P/1 – Frederico, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Frederico Tavares Bastos Barbosa. Nasci em Recife, Pernambuco, no dia 20 de fevereiro de 1961.
P/1 – Federico, e seus pais são de Recife?
R – Meu pai nasceu em Recife, minha mãe nasceu no Rio de Janeiro, como toda boa alagoana, família dela é de Alagoas, mas ela nasceu no Rio de Janeiro e logo cedo foi para Alagoas e cresceu lá.
P/1 – Como que é o nome da sua mãe?
R – Nome da minha mãe é Ana Mae Tavares Bastos Barbosa.
P/1 – E do seu pai?
R – João Alexandre Costa Barbosa.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho, vamos falar um pouco da família da sua mãe. Você falou que os seus avós, que os pais dela eram de Alagoas, bisavós, conta um pouco essa origem familiar dela.
R – Bastante curioso, porque a minha mãe ela ficou órfã aos seis anos de idade e, então, o contato que ela teve maior foi com a família da mãe, na verdade, porque ela foi criada pela avó materna.
P/1 – Ela ficou órfã de pai e mãe?
R – De pai e mãe.
P/1 – De pai e mãe?
R – É.
P/1 – O que é que aconteceu?
R – Na verdade é assim, a mãe dela parece que é uma figura muito interessante, assim, uma pessoa que com todo mundo que eu já falei, que conheceu a minha avó, que morreu com 33 anos, todo mundo achava a minha avó a figura mais maravilhosa, linda e talentosa, ela era pianista, por isso era uma figura muito interessante mesmo, e se casou com meu avô, que era uma cara que morava nos Estados Unidos, ela morava em Chicago. Eu tenho uma foto muito bacana dele de Chicago de 1933, até sempre falo que é quando Eliot Ness estava chegando em Chicago, Os Intocáveis estava chegando em Chicago para combater o Al Capone, me avô estava lá. Eles se conheceram, tinha uma parte da família dele aqui em São Paulo, outra parte lá em Maceió, e se conheceram e casaram e tal, só que ele morreu quando a minha mãe tinha três anos. Depois da morte dele ela se casou de novo, a minha avó, ficou durante uns dois anos casada e depois ela morreu também, morreu de tifo uma coisa estúpida. E aí, a minha mãe ficou com a família, é até engraçado, porque a minha mãe…
P/1 – E você sabe o que é que o seu avô fazia?
R – O meu avô, ele era engenheiro, ele trabalhou lá em Chicago nessa época, estudando e trabalhando com Engenharia. E é engraçado que a minha mãe, como ela foi criada com a avó, ela até entrar no ginásio, até fazer exame de admissão, no qual você precisava de documento e tal, ela achava que o nome dela era Ana May – M, A, Y – Muniz, que é o sobrenome da minha avó, da minha bisavó, aí, quando ela foi entrar na escola, que ela percebeu que o nome dela era Ana Mae – M, A, E – e era Mae, porque o meu avô era fanático por uma atriz americana da década de 30, que era Mae West, então ficou Ana Mae – M, A, E – que dá uma grande confusão até hoje, porque toda vez que eu vou escrever o nome dela no computador, o computador corrige para mãe, no meu caso tudo bem, (risos) no meu caso e da minha irmã são os únicos casos que vale.
P/1 – Aí, ela foi criada por essa tia?
R – Foi criada pela avó dela.
P/1 – Em Alagoas?
R – É, em Alagoas, só que é engraçado porque ela não sabia que o nome dela era, ela achava que o nome dela era Ana May – com Y – Muniz. Quando ela entrou no ginásio, que aí ela percebeu que o nome dela não era esse. Ela sempre brinca e fala que tem um problema de identidade desde então, que o nome dela era, aí, foi ver qual era no registro, era Ana Mae – com E – Tavares Bastos, que era o sobrenome do meu avô. Tem até uma história engraçada, um antepassado dele mandou fazer anéis de ouro com TB escrito para todos os seus filhos e pedindo para passar para os filhos mais velhos sempre, aquela coisa bem patriarcal, tradicional. E a minha mãe acabou herdando o anel, porque ela não teve irmão, ficou com ela e depois, ela passou para mim, eu tenho esse anel até hoje, que é um anel de ouro, está escrito TB, de Tavares Bastos, que é dos antepassados lá em Alagoas.
P/1 – E o seu pai? E a família dele?
R – Meu pai…
P/1 – Seus avós?
R – É uma história engraçada também, o meu bisavô paterno ele era português, saiu de Portugal e foi para o Recife, ele ia ser padre e tal, aí desistiu de tudo e foi para Recife, meio que fugido da família. Lá em Recife, ele montou uma lojinha de secos e molhados, como um bom português e tinha um concorrente em Recife que vendia bacalhau, então era ele e outro concorrente. Aí, durante um ano, ele resolveu não vender bacalhau e começou a estocar, que bacalhau dá para estocar direito, aí começou a estocar bacalhau e tal, depois desse ano ele vendeu o bacalhau por um preço que era um décimo do concorrente, aí ele quebrou o concorrente, isso acho que ele não sabia, mas se chama dumping, quebrou o concorrente e ficou riquíssimo, milionário. E aí, agradecido ao Brasil, ele resolveu unir Brasil e Portugal, então, o que é que ele fazia? Cada filho que ele tinha ele revezava, um era no Brasil o outro era em Portugal, e ele teve 19 filhos com a mesma mulher, que depois o abandonou, essa é uma mulher corajosa, (risos) mas o abandonou e ele tinha uma mesa grande na casa dele em Recife, que todos tinham que jantar, nenhum deles podia faltar ao jantar com o pai, todos os dias, e na cabeceira oposta a dele, o lugar sempre vazio, que era o lugar dela, que os tinha abandonado, então ele fazia questão de marcar, essa...
P/1 – Ausência?
R – Essa ausência, presença. E aí, começou a ter assim, um filho lá, um filho aqui, um filho lá, um filho aqui, e o meu avô nasceu lá, mas vários irmãos dele nasceram aqui no Brasil. Nasceu lá e viveu lá a maior parte do tempo, cresceu lá, na verdade, porque ele acabava levando os filhos para estudarem em Portugal, para se formarem em Portugal e tal, alguns se formaram na Inglaterra. E o meu avô se formou lá e o meu avô cedo ele contraiu tuberculose, mas assim, ele era piloto, ele guiava no circuito Grand Prix, que na verdade, depois na década de 50, eu estou falando na década de 30, na década de 50, se transformou na Fórmula 1. O meu avô correu em Monte Carlo, em Monza, no Grande Prêmio de Monte Carlo, esse famoso, ele correu lá e tal, ele foi um grande piloto português naquele período. Ele contraiu tuberculose e tal, e aí, veio para o Brasil, foi para Recife morar lá, conheceu a minha avó, que era irmã da cunhada dele, o irmão dele…
P/1 – Ela morava em Recife também?
R – Morava em Recife, mas ele foi para Recife, foi morar na casa do irmão, o irmão mais velho dele. O irmão mais velho dele era casado com uma moça, que tinha uma irmã, que morava lá naquela casa também, que era a minha avó, aí, eles se conheceram e tal. Meu avô ele morreu com 48 anos, que ele fumava três maços de cigarro por dia, acendia um cigarro no outro e tal, tinha tido tuberculose, sempre teve problema de pulmão, morreu de câncer no pulmão aos 48 anos de idade. E a minha avó, também, com a mesma idade, só que ela era três anos mais nova que ele, três anos depois. A minha avó, na verdade, quando ela morreu, eu já estava na barriga da minha mãe, ela soube que eu existiria, mas é o único avô que teve alguma proximidade, porque os outros morreram lá na década de 40, os pais da minha mãe, meu avô morreu no final da década de 50.
