Projeto Kombiblioteca Poética
Depoimento de Leandro de Jesus (Berimba de Jesus)
Entrevistado por José Santos e Jonas Worcman
São Paulo, 30/04/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV008_Leandro de Jesus (Berimba de Jesus)
Transcrito por Mariana Wolff
P/1 – Boa tarde, Berimba, queria começar a entrevista pedindo para você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Boa tarde, meu nome é Leandro de Jesus. Nasci em 1981, no dia 2 de janeiro e nasci aqui em São Paulo, na maternidade São Paulo.
P/1 – E você podia falar o nome dos seus pais e o que eles fazem de atividade?
R – Sim, o nome do meu pai cara, eu não vou lembrar o nome dele não, porque ele não participou da paternidade, da minha criação. O nome da minha mãe é Júlia Rosa de Jesus, ela é doméstica e baiana e quanto a pai, eu acho que eu tive vários, várias referências, teve meu tio Garino que foi quem me criou a partir dos dez meses de idade, onze meses de idade e até mesmo meu padrasto, que foi com quem minha mãe teve mais dois filhos com ele. Acho que são de repente, essas duas figuras.
P/1 – E fala mais da sua mãe, como é que é o temperamento dela.
R – Minha mãe, ela veio para São Paulo muito jovem, ela veio para São Paulo com 22 anos de idade. Ela sempre foi criada na roça e pelo o que me parece, veio para São Paulo porque queriam casar ela na Bahia com um cara de 60 anos de idade e a tia Maria, que já trabalhava aqui, vendo a situação, descolou o dinheiro da passagem para ela, ela veio.
P/1 – Ela veio de que cidade?
R – De Poções, que é sudoeste da Bahia. E a minha mãe é uma guerreira, minha mãe é uma figura ótima, é aquela mãe que o que ela pode dar, ela deu e acho que principalmente, dignidade, de estar sempre com a cabeça em cima, não deixar nada para trás. Acho que é basicamente isso. Uma figura… acho que eu sou o que eu sou hoje, acho que dependeu muito dela para eu ser o que eu sou hoje, questão de não negar trabalho, de se tiver que limpar banheiro para poder sobreviver, limpar, sabe? Acho que é basicamente isso.
P/1 – E ela veio para cá e o que ela fez de trabalho?
R – Cara, ela foi doméstica a vida toda. Ela veio para cá com esses 20 e poucos anos de idade e acho que na sequência, engravidou, na sequência mesmo. O meu pai, ele é primo dela, porque nossa família é muito grande, a gente fez uma contagem só dos nossos avós maternos, tinha mais de 500 pessoas, saca? Porque eles tiveram 16 filhos, criaram 14, desses 14, 11 pelo menos fizeram 10 filhos pra cima, e a minha mãe engravidou do meu pai que é primo dela, que a minha avó, a Josefina… Josefa… é que é tanto “Jo”, o sobrenome dela é Ursina, eu acho lindo o sobrenome, ela é sobrinha do meu avô materno, é uma coisa muito louca…
P/1 – A sua avó é sobrinha do seu avô?
R – Isso! Minha avó paterna é sobrinha do meu avô materno (risos), do Jovelino. Vai misturando. E ela chegou, engravidou e pelo o que ela me contou, ela tentou não me mandar para Bahia por essa questão mesmo de dignidade, de falar: “Pô, eu fiz, eu seguro a bronca”, foi uma coisa que aconteceu com o meu pai, parece que ela perdeu a virgindade com ele e ele chegou e disse: “Não é meu, se você quiser continuar comigo, tira”, sabe, ela meio que assumiu a bronca sozinha e nesse lance de tentar assumir a bronca sozinha, ela foi trabalhar numa casa de família, parece que ela trabalhava para um senhor como doméstica, cuidando dele, etc. e tal e comigo lá na casa e parece que rolou que quando eu comecei a andar com uns dez, 11 meses, a primeira coisa que eu fazia era apertar os botões da televisão, do rádio, dessas porcarias todas e o cara sempre chamando a atenção. Parece que um dia, chamou atenção comigo e tudo mais por conta de estar apertando os botão da televisão, ela pegou as coisas dela e foi para Bahia. Chegou para esse meu tio, que é o tio Garino, que ela tem como se fosse uma espécie de pai também para ela, um segundo pai, esse ano a gente foi para a Bahia junto, ela estava contando que estava sonhando com a infância, e ela estava sonhando que estava saindo de um lugar, no ombro de uma figura e que essa figura aí, ela veio descobrir com a tia Zezé, que é a mulher desse meu tio Garino que essa figura era o tio Garino. Quando ela menina, eles moravam na Zona da Mata, meu avô morava na Zona da Mata, só que eles compraram aquela terra ali que era na região de Poções, que é a Fazenda Goiabeira e aí, para eles saírem de lá, dessa Zona da Mata para lá, o tio Garino meio que levou ela no ombro dele, então ela tem um carinho enorme por esse meu tio aí que faleceu em 2008. E aí, ela chegou para ele, para tia Zezé e falou: “Olha, trouxe esse neguinho aqui para vocês criar” (risos), e aí eu fui morar com esse meu tio Garino e a tia Zezé. E o tio Garino, eu chamei ele de pai, agora não chamo mais, perdi um pouco isso quando vim morar em São Paulo e fui morar com o meu padrasto, aí eu via também os meus irmãos chamando ele de pai, acabei chamando ele de pai também.
P/1 – Então quer dizer, ela deixou lá e voltou para São Paulo?
R – Voltou para São Paulo. Aí, ela voltou para São Paulo, a diferença de idade minha para o meu irmão mais velho, Renato, são acho que três ou quatro anos. Aí, ela meio que começou a namorar o Davi, que ela trabalhava de doméstica no prédio e ele de porteiro, aí ela começou a namorar ele e tal, engravidou dele, ele arrumou um trabalho de zelador na mesma rua e os dois foram morar juntos, aí tiveram o Renato e a Regina. E aí, quando eu tinha uns cinco anos de idade, seis anos de idade, eu voltei para São Paulo para vir morar com eles.
P/1 – Então, vamos falar um pedacinho ainda da Bahia. Fala um pouquinho então dos seus avós maternos aí que você falou que é uma família muito grande, né?
R – O velho Jovelino, né? O véio Jovelino é uma figuraça, um negão de dois metros de altura e antes, tem o meu bisavô, que é o Bento. O Bento José dos Reis, não sei, uma coisa assim, sabe? O Bento foi o primeiro negro liberto da família e aí, isso em 1800 e bolinhas, meu avo é de 1906, era a certidão de nascimento dele e acho que eu me perdi um pouco no meu bisavô… mas…
P/1 – Ele é o primeiro liberto que pode ter sido em 1865 ou 88…
R – É, eu acho que deve ter sido mais para 88, porque se o meu avô é de 1906, então, é provável que ele era jovem… e era família grande, também, eles… meu avô conta que eles faziam vários rituais tanto da Folia de Reis, tanto para os Finados, eles sempre estavam tocando tambor, que é uma coisa que se perdeu muito na família, que ficou mais para o lado da Folia de Reis, mesmo, né? E o véio Jove, cara, ele era uma figura séria, eu morei um pouco com ele também, porque o Jovelino e a Nesina, eles eram mais velhos, eu não lembro, eu acho que ele morreu com uns 80 e poucos anos de idade, sabe? E ele meio que assumiu o filho de um filho também, que era o Manoel, que tem a minha idade, o tio Ribeiro meio que arrumou uma amante, amante teve um filho, ele pegou e deixou o Manoel na porta dele lá. E aí, quando eu morei com o meu avô, o passatempo dele era… aposentado, era só fazer cercas, né? Então a gente tirava a cerca de um lugar hoje, daqui quatro, três meses, a gente mudava essa cerca para outro lugar, o cara vivia mudando de cerca, inclusive, a gente está com a terra lá agora, que a gente comprou que era a terra que era dele e tenho vontade de morar lá. E outra coisa que ele fazia era sela de cavalo, laço, as percatas, os chinelos, tudo que ele fazia… lembro… uma das coisas legais de lembrar dele é que ele faz um carro de madeira pra gente com rodas e tudo mais, a nossa brincadeira da infância, minha e do Manoel, quando a gente morou junto lá, era descer as ladeiras de terra com esse carro. Ele foi sempre aprimorando o carro, colocou freio, colocou volante, era um carro bem legal. E aí, eu lembro que as ladeiras eram gigantes, mas vendo hoje, as ladeiras são pequenininhas (risos).
P/1 – Você morava então, na cidade mesmo?
R – Não, morava na roça.
P/1 – Morava na roça?
R – Na roça.
P/1 – Que é próxima a Poções.
R – É entre Poções e Boa Nova, tem outra cidadezinha que é Boa Nova, Poções é a referência, porque é uma cidade que atualmente, deve ter 50, 60 mil habitantes e Boa Nova é uma outra cidadezinha que tem cerca de dez, 14 mil habitantes.
P/1 – E como é que é? Goiabeira que chama?
R – Fazenda Goiabeira.
P/1 – Então, conta desse período da infância, como é que era lá na fazenda?
R – Então, dessa primeira infância que é dos dez, 11 meses que eu fui para lá até os cinco, seis anos que eu passei lá, eu não tenho muita lembrança, eu lembro das festas de Reis, que o meu tio já fazia nessa época…
P/2 – Como era?
R – É a mesma coisa que é hoje, cara, é a galera simples, pessoal saía… você foi em Poções, você viu uma galera até vestida de palhaço, fazendo a Folia de Reis, mas lá, era uma galera que saía dia 31 para o dia 1º, a galera que ia com a melhor calça, uma calça jeans, um sapato, com uma camisa branca, normalmente e um chapéu de palha que era a única coisa que era enfeitada e um lenço que eles usavam aqui. E pandeiro, tambor, matraca, viola e sempre cantando. Uma das coisas que eu também lembro dessa primeira infância foi o meu primeiro velório também, eu lembro que com uns quatro, cinco anos de idade, eu fui no meu primeiro velório de uma criancinha também que é uma coisa que não peguei… o pessoal fala de morte para mim, eu falo: “Pô, acontece”, sabe? “Pode ser em alguma hora”, o pessoal fica chocado que as pessoas morrem, vão fazer falta e tudo mais, acontece! Acho que ir nesse primeiro velório me preparou para ir para vários outros que teve, sabe? Inclusive, eu vou voltar um pouco, eu passei até os cinco, seis anos lá, depois eu vim para São Paulo, fiz até a terceira série, que se eu não me engano, é até a segunda série… é, terceira série, com oito anos, nove anos, eu voltei para a Bahia para morar não com esses meus tios e nem com o meu avô, foi para morar com a minha tia Maria, que a tia Maria sempre trabalhou aqui em São Paulo e sempre quis voltar para Bahia, aí na Bahia, ela arrumou um casamento com o seu Miguel e casou com ele, compraram uma terrinha, viviam ali da pequena agricultura, umas cabeças ou outras de animais ali, tal, e ele aposentado e ela meio que se aposentou também. Aí, eu fui morar com a tia Maria, já era na Fazenda Lagoa da Pedra e putz, eu me perco bastante, é bastante coisa, né?
P/1 – Você veio para São Paulo, ficou três anos aqui e voltou…
R – Sim.
P/1 – Mas você ficou na casa da sua tia até quando?
R – Fiquei até os 13 anos de idade.
P/1 – Então, essa é uma época em que você já tem mais memórias?
R – Muita memória!
P/1 – E de que você brincava lá?
R – Matar passarinho.
P/1 – Ah é?
R – A gente caçava, bolinha de gude, tinha aquela brincadeira das três marias que a gente… acho que é três marias, não me lembro, sabe, de você jogar…
P/1 – A pedra?
R – As pedras, tinha essa brincadeira. A gente brincava de ser fazendeiro, maracujá do mato era mato, você ia para o meio do mato, tinha um monte de maracujá, então a gente usava vários tamanhos de maracujá para representarem o boi, o garrote, a vaca, a gente fazia todo um cercado de gravetos que representava os currais da fazenda, a gente trocava bois, os garrotes entre um e outro, era mais ou menos isso.
P/1 – E vocês caçavam com o que, com atiradeira?
R – Com badoque, chamam de atiradeira, a gente chama de badoque.
P/1 – Badoque.
R – Mas eu não matava muito passarinho, não, eu era meio ruim, porque os meninos que foram criados lá, eles… como se fala? Eles já tinham a manha desde cedo, eu tive esse curto período que eu sai de lá, eu perdi um pouco dessa coisa que eles tinham, de viver sempre ali no meio do mato, eu fui para a cidade. E eu era péssimo, cara, atirador. Fui melhorando com o tempo, mas era péssimo! Eu lembro que a minha primeira caçada, minha tia foi na cidade, comprou um badoque para mim e tal, essa coisa toda, acabou que o meu badoque era melhor do que o dos meninos, porque enfim… e os moleques me deram dois passarinhos que eles mataram para eu chegar em casa e dizer: “olha, matei dois passarinhos” (risos) E essa primeira infância, essa segunda parte aí, eu estudei na roça, que foi a coisa que eu achei… acho que foi maravilhosa, eu fiz a terceira e fiz duas vezes a quarta série na roça.
P/1 – E como é que era uma escola rural naquela época?
R – Precária. A professora, ela tinha até a quarta série, a professora, a Maria da Lurdes, fui visitar ela esse final de ano, ela tinha até a quarta série e ela ensinava da primeira a quarta série.
P/1 – Ah, que é turma única, né?
R – Turma única e ela, mãe de três filhos, eu me lembro na época que um era meio que de colo, recém-nascido, sabe, que foi crescendo com a gente nesses três anos e ela além de dar aula para umas 30 crianças, pelo menos, ela fazia a merenda e ainda alimentava os filhos dela e toda a molecada e ainda ensinava. Eu lembro que eu cheguei, eu não sei se eu tinha o mesmo nível que ela ou um pouco mais, está ligado, ela me colocou para ajudar a ensinar também.
P/1 – Você aprendeu a ler em São Paulo?
R – Eu aprendi a ler em São Paulo, então eu lia melhor do que todos ali dentro, até mesmo do que ela, então ela me colocou para ajudar ela e aí, eu fiz a quarta série lá, como eu não… a quarta série é uma grande história na minha vida, porque eu repeti a quarta série. Lá, eu fui obrigado a fazer duas vezes porque não tinha transporte para a cidade para eu fazer a quinta série e quando eu voltei para São Paulo, minha mãe me perguntou se eu queria fazer a quarta ou a quinta série, eu resolvi fazer a quarta.
P/1 – Ué! Gostou mesmo, hein!
R – E aí, eu repeti a quarta série aqui em São Paulo (risos).
P/1 – Então, você fez quatro vezes a quarta série?
R – Quatro vezes a quarta série.
P/1 – Quer dizer, na Bahia, porque você não tinha que continuar na escola, mas não tinha transporte…
R – Não tinha transporte, não tinha como ir para a cidade.
P/1 – Fazia lá, e aqui tinha um desnível, por isso que você tomou pau?
