram e nos deixaram sem referência, por exemplo. Pessoas foram se vinculando a fontes políticas pra tentar trazer outros projetos e concorrer com a Fundação Gol de Letra e tentar enfraquecer. Pessoas que começaram a fazer campanhas, mesmo, de falas, que o projeto não era o que tinha se proposto desde o início. Só que como a gente sempre trabalhou sério, prestando contas de tudo o que fazia, essa imagem foi diluída e hoje, pessoas que nos boicotaram estão se reaproximando, porque viram que realmente a gente vem fazendo um trabalho sério.
P/1 – Como surgiu esse trabalho social dentro da Fundação Gol de Letra?
R – A princípio, o trabalho era visto como um área que dava apoio à área pedagógica. Só que a gente foi vendo, ao longo do tempo, até por constituição da instituição… A instituição é uma associação de assistência social que trabalha com educação, então o papel é prioritário. A gente constituiu uma metodologia onde área social e pedagógica constituíam um único bloco, que discute todas as vertentes da assistência. A área social discute conosco os projetos, está presente nos projetos, o trabalho com comunidades e famílias é parte de cada uma das ações. Hoje, a gente pode dizer que são duas áreas que trabalham totalmente integradas pra gerar o atendimento, desde os professores até os assistentes. A gente senta em reuniões, faz instrumentos de avaliação em conjunto, planeja em conjunto, pra que a comunidade seja atendida como um todo.
P/1 – E como elas são atendidas pela Gol de Letra?
R – As crianças em três dias por semana, com três horas de duração, contraturno escolar. As famílias têm uma reunião mensal e reuniões individuais, à medida que a gente detecta demanda. A comunidade, em eventos que fazemos semestralmente. Eventos desportivos, culturais. E hoje foi criado um projeto chamado Cineclube que oferece mensalmente sessões de cinema gratuitas abertas à população, atendida pela Gol de Letra ou não.
P/1 – Você falou que as crianças participam três vezes por semana no… Como é o nome?
R – É o Jogo Aberto, no Caju.
P/1 – Que resultados você vem acompanhando desde que essa área social está atuando aqui no Caju?
R – Eu vejo hoje uma participação maciça dos pais na vida educacional dos filhos, eu vejo melhoras nas relações parentais com a diminuição da violência doméstica, aumento do diálogo. Com as pessoas buscando mais informações sobre como educar seus filhos. E pais, depondo que a Fundação não é boa só para os filhos, mas para eles também, porque encontraram um espaço de aprendizado. Numa população que é menos conhecida no bairro que o cemitério, onde os mortos tem mais destaque que os vivos, esse é um movimento de ganho, de retomada de uma identidade que estava perdida já há alguns anos.
P/1 – E como é o trabalho de formação desses agentes sociais? Como vocês fazem isso?
R – Hoje a gente chama de monitores, só. Porque agente comunitário pode ser agente de qualquer função, né? Então a gente chama monitor. A formação deles é na prática, junto com atendimento. Nós temos um tempo, uma hora por dia, destacada, discussões e exercícios com ele sobre a área específica que eles atuam, seja esportes, leitura escrita, literatura ou educação ambiental. E todos os meses a gente tem um evento chamado Núcleo de Formação Comum, que é um fórum de debates sobre temas eleitos e discutidos junto com eles, e um sarau, onde eles tem possibilidade de fruição cultural.
P/1 – E quais foram as dificuldades que esses monitores encontraram no início?
R – A dificuldade em ser a referência. Eles vêm de um processo educativo muito oprimido, muito controlado. Quando eles entram nessa formação, [em] que você espera deles autonomia, senso crítico, eles não têm. Eles ainda estão infantilizados com relação à idade deles.
A dificuldade maior é compreender o sentido de ser um monitor, de ser uma referência na comunidade, então, muitas vezes são atitudes infantis. É um deslocamento grande com relação à maturidade que você espera nesse momento da vida, é uma dificuldade de entrar nas discussões e significar as discussões com mais profundidade. A gente pega meninos e meninas já jovens, de dezesseis, dezessete, dezoito anos, ainda infantilizados, com pouca profundidade pra pensar a sua função como jovem e como monitor na comunidade.