P/1 – Seu pai tinha quantos anos?
R – Meu pai tinha 19 anos quando o meu avô morreu. E o mais complicado é que, o meu pai conta a história que eu acho muito bonita de que o pai dele era piloto e tal, e tinha uma grande fixação com tecnologia, que ele tinha cinco carros na década de 50 em Recife, bom, qualquer pessoa até hoje, é bastante coisa, mas na década de 50 em Recife ele tinha cinco automóveis e ele desmontava, cada semana ele desmontava o motor de um deles, desmontava e montava de novo. Então, a diversão dele no final de semana era fazer isso. E era fanático por tecnologia, e quando ele contraiu câncer, começou no pulmão, depois foi para o cérebro, que é um trajeto muito comum da doença, e aí, diz que ele já estava meio fora de si, quando foram para os Estados Unidos operar, ele foi se operar em Nova York. E chegou lá, o meu pai conta a história que mostrou para ele: “Olha pai, você está aqui em Nova York,” que para ele era o máximo, ele nunca tinha ido a Nova York e era o máximo para ele, porque afinal os Estados unidos era aquele suprassumo da tecnologia. E aí, ele falava: “Não, não acredito,” diz que ele ficou lá em Nova York um tempão, se operou, mas nunca acreditou que ele estava em Nova York. Meu pai contava que ele tentava de qualquer jeito convencê-lo de que estava em Nova York, mas ele sempre achou que continuava em Recife. O que eu acho que é até interessante, que eu tenho uma teoria que são as duas cidades mais parecidas do mundo, que são Recife e Nova York. Eu tive essa visão quando eu estava atravessando a ponte do Brooklyn com a minha irmã, estava atravessando a ponte a pé, que é uma experiência bem legal de se fazer em Nova York, e de repente eu falei: “Puxa, mas isso é Recife, é igualzinho, não tem diferença,” e é mesmo, foram duas cidades fundadas pelos holandeses. Na verdade, os mesmos holandeses que fundaram Recife, foram expulsos de Recife e foram para Nova York, e acabaram fundando a Nova Amsterdam, que é Nova York. Então, se você pensar bem na estrutura geográfica, ilhas, pontes, no fundo é, claro que com suas diferenças, mas a estrutura urbanística de Recife é idêntica, acho que a de Nova York. Tem momentos que você olha ali da Rua da Aurora e você vê aquelas pontes assim, parece que você está em Manhattan. (risos)
P/1 – Como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Eles se conheceram no cursinho, fazendo cursinho para faculdade de Direito.
P/1 – Mas sua mãe foi para Recife?
R – Minha mãe morou até os 14 anos em Maceió com a avó, aí, depois o tio dela foi para Recife, foi trabalhar em Recife, e aí, elas acabaram indo para Recife também, a avó e ela e o avô dela tinha morrido também e tal, então, ela foi com a avó para Recife, passou a morar lá em Recife. A minha mãe tem umas histórias interessantes, minha mãe queria ser médica, mas a avó dela não deixou, porque não achava que era decente a neta dela ver cadáver de homem morto, (risos) nu, então, não deixou de jeito nenhum, e forçou-a ser professora. Essa história eu acho interessante, que ela foi fazer a prova para escola Normal, que era a escola que formava as professoras nos meados dos anos 50, e caiu como tema de redação, caiu para ela escrever sobre o porquê que ela queria ser professora, e ela não queria, ela queria ser médica. Então, ela escreveu detonando, dizendo que professor só repete o status quo, que ela não queria ser professora coisa nenhuma, que professor é isso, é aquilo, realmente detonando a profissão, e aí, foi para banca, e na banca quem estava na banca é uma pessoa muito importante no Recife naqueles anos, difícil talvez hoje em dia as pessoas avaliarem a importância de um cidadão só numa cidade, chamado Paulo Freire. E o Paulo leu a redação dela e falou: “Eu quero falar com essa menina,” aí, chamou a minha mãe e ficaram conversando, ela disse que ficaram conversando umas duas horas, ele e ela e aí, ela conta que saiu de lá professora. Que é interessante essa influência dele, e era uma influência que teve até sobre o meu pai também, porque quando o meu pai estava no ginásio ainda, ele e um amigo dele, que gostava muito de ler também, como o meu pai, esse amigo dele chama Luiz Costa Lima e é um grande crítico literário, como o meu pai também foi e o Luiz falou: “Tem um cara que mora na casa lá que o meu pai aluga,” o pai do Luiz Costa Lima tinha umas casinhas que ele alugava, “tem um senhor numa casa dessas lá que sabe muito de literatura francesa e tal, a gente podia falar com ele,” aí eles falaram: “Vamos lá,” e foram lá, que aí era o Paulo Freire. E aí, eles ficavam, diz que toda semana iam lá, conversavam com ele sobre um livro e tal, ele recomendava ler esse ou aquele livro. E é curioso, porque acabou de repente a influência do Paulo neles é impressionante, porque se a minha mãe saiu professora de lá, minha mãe é uma das maiores educadoras desse país e o meu pai e o Luiz saíram também críticos, um pouco em função desse estímulo do Paulo. Mas eles se encontraram no cursinho, estudando para fazer Direito.
P/1 – Os dois?
R – Os dois. Aí, fizeram cursinho juntos, começaram a namorar no cursinho…
P/1 – Mas esse encontro com o Paulo Freire foi antes, da sua mãe?
R – Foi antes.
P/1 – Mas ela ainda decidiu prestar para Direito?
R – Ela decidiu prestar para Direito, porque ela fez a Escola Normal, já tinha, e aí resolveu fazer faculdade, resolveu fazer faculdade de Direito que era mais, na época era mais assim, você fazia ou Direito, ou Medicina ou Engenharia, não tinha muitas, lá em Recife nem tinha aberto ainda faculdade de Filosofia ou de Letras, não havia esse caminho, seria até natural para eles, mas ambos fizeram Direito, ambos se formaram em Direito. E estudaram juntos e tal e eles até brincavam muito com isso, porque quando foram fazer o vestibular, o tema de redação foi: “A minha casa paterna,” e aí, a minha mãe escreveu sobre a história dela, a própria história dela de não ter pai desde os três anos de idade. E aí, tirou dez e passou em terceiro lugar no vestibular e o meu pai passou em quarto. Então, eles sempre tiravam sarro um do outro, (risos) com essa história de que ela tinha passado, mas era porque ela tinha apelado e tal. Fizeram a faculdade e a minha mãe conta umas histórias muito interessantes.
P/1 – Então, eles eram colegas de sala também? De curso?
R – De cursinho e depois…
P/1 – Da faculdade?
R – Da faculdade também. E a minha mãe conta que na época que ela fez, eles entraram na faculdade foi em 56, por aí, só tinha ela e mais umas três mulheres, em toda faculdade de Direito de Recife, que era a grande concorrente da faculdade de Direito daqui de São Paulo, mas só tinham acho que três ou quatro mulheres, e era um preconceito terrível, diz que era assim é uma coisa. Ela conta uma história quando ela já estava grávida, porque eles entraram na faculdade, eles casaram quando estavam no terceiro ano e no último ano, ela já estava grávida de mim. E ela conta uma história que eu acho interessante, que teve uma prova final lá na faculdade e ela odiava o professor, que o professor era super machista e tal, e ela estudou, prova oral, ela estudou muito para prova e o meu pai já não estava mais interessado em Direito, nunca teve muito interessado em direito, então, ele estava interessado em dar aula de Literatura, então, ele já dava aula nesse cursinho, onde eles estudavam, dava aula de Literatura Francesa, então já estava interessado mesmo em trabalhar com Literatura. E ela conta que estudou muito para essa prova e ele não estudou nada, aí foram para prova e como ela é Ana, era por ordem alfabética, ela foi uma das primeiras a ser chamada, aí diz que o cara perguntou, ela respondeu tudo e tal, não sei o que, aí o cara: “Tá bom, maravilha, dez,” e virou para o meu pai, na hora que deu dez, falou para o meu pai: “Puxa, instruiu bem a patroa, hein?” imagine que ódio. (risos) Aí, ela fica mais com raiva ainda quando ela conta, porque ela fala que aí meu pai foi fazer a prova não sabia nada, (risos) ficou enrolando e tal, e como o professor gostava do meu pai deu sete para o meu pai passar, mas não teve a hombridade de pedir desculpas. Então, ela sofreu muito com essa coisa do machismo na própria universidade. Depois que eles se formaram, aí foram por outros caminhos, ela começou a trabalhar na Escolinha de Arte do Recife que era uma escola fundada pelo Augusto Rodrigues e que fez um trabalho muito importante com Educação Artística, pioneiras mesmo, na Educação Artística no Brasil e o meu pai começou a trabalhar na universidade, dando aula de Literatura etc.