R – Eu acho que teve um desnível grande, cara, eu acho que eu me atrasei, saca? E aí chegou aqui, eu não conseguia acompanhar e também, o bullying também, sei lá, primeiro, eu fui chamado de baianinho, foi chegar na escola e sair na mão, brigar pela primeira vez, sabe? Arrumar treta, os moleques já arrumarem treta, sair na mão? Foi chegar no… exemplo, eu era chamado de cabeça de ampola, saca? Eram umas coisas assim… eu morava no apartamento… eu lembro que foi a única vez que eu fui para a psicóloga na vida, mas eu morava numa fazenda, eu andava de jegue, de cavalo, a pé, de bicicleta, nadava no rio, cheguei aqui em São Paulo, fui morar num apartamento de um dormitório com um quarto… um dormitório, sala, banheiro e cozinha em seis pessoas.
P/1 – Seis pessoas?
R – É, sabe, no último andar, não podia sair para rua, porque essa coisa de proteção também de mãe, tá ligado: “O que você vai fazer na rua? Fica em casa”.
P/1 – E em que bairro que vocês moravam?
R – Pô, morei num bairro legal, cara, morei aqui em Pinheiros, ali na Rua Arruda Alvim, do lado das Clínicas, uma rua depois da Oscar Freire. Saía final de semana para ir para pracinha…
P/1 – Deixa eu entender. O seu padrasto era…
R – Zelador.
P/1 – Trabalhava no prédio.
R – Era zelador.
P/1 – Então, eles têm aqueles apartamentos no alto para os funcionários morarem, é isso?
R – É.
P/1 – E eram dois irmãos…
R – Eram dois irmãos, o Renato e a Regina, a Cristina veio logo na sequência que eu vim para São Paulo, porque os pais dela morreram atropelados, aí o meu padrasto, como era o tio dela, único tio aqui em São Paulo, assumiu a paternidade, adotou ela, então ficamos…
P/1 – Quatro crianças…
R – Quatro crianças e dois adultos e de vez em quando, tinham uns agregados que chegavam da Bahia também, chegava de Minas, sei lá: “Preciso passar duas, três semanas aí até arrumar emprego”, sabe?
P/1 – Berimba, só um pouquinho, vamos voltar um pouquinho para Bahia, porque realmente, é uma experiência única, né? Então, você nadava no rio, andava a cavalo…
R – Ia para roça, essa galera da minha família tem uma coisa assim, fala: “Trabalho infantil”, saca? O tio Garino, por exemplo, todo mundo tinha que ajudar em casa, eu acho que é uma coisa, inclusive, da família numerosa, era uma dessas questões, de todo mundo ajudar na roça, na mão de obra. O tio Garino teve 14 filhos, quando eu fui morar, eu era o décimo quinto com ele e ele tinha a filosofia do seguinte, criança até oito anos não pega na enxada, pega pra brincar, se quiser, sabe, mas de cinco anos para cima já tem que ir para roça ajudar, então não vai pegar na enxada, mas por exemplo, ele plantava fumo, então as crianças de cinco anos pra cima que não pegava na enxada ia para roça brincava, tá ligado, mas tinha a obrigação de tirar as lagartas do fumo e das folhas de fumo, onde tivesse lagarta tinha que eliminar as lagartas porque nunca usou agrotóxico no fumo dele, principalmente.
P/1 – E como é que era essa história, pegava na mão a lagarta?
R – Na mão e jogava no chão e pisava. Tanto que eu não tenho medo de barata, rato… uma das coisas que eu lembro da infância também, morando com o meu avô, apareceu um rato dentro de casa, esse rato do mato, minha avó foi e mesmo matou e dez minutos depois, estava no forno de lenha assando, sabe? Outra coisa da minha avó, ela sempre teve essa coisa dos remédios naturais, coisa do mato e tem essa coisa da tartaruga, do cagado, a gente achou um cagado, ela fez eu e o Manoel abrir o cagado, foi uma experiência foda porque a gente terminou de abrir o cagado, o coração ainda estava batendo, saca, do bicho, a gente ficou: “Vó, o coração está batendo” “Deixa disso, moleque”, aí ela fez um remédio lá para bronquite, uma coisa assim, sabe? Enfim…
P/1 – E eles contavam histórias para vocês?
R – Não. O tio Garino era um bom contador de histórias, ele contava bastante história, o tio Garino, mas meu avô não, meu avô, nem minha tia. O tio Garino contava muita história porque ele tinha essa coisa da Folia de Reis, e essa coisa muito católica também, então acho que lembrando agora das histórias, todas as histórias voltadas a esse universo do catolicismo, sabe, das representações dele da Bíblia, sabe, então tinham várias histórias desse mundo aí. E enfim…
P/1 – É uma vivência muito rica, né?
R – Eu acho que sim, acho que eu sou poeta inclusive, por conta disso, desse meu tio Garino, por causa da Folia de Reis. O meu primeiro poema eu escrevi quando eu tinha uns 12 anos de idade e foi por conta disso, dessa influência dele, ele sempre chegava cantando as toadas dele, não sei como poderia chamar, de toda, de ladainhas, as cantigas de Reis, tem uma que é para mim, que é bem besta, mas ele fala que eu sempre perguntava da minha mãe e aí, é mais ou menos assim: [cantando] “Ô letra I sai da janela, sua mãe tá boa? Tá. Dê lembrança a ela”, essa é só isso.
P/2 – E para quem não sabe o que é a Folia de Reis, você pode falar o que é?
R – A Folia de Reis? A Folia de Reis é uma manifestação católica que é em homenagem aos Três Reis Magos, esses reis mensageiros que foram levar os presentes para Jesus Cristo e tudo mais. Na minha família, pelo que a Biblia fala, os mais velhos falam, já tem há pelo manos uns 150 anos, vai desse meu bisavô Bento, tem o veio Pompílio que fazia Folia de Reis e o pessoal foi herdando e dando continuidade, né, cara! É uma homenagem meio que ao nascimento… anunciar o nascimento de Jesus, a renovação. Então o que normalmente fazem? Tem Folia de Reis que só comemora no dia 6, dia 6, eles pegam e fazem uma festa para homenagear Santo Reis, e tem outras folias que andam seis dias e seis noites cantando de casa em casa anunciando a chegada do Deus menino, que é no caso, Jesus Cristo. E aí, no sexto dia, eles vão pedindo esmolas também nessas casas que eles vão passando e aí, no sexto dia, eles fazem uma festa que é uma reza, é uma festa/reza para o Deus menino, para Jesus Cristo com comida, samba, tudo à vontade para galera comer. Por exemplo, na minha família, vir comemorar o Natal aqui, sabe, de ter ceia de Natal, sabe, nunca teve ceia assim: “Natal, vou fazer uma ceia de Natal”, nunca teve uma ceia de Réveillon, sabe? Sempre teve o dia 6, o dia 6 era o nascimento, o dia de festejar. Aí, a gente passava o dia 31 por exemplo, até hoje é assim, o pessoal não faz uma ceia, o pessoal serve uma janta que é só para os foliões, só para quem vai sair caminhando, essa janta, se as crianças quiserem comer comem, mas os adultos que não forem participar não comem, e eles saem seis dias e seis noites, aí no dia 6, quando eles voltam, aí é servido um almoço. Esse ano que passou, eles mataram boi, mataram um bode, mataram um porco, e é servido vários panelaços ali para a comunidade, aí colam 400 pessoas para comer, é um negócio grande.
P/2 – E na sua infância você foi em alguma Folia acompanhando alguém?
R – Cara, na infância, eu acompanhava meia dúzia de casas, mesmo porque o ritmo lá era outro, cara, oito horas da noite você está dormindo. Então para uma criança que você passa marinando o dia inteiro, indo para o rio, caçando, brincando, sabe, fazendo uma porrada de coisa, acompanhar a Folia de Reis fica difícil, é outro ritmo, né? A minha família, eles fazem essa folia e num determinado momento, o tio Gerson que é um dos irmãos, ele começou a fazer a folia para São Sebastião e isso criou um conflito grande dentro da família, porque o tio Gerson foi uma das pessoas que ainda manteve o candomblé como manifestação dentro do próprio catolicismo dele ali, porque ele é católico, sabe, mas bate o tambor. Aí, ele foi fazer uma Folia para São Sebastião, isso causou uma coisa na família, cara, porque é o macumbeiro, tá ligado?
P/2 – Mas São Sebastião é católico.
R – É católico, mas o pessoal interpreta o seguinte, fizeram depois… depois que os Reis Magos passaram, fizeram uma outra folia para descobrirem onde estava Jesus Cristo para poderem matar ele, fizeram outra Folia não, outros Reis Magos saíram sabe, para tentar achar Jesus cristo, Deus menino para poder matar ele, sabe? Tanto que dizem na Bíblia que os reis Magos mesmo, eles não fazem o mesmo caminho de volta para não dizer onde o deus Menino está, eles dão outra volta para despistar o rei lá que queria matar o cara. E uma parte da família fala que a Folia de São Sebastião é uma folia pagã, porque o pessoal bebe, enche a cara, é o samba, tio Gerson fala inclusive dessa coisa inclusive de descer o zebu, sabe no meio do samba dele, do tio Gerson, passa dois, três sambas, tem alguém descendo ali no meio da roda e é diferente do tio Garino, que por exemplo, mandava parar o samba por causa do catolicismo mesmo, ele mandava parar o samba só voltava o samba quando essa figura subia de volta. O tio Gerson pede para bater mais forte o tambor, porque ele fala: “se desceu para brincar no meio da gente, é porque a gente é merecedor, então vamos bater mais forte o tambor para essa figura, quando subir, subir feliz”.
P/2 – Você presenciou alguma vez?
R – Várias, tia Loura é uma das figuras mais velhas também da família, tia Loura é uma figura, cara, tia Loura ouviu um bater palma ali, já está virando o olhinho e descendo alguma coisa nela. Vi várias, esse ano, por exemplo, que eu achei bonito na atitude desses meus primos que estão dando continuidade nessa Folia do tio Garino foi que a gente… que é uma coisa muito louca, a gente foi conhecer a família do meu pai, sabe, eu conheci minha avó, esse ano, como participei da Folia de Reis, eu fui para a caatinga com a galera, aí eu descobri que a minha família na caatinga é grande pra caralho, tá ligado? Das 70 casas, pelo menos 30 é de parente meu, eu fiquei: “Caralho!”, o negócio é louco, sabe? E…
P/2 – Parente seu, da onde?
R – Por parte de pai. Muito louco, esse ano, eu conheci o tio Zé. Tio Zé é um negão de 70 anos de idade, 60, 70 anos de idade, maluco todo definido, forte assim, cara! Me recebeu na casa dele com a cuia na mão, foi uma experiência que aconteceu na caatinga agora, eu estava com a Folia, isso era à noite, e aí chegou um cara em mim, pegou, pediu licença para mim e levantou o meu chapéu, aí olhou pra mim e falou: “Pô”, eu falei: “Crê em mim”, ele falou: “Espera aí, preciso tirar uma dúvida”, aí foi, voltou de novo e falou: “Dá licença”, aí subiu o meu chapéu, aí eu falei: “E?” “Pô, você é filho do netinho?”, aí eu falei: “É, dizem que ele é meu pai”, aí ele: “caralho, você é… calma aí, calma aí …”, aí chamou mais uns três primos, cara: “Olha, quem parece? Quem parece?”, aí nesse dia eu conheci uma meia-dúzia de parentes já (risos). Nesse dia eu conheci uma meia-dúzia de parentes e aí depois, eu conheci um outro primo chamado Manoel que falou: “Eu sou filho do Zé, que é irmão do seu pai”, e aí esse meu primo Manoel me levou para conhecer esse tio Zé, cara, mora ainda numa casa de pau a pique no meio da caatinga e forte, um negão forte, cara. Aquele negão vai morrer com uns 100 anos de idade, porra!
P/1 – Fizemos essa rodada baiana, então vamos voltar para Arruda Alvim, então você veio para cá e na segunda rodada, você já está com quantos anos?
R – Treze.
P/1 – Treze, né?
R – É.
P/1 – Morando lá?
R – Morando… na segunda rodada da Bahia?
P/1 – É.
R – Na segunda rodada da Bahia, eu vou para lá com uns oito, nove anos e volto com uns 12, 13 para cá.
P/1 – Sim. Aí você volta para o mesmo lugar, para Pinheiros, não?
R – Mesmo lugar.
P/1 – E aí, quer dizer, deve ter sido um choque, né?
R – Sim, foi quando eu faço quatro vezes a quarta série. Faço duas vezes lá, faço duas vezes aqui. Aqui, essa coisa da mãe ser doméstica, eu acho que isso é com todo mundo, na realidade, independente da profissão, minha mãe colocou a gente para estudar durante o dia, não me lembro se era na parte da manhã, acho que a quarta série era na parte… não, a quarta série era na parte da tarde, a quinta série foi na parte da manhã, mas eu estudava na parte da manhã ou na parte da tarde e complementava o dia na Igreja do Calvário, que tinha o centro juvenil, lá, o Ozen, a gente chamava de Ozen. Então, nesse Ozen, que foi onde a galera me colocou o apelido de Cabeça de Ampola, tenho amigos ainda hoje de lá, que é o Neg, por exemplo, do corpo de rap da Família Madá, tem o Candelária, que é o Rafael, a família Triviatti, os moleques gente boa, eu só não me dava bem justamente com o Neg, com o Candelária, com o Cheiroso, que era o Henrique e com o Adriano, eles não gostavam muito de mim porque eles que colocaram o apelido em mim e eu era meio bravo com eles. Eu lembro que uma vez eu cheguei a negar biscoito para eles, sabe? Os moleques lembram até hoje, falam assim: “Pô, você negou biscoito pra gente, mano” (risos).
P/1 – Berimba, quais foram as suas primeiras leituras?
R – Minhas primeiras leituras, cara?
P/1 – Era uma coisa mais da escola ou você já…?
R – Era uma coisa mais da escola. Eu não tive uma referência literária… uma referência literária, não, um incentivo de leitura cedo. Eu acho que eu comecei a ler, realmente, com 17, 18 anos de idade, cara. Porque aí eu comecei a escrever uns poeminhas, e na escola, nenhuma professora de português ali incentivou a dar continuidade aos meus poemas. Eu tive um bom professor que foi o professor de Matemática, o Constantino, que às vezes, na aula dele eu lembro que estava fazendo caricatura dele, sabe, ou escrevendo, rabiscando um poema, alguma coisa e ele chegava e falava; “mas e aí?”, sabe? Porque o lance dele era muito mais oral, sabe, nunca repeti me Matemática. O cara era foda, fumava um cigarrinho dentro da sala de aula, começava escrevendo umas letras grandes e conforme o ruído da classe, ele ia diminuindo as letras, sabe, até algum aluno reclamar e ele falar: “Pô, vocês estão conversando, não estão aí, tal, eu estou querendo falar, vocês não deixam”, ele era um professor genial Constantino. E eu não tive um incentivo para ler desde cedo, cara. Acho que tem um livro, deixa eu lembrar, era alguma coisa Orfanato, mas acho que foi o único livro que a minha mãe comprou na infância, sabe? “Férias no Orfanato”, é um livro velho que nem eu, mas “Férias no Orfanato”? Alguma coisa, sabe, que teve alguma coisa que a professora pediu, sabe, ela comprou, mas eu comecei a ler mesmo depois que arrumei o meu primeiro trabalho… não, não foi tão tarde, não. Foi com uns 14, 15 anos que eu comecei a ler, porque eu lembro que eu escrevia poesia e aí, nessa onda de morar com o padrasto, o meu padrasto me agredia de vez em quando e aí, eu com uns 14, 15 anos, eu sai na mão com ele, já era grande, era magrelo grande…
P/1 – Você sempre foi alto?