P/1 – E tem algum caso de sucesso que você gostaria de destacar pra gente?
R – No Caju?
P/1 – É.
R – Temos. Nós temos três meninos, Patrícia, Carlos Henrique e Douglas, que foram monitores. Dois deles viajaram em um intercâmbio para a França no ano passado, Patrícia e Carlos Henrique. A gente tem um intercâmbio desde 2002 com uma instituição cultural e esportiva de Lyon. Hoje os três estão em um programa de Aprendizes da Rede Pão de Açúcar, estão trabalhando, em vias de ser contratados. São meninos que já tem uma renda, colaboram com suas famílias e estão conseguindo uma independência mais madura; já estão fazendo cursos pré-vestibulares, já estão se encaminhando para a escolha de uma profissão e entraram numa condição muito prejudicada.
P/1 – E em Niterói? Você poderia dizer um caso de sucesso?
R – São esses meninos que eu disse logo no início da entrevista: Ana Carla, Michele, Tiago, Luan, são meninos que hoje cursam universidade ou estão engajados no serviço militar. Alguns já constituíram família, já tem casamento, alguns filhos, mas já estão em um processo de formação profissional e de geração de recurso muito superior que a média da comunidade onde eles moram, e até de suas famílias. São jovens que hoje podem servir como modelo para familiares e crianças mais jovens, como pessoas que iniciaram um trabalho, que saíram daquela condição, que tiveram uma formação específica e estão tendo um retorno melhor.
P/1 – Hoje você está como Coordenador Geral da Unidade do Caju, né?
R – Isso.
P/1 – Quais são suas atribuições hoje? O que faz um coordenador geral da unidade do Caju?
R – Pelo fato de ser professor, eu cuido prioritariamente da área educacional, de como os projetos estão sendo desenvolvidos, como a metodologia está sendo posta em prática. Mas hoje também atuo na formação de parcerias e relacionamentos e direciono um pouco da área da vertente de Comunicação, acompanho com a unidade de São Paulo as ações que vão ter no Rio.
Cuido da parte administrativa junto com a equipe daqui: todas as prestações de contas, aquisições, despesas e orçamentos, sejam feitos dentro de uma previsão sustentável e de acordo com as necessidades de cada projeto. Cuido um pouco, também, da área social, porque organizo com a assistente social quais serão as ações e por quais caminhos nós vamos poder atender melhor.
Discuto com todas as áreas em específico e tenho uma atenção maior focada na parte educacional, pro cumprimento do método.
P/1 – Quem são os parceiros de vocês no Rio, que dão a base de sustentabilidade?
R – Hoje, financeira, a gente conseguiu uma parceria com a Visanet pela Lei de Incentivo do Ministério dos Esportes. A gente tem uma parceria com o Governo do Estado do Rio de Janeiro que nos aprovou numa Lei de Incentivo Fiscal baseado no ICMS, mas a gente não tem nenhum financiador ainda. Então, hoje, financiador mesmo a gente só conta com a Visa; ainda vai entrar o recurso. Mas a gente tá negociando com algumas empresas, para ver a viabilidade deles apoiarem o projeto.
P/1 – Agora a gente tá caminhando mais para uma fase de avaliação e fechamento. Eu queria que você falasse pra mim, Felipe, qual é a fase mais marcante que você vivenciou na Gol de Letra?
R – Pergunta difícil essa. Muito difícil.
Como eu vivi todas as fases da Fundação aqui no Rio, atualmente a fase que mais me marca é essa que a gente está vivendo, porque ela nasceu de um momento muito delicado. Ela nasceu de um momento de xeque. Sentamos na mesa, foi anunciado o encerramento de Niterói e me foi feita uma proposta quase individual: “Se você quiser continuar no Caju, a gente continua com a Unidade.” Eu senti na minha mão o peso da responsabilidade de manter funcionando um trabalho que já vem de tantos anos e tão frutífero e o desafio de saber se ele seria sustentável ou não. Então hoje, vendo a instituição se recompondo, tendo resultados no Rio de Janeiro, conquistando outros parceiros, por um trabalho, leia-se, de toda uma equipe, não meu, eu só fui a pessoa que fiz o elo entre o antes e o agora. E Beatriz, a nossa diretora, que é a peça fundamental dessa transformação, ela é que decidiu que a coisa continuaria e fez essa proposta, ela é a grande responsável por nós termos tido essa chance.