P/1 – De onde vem esse gosto do seu pai por Literatura?
R – Pois é, curioso, porque, na verdade, o meu avô não tinha nenhuma ligação, na verdade, meu pai diz até que eles achavam estranho ele gostar (risos) de ler e tal, mas tinha uma coisa, meu avô tinha muito dinheiro e o meu avô comprava tudo que era livro para ele, então, ele queria um livro, tinha, até hoje está comigo uma parte do que era a biblioteca do meu pai e é impressionante a quantidade de livros que ele comprava, que saía em Paris e que ele comprava, uma semana depois em Recife, porque tinha acesso, na verdade, porque tinha dinheiro, que o meu avô não, ao contrário do que poderia acontecer, sendo um comerciante português, meu avô tinha um banco, meu avô era muito rico, mas não tinha preconceito, ele achava bacana, ele achava interessante que o filho gostasse de ler e tal. E ele foi enveredando por isso, tinha um ambiente em Recife que era muito propício, eu já falei da história do Paulo, sem dúvida alguma, esse episódio é fundamental, de encontrar gente que era interessada, com o Luiz Costa Lima sempre achei muito engraçado, tem uma competição assim dos dois, eram muito amigos, sempre, mas eu usufrui um pouquinho dessa competição, quando adolescente e tal, que eu ia para casa do Luiz no Rio de Janeiro e voltava para o meu pai e falava: “O Luiz tem tal livro, acho que você não tem,” às vezes, ele não tinha mesmo, ficava bravo, aí ele mandava buscar nos Estados Unidos, então, quando eu queria um livro eu chegava para o meu pai e falava: “O Luiz me falou que tem tal livro.” (risos) Rolava uma certa competição, assim, mas saudável, assim, de conhecimento, que é uma coisa rara, você privilegiar a questão do conhecimento, quando as pessoas em geral privilegiam a grana, enfim, status etc. Mas é difícil dizer da onde vem, mas tinha um ambiente em Recife, que era um ambiente muito propício mesmo as pessoas se desenvolverem, estudarem, tem toda uma geração que é a geração deles, que se dispersou depois de 64, principalmente, porque em Recife houve uma revolução, um golpe terrível em 64, ao contrário daqui de São Paulo, por exemplo, pouca coisa mudou em 64, mas o governador de São Paulo participou do movimento do golpe, lá em Recife não, lá em Recife eles foram meio dissolvidos, espalhados pelo Brasil inteiro e tal, tinha um sentimento de uma certa, de um certo exílio dessas pessoas. E realmente, o Golpe de 64 fez uma ruptura nisso, então, antes havia um ambiente que vinha de geração em geração, então, por exemplo, tinha um grupo lá que era o Gráfico Amador, chamava Gráfico Amador, que era na época dos meus pais, capitaneado por um romancista, um intelectual chamado Gastão de Holanda. O Gastão tinha estudado na escola com a Clarisse, o Gastão era da mesma geração da Clarisse Lispector, estudou no Ginásio Pernambucano onde a Clarisse estudou, na mesma turma da Clarisse, na verdade. E era muito amigo do João Cabral de Melo Neto, que tinha a mesma idade, aliás, ele e a Clarisse nasceram no mesmo ano, João Cabral e a Clarisse, e acho que o Gastão também, se não me engano. Então, era essa geração aí e essa geração fez esse Gráfico Amador, que era uma editora que publicava alguns livros, tinham as pessoas que se reuniam toda semana e discutiam Literatura e tal, era a geração mais velha do que a do meu pai, então isso ia passando para os outros e conversava e tal. Aí, tem uma outra geração que foi aprendendo, quer dizer, eu acho que isso, essa passagem, João Cabral fala que o que ele aprendeu lá que um intelectual de Recife era muito mais do que qualquer faculdade que ele fizesse, e ao mesmo tempo, o próprio João Cabral, o Aloísio Magalhães, o Gastão, Orlando da Costa Ferreira são pessoas que eram grandes intelectuais em Recife, que formaram outra geração. Então, essa era uma coisa que existia muito forte em Recife no final dos anos 50, começo dos anos 60, que depois do Golpe de 64 foi de certa maneira dissolvido e que depois voltou, hoje em dia Recife é uma cidade que é muito rica culturalmente, na verdade, tem sempre uma grande efervescência lá.
P/1 – Por que é que a sua mãe escolheu ir dar aula na Escolinha de Arte?
R – Uma boa pergunta, não sei, tem que perguntar para ela. (risos) Não sei, não sei, realmente, não sei qual é a razão que levou.
P/1 – Por que com arte ela tinha, especificamente, alguma ligação? Ou foi pelo lado do magistério, dessa formação dela?
R – Não sei, realmente, eu nunca me perguntei isso, na verdade, e nunca perguntei para ela, vou perguntar hoje mesmo.
P/1 – E você nasceu, quando a sua mãe se formou, então, você nasceu?
R – Aí eu nasci. Eu nasci pouco tempo depois da minha avó ter morrido e o meu pai tinha sete irmãos, todos mais novos que ele. O mais novo na época que a minha avó morreu tinha nove anos. Ele tinha quando eu nasci 23 e a minha mãe tinha 24, então, ainda eram crianças, eles também. E eles tiveram que ficar tomando conta de todos os irmãos do meu pai. Então, não foi um momento muito fácil para eles, eles tinham acabado de casar, tiveram um filho e ainda ganharam seis filhos de brinde, aí depois, pouco tempo depois, vem a Revolução, meu pai trabalhava em jornal, escrevia, dava aula e tal, estava começando uma carreira que ele teve, uma carreira brilhante, mas veio 64 e de certa maneira destruiu um pouco os sonhos que as pessoas tinham em Recife com o governador, o Arraes, que era um governador que prometia mudanças, enfim, havia esse clima de esperança e de repente, o Arraes é preso, as pessoas são presas, a polícia invadiu a casa dos meus pais, depois o Exército invadiu. Então, quer dizer, era esse clima que as pessoas viviam em Recife.
P/1 – Mas quando você nasceu, quem morava na casa? Esses seus tios…
R – Meu pai, minha mãe e mais seis tios meus.
P/1 – E até quanto tempo vocês moraram assim?
R – Olha, a gente ficou lá mais ou menos... Em 61, quando eu nasci, no ano em que eu nasci, meus pais vieram aqui para São Paulo, para Assis, para um evento que foi muito importante na vida deles, principalmente, do meu pai, que foi um Seminário Internacional que houve, um Congresso de Crítica Literária que houve em Assis, e nesse congresso, o meu pai conheceu o professor Antônio Candido, conheceu Haroldo de Campos, conheceu Augusto de Campos, Décio Pignatari, estavam todos lá nesse congresso, fora outras pessoas também. E ele conheceu esse pessoal e tal e nesse período, o professor Antônio Candido estava formando, aqui na USP, o departamento de Teoria Literária, e sondou o meu pai sobre a possibilidade dele vir e tal, mas aí meu pai recebeu um convite para ir para Brasília, na Universidade de Brasília e eles foram para Brasília e a minha mãe também, para trabalhar lá com arte-educação em Brasília. Então, foi uma coisa interessante para eles. Eles foram para Brasília em 65…
P/1 – Mas aí você foi junto?