R – Sempre fui magrelo, grande. E aí, sai na mão com ele no meio da rua, jogando futebol. Eu estava na Medicina, na Faculdade de Medicina, antigamente, tinha uma quadra de futebol que todo domingo os filhos dos zeladores, os zeladores ali, montavam seu timinho e ia lá jogar, né? E eu já pensei em ser jogador de futebol, essa coisa, então eu jogava muito, Dualib e tal, essa coisa toda e tal e o meu padrasto era ruim demais, cara e aí, eu dei umas três sainhas nele, ele veio pra cima de mim (risos), sabe, me agredindo e eu saí na mão com ele e aí, nesse dia, eu falei: “Pô, eu não vou mais ser agredido”, tá ligado? E saí na mão com ele no meio da rua lá, os vizinhos separaram, tal, aí depois, eu saí com ele dentro de casa também e aí, foi a onda que ele falou: “Eu quero esse moleque fora de casa”, aí a minha mãe falou: “Se ele sair, vai sair eu e mais os três, não vai sair ele sozinho, não”, e aí o meu padrasto meio que ficou em choque, cara. Aí a alternativa foi: “Então arruma um emprego”, e aí no outro dia, eu arrumei um emprego de entregador de lanche, aí trabalhava meio período, porque aí já não tinha mais o Ozen, porque já trabalhava meio período e estudava meio período e ia para capoeira à noite, aí eu chegava em casa sempre dez horas da noite. Eu saía às sete da manhã e chegava às dez horas da noite. E aí, nessa onda de escrever poesia, acho que tem duas figuras legais aí que aparecem que é o Dani e o Egon. Eles frequentavam esse café que eu trabalhava de entregador de lanche e nessa onda de conversar com o jovem, tal, essa coisa, eles descobriram que eu escrevia poesia e aí, eles começaram: “Você quer escrever poesia, você tem que ler”, e aí uma das primeiras coisas que eu comecei a ler foi uma coleção que o Estadão lançou com os clássicos, tinha Fernando Pessoa, o Cortiço…
P/1 – Ah sim! Camilo Castelo Branco, tinha…
R – Eles me compraram toda a coleção e aí, eu li toda a coleção.
P/1 – E quem são esses dois caras?
R – Dani e o Egon. O Dani, cara, parecia aquele cara do Castelo Rá Tim Bum, o cientista, sabe: “Olá, olá, olá, eu sou o tíbio e eu sou o perônio”, sabe esse personagem? O Dani era muito parecido com esse personagem e o Egon… será que eu estou confundindo? Eu acho que os dois trabalhavam com psicologia, uma coisa assim, sabe? Faz…
P/1 – Que legal, eles te deram de presente…
R – Toda essa coleção! E aí, eu acho que eu tive sorte na vida, porque aí, eu conheci o JPR, João Paulo Ribeiro que pichava, o Ebolas, que é um picho muito antigo da cidade, eu vou falar das outras figuras, aí eu volto no Jota, aí eu acho que o Jota tem uma coisa bem mais forte inclusive, do que o Dani e o Egon. Conheci o Jota, conheci o Rock, conheci o Jete, o Jete está aí até hoje, desses três amigos, o Jota, o Rock morreu, não sabe se foi a mulher que matou, se ele se suicidou, era uma figura do picho, o Dougue e várias outras figuras. Aí a gente formou meio que um grupo, tinha a Matiza, o Gordo, a gente formou meio que um grupo e o Jota ele morava… uma parte dessa galera morava lá no João XXIII e começou um ocupação, antes dessa ocupação, o Jota também escrevia poesia, o irmão dele, rapper, o Ari e o Jota também escrevia poesia e o Jota começou a me apresentar essa galera modernista, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, aí ele me apresentou o dadaísmo. Era um cara da minha idade, e então o Jota, ele abriu uma percepção pra mim para poesia muito foda. Acho que ele terminou Letras na USP, ele ficou tentando vários anos tentando entrar em Letras, porque com 19 anos virou pai, não foi pai de um filho só, não, já mandou logo três na sequência, sabe? Aí fez um concurso público, virou carteiro, a mina tipo classe média, ele da favela, então acho que o que passou um pano pra ele mesmo com isso foi ele ser loirinho de olhos claros, tá ligado? Porque se não fosse isso… é porque você imagina, o cara que mora no meio da favela João XXIII, a mina mora na Oscar Freire, sabe, engravida de um cara do João XXIII, se o cara não for branco, fudeu, era um filho só ou o aborto! (risos) Não, é sério! É terrível pensar assim, mas é! E aí, o Jota, ele me apresentou essas coisas todas e a questão do picho também, cara, a galera tinha essa questão do picho e de montar as gangues e tudo mais, o Jota me mostrou a questão do picho que era uma coisa meio dada mesmo, de destruir para construir de novo, sabe? Então, a gente pichava movimento pão com ovo, viva a pinga, viva o picho, viva a buceta, sabe, o próprio nome que ele criou o Ebolas, ele falou: “Meu, criei o Ebolas por conta que é uma doença”, que saiu na época, puf e estava impregnando o mundo inteiro, então ele também queria impregnar a cidade de São Paulo com o picho Ebolas, sabe, e aí na cidade de São Paulo inteira, o Ebolas. Ebolas, Ebolas, Ebolas… JPR e enfim, foi uma galera que… enfim, tem o Jete, também o Jete me apresentou o movimento punk, que vem tudo, acho que… eu não fui punk, mas acho que o movimento punk me ensinou muita coisa, me ensinou a trocar mais.
P/1 – Nesse período que você conhece essas pessoas, você estava com quantos anos?
R – Porque eu entrei na fase da capoeira, que eu me dediquei a capoeira, cara, eu fiquei uns seis anos jogando capoeira direto, sabe? Jogando, não bebia, não fumava, não cheirava, não fazia nada, não trepava também, coisa terrível! Ah, já tinha uns 18 para 19 anos.
P/2 – Quer aproveitar e contar então a história do Sautelito, já que você falou da capoeira?
R – Pode ser. Pode ser que é bem uma transição também, estou transitando entre conhecer esse mundo, porque conhecer sei lá a rua e sair do grupo da capoeira porque a capoeira, eu comecei a treinar capoeira na Malungos com o meu mestre de capoeira na Malungos era o Michael, o Michael era uma figura fantástica, um italiano, ele tinha sofrido um acidente de carro e então, ele era paraplégico, não funcionava as pernas, então a aula dele era toda oral: “A meia lua de compasso, você vai…”, ou então a varinha, sabe…
P/1 – Ele estava o quê? Na cadeira de rodas?
R – Na cadeira de rodas.
P/1 – E era professor de capoeira?
R – Mestre de capoeira.
P/1 – Legal!
R – Fantástico esse cara e você via os vídeos dele jogando antes, era assim, o cara tinha um puta movimento, ele deu azar, na realidade, ele ia no meio do fusca, fusca bateu, ele foi, sabe? Deu azar. E aí, eu comecei treinando na Malungos, na Malungos, eu nunca peguei corda na malungos, que na Malungos, os caras tinham uma regrinha mesmo assim: “Você vai treinar a sua primeira corda, você precisa saber trocar uns três ou quatro tipos de toque, você precisa fazer toda a sequência de bimba, toda sequência de pastinha, você precisa tocar pandeiro, você precisa tocar quase tudo, sabe, para pegar a primeira corda”. Então, passei três anos na Malungos sem pegar corda. E aí, eles entraram em divergência, quando ia ter o meu batizado, eu falei: “Vou pegar a corda verde”, a primeira corda depois de três anos, você fala: “caralho", vou pegar a corda, tal…”, eles entraram em divergência, acabou a Malungos, a Malungos acabou ficando para o baiano que era um outro mestre, contramestre de lá, e eu não gostava do Baiano, porque o Baiano judiava muito da gente, ele mandava a gente pular de cabeça ali e ficar na bananeira, você tinha que pular de cabeça e ficar na bananeira, pô, você saía com um galo na cabeça, era horrível, o Baiano, era foda, você saía todo machucado, aprendia, tá ligado, era um bom mestre, mas zoava muito, cara! E aí, acabou a Malungos, aí eu fui para Angonal que era no Clube Bandeiras, na Sumaré, que era o Melão que estava dando aula. Aí, na Malungos, eu tinha o apelido de Cansado, que o meu jogo ficou muito parecido com o… eu não vou lembrar o nome de um cara lá, o meu jogo ficou muito parecido com o do cara, mas eu era meio preguiçoso também, sabe, entrava, fazia o jogo de um minuto e: “Estou cansado”, sabe, ou então no treino mesmo, parando para tomar água, os caras me deram o apelido de Cansado. E eu não gostava desse apelido (risos).
P/1 – Ninguém gosta, né, Cansado! (risos)
R – Aí eu fui para a Angola e na Angola, eu nem falei do meu apelido, eu não tinha sido batizado ainda mesmo e aí, ficou essa coisa do… eu querer um apelido também, sabe, e tipo Bimba, Berimba e aí comecei a ter acesso a essa galera da pichação também, a querer pichar também e aí: “Pô, eu vou pichar o quê?”, e aí veio essa onda de eu pichar Berimba, que aí colocar um M também para tirar o Beriba, deixar Berimba e aí, pichava BRB, pichei bastante cara, pichei bastante. De vez em quando eu passo… não sei se nessa rua tem, mas deve tem.
P/1 – Ainda teria?
R – Porra, tem picho ainda.
P/1 – É?
R – Tem.
P/2 – Então Berimba, eu queria que você contasse um pouco de como estava São Paulo nessa época, com 18, 19 anos que você tinha, como era a sua relação com a cidade.
P/1 – Então, São Paulo nos anos 90, né?
R – É, 1999, 98…
P/1 – Com 20 anos…
R – É, 99, 98, né?
P/1 – Você é novo, hein?
R – Sou nada, cara (risos). Então, nessa época, eu estudava no Godofredo Furtado, no colégio aqui na João Moura. Na realidade, eu estudei em três colégios na vida, estudei lá na roça com a Maria de Lourdes, a primeira série eu tinha feito aqui no Godofredo Furtado, fui para Bahia, estudei com a Maria de Lourdes, voltei, fui estudar no Maximiliano, fiz duas vezes a quarta série no Maximiliano e voltei para o Godofredo Furtado, que era mais perto de casa. Nessa época de 98 para 99 foi… eu ganhava bem, porque comecei a trabalhar cedo, cara e aí, tinha largado esse emprego de entregar lanche e estava na Arquiprom, uma empresa de arquitetura promocional como office-boy…
P/1 – Você trabalhou na Arquiprom? Que é na Arruda Alvim, né?
R – Isso, do lado da minha casa…
P/1 – Marklen.
R – Marklen Siag Landa, uma coisa assim.
P/1 – É, o Marklen Landa.
R – É, a Silvia Landa, o Fernando. Na realidade, das figuras ali, eu acho… enfim, tem bastante história da Arquiprom (risos), acho que eles… acho que é uma empresa que me viu artista também, sabe? Que me viu muito mais artista do que trabalhando ali como peão deles!
P/1 – Que bacana!
R – É, bacana a história que eu tive lá também porque a minha mãe era copeira lá, era copeira e fazia faxina lá durante muitos anos e aí, saiu um office-boy de lá e a Mônica que trabalha lá até hoje, ela falou: “Você não quer que o Leandro venha trabalhar aqui?”, e aí eu fui trabalhar lá, a minha única carteira assinada, inclusive. Eu fui trabalhar na Arquiprom e eu comecei trabalhando meio período e no ano seguinte, eu fui trabalhar o período integral e entre os amigos, eu ganhava bem, porque na época, eu tinha um salário mínimo pra office-boy e eu comecei a fazer os trampos de peão também da empresa que era ir para as feiras, fazer compras e tudo mais e tudo isso eles pagavam a mais para fazer esse tipo de trampo. Então, na época, eu ganhava uns mil reais por mês, então tinha mês que eu comprava um quilo de maconha e vendia 800 gramas e ficava com 200 gramas para consumir. Fazia isso mesmo, sabe, não era um traficante, mas pô, um quilo de maconha na época custava 200 reais, cara! Hoje em dia, um quilo de maconha custa três, quatro mil reais, você fala: “Caralho! Como aumentou!” (risos) E vivia com a galera mais alternativa, vivia com a galera que curtia o movimento punk, então estava sempre indo em shows punks, sempre frequentando ocupações e foi também quando o picho já estava na minha vida nessa época, foi também quando a gente começou uma ocupação no João XXIII, que era a Pista de Skate Galpão de 98 para 99, que foi o quê? Era um sacolão que tinha lá no João XXIII e esse sacolão foi abandonado e virou meio que lixão, sabe, para você ter ideia, quando a gente ocupou o espaço, a gente tirou um cavalo morto de dentro do lugar, tá ligado? E aí, nesse espaço, a gente fez uma pista de skate, construímos uma biblioteca, construímos uma cozinha e fizemos uma horta comunitária ao redor. E nos finais de semana, como a maioria das pessoas trabalhava durante a semana, eu ia mais nos finais de semana com atividades e foi aí que estreitou mais o laço também com a poesia, de escrever mais. A minha primeira publicação vem dessa… a minha primeira publicação não, a minha primeira participação em publicação vem aí, que a gente fez um calhamaço de folhas A4, a gente xerocou na USP e demos o titulo de “O Fósforo” e aí, o Allan da Rosa, por exemplo, eu acredito até que o Allan da Rosa, uma das primeiras publicações dele vem daí também, tá ligado, porque foi aí que houve o nosso encontro também, que a gente começou a se trombar com o JPR, com o Allan, tinha o Marciano Ventura do Circo Contínuo, que a galera começou… a galera mais alternativa mesmo começou a se trombar nesse rolê. E a Pista Skate Galpão foi também uma peça fundamental na vida, que é como se trabalha um coletivo, que aí começa o lance da articulação cultural, que aí a gente se reunia para fomentar a biblioteca, eu consegui, como eu morava aqui em Pinheiros, nessa época, eu passei em vários sebos aqui e a gente conseguiu uns dez mil livros, a maioria porcaria…
P/1 – Dez mil?
R – Ah, a gente pegou umas três kombis só de livro. Mas aproveitamos quase nada, aquelas enciclopédias antigas, uns livros de auto ajuda, a gente fez uma seleção boa ali, sobraram uns mil e quinhentos livros, o resto o Marciano reciclou uma porrada, outros a gente devolveu, sabe, foi para outras bibliotecas e essa Pista Skate Galpão, a gente ficou uns dois anos nessa atividade, finais de semana que eram os dias mais fodas, que a gente fazia um almoço coletivo para a molecada da favela ao lado, aí tinha oficina de música, oficina de dança, acho que um dos meus primeiros amorzinhos, que mexeu mais vem de lá também que foi a Bárbara, acho que um dos melhores poemas estão nessa fase também, sabe? A Bárbara foi uma figura… eu já tinha perdido a virgindade, tal, mas teve essa descoberta sexual de dormir mais tempo com a mulher, de se descobrir mais sexualmente, foi um figura que tem um puta importância, nessa fase sexual da vida.