Esse momento é muito marcante, porque nasceu de um momento que a instituição poderia não mais existir aqui e deixaria tantas histórias bonitas, tantas coisas importantes para trás. E hoje a gente está se recompondo frente a tantos desafios. Então, acho que esse momento, hoje, de estar no Rio de Janeiro, de reconquistar um espaço como instituição, como estrutura, é um momento muito marcante porque foi um trabalho que a gente quase que teve que começar do zero. Mesmo tendo todo um histórico, a gente partiu de um novo. E ver a coisa acontecer, poder resgatar todas essas histórias e fazer valer tudo o que já foi feito é muito bom. Principalmente pra quem participou desde o início. É um compromisso não comigo, meu salário, minha função, mas acho que com cada profissional, com cada jovem, com cada pessoa que passou pela Fundação e tem algum carinho pela Fundação, mantê-la viva de alguma forma. Isso é muito marcante, é muito bom estar vivendo isso hoje.
P/1 – E das pessoas que vivem, ou que viveram com você, da Gol de Letra. Eu queria que você falasse quem foi importante, o porquê e qual foi o aprendizado que você teve com essa pessoa. Pode ser alguém da comunidade, um aprendiz, parceiro de trabalho.
R – Dos jovens, alunos, crianças eu diria todos, aprendi muito com eles. Mas tem uma figura em especial que é o Wilson Costa, que foi o nosso Coordenador Geral, Gerente Pedagógico. Eu posso dizer que grande parte da minha formação tem a mão e a cabeça dele. Ele foi uma cara que me ensinou muita coisa, que me deu muitas oportunidades dentro da instituição, que acreditou em mim desde quando me botou pra ser professor sem estar formado, que me chamou pra ser assistente dele, que me botou aqui no Rio. (risos) Ele foi o cara que abriu as portas, mesmo, desse trabalho. Eu tenho muito respeito por ele, muita gratidão profissional e até pessoal, por ele, pela generosidade que ele teve em todos os anos em que nós trabalhamos juntos. De nunca deixar de compartilhar, de estar perto, estar junto. Junto mesmo, como parceiro.
Ele é a figura que montou todo esse trabalho. Se a gente chegou a esse nível de consciência, de participação, de envolvimento, ele foi a figura que montou, que fez nascer esse sentimento pela Fundação. Acho que ele seria o cara mais indicado para ser a figura mais marcante nessa história.
P/1 – Como você avalia a sua trajetória na Gol de Letra?
R – Caramba, outra pergunta difícil. Minha trajetória foi um crescente de muito trabalho, eu tive que trabalhar muito pra conseguir estar aqui, ganhar a confiança da própria instituição e estar aqui hoje. Eu avalio como uma experiência muito vitoriosa, muito feliz. E tenho a felicidade de dizer que encontrei um trabalho que é mais do que um trabalho, que foi um espaço de constituição pessoal. É uma trajetória muito feliz, sou muito feliz de ter encontrado a Gol de Letra e estar trabalhando aqui até hoje.
P/1 – Se você pudesse falar: “Olha, eu aprendi isso.” O que você elegeria como o seu maior aprendizado na Gol de Letra?
R – Olha, pelo lado profissional, eu acho que aprendi muito a praticar a minha humanidade, a minha cidadania. Acho que, de tanto a gente discutir e querer ensinar isso, que você não ensina o que não sabe. Não pode, seria hipócrita. Acho que é isso, eu aprendi a exercer a minha cidadania e a minha humanidade, isso foi fundamental para eu me tornar um profissional satisfeito com o que faço. Acho que esse foi o ponto.
P/1 – E se você pudesse traduzir a Gol de Letra em algumas palavras, como você traduziria?