R – Nós fomos. (risos)
P/1 – Os tios também?
R – Dois deles, sim. Os outros já estavam um pouco maiores, já ficaram lá em Recife, mas dois deles sim.
P/1 – Que eles eram como irmãos seus?
R – A minha tia, a Odesina, o outro já morreu, mas a tia Odesina sempre foi como minha, é meio complicada a relação, porque é um pouco mãe, é um pouco irmã, e é tia, sempre teve essa relação, os filhos dela, eu considero como se fossem meus sobrinhos, mas são meus primos e tal. Então, tem essa relação, quando eu nasci, ela tinha 12, então, ela se apegou muito a mim, tinha 12, tinha acabado de perder a mãe, e eu sempre fui muito próximo dela, muito apegado a ela. E é até engraçado, que o nome dela, o meu avô fez, criou o nome dela, nome estranho, que é Odesina, mas é que ele gostava de charada, então ele fez uma charada, que era o destino e a poesia se unem no nome de uma mulher, é Ode e sina, então, esse é o nome dela, está lá em Recife ainda, mora lá em Recife. Mas ela foi junto, só que chegou em Brasília, eu me lembro muita coisa.
P/1 – Mas voltando um pouco, antes, de Recife, o que é que você lembra da sua infância? Você lembra desses cinco primeiros anos?
R – Eu lembro de ir para praia com o meu pai, que o meu pai acordava seis horas da manhã todo dia, de manhãzinha cedo, ele sempre gostou muito de acordar cedo, ia para praia de Boa Viagem e eu ia junto. A gente morava num predinho que o meu avô construiu em Boa Viagem, que existe ainda até hoje, está lá, atrás do Hotel Recife Palace, bem atrás do Recife Palace e eu ia todo dia de manhã com o meu pai. Isso eu me lembro bem, de ir para praia com o meu pai, a gente ia para praia e ele tinha um negócio engraçado que ele gostava muito de nadar, sempre gostou, e aí, ele me deixava na praia, eu ia só com ele, ele me deixava na praia, eu tinha três anos, ele me deixava na praia e fazia um círculo na areia e falava para eu ficar lá dentro e eu ficava, (risos) era bonzinho, ficava lá, esperando por ele. Aí, ele ia nadar, eu ficava brincando lá na areia da praia e tal. Aí, engraçado que quando o meu pai morreu, o momento talvez que eu senti mais a morte dele foi quando eu voltei para Recife, que no mesmo ano que ele morreu, fui convidado pela prefeitura de Recife para ir lá no carnaval, no ano seguinte. E aí eu cheguei lá era no Recife Palace, que era para ficar hospedado, eu fiquei e aí, claro, cheguei, já fui para praia lá naquele mesmo lugar que eu sempre ia com ele, e aí, eu senti muito, fiquei muito mal, fiquei muito comovido, mas eu me lembro bem disso. Lembro também que era uma coisa legal, que eu ia com ele para casa do Manuel Bandeira e ele ficava falando os poemas do Bandeira para mim, eu achava muito legal, muito bacana ouvir aqueles poemas, porque tinha a casa, existe hoje lá até uma instituição cultural, na Rua da União, onde o Bandeira nasceu, onde ele morava, era a casa do avô do Bandeira, do Manuel Bandeira. Então, ele me levava lá e ficava lendo, falando os poemas do Bandeira que ele sabia de cor e ficava falando para mim lá, isso eu me lembro, em Recife, nessa época, o ano eu acho que era bem 64 mesmo.
P/1 – Você tinha quatro anos?
R – Eu tinha três.
P/1 – Três? E você lembra disso?
R – Lembro. Eu lembro disso e lembro de ir para Brasília. Lembro de ir no avião com a minha mãe.
P/1 – Você lembra da mudança?
R – Lembro.
P/1 – Como que foi?
R – Eu não lembro da mudança assim, física, mas eu lembro de estar no avião indo para Brasília com a minha mãe, lembro de ganhar uma bicicleta lá. Lembro de Brasília que era um deserto total, assim, imagina, 65, eu tinha quatro anos e a cidade tinha cinco. (risos) Eu sempre brinco que eu falo que eu conheci Brasília quando eu tinha quatro e a cidade, cinco. Depois, eu só fui rever Brasília quando eu tinha mais de 40 e a cidade também e nós não nos reconhecemos de jeito nenhum. Mas eu gostava de Brasília, eu achava legal, assim, uma cidade muito descampada mesmo, não tinha muita coisa, tinha lá os prédios que a gente morava, aqueles prédios do Niemeyer e tal, os blocos residenciais e era divertido, assim. Era um bloco só da universidade, só dos professores da universidade e tal.
P/1 – Vocês mudaram porque o seu pai foi dar aula lá. E a sua mãe?
R – Minha mãe também, minha mãe foi trabalhar na criação de uma escola de arte dentro da Universidade de Brasília. Tinha um projeto muito bacana da Universidade de Brasília.
P/1 – Da UnB?
R – É. E aí, parecia uma praga assim, a universidade foi fechada pelo Exército, e aí, vários professores, entre os quais os meus pais pediram demissão. Foi uma demissão em massa da Universidade de Brasília em 65. Então, eles pediram demissão e aí, voltaram para Recife. Aí, fomos de volta para Recife e tal, mas aí já estava difícil morar em Recife. Meu pai contava que ele ficava dando banana na rua para as pessoas, principalmente, porque era gente da idade dele, tinha o quê? Vinte e sete, 28 anos e boa parte tinha aderido ao Golpe de 64 e tal. Ele passou a ser perseguido lá, por não aderir ao golpe etc. E aí, o professor Antônio Candido, finalmente, realmente conseguiu leva-lo, trazê-lo para São Paulo e aí, a gente veio para São Paulo de mala e cuia.
P/1 – Você estava com?
R – Quando a gente veio para São Paulo, eu tinha seis para sete anos. Foi em 66, no final de 66, tinha cinco para seis. Tinha seis anos em 67, quando a gente veio para cá mesmo de vez, e aí, a minha irmã já tinha nascido, minha irmã foi gerada em Brasília e nasceu em Recife em 66, quando eles voltaram para Recife. E aí, a gente veio para São Paulo, a gente foi morar num prédio no centro da cidade.
P/1 – Você lembra da mudança?
R – Lembro, lembro. Aí, eu lembro bem.
P/1 – Como é que foi?
R – Era estranho para mim, porque eu morava lá em frente à praia, em Boa Viagem, e aí vim para cá, e a gente foi morar, isso é mais fácil falar, porque eu já escrevi um poema sobre isso, (risos) é uma coisa que, fui morar num prédio, que eu chamei no poema de Prédio Prisão de Niemeyer, eu aprendi a não gostar do Niemeyer em Brasília em 65, (risos) por causa do prédio que a gente morava, dava para ouvir tudo dos outros lugares, mas aqui em São Paulo, a gente foi morar num prédio que é do Niemeyer também, é uma praga também, que é no centro da cidade, ali na Cásper Libero com a Ipiranga, é bem na avenida Ipiranga, mas é na Ipiranga com Cásper Libero. E a gente foi morar lá, era uma quitinete, um lugarzinho pequenininho, meus pais alugaram e tal, e aí, a gente foi morar lá eu, meu pai, minha mãe e minha irmã, e uma moça que cuidava da minha irmã. E aí, ficamos lá um tempo e esse período foi meio difícil.