P/1 – Tem poemas para ela?
R – Tem vários, mas eu não sei nenhum de cor, mas tem, pô, eu fiz vários poemas. Eu lembro que eu beijei ela a primeira vez na feira da Pompéia, foi uma coisa incrível, a gente ficou, ela tinha namorado, na realidade, foi a maior coisa… mas foi foda, foi lindo! E a Pista Skate Galpão foi assim, a gente foi descobrindo outras coisas para fazer também, cara, porque aí eu comecei também a saber que eu podia viajar, sabe? Porque antes, eu ia viajar para a Bahia, a minha mãe sempre me mandava, todo ano, todo final de ano, a minha mãe me mandava para a Bahia e aí, foi quando eu comecei a saber que eu podia viajar também, fui conhecer São Tomé das Letras, aliás, antes eu conheci Trindade, acho que nos anos 2000, 99 para 2000, conheci Trindade, fui viajar com o Jete para lá, aí depois, fui conhecer São Tomé, conheci vários outros lugares, sabe? Acho que nessa fase também, foi a primeira vez que eu fui… a primeira e única vez que eu fui preso, foi indo para São Tomé das Letras, que eu levei um caroço de maconha… tirei férias, literalmente, sabe, estava trabalhando uns dois anos seguidos na Arquiprom, tirei férias e falei: “Vou viajar para São Tomé das Letras”, aí eu lembro que eu tinha comprado a passagem uma semana antes, no dia de viajar, eu perdi o horário da passagem, cheguei, o ônibus já tinha ido, eu pensei: “Quer sabe? Eu tenho dinheiro, vou comprar outra passagem e vou”, e aí, comprei a porra da passagem, chegando em Três Corações, peguei o ônibus para São Tomé das Letras e levei o enquadro no meio do caminho.
P/1 – A polícia parou o ônibus?
R – A polícia parou o ônibus, tirou só eu e uma outra mina, porque… aí eu acho que dá para entrar nesse lance do preconceito um pouco, sabe? Eu fui preparado para não ver o preconceito, sabe, como negro, eu fui preparado para não me reconhecer como negro dentro da sociedade, eu fui preparado para achar que está todo mundo no mesmo nível, sabe, e você com o tempo, você vai descobrindo, quando você vai amadurecendo um pouco politicamente, você vai amadurecendo como homem dentro de uma sociedade e se reconhecendo como negro, você vai descobrindo todo o preconceito que você foi vivendo, que você vivenciou atrás e eu acho que esse foi um dos casos, sabe, de eu ser um dos únicos negros dentro de um ônibus e eu e uma outra mulher que também era negra, serem tirados do buzão e eu estava com o negócio lá, falei: “Está aqui” “Vamos para delegacia, vamos para delegacia”. “Você veio traficar?” “Não, eu tirei férias e trouxe para fumar”, foi o maior rolê, passei a noite toda na delegacia, os caras me colocaram na cela junto com um negão também, só que o cara era forte pra caralho e estava todo nu dentro da cela, o negão, cara, todo nu, eu falei: “Caralho, fudeu mano”, aí os caras: “Não, fica tranquilo, que ele está dopado, porque esse daí só dopando ele para poder segurar ele”, tá ligado? Eu fiquei com um medo, cara, fiquei com o cu na mão, eu fiquei com o cu na mão mesmo, foi foda, cara! Foi foda! E aí, quem depois passou um pano para mim foi a escrivã, a escrivã fazia Letras e a gente teve um bate-papo de dez minutos, sei lá, sabe, antes de eu dar o meu depoimento e aí ela ficou descobrindo que eu fazia poesia e tal, ela também gostava de poesia, a gente rolou uma ideia por cima, de poesia e tudo mais e na hora do delegado me acusar, ela falou: “O cara está vindo de São Paulo, trabalhador”, ela passou um pano e eu assinei um 16, senão teria acontecido a mesma coisa que aconteceu um ano depois com o Dedé, um camarada nosso, a mesma situação, ele trabalhava no Sesc, tirou férias, pegou uma paranga foi para São Tomé das Letras e levou enquadro, assinou um 12, ficou um ano preso, um ano preso, o Dedé saiu querendo matar uns 50, cara, foi foda! Eu falei: “Eu dei sorte nessa”, sabe, mais uma vez.
P/1 – E Berimba, suas leituras, seus autores, quem que você estava lendo?
R – Eu pirei muito em… nossa, como ele chama? Gostava tanto dele! Do Mário de Sá-Carneiro, gostava muito de Mário de Sá-Carneiro, acho que um tanto pela depressão dele, saca? Florbela Espanca, Fernando Pessoa são as três figuras que eu gostava muito, nunca gostei de Castro Alves, sabe, eu acho um tanto por isso, de não ser preparado para não ver o preconceito, você tem alguns autores que você… por mais que você tenha acesso, você fala: “Putz”, Castro Alves foi um deles e também acho hoje em dia depois de tudo isso que não é tudo isso mesmo não, sabe? Lia muito Oswald de Andrade, eu não tinha acesso a essa literatura marginal da década de 60 e 70, que aí vem também… nessa mesma época, vem o lance de ter mais contato, por exemplo, com a Aline Limão, que é a irmã do Renato Limão, primeiro eu fui brother da irmã dele, depois dele, lia essas figuras. Clarice Lispector foi quando eu li “A Paixão sobre GH”, como chama esse livro?
P/1 – É, A paixão segundo GH.
R – Acho que foi nessa época, também que eu li esse livro, sabe, eu fui sempre aos pouquinhos, o João me apresentou o dadaísmo, então tinha muita coisa do Dadá que aparecia do Tristan Tzara, manifestos, curtia muito, comecei a pirar muito nessa ideia mesmo e aí, fui pesquisar um pouco da história do Dadaísmo, fui descobrir os decadentistas, sabe, achei fora do movimento decadentista na época também, eu falei: “Caralho!”, e eu ouvia muito som punk, cara, ouvia Colega, Olho Seco, Garotos Podres, foi quando eu comecei a ter acesso a essa galera, sabe? E aí, a gente formou meio que o clube do bolinha, cara, eu morava na Arruda Alvim, tinha a Luana que morava na rua de trás ali, então a gente saía do colégio, ia fumar maconha na casa da Luana, tal, aí foi a Matisa, o Gordo, o Dinho, formamos um grupo da bolinha ali, todo mundo alternativo, ia para as baladinhas, pra a Lôca, ia para barzinhos, ainda com 19 anos… eu fui descobrir as drogas meio tarde, também, tá ligado? Com 18, 19 anos eu fui descobrir cheirar cola, sabe, eu fui cheirar cola para saber qual era, eu acho que das drogas, eu só não tive coragem de experimentar pedra e heroína porque não apareceu. Heroína eu experimentaria só para ver qual é também. Pedra eu não experimentaria porque eu já perdi muito amigo pela pedra, então eu acho que não é para mim, mesmo. Pô, foi uma época de também descobrir mais a sexualidade, a gente montou um grupinho, esse grupinho, então a gente de vez em quando, fazia orgia juntos, tá ligado, esse lance de se descobrir mesmo, sabe? E aí, estava trabalhando ainda na Arquiprom, a Arquiprom, por exemplo, o Fernando nesse lance de escrever poesias, era uma figura que me incentivava a ler também, estava sempre me trazendo coisas para ler e um dos livros legais que ele me deu foi de contar sílabas poéticas, li todo o livro e não sei até hoje contar as sílabas poéticas, cara, acho foda assim!
P/1 – Livro de metrificação.
R – Não consigo, não consigo! Não sei o que há, sabe? Esse lance da Arquiprom, indo para Arquiprom, essa coisa de estudar em colégio público, eu falei: “Pô, terminei o terceiro colegial e vou fazer o quê?”, estava tendo inscrição para curso técnico no Senac na época, aí eu falei: “Vou fazer um curso técnico”, aí fui fazer um curso técnico de telecomunicações. Eu devia ter escolhido de moda, sabe, porque não sei porque eu fiz esse curso, saca? Acho que mais para: “Mãe, fiz um curso”, sabe? Porque eu fiz um ano e meio de curso, cara, eu ligo o meu computador, eu sei criar um rede que eu aprendi no curso, mas pra que eu fui perder esse tempo? Devia ter feito outra coisa. Aí, eu fiz esse curso de moda, tal e depois na sequência, eu falei… de moda não, de telecomunicações e eu falei: “Não vou sair da Arquiprom para fazer instalação de TV a cabo, vou continuar aqui”, mesmo porque eu ganhava bem, 19 anos de idade, 20 anos de idade ganhando mil reais por mês, mil e pouco, pô! Ganhava bem pra caralho! E aí, depois desse curso, eu fui fazer um curso de teatro na Funarte, aí eu fiz também um ano e meio de curso de teatro e eu acho que o teatro me ajudou bastante para falar poesia, né, cara! E aí, terminando esse curso, esse jornal Metrô News, como eu trabalhava de office-boy, peão, office-boy, na Paulista, peguei esse Metrô News e vi um anúncio: “Precisa-se de atores e não atores para um longa metragem”, aí eu falei: “Vou fazer o teste”, aí eu passei na porra do teste, era um longa metragem de um diretor da pornochanchada, acho que ele chama Manoel Carlos, e o cara estava querendo lançar um filme como Cidade de Deus, só que chamava “Sequestra São Paulo”, o nome do filme. Aí eu fui fazer o teste, aí eu falei: “Nunca fiz esse tipo de coisa, vou fazer o teste”, aí o cara falou: “O teste é você assaltar esse cara aqui”, aí eu já pensei: ‘pô, papel de ladrão’, aí eu falei: “Tá bom e como vocês querem?” “Então, é você roubar a carteira como se você fosse roubar a carteira dele, a gente quer que você roube a carteira dele”, eu falei: “Só isso?” “Só isso” “Então tá”, e aí dei um tapão no maluco, falei: “Dá a sua carteira”, peguei a carteira do maluco e saí andando e falei: “Se ciscar, eu volto e te arrebento”, passei no teste! (risos) Passei no teste e aí, cheguei para a Arquiprom e falei: “Porra, fiz um teste e passei”, aí era 100 reais a diária que os caras iam pagar para fazer o filme, um mês e meio de gravação. Aí o Fernando chegou e falou: “Pô, cara, você tirou férias faz um mês e pouco, não tem condições da gente te dar férias de novo. O que a gente pode fazer é te mandar embora e quando você terminar o filme, se você quiser fazer uns freelas, você faz uns freelas aqui”, e aí eu fui fazer o filme, cara! Aí, terminando o filme, ganhei um grana legal, aí ganhei uma grana legal da Arquiprom também de rescisão, essas coisas, foi a época em que o meu padrasto tinha morrido, a gente tinha mudado para Taboão da Serra e estava construindo a casa. Eu acho que eu ganhei uns 15 mil reais ao todo, juntando todas as coisas, falei: “Caralho, maior dinheiro! Vou desandar para caralho”, desandei pra caralho. E aí, eu peguei e dei cinco mil reais para a minha mãe, aí trombei o Renato Limão, eu já tinha meio que contato com o Renato por conta da Aline e um dia desses trombei o Renato… não, antes, na Arquiprom, começa o acesso a poesia de rua também, tem um pouquinho antes disso daí, porque o que aconteceu? Comecei a frequentar bastante a Benedito Calixto de sábado e num desses sábados, eu encontrei o Sérgio Luiz Dias, um poeta que vem da geração 80 aqui de São Paulo, aí ele estava com uns banners, vários banners na rua para quem passasse, se a pessoa parasse para ler o poema, ele chegava com o livro dele, era essa a estratégia dele e eu fui um desses caras que parou (risos) para ler o poema e li o poema dele e comprei o livro dele “O Estranho” e antes, eu tinha meio que participado desses concursos de poesia, sabe, “Pague dez, 15 reais e concorra”, eu participei desse concurso e ganhei uma menção honrosa e os caras falaram: “Você também vai sair na Antologia, só que você precisa pagar 50 reais para sair na Antologia”, eu falei: “Não vou pagar porra nenhuma, não vou sair nisso não”, e aí com o Sérgio, vendo o Sérgio, eu descobri que eu podia publicar de forma independente, e na sequência, veio o Renato Limão também, meu contato com ele e de ver ele com os livretinhos de poesia.
P/1 – Para quem não conhece, quem é o Renato Limão?
R – O Renato Limão é um poeta da minha geração, se eu não me engano, ele tem 33 anos agora, ele começou a vender poesia na rua bem cedo, com uns 14, 15 anos, ele já estava vendendo poesia na rua, na Avenida Paulista e foi com ele que o nome Poesia Maloqueirista tomou forma, teve sentido porque vendo ele vendendo os livretinhos e o Sérgio Luiz Dias com o livro que ele montou em casa, todo xerocado, eu falei: “Pô, eu também posso publicar de forma independente”, e aí fui fazer uns livretinhos para distribuir de sábado. Aí, na Arquiprom, eu usava a maquina de xerox para fazer os livretinhos de graça. E nessa onda que vem o termo Poesia Maloqueirista também porque eu andava de skate também na época e tal, as calcas big, que chamava de calça big, aquelas calças folgadas e tal, a Irene, a recepcionista veio com uma ironia, tirar uma onda, porque aí eu comecei a falar do dadaísta, do simbolista, você fica empolgado, você vai vendo que houveram movimentos atrás e vai ficando empolgado e ela numa dessas aí, ela falou: “Teve os dadaístas, os simbolistas, os istas que você tanto fala aí, e você vai ser o quê, vestido desse jeito? Maloqueirista?”, e aí veio o termo maloqueirista, surgiu o maloqueirista e aí com essa onda de começar a vender livro, a gente ia para a rua e tal, sair da Arquiprom, ter uma grana no bolso, um desses dias com o Renato, eu encontrando o Renato, a gente se comenta entre nós: “Vontade de sair viajando de mochila e tal, fazer um rolê pelo menos por uns cinco, seis estados”, aí ele fala: “Vamos aí”, a gente combina assim, coisa de uma semana mesmo: “Vamos aí?” ”Vamos” “Então, sexta-feira a gente sai?” “Tá, sexta-feira a gente sai”, e nessa época, só eu usava a Poesia Maloqueirista nos meus livretinhos e aí quando a gente foi sair junto, ele começou a usar a Poesia Maloqueirista também nos livretos dele e aí, a gente vai pra… aí tem história, viu!
P/1 – Oba!