R – Pra mim, a Gol de Letra sempre foi muita felicidade, muita alegria, meu trabalho sempre foi feito muito alegremente. E a outra palavra que definiria é realmente trabalho, acho que a gente sempre trabalhou muito, muito. Quase obsessivamente, pra tornar a instituição algo viável, para tornar a nossa filosofia uma coisa real. Então, é isso: alegria, felicidade de estar nesse lugar e muito trabalho.
P/1 – E se você fizesse uma imagem? Que imagem seria essa?
R – De tudo o que a gente fez?
P/1 – Imagem Gol de Letra. Se você pensasse na Gol de Letra, em imagem, que imagem seria essa?
A gente vai pra Gol e você vê vários desenhos, várias imagens, né? Então eu queria que você traduzisse naquilo que as crianças, de alguma forma, também trazem pra você. Que imagem é essa?
R – Você sabe que a nossa logomarca traduz muito do que a gente é, né? Aquele bonequinho que não é menino, nem menina, brincando dentro de um livro, iluminado por um sol bem colorido, bem legal, eu acho que aquela imagem é a nossa imagem. A gente sempre praticou educação com alegria! E aquele boneco é muito alegre. E eu acho que foi muito feliz a escolha daquela logomarca. Pra mim, a nossa imagem é aquela imagem: de leveza, de alegria, e de um brilho que as pessoas que estão ali dentro estão buscando. Eu ficaria com aquela imagem, com aquela nossa logomarca, pra mim ela é muito forte.
P/1 – Você trouxe na sua narrativa, do fato marcante, essa coisa do recomeço, da dificuldade. Eu queria que você me trouxesse qual foi o aprendizado que isso te trouxe. Quando você estava falando isso, me trouxe a dificuldade da sua família, do momento que vocês passaram uma dificuldade muito forte. Eu queria saber se você trouxe algum aprendizado daquele momento. E se você pudesse sintetizar esses dois momentos, que foram muito difíceis. Na sua narrativa, você traz essa dificuldade muito forte. Que aprendizado esses dois momentos trouxeram pra você?
R – Acho que não trouxerem nada de triste, nem de ruim, não. Pelo contrário. Trouxeram a ideia de que é preciso persistir e, principalmente, é preciso conhecer as razões pelas quais você está passando pelo momento difícil. Quando você aprende o que te levou a passar por aquilo e você se motiva a ir em frente, a persistir, a lidar com as coisas de uma perspectiva positiva, desse momento em diante, isso é parte de mim, daqui eu posso construir alguma coisa, o aprendizado que fica é que as coisas são mais viáveis a partir daí. Não quer dizer que todas vão ser, tem coisas que, infelizmente, não vão ser, mas eu acredito numa abordagem persistente e positiva das coisas. Essas coisas não são problemas, elas são parte de um trabalho que você precisa fazer.
Seria também hipócrita dizer que a gente não fica afetado, não sofre, não chora, não reclama. Mas esse é um momento de desequilíbrio, de adequação. Quando esse momento pode ser superado e fica a consciência do que é possível fazer, eu acho que gera um grande aprendizado, gera uma perspectiva pessoal muito construtiva. E foram essas duas coisas que me deixaram em situações… Abordar as coisas de uma forma contínua, sempre buscando entender por que aquilo está acontecendo, e mais positiva que negativa. Não dizendo que as partes negativas não vão acontecer.
P/1 – Felipe, se você pudesse fazer um exercício de abstração, como você vê a Gol de Letra daqui a dez anos?
R – Ah, eu sou ambicioso. Eu a vejo muito grande. (risos) Eu realmente gostaria de ver as ideias, se não a Gol de Letra, em outros lugares, mas eu vejo a Gol de Letra como um centro de referência, porque eu acredito que a função da ONG é gerar tecnologia, não é gerar só atendimento. É gerar tecnologia, pegar o dinheiro que a iniciativa privada ou poder público investem, por esse dinheiro em prática, transformar isso em trabalho e dizer pra ambas assim: “Olha, invistam aqui que isso dá certo. Governo, essa política pode dar certo, é criativa. Empresas, aqui há credibilidade e há potencial de crescimento pra você e pro outro.”