P/1 – Mas cuidava da sua irmã e não cuidava de você?
R – Não, de mim, não. Eu já era adulto, já era crescido. (risos)
P/1 – Nossa, tinha seis anos?
R – Eu tinha seis anos. Mas era engraçado, eu sempre fui meio assim mesmo. Ela cuidava da minha irmã, não de mim, de mim não precisava de babá. Mas, eu me lembro desse período, uma das coisas que eu mais me lembro é que chegamos aqui em São Paulo e tinha um cinema na Praça da República e eu vi, era um desenhinho assim, então, achei que era um desenho animado e fiquei enchendo a paciência da Iracema, que era essa moça que cuidava da minha irmã, que eu queria ver, queria assistir esse filme, aí ela me levou, só que não era nada disso, era uma comédia e era pior, era acho que era em espanhol, então tinha legenda, eu não sabia ler, e aí, eu comecei a chorar no cinema, porque eu não conseguia entender o que estava acontecendo, que o filme era em outra língua, não era desenho animado e tal, fiquei meio frustrado. Aí, nessa época, meu pai comprou a primeira televisão para mim, lá em Recife não tinha televisão, assistia na casa de outros, mas aí ele comprou uma televisãozinha preto e branco, bem pequenininha e eu ficava lá naquele prédio prisão, (risos) em pleno centro de São Paulo assistindo televisão e gostava da televisão. E a partir daí eu sempre fui fanático total por televisão.
P/1 – Fora esse prédio prisão, que impressão você teve de São Paulo? Como é que era o Centro naquele momento?
R – Era uma coisa muito grande, uma coisa meio assustadora, na verdade, e tinha muito trânsito. Quando as pessoas falam hoje do trânsito de São Paulo, eu me lembro do trânsito em 67, era muito trânsito, era uma coisa, era uma cidade confusa, era meio confuso, na minha cabeça era muito confuso o negócio. Mas aí, a gente foi morar, logo eles compraram uma casa num bairro, uma rua que chamava Senador Cesar Lacerda de Vergueiro, que na época, era a fronteira entre dois bairros, Vila Madalena aqui, Vila Madalena e Sumarezinho, mas na época a gente falava que morava no Sumarezinho, porque era chique morar em Sumarezinho, hoje em dia tudo Vila Madalena, aliás, é um mistério, onde está Sumarezinho? Sumiu, que eu acho interessante, bairro, essa coisa que não tem, bairros não existem, é uma ficção e a ficção que muda de acordo com o gosto de freguês, muda de acordo com o status que morar nesse ou naquele bairro tem. Então, é uma coisa que eu não sei se as pessoas pensam sobre isso, mas eu acho engraçado. Aí, era gostoso, porque era uma casa, a rua Senador Cesar Lacerda de Vergueiro, que é uma travessa da rua Harmonia, super movimentada hoje e tal, não era asfaltada quando a gente foi em 67 e a gente jogava bola na rua, então jogava bola lá na rua, de vez em quando passava um carro, você parava de jogar, mas você jogava bola na rua em plena Vila Madalena, hoje é absurdamente impensável isso. Então eu gostava, tinha vários amigos lá na rua e tal. Então, esse período é um período bacana, gostei quando a gente veio para Vila Madalena. Era outra coisa de ir morar no Centro, morar aqui e tal, que é uma região muito mais residencial mesmo.
P/1 – E com quantos anos você entrou na escola?
R – Essa história…
P/1 – Porque você foi para Brasília, depois para São Paulo, onde que você foi estudar?
R – Eu entrei em Brasília, eu já fui para escola, a experiência mais engraçada, assim, em Brasília eu já fui, eu acho que foi Brasília foi a primeira vez que eu fui, eu tinha quatro. Não é como hoje, que as crianças entram na escola com um ano, já estão na escola, eu acho que eu tinha quatro. Em Brasília, eu ia, eu tenho certeza que eu ia, porque a minha tia me levava, me lembro de ir com a minha tia, a minha tia, ela ia para escola dela e me levava para minha.
P/1 – Essa sua tia, quando você veio para São Paulo, ela veio junto?
R – Veio.
P/1 – Também veio?
R – Veio também.
P/1 – Então, morava você, sua mãe, seu pai, sua irmã, a Iracema e ela?
R – E a minha tia. Roberto que é o mais novo, acho que veio um pouquinho, depois voltou e tal. Ele, eu acho que não veio ou veio e depois voltou, não me lembro direito, mas Odesina veio, porque ela veio fazer vestibular, ela veio estudar, fazer cursinho e tal. E pegou exatamente 68, eu lembro que em 68 ela ia nas manifestações, ia para encontrar o namorado, mas ia. (risos) Meu pai ficava bravo que ela ia, ele ia, mas não gostava que ela fosse. (risos) Mas então, a experiência mais curiosa é que em 66, quando a gente voltou de Brasília para Recife, minha mãe me colocou numa escola pública e era sempre aquela coisa, minha mãe queria sempre colocar em escola pública, tem aquele ideal socialista. E aí, eu estudei numa escola pública lá em Boa Viagem, ia para escola, não gostava muito da escola, achava chata a escola e tal. E a minha mãe, uma vez, perguntou: “Por que é que você não gosta da escola?” “Porque a professora bate nos alunos” “Como bate nos alunos? Bateu em você?” eu falei: “Não, não bate em mim, ela só bate nos negros,” aí minha mãe ficou, (risos) foi lá na escola, fez um escândalo lá e tal. E era isso, a professora batia nas crianças negras, não em mim, eu não tinha medo, na verdade, era mais do que isso, acho que certamente, dava para professora ver a questão sociocultural, então ela não batia em mim, não batia nos brancos, mas batia nas crianças, e minha mãe foi lá, fez um escarcéu e me tirou da escola, que eu achei ótimo, porque aí ficava na praia o dia inteiro, aí não fui para escola. Quando eu vim para São Paulo, entrei na escola e tudo.
P/1 – Que escola que você foi?
R – Então, logo em 67, eu entrei na escola que era a escola experimental da USP, que até hoje está lá na Cidade Universitária, que fica ao lado ali da Faculdade de Educação. Então, eu estudei lá, entrei lá no primeiro ano primário e fiz lá até a quarta série, fiz o que era o primário na época. E era uma escola bem legal e tal, mas foi um período meio complicado esse da minha vinda para cá para São Paulo, porque eu fiquei muito doente várias vezes.
P/1 – O que é que você teve?
R – Bom, tive todas as doenças possíveis e imagináveis de criança: catapora, sarampo, mas eu tive dois problemas muito sérios, primeiro eu tive uma hepatite muito forte e quando eu estava com hepatite eu tive apendicite, com hepatite. Então, não podia entrar em hospital para me operar, porque eu estava de hepatite e era fortíssima e tinha que ficar isolado e tal, fiquei muito tempo isolado e isolado lendo, ficava lendo o dia inteiro livros e assistindo televisão, consumindo ficção. Teve uma época, inclusive, eu tive que ficar num quarto isolado, porque não podia ficar com a minha irmã, porque a minha irmã era muito novinha e poderia pegar hepatite e tal, então, eu ficava bem isolado mesmo. E depois, eu tive algo mais sério, talvez, que foi a febre reumática, no ano seguinte eu tive febre reumática, tive um probleminha no coração, taquicardia. Então, são coisas assim, que passei um período bastante complicado nesse período aí, quando a gente veio para São Paulo, muitas vezes eu fico imaginando que talvez tenha a ver com isso, tipo, uma reação de você ter mudado e tal. É curioso, porque eu tenho uma relação muito interessante com Recife, eu vou sempre para lá com a minha família. Durante um tempo, eu tinha mais do que qualquer outra pessoa da minha família imediata aqui, eu ia muito mais para Recife do que eles. Então assim, então é isso.
