Eu me chamo Sérgio Vaz. Nasci no dia 26 de junho de 1964 em Ladainha, Minas Gerais, norte de Minas, no Vale do Mucuri. Minha finada mãe chamava Maria das Dores Vaz. Ela era mascateira, fazia de tudo, vendia roupa do Paraguai, tinha bazar, minha mãe era comerciante. O meu pai é vivo, ele é inspe...Continuar leitura
Eu me chamo Sérgio Vaz. Nasci no dia 26 de junho de 1964 em Ladainha, Minas Gerais, norte de Minas, no Vale do Mucuri. Minha finada mãe chamava Maria das Dores Vaz. Ela era mascateira, fazia de tudo, vendia roupa do Paraguai, tinha bazar, minha mãe era comerciante. O meu pai é vivo, ele é inspetor de alunos de uma escola pública. As minhas memórias são muito poucas de lá, acho que todas as memórias que eu tenho de estar vivo é de São Paulo mesmo, já na periferia de São Paulo. Nessa época minha mãe não era comerciante, minha mãe era dona de casa. E meu pai trabalhava numa loja, tipo um bazar. Ele era tipo vendedor de um bazar. O meu pai se separou da minha mãe, então eu tenho um irmão por parte de mãe. Por parte de mãe e pai somos três e meu pai casou novamente e tenho mais dois irmãos. Somos seis irmãos. Só nós três, pai e mãe e os meus dois irmãos viemos para São Paulo.
Nós chegamos na Cidade Dutra, ficamos um pouquinho, bem pouquinho lá, e logo em seguida já fomos pro Jardim Guarujá. No começo da rua tinha tipo um cortiço, a gente morou lá, e depois, logo em seguida meu pai comprou essa casa. Ele entrou na Bombril, conseguiu fazer um financiamento e comprou essa casa, três cômodos. As lembranças mais loucas que eu tenho são as de criança porque eu jogava bola o dia inteiro, que é uma coisa que eu sempre adorei. As brincadeiras eram coletivas, esconde-esconde, pega-pega, estrela-nova-cela, bolinha de gude, pião, pipa, então eu tive uma infância, como é que eu posso dizer? Imageticamente maravilhosa.
Eu comecei a ler por causa do meu pai, meu pai trouxe esse hábito. Na minha casa nunca faltou comida e nem livro, por menor que fosse a nossa casa, por menos privilégio que tivesse, nunca faltou. E a primeira lembrança que eu tenho é ler um livro chamado “Eram os Deuses Astronautas?”, do Erich von Däniken. Quer dizer, no lugar onde a miséria era muito comum, a pobreza, eu gostava de livros, olha que louco. Eu estou falando do começo dos anos 70, no final dos anos 70. Na periferia, não tinha nem asfalto ainda e já gostava de ler. Eu queria ser jogador de futebol, aliás todo mundo queria ser. E não era pelo dinheiro. Porque o futebol pra nós tinha uma outra magia. Aliás, não dava dinheiro, você vê, nem o Pelé ganhou dinheiro. Porque a gente adorava o futebol, idolatrava os caras.