R – Vem história! Aí, a gente vai para Paraty, eu tenho uma grana guardada, Renato não tem grana nenhuma, então a gente vive o primeiro mês em Paraty lá com minha grana, basicamente, vendendo pouca poesia e a gente fica meio que um mês e meio lá em Paraty, vendendo poesia. A mãe do Renato já ia para Paraty antes, ela arrumou um marido lá em Paraty, em Trindade, um caiçara, eles estavam sempre lá, então a gente foi para Paraty, ficamos em Trindade, acampados em Trindade, ora Paraty, ora Trindade e mais enchendo a cara, cheirando cola, tinha 20 anos de idade, mas como eu falei, as drogas vieram tarde para mim. E o Renato Limão despirocava mesmo no rolê, despirocava grandão. E de Paraty, entramos meio que em crise, porque o dinheiro estava acabando, não tinha mais uma temporada boa, lembro que foi mais ou menos em maio que a gente saiu daqui, então não estava na temporada boa de ter turistas na região, então a gente foi para o Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, a gente foi morar no… chegamos na rodoviária era bem tarde, a primeira vez dos dois chegando no Rio de Janeiro, a gente pegou um táxi e falamos: “A gente quer ir para o hotel mais barato da cidade”, aí o cara levou a gente para Morro da Providência, como que chama ali? Central do Brasil. Aí, a gente foi ficar num hotel chamado Dom Pedro II que era 22 reais, 24 reais a diária para os dois, saía 12 reais para cada um e aí, ficamos seis meses nesse hotel.
P/1 – Seis meses?
R – Seis meses nesse hotel. A gente chegou no Rio de Janeiro, não tinha ninguém vendendo poesia da nossa geração, então a gente destruiu o Rio de Janeiro, a gente ganhava 100, 150 contos por dia, cada um, sabe, trabalhando cinco horas, seis horas por dia. Então, foram seis meses que a gente debulhou o Rio de Janeiro, debulhou, debulhou, vendemos muita poesia. E aí a gente conhece o Namã, o Peter que são as figuras mais velhas que a gente conhece ali do Rio de Janeiro que vendem poesia. O Peter está morando hoje em dia em Paraty, não sei se está lá ainda, mas no ano passado, ele estava e o Namã estava em Minas Gerais, parece que em Ouro Preto e a gente fica ali vendendo poesia, todo dia, todo dia e todo dia desandando, todo dia, desandava, muito álcool, começava a beber muito cedo… e tem o Diogo Henriques que também é um poeta que a gente conheceu nesse meio tempo, também se formou ali, começou a andar com a gente, começou a vender os seus poemas, Diogo Henriques tem um texto interessante que chama “Botos da Candelária”, que ele escreveu em homenagem a mim e ao Renato Limão, que a gente desandou tanto na época, que a gente parou de pagar o hotel, não tinha dinheiro para esse Dom Pedro II mesmo, não tinha dinheiro para pagar o hotel, a gente ganhava 100, 150 reais por dia, mas deixava nos bares, deixava mesmo, ou no morro mesmo, sabe? Subia no morro, passava a noite inteira no morro, desandando no morro e no outro dia… e aí, a gente ficou devendo umas quatro diárias nesse hotel e o cara do hotel falou: “Ou vocês pagam ou vocês vão ser despejados”, a gente: “Puta merda”, aí nesse dia, a gente falou: “Vamos ficar de cara e vamos pagar essa porra desse hotel, vamos ganhar dinheiro”, e aí vamos pra rua e quem falou que quando você sai de cara para ganhar dinheiro você ganha dinheiro? Você não ganha, não ganhamos dinheiro, então “Vamos tomar uma cerveja”, aí foi um dia que desandamos, viramos a noite sem ir para o hotel, aí ": “Puta mano, vamos trabalhar e vamos vender”, aí no outro dia, às seis horas da manhã, tem o Palácio de Tiradentes que vai sentido a barca, às seis horas da manhã, a gente estava oferecendo poesia para os trabalhadores: “Poesia”, sabe, às seis horas da manhã, você estar lendo poesia na rua, não presta, cara! É nóia, acho que a maioria pensa: “Esse é nóia”, e nada de vender poesia durante o dia… só sei que a noite… é um dia longo, você vai para frente do Centro Cultural Banco do Brasil, depois você vai para frente do Cine Odeon, aí você fala: “Caralho!”, aí a gente pegou uma barca, foi até Niterói, foi até a universidade lá em Niterói, aí em Niterói, a gente se olha no espelho da universidade, a gente fala: “Caralho, estamos acabados”, os dentes tudo amarelo de cigarro, falamos: “Vamos comprar uma escova de dentes”, aí a gente comprou uma escova de dente, dividimos entre nós dois a escova, melhorou o sorriso, voltamos para o Rio de Janeiro e para frente do Banco do Brasil, e nada de vender poesia, aí o pipoqueiro chega pra gente e fala: “Pô, vocês estão fedidos pra caralho, mano, como que vocês querem que alguém pare perto de vocês desse jeito, com esse cheiro?”, a gente falou: “Caraca, estamos fedido mesmo”, aí a gente olhou para o outro lado do Banco do Brasil, o chafariz da Candelária, a gente falou: “Vamos tomar um banho no chafariz da Candelária”, aí a gente tomou um banho no chafariz da Candelária e a noite foi maravilhosa (risos). A noite foi maravilhosa…
P/1 – A noite, vocês vendiam onde? Em bar?
R – À noite era em bar, na Lapa, Santa Tereza, de vez em quando, a gente ia para o Catete, mas não é Catete, Baixo Leblon, como que é? Baixo Gávea, né, ali que tinham vários bares, era sempre no rolê, pós cinema…
P/1 – Qual era o seu livro que você vendia na época?
R – Tinha um livretinho que eu vendia na época que chamava: “A Sexualidade posta no Freezer”, que era um livretinho, eram quatro poemas, uma ilustração do Gordo e esse livretinho tinha uns poemas bons nele, eu lembro que no Cine Odeon mesmo, entrou um senhor japonês, uma vez, vendendo poesia: “Gosta de poesia?”… porque o nosso caô era o seguinte: “Estou tentando editar o meu primeiro livro, como não rolou apoio editorial, estou aqui na maior cara de pau a fim de divulgar o meu trabalho e pleitear essa grana que falta para a publicação”, aí a pessoa: “Quanto é? Quero dar uma força” “É voluntário, você contribui com quanto puder, pode ser casa, carro, iate, aliança de casamento…”, você já abria o sorriso da pessoa e a pessoa contribuía. Aí, esse senhor me contribuiu com um real, cara, nesse dia eu estava, puta, qualquer um realzinho era bem-vindo e aí, ele entrou para o Cine Odeon, tal, aí no final, eu ainda estava ali, aí ele chegou: “Devolve meu real aí”, eu falei: “Puta” (risos)
P/1 – Ele não gostou do livro?
R – Não, cara! Eu falei: “Puta, você não gostou do livro? Toma o real aí” “Não, gostei, toma dez reais que eu quero apoiar com mais”.
P/1 – Nossa!
R – Porra, salvou cara! (risos) Em frente a Biblioteca Nacional, tinham vários rolês que a gente fazia ali no Rio de Janeiro, cara, foi um ano de descoberta bem legal, cara! Mas enfim, a gente passou seis meses no Rio de Janeiro, fizemos dívidas, não pagamos, dormimos na rua. Era interessante que a gente dormia na rua lá no Rio de Janeiro e os guardas acordavam a gente: “Esse lugar é…”, sabe dormir na Praça da República à tarde, ali, e os guardas acordavam a gente e falavam: “Esse lugar é perigoso”, sabe? E a gente sempre voltava, o Renato tinha a questão de andar com a caneta na mão, era a nossa arma, a gente não andava armado, fizemos questão de andar com a caneta na mão, qualquer coisa, se vier para cima, a gente fura, defesa, cara! E uma cena muito louca que aconteceu com a gente foi voltando para o hotel na… caralho, como chama? Na Central do Brasil, no Dom Pedro II, e a gente pegava… saía da Lapa, não vou lembrar os nomes das ruas, mas enfim, pegava até a Cruz Vermelha e depois descia e pegava um pedaço da Praça da República para ir para a Central ali e uma mão, cara, saiu não sei da onde, uns dez pretinhos, só que todos de cabelo loiro, sabe, os pretinhos de cabelo loiro e os pretinhos da favela todos bem aparentados e fortes, tá ligado, você fala: “Fudeu!”, e aí vem os de menor na frente; “Vocês estão indo pra onde?”, a gente: “Estamos indo pra casa”, e já os dois com a caneta segurando no punho e pensando: “Fudeu, vamos levar um pau aqui, cara!’, que ia levar mesmo, cara. E aí os caras chegaram intimidando: “Vocês tão indo pra onde? Vocês são da onde?” “A gente está indo pra casa” “Vocês moram onde?” “A gente mora no morro”, que o Morro da Previdência é do lado da Central, “Vocês moram no morro? E onde vocês moram?”, aí o Renato sabia o nome das vilinhas porque ele ia pegar o highlander lá, “Moro na vilinha tal” “E que partido vocês são? Que lado vocês estão?”, aí o Renato: “Somos neutro, mano”, sabe, isso salvou a nossa vida, ser neutro, você não é nem de um lado e nem do outro, você é neutro, cara, isso salvou a nossa vida. Aí os caras: “Pode pá…”, a gente foi embora. Foi a única vez que eu me senti ameaçado no Rio de Janeiro mesmo, sabe? Que a galera fala: “É uma cidade violenta…”, não é, cara, é a mesma coisa de São Paulo, São Paulo, de repente às vezes, é até pior.
P/1 – Aí, vocês voltam para São Paulo depois de seis meses?
R – Não. A gente arruma várias dívidas no Rio de Janeiro, treta, enfim, a gente pega e acaba o meu dinheiro também, fudeu, porque eu passei um tempo também recebendo o seguro desemprego, foi maior legal, ajudou muito e aí, a gente fala: “Vamos sair do Rio de Janeiro, não está dando mais”, porque a nossa ideia era passar um mês, dois meses no máximo em cada cidade, sabe, e “A gente está no Rio de Janeiro há seis meses”, então a gente fala: “vamos sair fora dessa cidade” “Vamos sair fora”, e aí a gente fala: “Pô, vamos arrumar as nossas coisas, vamos pra rodoviária e o lugar mais barato fora o estado do Rio de Janeiro, a gente vai”, aí era Juiz de Fora a cidade mais barata (risos), aí a gente foi para Juiz de Fora. Aí, em Juiz de Fora, a gente ficou num hotelzinho, lembro que foi a única bica que a gente levou na vida, inclusive estando na rua, porque a gente chegou… o Renato chegou na fissura de usar o highlander, dar um tiro e eu falei: “Você quer dar um tiro, eu quero fumar um baseado”, porque o dinheiro era nosso, então, tudo que a gente ganhava junto era… independente se um ganhava mais ou menos, era de nós dois, a gente administrava para os dois usarem. “Então tá, então vou descolar”, aí o Renato descolou dois mano pra passar o negócio pra nós, a gente tinha meio que 50 reais, sabe, foi 20 e poucos reais o hotel e sobrava mais uns 20, tinha mais uns 50, 100 cada um. Os caras deram a bica pra gente, deram um saquinho com fumo de cigarro e no outro saquinho com sal (risos), caralho, o Renato ficou puto! E aí, o pouco de dinheiro que a gente tinha, a merda foi feita ali, cara! Aí, no outro dia, a gente foi vender, a gente foi na universidade lá, depois, a gente fez um ponto muito legal ali… tinha o Espaço Unibanco…
P/1 – Lá no calçadão!
R – É, no calçadão, pô, mera estouro, cara! Também era a mesma coisa, era o mesmo nível do Rio de Janeiro, de fazer 100 contos por dia casa um.
P/1 – E quem que você conheceu lá em Juiz de Fora, você chegou a conhecer o povo da poesia?
R – Cheguei, mas eu não vou me lembrar o nome das pessoas, porque Minas Gerais recebeu muito bem a gente, Minas Gerais recebeu, em Juiz de Fora foi a primeira vez que a gente começou usar apoio em gráfica, sabe, para rodar os livretos, tinha um gráfico lá que ele deu uma super força pra gente, a gente rodou uns dois mil livretos com ele, sabe, e foi o dia que ele fez a diagramação, ele rodou e saiu baratinho, ele dividiu em várias vezes, mas eu não vou lembrar o nome das pessoas, mesmo porque a gente era muito nós dois também, sabe, não se misturava muito. E Juiz de Fora a gente acabou saindo porque a gente arrumou treta, a gente começou a desandar naturalmente na bebida e começamos a apostar na bilharca, tinha um bilharzinho, tinha o calçadão, subia umas três, quatro ruas para cima, tinha um jogo de bilhar que passava sempre o mesmo DVD do Bob Marley e meia-dúzia de mesas ali que o pessoal jogava apostando e a gente começou a ficar bom nisso, em apostar, a gente usava meio que os personagens do João Antônio ali, Perus, Malagueta e Bacanaço, sempre tinha um besta ali e o cara que chegava para finalizar. E aí, numa dessas tretas, teve um moleque que perdeu o dinheiro dele todo e no final das contas, quis apostar o celular e perdeu o celular, só que a gente foi lá e trocou o celular dele por droga. E aí, o moleque queria o celular de volta, era filho de polícia, aí no outro dia, a gente pegou um ônibus para… Belo Horizonte. Aí, em Belo Horizonte, ficamos no hotel do lado da rodoviária, muito bonito o hotel, com umas pinturas antigas, só que moravam 70 famílias sem teto no hotel e era do lado de uma ponte, então você dormia à noite, aí de manhã, a criançada toda nos corredores, tá ligado, meio trash o negócio, mas era barato e aí a gente não contente com esse hotel, a gente falou: “Vamos arrumar um mais barato”, aí a gente descolou um outro hotel numa rua do lado do hotel, que só moravam garotas de programas, 15 reais a diária. E aí, a gente foi ficar nesse hotel. Aí, a gente tinha um radinho Panasonic, toca-fitas, vermelhinho, sabe, daqueles antigos e ele estava no meio da gambiarra, nos filmes e a gente… desandamos à noite, bebida, tal, chegamos tarde no hotel, perdemos a chave, arrombamos a porta para entrar e para completar, a gente foi ligar o rádio, aí deu um curto-circuito na porra do hotel e pegou fogo no quarto do lado.
P/1 – Nossa!
R – Terrível, cara! Só que quem falou que a gente acordou? Que a gente soube do curto? No outro dia; “Vocês precisam ir embora” “Por quê?” “Vocês arrombaram a porta, não sei o que vocês fizeram ontem, pegou fogo no quarto do lado”, aí a gente voltou para o hotel das 70 famílias sem teto. Aí na rua de Belo Horizonte, a gente conheceu um cara chamado Paulinho Bactéria, um hippie doido, que aí eu conto mais pra frente quando eu chegar aqui em São Paulo, de novo. Aí, esse Paulinho Bactéria falou: “Eu estou saindo de um apartamento ali no Maleta, uma quitinete, mas o pessoal fez dois quartos dessa quitinete, tem ainda uma salinha pequena e uma cozinha pequena e eu estou saindo desse quarto, é 150 reais o mês e se vocês quiserem, vocês vão para lá, só vocês irem lá e trocar ideia com as meninas”, aí a gente foi para esse… a gente fechou esse lugar aí …
P/1 – Era cinco reais por dia?