P/1 – E na sua casa, como é que era essa coisa da autoridade? Quem que exercia? O seu pai ou a sua mãe? Como que era o relacionamento na casa?
R – É engraçado, minha mãe outro dia estava falando, ela falou assim: “Nossa, eu não sei porquê que eu fazia isso,” mas que o meu pai não gostava de uma coisa ele não falava, falava para ela e ela falava para gente, às vezes era coisa que ele não gostava, que ela não achava nada de importante e ela ia cobrar da gente de qualquer maneira. (risos) Então, acabava sendo uma coisa que isso foi durante muito tempo assim, muito claro para mim, que o meu pai era sempre o bonzinho, e a minha mãe era a cobrança. Então assim, essa questão da autoridade, a autoridade do meu pai era sempre uma autoridade super simpática e da minha mãe nem sempre era tão simpática assim, então, a minha mãe acabava sendo a bruxa, (risos) e o meu pai ficava mais resguardado assim e tal, era uma coisa bem máfia nordestina.
P/1 – E vocês, quer dizer, você teve essa influência de leitura já pelo seu pai na sua casa?
R – Ah sim, porque tinha muito livro, muita coisa, conversa com relação a isso.
P/1 – Quando você era pequenininho, eles contavam história?
R – Sim. É engraçado, meu pai era muito novinho quando eu nasci, eu acho que, por exemplo, quando eu tinha dois, três anos, tinha um livro que ele gostava de mostrar para os amigos dele, porque ele abria o livro numa página e eu chorava, (risos) então ele gostava de exibir, chegava os amigos, ele falava: “Venham cá, vem ver,” pegava, abria, me mostrava e eu chorava. (risos)
P/1 – Por que é que você chorava? (risos)
R – Eu não sei, até hoje eu não sei. Tinha uma ilustração lá e eu chorava, eu não gostava da ilustração, eu chorava. Aí, ele achava engraçado e era mesmo, mas o mais engraçado era que 20 anos depois, eu tinha uns 22 anos por aí, ele foi para Inglaterra e eu fiquei sozinho no apartamento deles, que morava com eles ainda, eles foram viajar e eu fiquei lá. E aí, eu estava lendo um monte de livro, estudando e tal e peguei esse livro aí e não li o livro. Aí, quando ele chegou, eu falei: “Li tal livro, li,” conversando com ele sobre os livros que eu tinha lido, falei: “Só que esse daqui eu achei que estava interessante, acabei não lendo, não sei porquê,” ele falou: “Eu sei porque,” (risos) “Era o livro que eu te mostrava para você chorar” “Ah, então por isso que eu dei uma reagida ao livro, assim, inconscientemente, sem saber.” Mas enfim, tinha muita gente circulando, que gostava de Literatura, de ler e tal. Engraçado, o meu pai gostava de ler umas coisas para mim, mas eu nunca gostei muito de que lessem para mim, eu gostava de ler, eu. Gosto até hoje, eu tenho uma certa dificuldade em ouvir a pessoa lendo para mim, e ele gostava muito de fazer isso, então ele ficava lendo e tal, mas às vezes, enchia um pouco a paciência.
P/1 – E festa? Se comemorava na sua casa? Aniversário? Natal? Você lembra de comemorações?
R – Lembro, lembro. Natal, principalmente, ano novo, principalmente, ano novo, ano novo era o que eu mais lembro. Aniversário, eu tenho uma memória assim, direta de ter objetos, um monte de objetos da minha festa de aniversário de um ano, claro que eu não me lembro, mas tem um monte de objetos em casa, flâmulas e não sei que os meus tios fizeram, eu era o sobrinho mais velho, então, tinha todo aquele auê, mas depois é engraçado, eu não me lembro de aniversário meu e nunca gostei de aniversário, não gosto de celebrar aniversário, até hoje tem uma coisa meio assim, de as pessoas querem fazer e eu não quero (risos) festa de aniversário.
P/1 – E se falava de política na sua casa?
R – Sim, acho que era inevitável, principalmente naquele período. De política e era uma coisa assim, com um certo receio, o tempo inteiro pairava no ar a coisa da Ditadura, o medo de falar, o medo de as pessoas serem presas e tal.
P/1 – Quanto tempo você ficou nesse período que você teve hepatite, depois apendicite?
R – Olha, eu acho que assim, depois que eu cheguei em São Paulo, uns seis anos, até uns nove, dez anos, foi um período de doenças repetidas, assim.
P/1 – Mas mesmo assim, você brincava, como é que?
R – É, tinha, eu me lembro que o médico me proibiu de fazer exercício físico, me lembro dele me dar uma receita, enfim, um atestado dizendo que eu não podia fazer educação física, não sei que e eu não levei (risos) para escola, eu ia e fazia de qualquer maneira, entendeu? Então tinha uma, era um pouco agressivo, assim, minha mãe reclamava que aqui em São Paulo, lá na Escola de Aplicação da USP, ela era chamada todo mês para ir lá, porque eu tinha batido em alguém e eu costumava bater, porque os caras me chamavam de baiano e eu não gostava, porque lá em Pernambuco tem um certo preconceito contra baiano e aí, eu cheguei aqui falando com aquele sotaque e tal, eles falavam: “Baiano” “Baiano, nada, sou pernambucano,” e tome tapa. (risos) Eu brigava muito por causa disso, por causa dessa questão, eu odiava, coisa que eu mais odiava era quando me chamava de baiano.
P/1 – E como é que era a relação com a sua irmã?
R – Era tranquila assim, ela é muito mais nova, cinco anos mais nova, então, tinha aquela coisa de uma certa proteção com ela e ao mesmo tempo, me enchia um pouco o saco, porque ficava rasgando minhas revistas. (risos) Acho que relação típica de irmão mais velho e de irmã mais nova, era uma relação normal.
P/1 – Vocês tiveram educação religiosa?
R – Não, assim, o meu pai era ateu. Minha mãe sempre diz que é católica e fazia umas promessas para gente pagar.
P/1 – Para vocês pagarem?
R – É claro! Para ela pagar, não, para gente pagar! “Ah, se acontecer isso, meus filhos vão fazer não sei o quê,” daí chegava para gente: “Olha, vocês vão fazer não sei o que,” está louco que eu vou fazer. Quando eu tinha sete anos, minha bisavó ainda estava viva e queria porque queria que eu fizesse Primeira Comunhão, minha mãe também queria que eu fizesse, eu falei que eu não queria fazer, porque eu não acreditava em nada disso, que isso era uma bobagem e super convicto assim, que não queria fazer e é o que eu sou até hoje. Eu costumo dizer que eu sou ateu militante e messiânico, mas como assim? Ateu e messiânico? O que é que é o messianismo? Você quer convencer os outros da sua religião, certo? Bom, se você é católico, ou se você é evangélico, se você é umbandista, sei lá o que seja, as pessoas querem convencer da outra religião, isso é ser messiânico e eu sou messiânico do ateísmo, eu gostaria de convencer todo mundo de que Deus não existe, é uma ficção maléfica, entendeu? Sou absolutamente contrário a qualquer religião, não tenho menor respeito. Aí, as pessoas: “Não, você tem que respeitar a religião dos outros,” respeito os outros, agora querer que eu respeite, acreditar em Deus, acreditar em horóscopo, não, acho tudo uma grande bobagem, e tenho grande orgulho de falar isso. Acho que a religião é uma mentira horrorosa que tem só levado à humanidade a catástrofes.
P/1 – Quando você era menino, você tinha alguma coisa assim, tipo, algum desejo assim: “Quando eu crescer eu quero ser…”?