Eu comecei a trabalhar com 12 anos. Comecei a vender sorvete e teve uma época que eu fui engraxate. Eu já vendi chocolate em circo, naqueles circos de bairro, não tinha coragem de pular a lona porque tinha medo do meu pai, imagina se o cara me pegar e levar pro meu pai? Pai antigamente era pai, tinha uma autoridade diferente do que tem hoje. E eu comecei a trabalhar. E o meu pai comprou o bar que hoje é o Zé Batidão. Eu comecei a trabalhar com ele. Nesses 12 anos eu trabalhei sábado, domingo, feriado, lá era minha senzala. Eu fazia de tudo, abria o bar, servia. Porque quando meu pai tinha aquele bar, chamava-se Bar e Empório Guarujá, era uma época que tinha empório, o nome não era bar, era empório, porque era dividido praticamente no meio, uma linha imaginária, dessa parte tinha os secos e molhados: feijão, arroz, lata, sardinha, onde as mulheres iam de dia. E desse lado ficava o boteco quando os homens vinham depois do trabalho. Naquela época a maioria dos homens não assistiam novela, então eles passavam no bar, até dar o tempo das mulheres assistirem novela, e ir pra casa. Era um happy hour. E também não ficava até de noite, de madrugada, por conta da violência. Então era um happy hour mesmo. Periferia sempre foi violento. Depois das dez ninguém se arriscava naquela época, era muito difícil. Nós estamos falando dos anos 70, isso é ditadura militar. A gente marchava na escola, pra você ter uma ideia. Eu só tive consciência disso quando eu fui servir o Exército em 83. E eu lembro que eu levei pro quartel uma fita da Simone cantando “Para não dizer que não falei das flores”. Coloquei a música, estou na cozinha mexendo nuns negócios, coloquei a música e estou cantando junto bem alto. “Vem, vamos embora que esperar não é saber” me entra um sargento louco: “Filho da puta, comunista do caralho! Essa porra de revolução!”, ele foi falando e eu fui gostando. “Essa música não sei o quê”, eu falei: “Pô, mas tudo nessa música?” “Está tudo aí”. E assim como no filme do Carteiro e o Poeta eu descobri as metáforas, quando o Ruoppolo descobre as metáforas eu descobri as metáforas ali, foi ali que eu me apaixono pela poesia. E eu descubro que a poesia também tem essa função de acordar o povo, de lutar pelo povo e de falar sobre o racismo, sobre a violência. E foi paixão à primeira vista. Eu acho que eu sou um cara panfletário, descaradamente panfletário. Eu escrevia antes, mas eu nunca escrevia como poeta, aquilo não me cabia. Eu não me imaginava escrevendo, era uma coisa. Eu escrevia, mas era como se fosse, como eu posso dizer? Como se fosse um surto literário, não era: “Vou escrever um poema, vou parar aqui, vou elaborar, isso aqui rima...” Não, escrevia coisas. E na maioria das vezes eu rasgava, mostrava às vezes para uma menina, tinha uns cadernos de pergunta e resposta, não sei se você lembra antigamente, que rolava nas salas de aula, um questionário.
Eu servi com 19 e saí com 20. Continuei a trabalhar no bar do meu pai, nessa mesma época eu trabalhava no banco e no bar do meu pai. Trabalhei no Banco Bradesco e no final de semana trabalhava no bar do meu pai. Eu fui auxiliar de escritório, escriturário. E depois eu fui caixa.
Eu fui no PC do B, parece, eu não lembro agora, mais tarde surgiu o PT. Eu não cheguei a filiar, eu comecei a participar de algumas reuniões, eu fui, eu não gostei muito. Ao mesmo tempo que eu queria aquilo eu também queria jogar bola, você entendeu? E a reunião era sempre num sábado que eu jogava bola no time. Nada era maior que o futebol, nada. Nada, nada. Na minha vida nada foi maior do que o futebol, nem mulher, nada, nada. Três anos, trabalhei no banco, pedi a conta. Depois eu saí e fui trabalhar de auxiliar de escritório da Filtros Logan, trabalhei três anos fui mandado embora porque eu fiz greve, eu trabalhava no escritório, a fábrica fez greve e eu jogava bola no time da fábrica, o desafio ao galo, pra ser solidário também participei da greve e me mandaram embora. Depois eu trabalhei também de auxiliar de cobrança, eu saí de e eu montei um bar. Eu fui morar em Taboão, que a minha mãe morava, eu quase não via a minha mãe e fui morar lá. Eu trabalhei como assessor parlamentar durante oito anos de dois candidatos.