R – Foi o que a gente falou… a gente saiu um dia e paga o hotel, o quarto, porque em Belo Horizonte, voltou o tempo de ouro também que nem era no Rio de Janeiro. Belo Horizonte foi fantástico, foi foda, em termos de mulher, de grana, tá ligado? A merda toda entre eu e o Renato é que em Belo Horizonte, no meio de tantas mulheres, a gente foi meio que… teve duas mulheres ali que a gente quis ficar com elas, sabe? E rolou o atrito sabe: “Pô, você quer ficar com a mina, eu que conheci…”, rolou uma treta, foi quando a gente se desligou, no final das contas, pela primeira vez. A gente foi morar nessa… no Maleta e continuamos no rolê, ia para PUC, lá para cima, eu não vou lembrar o nome dos lugares, porque foi 2002 isso, cara, faz tempo! Já faz mais de dez anos e no Palácio das Artes, Paço das Artes, uma coisa assim…
P/1 – Paço das Artes.
R – Então, o Paço das Artes, a gente ficava ali no ponto mesmo e o legal foi que gente voltava: “Minha vizinha comprou um livreto seu, quero comprar um também”, sabe, foi um coisa que começou, aí começou a vir mídia também para cima da gente: “Quero fazer uma entrevista com vocês na TV”, e a gente negou tudo, saca? Negamos… bestas, na realidade, com medo de tudo. E começamos a ser questionados também, porque em Belo Horizonte, a gente passou seis meses também em Belo Horizonte: “Pô, vocês estão aí há seis meses na cidade, soltando caô que vai lançar livro, vejo vocês mudarem de livreto a cada dois, três meses e vocês não lançaram livro nenhum, qual é a de vocês?” (risos) A gente vendia bem mesmo, sabe, ganhava melhor do que qualquer trabalhador ali…
P/1 – E você não se animava em fazer livro?
R – A gente não tinha grana para fazer livro, cara, não tinha condições. (risos) É serio, não tinha condições, cara. Sei lá, o Renato tinha material de repente suficiente para fazer um livro, mas eu acredito que, por exemplo, pra mim, distribuir vários livretos fez com que eu amadurecesse muito a minha poesia de publicar um livro. Eu gosto muito do meu livro “Encarna’, o meu livro “Encarna”, eu acho que eu consegui fazer um livro legal, mas o meu segundo livro mesmo que é o “Multívio”, eu já não gosto dele, eu já acho que se eu tivesse exercitado, feito “Encarna” e exercitado mais em uns dez, 20 livretos ali, de repente, o segundo livro teria saído melhor do que saiu. Então, eu gosto muito do livreto na minha vida porque ele me fez ser mais autocrítico da minha poesia, ouvindo inclusive, a crítica dos outros ali da rua. Teve um livreto meu que eu estava todo deprimido, escrevi todo livreto triste, cara, teve um cara que: “Meu, como que você consegue vender isso?” (risos) “Isso aqui é triste demais, como que você vai vender isso na rua?”, sabe, então acho que produzir os livretos foi muito importante pra mim, em termos de poesia, eu acho que eu amadureci a minha poesia nessa onda de fazer livreto, nessa onda de… porque às vezes, aconteceu comigo de escrever dois, três poemas que achava bom e juntar mais dois, três poemas antigos e fazer um livreto e lançar o livreto ali, sabe? Não ter esse compromisso de fazer algo bem pensado, bem bolado, o livreto era essa ideia mesmo do descartável, né? Enfim, e aí, nessa época, veio o lance da associação com os poetas marginais, nessa época que a gente começa aí, a ir para o Rio de Janeiro, ir para outros lugares, para Juiz de Fora, começa essa associação com os poetas marginais que a gente, até então, não tinha. Aí, o pessoal fala: “Vocês são da Poesia Marginais”, a gente falava: “Não, não é”, como assim, poesia marginal? Não somos marginais, sabe? Mas também, a gente não conhecia o movimento que teve na década de 60, 70 que aí, foi aos poucos: quem são? E aí, vai conhecendo as pessoas. Aí, em Belo Horizonte, a gente ficou seis meses, os primeiros quatro meses a gente ficou… a gente não ficou nem um mês nesse hotel, nesses hotéis, depois fomos para essa casa aí e daí, a gente foi despejado do Maleta, porque a gente pagava o aluguel, as meninas desandavam com o aluguel que a gente pagava, não pagava o aluguel, fomos despejados, aí fui morar em Contagem, longe. Longe, tinha que pegar trem para vir, sabe? Aí, foi a época que eu dormi muito na rua em Belo Horizonte, dormi muito na rua, tinha galera doida que dormia na rua e fui fazer amizade, eu sempre doido, e o Renato foi morar na Pampulha. Nisso, a gente começou a desandar muito, cara, não voltar para casa, isso desgasta muito, eu já era magro, eu fiquei… osso, cara! E ao mesmo tempo com esse lance de desandar não… aí entro nesse papo mesmo: “Pô, vocês estão aí há seis meses dizendo que vão fazer livro e vocês não estão fazendo livro nenhum”, sabe? Começou a ficar mais foda a rua também para ganhar grana, que a galera também começou a sacar que gente estava desandando muito, né? Aí, teve um Fórum Social Brasileiro, uma coisa em Belo Horizonte, a gente falou: “Vamos nos levantar aí nesse fórum e sair fora de Belo Horizonte, que já deu”, quem falou que a gente se levantou? Nada, enterramos mais ainda (risos). O que aconteceu? Eu falei: “Puta…”, entrei naquela crise: “Preciso embora! Estou só o pó da rabiola, desandando mesmo, preciso ir embora, preciso ir embora”, e nada de conseguir fazer dinheiro, para fazer 80 reais para pegar uma passagem, sabe? Nada. Aí eu falei: “O que eu faço? O que eu faço?, aí tive a ideia da assistência social. Aí, eu fui na delegacia, fiz um Boletim de Ocorrência, minha carteira de trabalho e meu RG já tinha deixado nos hotéis passados ali, aí fiz um Boletim de Ocorrência dizendo que eu tinha sido assaltado, que tinha ido para o fórum (risos), fui assaltado, cheguei na assistente social e falei: “Fui assaltado…”, antes eu liguei para a minha mãe e falei: “Mãe, confirma tudo aí que eu vou ter que ir embora”, ao mesmo tempo não querendo pedir dinheiro para a minha mãe para poder voltar. Aí os caras me mandaram de volta para São Paulo (risos).
P/1 – Boa saída.
R – Me mandaram de volta para São Paulo.
P/1 – Então você chega em São Paulo em que ano que nós estamos falando?
R – Acho que chego em final de 2003.
P/1 – Final de 2003?
R – É, fiquei um ano e meio, quase dois assim. Porque em Belo Horizonte, a gente parou um pouco lá, mas Belo Horizonte acabou servindo um pouco como base, porque aí eu fui conhecer Ouro Preto, conheci Mariana, conheci outras cidadezinhas ao redor ali, sabe? Foi massa pra caramba ter ficado em Belo Horizonte ali, por isso. Aí, chego em São Paulo, eu volto a morar com a minha mãe, cara.
P/1 – No Taboão?
R – No Taboão. Fui morar com a minha mãe, o Renato chega um mês depois (risos), e aí a gente decide viajar de novo juntos, a gente vai para o Rio de novo, aí fica nesse bate-volta: Rio de Janeiro, aí eu começo a namorar… foi a minha primeira namorada, aí já estou velho já pra primeira namorada, mas aí eu tenho uma namorada que é a Flávia. A gente fala que Nelson Rodrigues sentiria inveja da nossa história, porque ela mais jovem do que eu, ela tinha 18, 19 anos, eu já tinha uns 20 e poucos e a gente tretava muito cara, tretava muito, desandava… quando eu falo desandar, eu nunca fui de desandar na cocaína, eu fui descobrir a cocaína tarde também, sabe, mas alguns amigos, o Renato por exemplo, já desde moleque já cheirava cocaína, a Flávia desde cedo, a nossa relação ficou muito tensa justamente por causa disso também e eu não curtia isso, enchia o cu de maconha, enchi o cu de cachaça, mas cheirava cola, mas não cheirava cocaína, sabe, uma coisa meio… uma coisa nada a ver com a outra, mas enfim… a Flávia, a gente se apaixonou muito e falamos: “Vamos morar juntos”, aí a gente largou as coisas aqui em São Paulo e fomos morar em Paraty num cortiço, a mãe dela chegou no cortiço uma vez e falou: “Nossa, o que você está fazendo com a minha filha?” (risos) E era corticinho cabeça de porco mesmo, sabe, era terrível! Tretei com a Flávia nesse cortiço, foi quando a gente terminou pela primeira vez, ela puxou uma faca para mim, quebrou todo o quarto… mas antes de acontecer isso, ela estava desandando muito, cara, desandando muito e aí, eu brigando muito com ela por causa disso. Aí uma noite anterior, ela virou o olhinho, eu falei: “Pô, não pode mais continuar com isso”, aí a gente fez amizade com o cara que fazia movimento do highlander, então de vez em quando, a gente parava pra jogar um baralho com ele, beber uma cerveja, e nesse dia, a gente estava justamente onde ele faz o movimento, jogando um baralho e aí, chega ela doidona de highlander, faz o maior escândalo, tretando comigo e aí, só sei que rola a maior treta com a polícia, aí chega na cabeça de porco ali, ela está doidona ainda no highlander, falando um monte, ela puxa a faca, quebra espelho, quebra tudo, aí eu: “Quer saber? Eu vou embora também dessa porra”, aí eu peguei as minhas coisas, falei: “Quer saber? Vou zoar com você também, vou levar as suas coisas também” (risos) aí eu fui embora, eu fui para Ilha das Cobras lá em Paraty.
P/2 – A Flávia é a mãe da sua filha?
R – Não. Aí, eu volto para São Paulo, ela vai para o Rio, que o nosso plano era ir para o Rio de Janeiro nessa época, aí a gente continua a vida, aí um mês, dois meses depois, ela aparece em São Paulo, a gente fica de novo, ela pede pra mim voltar, para ir para o Rio com ela, aí eu pego e vou (risos) e aí, nesses dois meses, ela meio que arrumou um caso lá no Rio de Janeiro (risos), Nego Trema, Nego Drama, um negão lá do Complexo do Alemão. E aí, eu meio que vou morar com ela, na quitinete que ela alugou, divido as contas e tal, aí num desses dias, eu saio, vou para PUC vender a minha poesia, falo: “Pô, vou chegar mais cedo aí pra gente fazer uma janta junto”, tal, coisa assim, aí eu chego, ela não está em casa, vou pro rolê, aí quem eu vejo? Ela com o outro cara, segurando a camisa do outro cara, tal, aí: “Putz, fudeu, mano”, aí volto pra casa, tiro as minhas coisas e vou para o hotel e tretamos, acabou, né? Aí fico sem ver ela um mês, fiquei sem ver ela um mês! Me apaixonei de novo pela Ana Maria, linda! Linda, linda, linda e aí um mês depois, uma coisa assim, eu trombo a Flávia na Cinelândia e ela chega e fala: “Estou grávida, não sei se é seu ou se é do outro” “Puta merda!”, aí foi foda no coração, cara! Sabe, quando dói o carnação que você fala: “Caralho!”, enfim cara, por esse lance da paternidade acho que da infância, eu nunca quis ser cuzão com nenhuma mulher da minha vida, que fosse ter um filho meu ou que não fosse ter um filho meu, que entrasse nessa dúvida que fosse ou não fosse meu, então a minha primeira atitude foi: “Você não sabe, você precisa fazer algum exame, se cuidar, tal, para ver o que é”, e a mãe dela falou… é médica aqui em São Paulo, eu falei: “Sua mãe é médica em São Paulo, a rede pública aqui do Rio de Janeiro é trash, você já sabe que está grávida, vai para São Paulo, a sua mãe adianta o lado de fazer alguns exames para você lá, ver se está tudo bem e é isso aí, se for meu…”, eu meio que sabia que não era meu, tá ligado, eu falei: “Eu assumo”, porque o cara era contenção no morro, tá ligado? Sabe o que é contenção? São os linhas de frente do morro, que faz a contenção antes dos que… os que soltam fogos, que fazem a contenção antes dos polícia subirem, e puta, o cara me ameaçou de morte, nossa, cara, eu e o Renato, a gente subiu no Morro da Providência, compramos uma Beretta de cinco balas para matar o cara, tá ligado, o negócio ficou serião, quando vira uma bola de neve ali que você fala: “Caralho mano, ou eu mato ou eu morro”, sabe? A gente comprou uma Berettinha, foi 150 reais, eu trabalhei o dia inteiro para comprar uma Beretta, fui comprar uma Beretta e falei: “vou matar o cara, ou sou eu ou é ele”, aí teve um dia que eu troquei ideia com o cara, aí o cara chorou: “Eu amo ela, que não sei o que… eu falei que eu ia fazer um filho com ela…”, eu falei: “Não vai dar nada essa porra”, joguei a Beretta dentro de um esgoto, foi foda e aí, a Flávia voltou para São Paulo para fazer os exames e tudo mais e estava sendo gerado nas trompas, olha o alívio! Aí, ela teve que fazer um aborto, porque não dava para gerar, e aí, a gente voltou (risos)
P/1 – Nossa!
R – A gente voltou cara, ficou mais um tempo juntos e terminou em disgrama depois de novo, que aí, ela voltou a morar em São Paulo e aí, eu tinha um brother, o Mário que aconteceu a mesma coisa, basicamente, a gente entrou num lance de ficamos ou não ficamos juntos, ficamos ou não ficamos juntos, falamos: “Não vamos ficar juntos, mas eu não pego nenhuma amiga sua e você não pega nenhum amigo meu”, e ela pegou um amigo meu (risos). E aí, acabou a amizade, a gente ficou uns cinco anos sem se falar, o ano passado, a gente se falou, se comeu e está tudo bem agora de novo.
P/2 – Berimba, você tem mais um pouco de entrevista, aí você precisa falar duas coisas, acredito, que são Edições Maloqueiristas e Literatura Divergente. Então, o que é a Edições Maloqueiristas, como que começou a publicação dos livros?