R – Eu queria ser cientista, assim, até porque eu ficava lendo umas histórias, assim, de uns cientistas e tal e eu queria ser cientista, talvez, uma coisa assim, de ter o estereótipo da pessoa inteligente ou do gênio do século XX era o cientista, era o Einstein, isso mudou. Acho que no século XXI, o estereótipo é o cara que trabalha com informática, é o Bill Gates, (risos) não é mais o Einstein, mas era esse acho o estereótipo naquela época, acho que era isso que eu queria ser, queria ser um cientista. Daí, eu fui fazer Física, inclusive, fiz Física na faculdade, desde cedo eu falava que eu queria fazer Física e tal, nem sabia o que era, mas eu dizia que eu queria fazer Física, tinha, sei lá, oito, nove, dez anos, eu já falava isso.
P/1 – Como que era o Colégio de Aplicação na época que você estudou?
R – Era legal, não era nada muito revolucionário, não era assim, mas era um colégio razoavelmente aberto, assim. Agora, tinha aquelas coisas, eu lembro de quando Médici assumiu, Médici, que foi o pior de todos ditadores do Brasil, eu lembro da minha professora dizendo que ia assumir um homem muito bom e que ela tinha esperança de que o Brasil ia melhorar, isso eu me lembro, (risos) eu até me choquei na época já, quando cheguei em casa: ‘será que esse cara vai ser mesmo?’ Mas enfim, então sabe? Era uma escola, mas era uma escola interessante assim, não sei, não é uma coisa para mim, não é uma coisa muito marcante não, a escola em si, essa escola. Marcou muito mais quando eu tinha dez anos, aí no final da quarta série mesmo, a gente foi para os Estados Unidos, a gente foi morar nos Estados Unidos e aí, essa escola marcou, a escola lá nos Estados Unidos marcou, aprendi muito, aprendi inglês, aprendi a me virar. Eu era muito tímido, muito tímido, assim, eu era agressivo e tímido e não é contraditório isso, (risos) que era fechado e quando mexia, eu saía dando pancada. Tinha uma timidez meio doentia assim, meu pai pedia: “Vai lá, compra não sei o que na venda,” eu não tinha coragem de falar com as pessoas. E quando eu cheguei nos Estados Unidos, meu pai foi fazer um pós-doutoramento lá em Yale, e a gente chegou lá, eu não conseguia falar com as pessoas, porque não falava inglês, nada, não falava nada e aí, de repente, eu ficava pensando: ‘poxa, mas lá no Brasil era tão fácil, por que eu não falava?’ (risos) Isso para mim foi importante, mudou um pouco a minha forma de me relacionar com o mundo.
P/1 – Vocês mudaram para os Estados Unidos por conta do seu pai?
R – Meu pai foi fazer pós-doutoramento lá em Yale, aí a gente passou um ano e meio lá.
P/1 – Em Literatura?
R – Em Literatura. E aí, a gente passou um ano e meio lá, eu estudei lá era quinta, fiz a quinta série. É que lá tem meio anos de diferença para cá, mas eu fiz o que seria aqui metade da quarta e a quinta série lá, eu voltei para cá no começo da sexta série, que hoje em dia é o sétimo ano. Mas foi muito importante, porque eu aprendi inglês rapidinho, em dois, três meses estava falando inglês. Lá tinha nessa escola, tinha sexta, sétima, oitava tudo junto, era tudo misturado e eu acabei no final, estava na turma mais avançada de inglês, então, foi uma coisa meio extraordinária, acho que foi um período de grande crescimento e tinha uma coisa legal dos professores, assim, realmente, entusiasmados comigo e tal. E era engraçado, eu lembro uma vez, o professor estava lendo um texto e tinha uma palavra, tipo velocity, aí, ele perguntou o que é que era e ninguém sabia e eu levantei a mão e sabia, (risos) “Speed”, e ele ficou fazendo sermão na classe: “Tá vendo, o cara está aqui há quatro meses, sabe e vocês não sabem,” o cara era também idiota, porque na verdade a palavra sendo de origem latina era mais fácil para mim, mas assim, eu gostei muito daquele período lá em Yale. A gente morou esse um ano e meio em New Heaven e foi um período de conhecer muita coisa, me apaixonar por baseball, coisa que é muito estranha hoje no Brasil, o pessoal gostar de baseball, mas eu gosto. (risos) Então, foi um período de novidades e tal, principalmente para mim, eu acho que essa coisa da comunicação.
P/1 – Você estava com dez?
R – Dez. Essa coisa da comunicação. Tem um episódio que é engraçado, assim, primeiro dia que eu cheguei, as pessoas mudaram de sala e tal, eu fui para uma aula e tinha uma professora dando aula de matemática, eu falei: “Pô, matemática é legal,” porque matemática eu sabia bem, era muito bom de matemática, aí falei: “Agora, tranquilo, né?” Aí de repente, ela fez um negócio lá e eu tinha visto, eu estava na quarta série, eu tinha visto lá um negócio que era raiz, raiz, assim. Aí, ela fez, eu achei que ela estava fazendo raiz, aí eu comecei a chorar, fiquei desesperado, aí, tiveram que me acolher…
P/1 – Por quê?
R – Porque eu achei que era raiz, e aí, eu achava que era complicado demais e eu não ia saber, não estava entendendo, não, é que nos Estados Unidos, eles fazem a divisão assim, não é assim como a gente faz, eles fazem o contrário, ela estava fazendo divisão e eu não percebi, fiquei mal. Na verdade, é isso, porque eu achei interessante, a língua em si eu não estava entendendo nada, mas a matemática eu estava, até que mudou a matemática (risos) e não era o que eu estava acostumado, fiquei desesperado, porque eu falei: ‘nem a matemática eu estou entendendo, que diabo está acontecendo?’ E tinham coisas curiosas, era uma época, eu fico pensando hoje, eu estava lá em 71, quando eu fico pensando nisso, que eu estava lá em 71: ‘setenta e um! Meu Deus do céu.’ E por exemplo, eu me lembro nesse período de assistir um documentário sobre a tortura no Brasil, de ficar super mal, em 71 lá nos Estados Unidos, ver na televisão americana, um documentário falando sobre a tortura no Brasil e ficar super mal. E me lembro, também, de ficar lá empolgado com campanha política lá de presidente, coisa que não tinha no Brasil. E naquele ano, foi do Nixon com o McGovern, que era do Partido Democrático, e era um cara mais de esquerda, quer dizer, dentro do limite que um americano pode ser de esquerda. Então assim, mas era um cara mais liberal e tal, tinha uma brincadeira aqui no Brasil, que o cara pegava McGovern e transformava em NegoVerme, (risos) acho que foi o Ziraldo que fez essa charge, que eu conheci muitos anos depois. Mas lá eu ficava fazendo campanha para o McGovern lá entre os colegas, não sei o quê e tal, eu achava legal, porque era uma experiência que eu não tinha no Brasil, você pensar em eleger um presidente e tudo mais. E eu acompanhava muito, eu gostava muito dessa coisa de política, ficava acompanhando e tal, eu lembro que eu vi um governador americano ser baleado, estava assistindo na televisão e eu vi ao vivo, então foi uma coisa, chamava-se George Wallace, nunca me esqueço, ele foi baleado, depois ele continuou na política na cadeira de rodas, aquela coisa toda, mas eu vi o ato ao vivo, assim e tal.
P/1 – Quando você estava lá?
R – Quando eu estava lá.
P/1 – Foi um ano e meio, o total?
R – Um ano e meio.
P/1 – E aí, quando terminou vocês voltaram?