A Cooperifa aconteceu de quarta-feira porque era o único dia que tinha disponível no bar que o cara deu. Quando eu e o Pezão fomos falar com o cara em Taboão pra liberar o bar pra gente ele falou: “Tudo bem, só que não pode ser no domingo, nem no sábado, na sexta tem o samba, na quinta tem não sei o quê. Nós temos a quarta”. Eu já comecei a fazer texto. Eu já fazia a letra, já fazia poema, eu desencadeei, acho que estava represado. Acho que todo o tempo eu escondi o poeta num armário, eu queria escrever música, queria escrever texto, frase, haikai, eu endoido, eu acho que eu sou escritor. E esse foi o maior erro que eu cometi na minha vida.
Primeiro livro de 1988. Tinha de 24 pra 25 anos. Eu lancei no Bar do Zé Batidão, que era numa rua embaixo, eu tinha tanta noção do que era o lançamento do livro que teve salada de maionese com frango frito! E eu lembro de um dos poucos que compraram meu livro, falar: “Vou comprar pra te ajudar. Que fique bem claro! Não pense que eu gosto dessa merda aí, não!”.
O nome do livro é “Subindo a Ladeira Mora a Noite”, que é em homenagem àquela ladeira que tem no bairro. Poemas. Sempre poemas. E essa fase eu escrevo poesia de protesto, já inspirado no Pablo Neruda, no Ferreira Gullar, no João Cabral de Melo Neto, enfim, eu acho que eu sou um cara revolucionário, como se dizia na época. O outro livro foi já em 91, se não me engano.
O sarau tem vários motivos. Antes do sarau eu já fazia esse projeto que eu faço hoje chamado “Poesia Contra a Violência”. Eu já fazia antes da Cooperifa. E na época da Cooperifa em 2000 eu estava lendo sobre a Semana de Arte Moderna de 22. Aquela coisa, aquele movimento e tal. E eu entro com um amigo meu, buscar umas camisetas, numa fábrica abandonada onde meu amigo é caseiro lá. Eu entrei na fábrica e falei: “Nossa, que barato louco, mano! Dá pra fazer um teatro aqui, um teatro ali”, eu influenciado já pela Semana de 22. Aí eu falei pro cara: “Ah mano, eu queria fazer um negócio aqui” “Pode fazer, mano” “Não tem problema?” “Não tem problema, não”. Eu fundei a Cooperifa. Reuni um monte de cara, fui chamando um cara que tocava samba, chamei o cara que tocava teatro, fui chamando, fui na secretaria pedir som. Falei: “Meu, você tem quadro?”. O nome perifa de periferia. E cooperativa porque eu nem sabia o que era uma cooperativa. Eu achava que tinha um nome legal pra isso, eu achava que cooperativa era as pessoas cooperando umas com as outras, mas existe uma, como é que eu posso dizer? Legalmente existe um conceito. Fizemos várias apresentações. Foi de dia, à noite. Pra você ter uma ideia, isso tem 15 anos, quem grafitou as paredes foi o Cobra. A primeira ação que eu fiz. E o tema era “Chega de M”, que era chega de merda. O dono da fábrica, Luís Bahia, ele abriu pra nós lá. E parou, eu fiquei muito triste. Um dia, eu não conhecia o Pezão, Marco Pezão foi o cara que fundou o sarau comigo. Eu lembro eu falo assim: “Só que quarta-feira só vai entrar quem gosta de poesia. Você tem que me dar essa liberdade de falar: ‘Ó pessoal, sem barulho’”. E nós criamos. E não tinha nem nome de sarau, não tinha sarau ainda, era só um encontro. Chamava Garajão, o bar. O sarau da Cooperifa vai fazer 14 anos. A Cooperifa já faz uns 15, 16 anos.