R – Então, quando eu comecei a publicar, foi tendo como exemplo o Sérgio Luiz Dias e o próprio Renato Limão, e tendo essa noção de que eu não precisava de uma editora para publicar, começou essas ideias das edições e tive acesso também ao material das Edições Pindaíba, que são umas edições da década de 70, que a galera produzia muita coisa, eram edições simples, mas que a galera produzia quatro mil livretos, sabe, uma coisa absurda…
P/1 – Ulisses Tavares…
R – Ulisses Tavares, eu tive acesso a um livrinho chamado “Nego a Poesia”, que era uma privada, eu acho que eu tenho em casa até hoje, em casa aqui, não, mas na casa da minha mãe, que ficaram umas caixas lá. E eu adorei essa coisa das edições Pindaíba, sempre quis ter umas edições, edições e edições, edições do quê? Já tinha a Poesia Maloqueirista, edições do quê? Aí, veio a edições Maloqueiristas que foi também acho que consequente, foi consequência de estar sempre publicando de forma alternativa, independente e estar usando o selo Poesia Maloqueirista nesses livretinhos todos, todos os meus livretos, basicamente, tem Poesia Maloqueirista, acho que só no primeiro e no segundo livreto… em 2004, a gente começa a fazer a revista “Não Funciona”, que foi uma revista que a gente montou um grupo de estudo, o Teatro Oficina tinha aquela ideia de fazer a universidade antropofágica… acho que é antropofágica, uma coisa assim. Então a gente meio que montou a primeira turma dessa pseudo-universidade, que foi uma galera que estava ocupando o Teatro Arena, uma galera que fazia parte do Teatro Oficina e nós, da Poesia Maloqueirista que era basicamente, eu e o Renato. E aí, o Caco, nessa época, ele estava fazendo um lance no Teatro Arena e tinha essa ligação com o Teatro Oficina. E aí, a gente montou um grupo de estudos que a gente se encontrou umas cinco, seis vezes, cara, no Teatro Arena para falar sobre a vida e a obra de Oswald de Andrade, o nosso primeiro tema como estudo era a vida e a obra de Oswald de Andrade e nessas discussões, veio o lance: não há nada de novo, não há nada que publique algo sem pretensão, publique algo que de repente, registre o que está acontecendo, etc. e tal, e aí: “Vamos fazer uma publicação” “Qual o nome dessa publicação?”, aí vendo os cadernos de poemas de Oswald de Andrade, o primeiro caderno de poemas tem um ponto… um dos poemas é um ponto de exclamação escrito: “Não Funciona” em baixo e aí, foi dobrar uma folha A4 no meio que deu uma espécie de ponto de exclamação e escrever “Não Funciona”, vai chamar “Não Funciona”, e aí, começamos a publicar essa revista “Não Funciona”.
P/2 – E funcionou?
R – Funcionou, cara, a gente publicou pelo menos 700 autores, do Brasil e do mundo, foram 20 números.
P/2 – Como que vocês faziam a seleção de autores?
R – Isso que era… às vezes, o primeiro VAI que a gente ganhou, a gente se preocupou em fazer uma edição mensal da revista, então, a gente saía catando gato e cachorro, sabe, chamando algumas pessoas que a gente queria publicar mesmo, o Glauco Mattoso contribuiu muito, era um dos caras que sempre mandava textos, ou então quando ele não podia mandar textos, ele falava: “Entra no site e pode escolher um ou dois textos e colocar na revista”, a gente publicou uma galera massa, publicamos Ademir Assunção, Chacal, Marcelo Montenegro, putz, uma galera cara…
P/2 – E a distribuição?
R – A distribuição era feita no mano a mano, intervenção, vendendo na rua, era três reais cada revista, então a gente vendendo na rua, na intervenção, a gente distribuiu muitos exemplares para bibliotecas públicas da cidade e era basicamente isso, no mano a mano mesmo, normalmente, a gente não conseguia esgotar os números das revistas, mas a gente, pelo menos por mês, a gente deixava umas 600, 700 revistas circulando na cidade. Teve uma vez que a gente foi convidado para fazer o Primavera dos Livros lá no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros convites… não, não foi Primavera dos Livros, foi Santa Tereza de Portas Abertas, foi um dos primeiros convites. Aí o pessoal falou que ia dar uma grana para gasolina e só, então a gente passou uma semana fazendo intervenção e vendendo a revista nos bares aqui, todos os bares, chegava, declamava poesia, eu dava a revista, dizia que eu ia para o Rio de Janeiro para participar de um festival, a gente conseguiu levantar 700 contos na semana. E fomos com o carro do Pedro, a parati, só que a porra da parati furou os dois pneus no meio do caminho, cara, você acredita, no meio do caminho, dois pneus, os 700 contos que a gente tinha feito para ir e voltar, ficou mais que a metade no pneu, ali, dois pneu novos. E para voltar do Rio de Janeiro, a gente teve que fazer a mesma coisa, ficar o festival todo, em vez de sabe, ficar na posição de conhecer pessoas, meio que na função de vender para ganhar grana para voltar. Onde estava? Nas Edições Maloqueiristas, né?
P/2 – Você falou da “Não Funciona” e os livros…
R – Isso, aí em 2008, a gente ganhou o VAI de novo, só que a gente se propôs a fazer menos edições da revista e lançar três livros: um meu, um do Caco e um do Pedro e aí, para lançar esses três livros, a gente fez uma parceria com a Annablume e aí a gente conseguiu lançar os livros, mil exemplares de casa, em 2007, 2008 que a gente lançou esses livros, 2008, é!
P/1 – E qual é o nome do seu livro?
R – O nome do meu livro?
P/1 – É, nessa…
R – “Encarna”.
P/1 – Ah,. É o “Encarna”?
R – É o “Encarna”.
P/2 – Você lembra algum poema do livro?
R – Lembro.
P/12 – Pode falar pra gente?
R – Tem… acho que o último poema é… o ultimo ou o penúltimo poema é um poema que eu gosto, que chama “Predileção”, é: “Um/ Ou/ Outro/ Poeta/ Vivo/ Que/ Da/ Palavra/ Muda/ Faz/ Verso”, acho bonitinho esse poema e aí tem o “Pe/ ri/ go/ sa/ a/ vi/ da/ sem/ na/ va/ lha”, tem vários poeminhas, tem… no “Encarna”, eu quis colocar alguns poemas antigos, tem o meu, e eu tirei todos os títulos também de cada, eu deixei sem título, tem um poeminha antigo no “Encarna”, que acho que é um dos mais antigos, chama… é bem romanticozinho, como que é? Acho que é: “Flor amorosa/ em velhas veredas/ um só pecado/ e nenhuma sombra/ na cidade de luz/ se ganha a vida/ em noites ilustradas/ dê-me motivo/ para não viver de romances/ na vida não há depois/ pois viver mata/ amando ou não.” Tem vários poeminhas desse em cada, eu precisava do livro para lembrar, mas tem vários. Eu acho que falando de poesia falada, eu acho que eu falei muito mais poesia dos outros do que as minhas, eu acho que os meus poemas são mais para serem lidos, são mais aquela coisa individual que você para pra ler ali, tal?
P/2 – E qual a diferença entre vender um livreto e vender um livro na rua?
R – O livro, ele me deu mais respeito, as pessoas me respeitaram mais quando o livro surgiu, as pessoas veem com outro ar, sabe? Tira o ar da molecagem, de estar ali na rua só vendendo livretinho para ganhar o dinheiro, o trocado, sabe? Te deixa menos pedinte, não que você não continue sendo, mas te deixa menos pedinte, você usa menos apelo para poder vendê-lo, sabe? O livreto, você tem que ter o apelo do: “Estou tentando editar o meu primeiro livro…”, sabe, com um livro na mão, você: “Meu livro, meu primeiro livro, estou na batalha divulgando, se quiser contribuir…”, e para mim foi muito fácil vender o meu livro, eu vendi mil em seis meses, mil livros porque eu já tinha essa experiência do livreto, então eu deixei muito livreto já, tinha dia que eu vendia 50 livretos no dia, cara, sabe, então você pensando em seis anos vendendo só livretos, porque foi basicamente isso que eu passei, seis anos vendendo só livretos, quando surgiu o livro, tinha gente que comprava de dois, três, tá ligado? E um livro bonito, na época, era um livro puta bonito, bem ilustrado, acho que eu consegui reunir uns poemas legais para esse livro que isso é uma coisa também que eu sempre pensei em termo de poesia, não dá para fazer poesia só para o cara que super lê poesia a vida inteira, e que vai olhar a forma, o ritmo, a métrica, sabe, toda a simbologia que pode levar o poema ali, mas eu acho que o poema tem que ser feito para a pessoa que não lê também, sabe, para a pessoa sentir a imagem… poder ser tocada ali pelo poema simples também, que não vai ser aquele poema rebuscado, cheio de imagens que você vai ler cinco, seis versos e vai perder o que foi dito no primeiro, tá ligado? Acho que a poesia… eu sempre tentei chegar nessa coisa simples, poema ser simples. Eu até ouvi uma frase uma vez que diz que as pessoas que leem querem ver-se naquilo que são incapazes de fazer, eu acho que a poesia, ela tem que ter um pouco disso, ela tem que ser… para ela tocar o leitor, ou tocar até mesmo você, ela tem que falar daquilo que você foi incapaz de dizer, sabe, e que você enxergou ali. Onde eu estava?
P/1 – Eu queria saber então, como dos três livros se tornaram 26?
R – Tá, aí entra o seguinte, aí acabou o meu livro, aí eu: “Preciso publicar mais, preciso fazer outro livro”, tanto que o “Multívio”, eu não gosto tanto dele que eu acho que eu fiz ele correndo, mesmo, às pressas, e não me dediquei à obra. E aí, vem essa ideia: “Vamos fazer mais livro”, e aí vem essa questão de não poder voltar para o livreto, no meu caso, e de saber que na rua o livreto não dá tanta grana quanto um livro, por exemplo, você ganhar dez reais num livreto, você precisa ou da sorte de uma pessoa chegar e te dar dez reais ali na hora ou você vai vender cinco livretos, dez livretos, às vezes, 20 livretos para ganhar dez reais. Tudo bem que você atinge mais, porque o lance é mais barato, mas você trabalha mais. E aí, com essa ideia, eu falei: “Preciso publicar algo que seja interessante para o meu bolso e que também seja interessante para o público”, porque é continuando essa ideia: eu não posso chegar com um trabalho na rua a 20 reais, vai ser mais difícil de vender, sabe? Tem que ser um trabalho popular mesmo, para disseminar. E aí, conheci o lance das gráficas digitais, delas começarem a trabalhar por demanda, tive acesso a gráfica da Editora Hedra e fiz o meu livro que foi o “Multívio”, que foi o primeiro livro dessa série, que saiu nessa coleção, inclusive. E aí, na sequencia, vem eu convencer o Baffô para ele fazer um livro também, aí eu falo pro Baffô: “Pô, faz um livro, que eu acho que você vai criar mais… vai ter mais respeito da parte dos leitores e vai disseminar mais o seu trabalho e ao mesmo tempo, você pode fazer disso o seu ganha pão, tá ligado, em vez de você ficar na rua, na correria do camelô, de repente, você só fica na rua na correria dos livros e se abre para outras possibilidades” e aí, faço o livro do Baffô e por aí vai, cara, a ideia é assim, eu nunca quis ser um editor convencional, um editor como uma editora, sabe, para ganhar dinheiro em cima dos autores. Aí, muitas ideias com a Paloma, veio o termo independente, que é o quê? As Edições Maloqueiristas, elas servem como base, ela não ganha dinheiro em si, com os autores e vira algo interdependente, a Poesia Maloqueirista dá base, dá o apoio do selo, do diagramador e até mesmo do revisor e da gráfica, tal e o autor se banca para poder ter o seu material e também nessa coisa de reduzir o preço para o autor poder divulgar bem, saca? Eu acho que nessas, a gente conseguiu autores como você, por exemplo, que sei lá, acho que você já vendeu uns dois mil livros do “A Vida é Bélica”, quantos livros?
P/2 – Mil e quinhentos.
R – Então, se fosse… por exemplo, se vocês tivessem lançado por uma editora, você não teria vendido esses dois mil e quinhentos, de verdade, acredito mesmo, sabe? Não teria, de repente, o Vitor Rodrigues, se ele tivesse lançado por uma editora, ele não estaria no terceiro livro dele, ele não estaria tão articulado no meio literário quanto ele está agora, porque ele tinha obrigação, ele tem sei lá se é obrigação, mas ele tinha… pode ser obrigação, mesmo, pode ser outro termo, de estar com esse livro no mano a mano, sabe. Então esse estar com o livro dele no mano a mano possibilitou ele conhecer pessoas e se inserir mais dentro do meio, inclusive, até ter ideias de novos projetos para ele, etc. e tal, então acho que as Edições Maloqueiristas é esse inter independente aí, é o autor que tem a característica de ser o cara que está no mano a mano, no tête-à-tête, pegar para si as Edições Maloqueiristas e com ela, poder dar uns passos.
P/1 – São 20 e quantos livros?
R – São 26 livros.
P/1 – Vinte e seis livros, você já citou então alguns, Giovani, Jonas, Vitor, quem mais?
R – Tem Paloma Kliss, tem Aline Binns, Laura Castro, Guilherme Salgado, Geovani Doratiotto, Thiago Cervan, Caco, Renato Limão, Pedro Tostes, Zinho Trindade, Marcelo Nietzche, Heyk Pimenta, é gente pra caramba! E foi no processo de 2011 que foi quando eu fiz… 2010, 2011, quando eu fiz o meu “Multívio”, até 2013, 2015, né? Dois mil e quinze, 2014 que foi quando a gente lançou esses 26 livros de uma vez só. E às vezes… só mais uma coisa e aí, eu tenho que falar do Divergente, né?
P/2 – E da Récita também.
R – E aí, por exemplo, comparado a Patuá, Patuá, eu acho que a gente começou a publicar mais ou menos na mesma época, Patuá é um editora que é mais comercial, eles estão sei lá com quantos títulos, a gente tem 26 títulos, mas desses trocentos títulos que a Patuá tem, eu acho que eles não têm cinco autores que venderam mais de dois mil livros, sabe, a gente tem pelo menos seis autores dali que venderam dois mil livros, fácil. Eu acho que isso é importante, porque esses autores se formam a partir disso, a partir de que os livros não eram registados na Biblioteca Nacional, nem nada, então, como vai oficializar esses autores? Eu acho que eles estão muito mais do que oficializados a partir do momento em que eles venderam mais de duas mil cópias de um livro.
P/1 – Ah, sem dúvida!
R – Eu acho que o Baffô… acho que ajudou muito na carreira do Baffô ter lançado com as Edições Maloqueiristas, acho que…
P/1 – Se torna o autor empreendedor, isso que é legal, que num esquema de uma editora tradicional, você não consegue fazer isso.