Eu vejo a Fundação como um lugar que vai gerar oportunidades de fazer educação, de fazer assistência social de uma maneira positiva, ampla, efetiva, sustentável. Pelo menos a gente vem trabalhando e estudando formas de fazer assim. Eu não gostaria que a Fundação se transformasse em um lugar só de atendimento, isso tem muita gente que faz. Acho que a gente pode gerar soluções. Se a gente conseguir chegar nesse patamar, eu acho que a gente conseguiu cumprir a nossa missão.
P/1 – E Felipe, eu queria te fazer mais duas ou três perguntas, na verdade. Eu queria que você falasse pra gente, um pouquinho, qual é a importância de um trabalho como esse, de registrar a memória, a comemoração da Gol de Letra nos seus dez anos?
R – Eu acho que a gente precisa dizer pras pessoas que a gente fez e acredita que foi bom, sabe? Passaram muitas pessoas nas nossas mãos, nas nossas casas de atendimento. Acho que a gente precisa contar pras pessoas o que dá certo, a gente precisa manter uma certa esperança viva nesse tipo de trabalho. Acho que todo o trabalho que a gente fez foi feito com tal seriedade que ele se tornou algo bom. Às vezes, as pessoas precisam de uma referência, ou pra continuar acreditando, ou pra acreditar ainda mais, que é possível fazer esse tipo de trabalho. Acho que registrar um trabalho desses é árduo, é pesado, e, ao mesmo tempo, efetivo, sério. Em dez anos é uma forma até da gente dizer pras pessoas: “Olha, tudo o que a gente recebeu foi transformado em ações e essas ações foram positivas. Vejam como foi.”
P/1 – Você falou que conheceu a sua mulher na faculdade e vocês se casaram.
R – Foi.
P/1 – Quando vocês se casaram? Vocês tem filhos?
R – Nós passamos a viver juntos em 2002. Ela já tinha um filho, que na época tinha quatro anos, que agora é meu, nem que ela queira deixa de ser. (risos) Ele está com treze. E nos casamos oficialmente no ano passado, mas vivemos juntos desde 2002.
P/2 – O nome dele?
R – Patrick.
P/1 – O que você achou de ter participado dessa entrevista?
R – Hoje eu fiz uma viagem ao túnel do tempo, né? Quando eu vou falar das histórias da Fundação, quase sempre eu me emociono, o pessoal até brinca comigo. Pra mim, hoje foi uma forma de manter vivo tudo o que eu vivi, realmente. Porque às vezes, o dia a dia vai te deixando esquecer algumas coisas, algumas situações assim. Eu achei muito legal poder contar essa história outra vez e até poder dizer: “Estou contando, mas também estou falando pra mim o quanto é importante continuar fazendo as coisas, o quanto é bom lembrar de tudo o que a gente fez.” E afirmar o quanto eu fui feliz, o quanto eu sou feliz de trabalhar nessa instituição. Remarca o lugar, foi muito bom, muito legal.
P/1 – Tem alguma coisa que a gente não perguntou, alguma coisa que você gostaria de completar?
R – Não sei, não sei te dizer. Eu falei de tanta coisa, né? Parece que é um depoimento super, hiper romântico, mas não. Porque foi realmente um sentimento vivido. Eu não sei, eu não sei te dizer. (risos)
P/1 – E pra finalizar: Qual é o seu sonho?
R – O meu sonho? Tenho alguns… Meu sonho é ver essa instituição funcionando com todo o potencial que ela tem. Vamos falar de Gol de Letra. Porque eu acredito que se ela funcionar, com todo o potencial que ela tem, a gente vai criar uma ideia, uma onda de Educação muito legal. E meu sonho era que a gente não tivesse mais ninguém alienado com relação a sua função social, ao seu estado de cidadão. Meu sonho é que a gente pudesse chegar em um nível de país, de cidade, onde a gente pudesse brigar contra tanta sacanagem que acontece com a gente. O meu sonho é esse.
P/1 – A gente queria te agradecer por você ter participado do projeto, em nome da Fundação Gol de Letra e do Museu da Pessoa.
R – Valeu mesmo, foi muito legal.
P/1 – Foi muito bonito, hein? (risos)
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