A gente falava às vezes dez poesias. Pra você ter uma ideia teve noite com 13 pessoas, a gente levando namorada, filho, filha, tinha 13 pessoas. Mas eu sempre fui um cara muito encrenqueiro. Infelizmente eu tenho esse defeito, eu gosto de uma confusão. Na época eu gostava mais porque você tem mais saúde. E eu sempre fui muito chantagista, eu ligava pros meus amigos, eu falava: “Pô, vocês falam que gostam do meu trabalho, que não sei o quê, que não sei o que, mas estamos fazendo isso”. E eu praticamente ameaçava as pessoas no começo pra ir. E o Pezão trabalhava num jornal de Taboão da Serra, ele fazia as matérias. E a gente começou. Eu trombava com os caras: “Meu irmão, pá, não sei o quê”. E o cara: “Eu vou lá, vou lá, vou lá”. E assim foi indo, um pouco de pressão, um pouco de publicidade. Ficou mais conhecido quando Marcelo Rubens Paiva foi visitar. Ficou sabendo e tal. Ele fez uma matéria de meia página no jornal Cotidiano da Folha, com endereço e tudo, as pessoas começaram a se interessar. E não parou mais de chegar gente. Pessoas chegavam vindo da senzala como se estivessem vindo para um grande quilombo. Vinham já na pegada de falar: “Meu, esse é o lugar”. Então logo cedo o lugar já se projetou como um lugar irreverente, um lugar que não ia admitir ser a favor de qualquer tipo de governo, que ia falar sobre o racismo, que ia falar sobre a violência, que ia falar sobre a pobreza. Desde sempre a gente sabia disso. Começou em Taboão da Serra.
No começo era o mestre de cerimônias, ficava eu e o Pezão, às vezes o Pezão ficava mais nas fotos e tal, mas eu era mestre de cerimônias na época. Eu lembro do estranhamento que era a gente fazer o sarau. Eu lembro das pessoas falarem: “O filho do seu Zé está fazendo um negócio de uma igreja”, as pessoas não entendiam muito o que era. Às vezes tinha uns caras, os malandros da quebrada iam lá, a gente pedia silêncio, os caras quebravam copo, ficava puto, não entendia: “Que é isso, cara, porra, fazer silêncio?”. Ói que louco! Eu acho que acontece a autoestima. Eu acho que acontece na pessoa tipo assim: “Como é que eu podia estar fora disso? Como é que o governo nunca me falou disso? Como é que a escola nunca me falou disso? Isso é arte, isso é praticar arte”. Uma coisa é você consumir, outra coisa é você praticar.
Tenho quatro livros antes da Cooperifa, que a Cooperifa veio no ano 2000. A minha produção aumentou por causa dos saraus. Você fica estimulado, você quer escrever, já que tem alguém pra ouvir. Porque a gente estava trabalhando com o livro e ninguém lia o livro. Então a gente começou a fazer a gentileza de ler pras pessoas, então isso te estimula a escrever mais. Eu comecei a escrever mais. Só que em contrapartida, em vez de crescer minha poesia, cresce o meu ativismo. E o ativista engole o poeta, você entendeu? Então, muita gente compra o meu livro mais como souvenir do que propriamente pra ler minha poesia. Não sei se eu consigo me fazer claro. Virei um ativista, o ativista virou maior do que o poeta. Foram quase todos os saraus de São Paulo em Buenos Aires. Foi magnífico, eu adorei. Eu fui em Berlim, Colônia, em Hamburgo falar de literatura periférica nas faculdades que falam a língua portuguesa, luso-alemã, estive por alguns países. Já fui pra Paris, já fui pra Inglaterra, já fui pra Espanha, fui pra Itália.
E eu escrevi um livro chamado: “A Poesia dos Deuses Inferiores”, que era praticamente contar essas histórias da periferia. E eu quero fazer esse livro ainda. Eu já publiquei algumas, mas eu tenho várias. Eu quero fazer um livro só com essas histórias, contar essas histórias de uma forma poética. Eu tenho um livro que eu vou lançar agora, acho que em julho, agosto, estou vendo com a Global, já está tudo certo. Tenho Poesia Contra a Violência, que toda semana eu vou numa escola pública. Estou com o projeto dos lambe-lambes na favela, já comecei agora na Rocinha, no Rio de Janeiro. Fiz Heliópolis, fiz Paraisópolis, fiz Favela Monte Azul, vários lugares, que é colocar poesia nesses lugares. Tenho meus bate papos, minhas oficinas. É basicamente isso.Recolher