R – É, o livro sai 26… os livros, quando você vai comprar pela editora, sai 26 reais um livro, como que você vai chegar com um livro na rua a 50 reais? Fodeu, né? E aí, Literatura Divergente. O Literatura Divergente, eu sou meio que um aprendiz do Maca, acho que eu me considero aprendiz, eu acho que em 2011, eu fui convidado para ir lá na Bienal de Recife para falar sobre Poesia Maloqueirista, sobre as experiências com a Poesia Maloqueirista e tinha conhecido o Maca não sei como e aí, comentei com ele no face: “Estou indo para Recife, vou passar uma semana lá”, ele falou: “Se você quiser vir para Salvador, passar uma semana aqui…”, aí eu falei: “Pô, não conheço Salvador, vou ficar na casa de um cara legal”, e aí, eu consegui mudar a passagem de Recife para Salvador e consegui ainda, um boi que me deram a passagem de Salvador para São Paulo de novo, então consegui maior boi. Aí, eu fui para Salvador e fiquei uma semana na casa do Maca, mas foi uma semana que eu não conheci basicamente Salvador, conheci dois, três lugares ali, mas que eu fiquei uma semana só trocando ideia com o cara, falando sobre as minhas percepções… a minha visão sobre o movimento de literatura contracorrente, ele falando sobre a visão dele, sobre o conhecimento dele de literatura negra, literatura afro-brasileira, de movimentos negros e tudo mais e nisso tudo, ele chegou com esse termo da “Literatura Divergente”, e eu me identifiquei muito com o termo “Literatura Divergente”, porque é o que eu penso assim, a gente vive numa sociedade que o espetáculo literário são vários, sabe, você tem desde o cara… vamos trocar o espetáculo literário, vamos colocar que a pirâmide literária, ela tem vários níveis, e as pessoas que estão na contracorrente, que fazem parte dali embaixo, que não estão no topo da pirâmide, mas que estão ali embaixo, elas usam de várias formas para fazer literatura, sabe, desde a intervenção no poste como o Binho, a declamar poesia na rua, a questão do blog, a questão da publicação, a questão da performance, a questão de como articular para a literatura poder chegar. E eu me identifiquei muito com o termo divergente porque veio toda essa coisa, tem um leque de pessoas ali criando, produzindo que fazem parte dessa contracorrente e não dá para usar literatura de contracorrente, eu não gosto do termo “Literatura Periférica”, eu acho que o termo “Literatura Periférica” é muito região, sabe? É muito geográfico, é uma coisa muito geográfica, a literatura é universal, ela não é periférica, ela é para um todo, sabe? E me identificando com esse termo, eu sugeri para o Maca: “Pô, vamos fazer um evento que a gente possa reunir figuras pra gente ver o que é realmente essa literatura divergente que a gente está chamando de divergente?”, e aí vem a ideia dos encontros de “Literatura Divergente”, que aí eu me pego como um curador desse evento, eu acho que porque muito mais eu estava ali nesse primeiro momento em que o Maca estava remoendo sobre esse termo, o que seria “Literatura Divergente”.
P/2 – E como foram os eventos?
R – Os eventos para mim foram descoberta, descobrir por exemplo, o Pedro Bomba, como ele chama? O Pedro Bomba que eu não conhecia pessoalmente, conhecia de ouvir falar e saber que o cara tem uma puta poesia, cara, que o cara tem um puta texto oral. Trazer o Chapolin que eu já tinha contato e saber que o cara manja muito sobre copyfight, sobre esses termos novos que usam, sobre colagem, como ele transgride a literatura. É conhecer o Teco, saber que o cara é funkeiro mesmo, que as letras de funk, o cara está sempre tentando fazer umas letras responsas e tal, ao mesmo tempo, por trás de um movimento no Rio de Janeiro que está tentando fortalecer a galera que mora na zona periférica… sei lá, cara, trazer a Heloisa Buarque de Holanda e saber que ela continua chupinhando a galera da contracultura para poder continuar escrevendo… mas é isso mesmo, cara! (risos) É legal o que ela fala dos caras e tudo mais, mas sabe, o que ela fez? Agora, ela resolveu falar da galera da periferia depois que o negócio estava explodindo, mas antes, quem falou que ela estava pesquisando? É fácil você inventar universidade das quebradas para ganhar dinheiro, tudo bem que você está produzindo ali, está fomentando, está ajudando uma porrada de gente a descobrir outros mundos ali, mas quem é a Cufa, AfroReggae, são movimentos que se a gente for pensar, são movimentos periféricos, como esses que atuam hoje em dia, como esses movimentos pequenos que atuam hoje em dia, Cooperifa, Binho, Elo da Corrente, a Cufa, AfroReggae, Olodum são movimentos que vêm lá do final dos anos 80, começo dos anos 90 que começaram por articuladores culturais ali na zona periférica a fim de fortalecer a periferia, fortalecer o conhecimento ali entre o povo, mas você pega a Cufa, AfroReggae, Olodum, os caras viraram industrias, são figuras que fazem parte da indústria cultural, os caras…
P/1 – Berimba, já que você citou aí Binho, Cooperifa, conta pra gente, você que viu esse movimento aí pra gente você que viu esse movimento dos saraus nascer em São Paulo.
R – Então… a gente da Poesia Maloqueirista, a gente declamava muito a poesia, a gente teve muito como referência… acho que o Minchoni deve ter mencionado um monte aqui da galera do CEP 20.000…
P/1 – Sim.
R – Quando a gente começou a falar poesias, a gente começou a falar coisas do Chacal, do Guilherme Zarvos, enfim, de figuras ali, sabe, “Artista é o caralho”, a gente fazia coro para declamar “Artista é o caralho”, sabe? E a gente circulava os bares falando poesia e tudo mais e aí, começamos a ter acesso a saber que estava rolando o sarau da Cooperifa, estava rolando o sarau do Binho e a gente começou a frequentar esses saraus, putz, era… eu acho que tudo se transforma, cara, inclusive discurso, eu acho que o discurso que tinha a Cooperifa mudou, não sei se para melhor ou para pior, eu acho que tomar cuidado para não virar um AfroRaggae, uma Cufa ou um Olodum, sabe, de fazer parte da industrial cultural periférica e só isso. O Binho mudou o discurso, mas acho que mudou o discurso para melhor, o cara se tornou mais humano, quis juntar mais gente, vi que ele conseguiu tirar uma parte do muro, ele ainda continua tentando tirar a outra parte do muro, acho que a Cooperifa tirou a parte do muro ali, ficou ali, mas antes tem o Literatura Marginal do Ferréz, não dá para citar a ascensão desses saraus sem citar essa publicação que o Ferréz articulou nos anos 2000, se eu não me engano com a “Caros Amigos”, que reunia vários autores. Eu acho que isso deu um bom gás para esses autores que estavam começando, ou senão ainda estavam tentando se inserir, deu um puta gás para eles, incentivo mesmo e Binho e Cooperifa, eles são a base dessa chamada Literatura Periférica, desse pipocar, desse grande fôlego que tomou a literatura nessas últimas décadas, a gente está indo para a segunda década, a literatura está pulsando em São Paulo, ainda, né? Acho que a partir deles, eles deram vozes, eles conseguiram dar fôlego para outros movimentos, como Sarau da Braz, Elo da Corrente, o próprio Alessandro Buzo começar um sarau, sabe, e aí também vêm as coisas ruins porque você fala: “Tem mais de 150 saraus na cidade”, vamos chutar isso, mas teve uma porrada de sarau que começou também muito mais para um lance comercial, sabe? “Fulano de tal está contratando sarau porque é bonito sarau”, sabe?
P/1 – Para entrar no edital…
R – É, e aí você começa a ver vários grupos que não vêm com a mesma vontade de articular, de movimentar, mas sim de fomentar mais um produto cultural para ser vendido.
P/2 – E o seu sarau, a Récita Maloqueirista?
R – Cara, a gente nunca quis fazer sarau, a Poesia Maloqueirista, a gente foi meio que obrigado a ter um produto cultural que se adequasse a um… porque a gente viu tantos saraus surgindo que a gente não queria fazer um sarau, a gente fazia um evento chamado C.A.I-MAL antes que era o Centro de Ação Informal, porque a gente não pensava no sarau com um apresentadorzinho: “Boa noite… são todos bem-vindos”, os saraus em São Paulo eram uma coisa muito certinha: “Estamos aqui hoje com Jonas Worcman, Jonas Worcman é filho do José que é um grande escritor…”, sabe umas coisas assim? Você já foi aqui nos saraus de São Paulo que é uma coisa da classe média mesma, fazer uma coisa assim, sabe, você fala: “Caralho, o que é isso, mano?”, a gente fazia o Centro de Ação Informal que era uma bagunça, a gente falou: “Vamos fazer uma bagunça, vamos trazer o artista plástico que vai pintar na hora, o performance vai ficar fazendo a performance, o músico vai ficar tocando, o poeta que vai ficar falando, o cara que vai ficar passando a projeção dele e seja o que Deus quiser”, fazer um caos mesmo e a Récita Maloqueirista, a gente se viu uma hora obrigados a criar um sarau para ter um sarau (risos), sabe, aí a gente falou: “Como vai ser isso? Como vai ser um sarau? Sarau Maloqueirista? Não, não vamos usar a palavra ‘sarau’”, aí veio a ideia de usar a palavra récita. E aí a gente começou a fazer a Récita Maloqueirista no Parlapatões, uma vez por mês, aí eu lembro que as primeiras eram só nós (risos), nós três, nós quatro ali: “Olha, calma gente, vai falar todo mundo”, e eram só três ou quatro falantes, porque não tinha mais ninguém para falar e aos poucos, foi se transformando aí nesse produto cultural para a Poesia Maloqueirista. E a nossa ideia sempre foi fazer um evento, tudo bem que seja só para a poesia, ou para a música ou passar um filme, ou uma coisa, mas um evento mais livre, mais aberto, que a gente possa organizá-lo ali para ele acontecer, de repente, não deixar furos, quando sentir um vazio ali, ver que ninguém vai entrar, entra um e fala um poema, tal, mas deixar as pessoas livres para elas se apresentarem na hora, sabe, sem o apresentador, uma coisa mais livre mesmo, para as pessoas ficarem à vontade ali, de se expressarem.
P/1 – Berimba, nós estamos no final da entrevista, quer dizer, depois vai ter uma outra rodada com você, porque esse negócio de entrevista, história de vida, ela pode durar a vida inteira, mas acho que nós conseguimos fazer uma síntese aí da sua trajetória…
R – Eu tenho a vida ainda de empresário, cara!
P/1 – Hã?
R – Eu tenho a vida de empresário da noite, ainda.
P/1 – Pois é! (risos). Eu acho que depois a gente aborda isso, depois você vai fazer uma entrevista na Kombi, né?
P/2 – Quer contar em um minuto?
R – Um minuto?
P/2 – É.
R – Pode ser.
P/1 – Um resumo, o que é o seu trabalho de empresário da noite?
R – Um minuto, né?
P/1 – É, resumido.
R – Então, quando a Lorena nasceu, eu vendia livros para caralho na rua, só que depois, veio a preocupação de faltar em casa, né? E aí, começou a faltar, aí eu falei: “Vou arrumar um emprego”, arrumei um emprego de vendedor na Livraria da Vila, ganhava 900 por mês para vender dois, três paus por dia, falei: “Não é para mim”, aí eu fui trabalhar na noite como hostess. O cara que fica fazendo a comanda na frente lá da porta, aí fui trabalhar no Zé Presidente, de hostess eu fui para programador, de programador eu fui ser bar, fui ser gerente, fui fazer a porra toda e rolou a oportunidade de pegar um boteco e eu peguei esse boteco que não deu certo, depois fui morar numa casa ali na Cardeal, em cima do Ó do Borogodó e começou a faltar grana para pagar o aluguel e aí, a gente começou a fazer festa dentro da casa para se bancar, bancar a casa, mesmo com os outros trampos e aí, criamos a Nossa Casa. A Nossa Casa está indo para três anos, esse ano faz três anos que a gente tem a Nossa Casa, esse ano faz dois anos que a gente está nesse espaço novo e a Nossa Casa acho que foi como a Poesia Maloqueirista surgiu na minha vida, o termo Poesia Maloqueirista surgiu na minha vida, de forma irônica, nunca havia pensado em ser proprietário de um espaço cultural e tudo mais, acho que ultimamente, eu tenho sido mais proprietário de um espaço cultural do que poeta, por exemplo, sabe, mas eu acho que a poesia me deu base para querer ter um espaço que dialogue, que seja bacana para as pessoas frequentarem. Nossa Casa é um espaço de cultura, eu chamo um espaço de cultura provisória. Ontem, a gente recebeu a mensagem da menina que falou que se a gente continuar fazendo festas com temas de orixás, ela vai processar a gente (risos), porque a gente tem várias festas com vários temas, porque é a festa que mantém a casa.
P/1 – Mas ela quer processar por quê?
R – Sei lá, ela…
P/1 – Ela é evangélica?
R – Não, ela é acho que do candomblé, negra, sabe? Aí ela quer processar a gente, eu falei; “Processa, cara”. Vai ser até legal, ter um processo desse, né?
P/1 – Ô! (risos)
R – Não sei, eu também não fui preparado… tal como eu não fui preparado para ser poeta, eu não tive livros na infância, sabe, eu não tive… livros eu fui ter na metade da adolescência, no final da adolescência, comecei a ler tarde, para ser empresário também a mesma coisa, eu não fui preparado para ser empresário, eu fui preparado para ser operário. A vida toda eu fui preparado para ser operário, a gente dá sorte na vida, tem aquele momento que você pega o caminho ali que muda toda a sua trajetória. Eu acho que a poesia é esse caminho para mim, ela mudou totalmente toda a minha trajetória de vida como operário mesmo. Eu fico vendo os meus amigos do terceiro colegial, os caras estão com três filhos, cara, trabalhando de recepcionista no Hospital das Clinicas para ganhar mil e quinhentos reais, o cara trabalhando, sei lá, numa fábrica, o casal ganha três mil reais para viver no apartamento da Cohab, tá ligado? Eu acho que eu poderia estar nessa se não fosse a poesia, se não fossem os amigos que eu encontrei na vida, sabe? E eu não fui preparado para ser empresário e aí, nessas, eu tomo vários tombos, tomo vários tombos. Eu acho que eu tenho dívida de rico, ultimamente, eu devo pelo menos, uns 40 mil reais, mas estou pensando em não sair dessa vida, ainda, eu vou apostar nela. Aí, estou querendo abrir outro comércio esse ano (risos), me enfiar em um pouco mais de dívida e continuar com a poesia, cara, acho que as Edições Maloqueiristas, esse ano a gente está com pelo menos uns seis, dez livros para publicar de uma galera jovem, tem uma galera mais velha também, vamos publicar o Marco Pezão, o Marcelo Ariel, vamos publicar o Emerson Alcalde agora também, que é uma galera que eu acho que é um outro nível para Edições Maloqueiristas que é uma galera que está pedindo para publicar, sabe, não é a gente que está indo atrás e continuar publicando a galera jovem, também, e dessa forma interindependente, não precisar do dinheiro deles para eu sobreviver, sabe, a Poesia Maloqueirista, sempre houve essa questão: “Vai virar uma empresa ou não?” acho que não, acho que se um dia tiver que acabar, que acabe não sendo nada, sabe, não tendo nenhum registro, se tiver algum registro, vai ser na memória das pessoas, os livros que a gente deixou, as pessoas que a gente influenciou e basicamente, isso. Acho que é isso, ser empresário hoje é…
P/1 – Arriscar, né?
R – É. Mas ser poeta também é arriscado, né?
P/2 – Como foi para você contar a sua história aqui no Museu da Pessoa?
R – Cara, eu achei que ia ser mais fácil. Achei que eu ia lembrar de mais coisas, mas eu acho que entre… lembrar da vida é uma coisa difícil, cara, você lembrar de toda a sua história, eu acho que tem fatos que de repente, a gente até mistura, é uma coisa que aconteceu antes e a gente coloca depois, sabe? Eu achei que seria… que eu iria lembrar mais facilmente das coisas que rolaram na minha vida, mas é uma terapia. Uma coisa massa.
P/2 – Só para acabar, uma última coisa, se você fosse pedir alguma coisa a poesia, o que você pediria?
R – Tempo.
P/1 – Então Berimba, muito obrigado pela sua entrevista, foi muito legal.
R – Eu que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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