R – A gente voltou e foi uma mudança muito grande, porque, na verdade, minha mãe tinha comprado um apartamento nesse interim, quer dizer, antes da gente ir, ela tinha comprado um apartamento em construção e enquanto a gente estava lá, o apartamento foi construído e tal, e quando a gente chegou, a gente mudou lá da Vila Madalena para esse apartamento, no qual a minha mãe mora até hoje, que é na Rua Monte Alegre em Perdizes. Em frente a PUC e tal e do lado de uma escola, que é o Colégio São Domingos. E aí, quando eu cheguei, eu fui para o São Domingos, eu sempre senti um pouco, engraçado, porque tem colegas, tem alguns até hoje em dia eu falo pela internet, pelo Facebook, (risos) mas é engraçado, que eu perdi totalmente o contato com aqueles amigos que eu tinha no primário. Isso foi estranho, porque como eu passei esse um ano e meio lá, meio que eu voltei para cá para começar tudo de novo. E aí, eu fui estudar no Colégio São Domingos, que ficava do lado de casa, fica, até hoje ao lado da casa da minha mãe, e aí, foi como se começasse uma outra etapa mesmo, totalmente diferente, até porque eu cheguei diferente, já não era mais tão…
P/1 – Você queria ter ficado? Como que foi para você voltar?
R – Nos Estados Unidos? Não, não.
P/1 – Sabia que era…
R – Não tinha nem essa coisa: quero voltar, nostalgia e nem também, eu gostei para caramba desse ano, eu gostei muito e gostava de umas coisas bestas assim, gostava de sorvete, da comida americana, Burger King, que não tinha no Brasil, McDonalds, Burger King. Tinha uma coisa engraçada que eu acho, a diferença em 71 era muito grande entre Brasil e Estados Unidos, era muito grande, lá você tinha muito mais acesso mesmo, não dá para comparar com hoje, hoje você tem acesso a todo canto do mundo. E hoje em dia, a diferença entre o Brasil e os Estados Unidos, hoje em dia, você assiste a série americana no mesmo dia que passa lá, passa aqui, exemplo besta, mas o acesso à informação, você vai assistir Game of Thrones, passa no mesmo dia lá, e passa aqui na HBO, e se você não tem HBO no dia seguinte você baixa no computador e baixa a legenda, porque alguém já assistiu e já fez a legenda e beleza. Na época, era muito complicado, quer dizer, o acesso às coisas era complicado, a informação, livro. Meu pai, por exemplo, nesse período que a gente morou lá, ele abriu uma conta na Yale Coop, Cooperativa de Yale e tinha uma conta no banco nos Estados Unidos e daí podia mandar buscar livro de lá para cá, e isso era raríssimo, era uma dificuldade muito grande você importar coisas. O Brasil era um país muito fechado, relação com o mundo exterior era difícil. E aí, indo para lá, era uma coisa meio que de abrir mesmo, para mim foi muito importante, ainda mais nessa idade, dez, onze anos, super curioso, ficava vendo muita coisa interessante e gostando.
P/1 – Você continuava lendo bastante?
R – Continuava lendo bastante.
P/1 – O que é que você lia nessa época?
R – Olha, uma coisa que eu era completamente apaixonado, eu gostava muito do Sherlock Holmes. Então, eu li todos os livros do Conan Doyle da série do Sherlock Holmes, era uma coisa assim que eu adorava, aquela coisa do cara que descobre, capacidade de olhar para as coisas, para as pessoas. Antes eu li todo Monteiro Lobato, que eu gostava muito também, e tinha alguns livros específicos, gostava muito de livro de história, também, quando eu estava nos Estados Unidos, eu ficava lendo livros sobre história, história americana, principalmente lá, história americana, acabava lendo. Então, tinha isso, agora, o Conan Doyle, eu acho que era a minha grande admiração, assim, eu gostava muito.
P/1 – E aí, essa volta para o São Domingos, como é que foi esse período no São Domingos, você ficou até que ano lá?
R – Eu fiquei da quinta série até a oitava série. Foi legal, porque aí era outra coisa, era outra escola, fiz alguns amigos que são meus amigos até hoje lá. E no final, participei muito do centro, que é chamado Centro Cívico, eu me lembro que a gente fazia reunião do Centro Cívico em 75, e ficava com medo que a polícia viesse prender a gente. Fazia algumas manifestações do tipo Sete de Setembro, eu troquei o disquinho que ia tocar que era o Hino Nacional e coloquei o Internacional. (risos)
P/1 – No ginásio, já?
R – É. Tinha essas coisas assim, a gente queria ser, assim, a gente achava, mas é que na verdade em 77 um colega meu foi levado para o DOPS, imagina, fazia uma grande revolução, nós ali, os moleques da classe média alta de Perdizes ia fazer uma grande revolução no Brasil. Mas esse menino, o Ricardo foi, foi levado lá, a professora dedurou e tal, então, esse clima da ditadura, a gente vivia muito. O São Domingos teve uma história, teve uma história terrível, assim, pouco tempo antes de eu estudar lá, teve alguns alunos que foram presos e a direção caiu, porque veja, era uma escola dos padres dominicanos, que sofreram muita perseguição pela ditadura. E na época em que eu entrei, tinha um coronel que dirigia a escola, tinha sido imposto lá e tal, então, teve confusão lá na escola, no começo da década de 70. Então, quando eu cheguei, quando eu entrei, que foi 73, ainda tinha isso bem, tinha um rescaldo muito grande disso e tal. Eu sentia uma certa dificuldade, porque eu achava que todos, a maior parte dos alunos não tinham os mesmos interesses que eu, tinham dois alunos lá que tinham o mesmo interesse do que eu, ficamos grandes amigos, e que tinham interesse em artes, literatura, cultura, cinema e tal, então, essas pessoas, você acabava achando duas dentro da escola toda. Mas, era uma escola muito próxima de casa, em todos os sentidos e como eu era um desses três melhores alunos da escola, eu tinha todas as regalias possíveis, (risos) eu saía, ia para casa: “Olha, vou lá em casa,” seu Jaime que era o diretor, “Seu Jaime, vou lá em casa, volto já,” imagina! Os alunos não podiam sair da escola, só que eu ia e saía, mandava na escola, fazia o que eu queria, e era um pouco em função de ser um desses, as pessoas gostavam, respeitavam, era engraçado.
P/1 – Tem professor que você se lembra? Que te marcou?
R – Teve, na verdade, assim, acho que dois professores mais marcantes e uma que tem uma história engraçada. Os dois mais marcantes foram, tinha uma professora de História, Ernesta, que depois foi ser professora na Unicamp, uma professora que teve uma carreira muito brilhante lá na Unicamp, inclusive, como professora lá de História. E a Ernesta era muito legal assim, ela fez numa época uma experiência lá com alguns alunos que ela escolheu de História da Arte, então, ela mostrava os quadros, a gente discutia com ela, realmente, foi muito rico, era uma professora muito inteligente, que incentivou bastante. E outro que talvez tenha sido mais importante, era um professor de Ciências, Carlos Berbel, que foi meu professor lá na sexta, sétima, oitava e depois, quando eu saí e fui para o colegial no Colégio Equipe, ele era professor do Equipe. E foi meu professor lá, no primeiro, segundo e terceiro colegial, quer dizer, então, esse me marcou muito, teria me marcado de qualquer jeito, só pelo fato de eu ter ficado esse tempo todo, mas ele é uma figura maravilhosa e me ensinou demais, assim, eu ficava lendo livro de história da Ciência e discutindo com ele e tal, e era um cara super bacana, discutia, conversava, uma figura que realmente, esse cara foi muito importante, principalmente, na questão da formação cientifica do espírito, de um espírito científico, talvez cientificista que eu tenha. (risos)
P/1 – E esse fato engraçado que você disse?
R – Ah, então, as professoras de Português gostavam, em geral, de mim. Eu lembro que em 70 e… quando é que foi a Revolução do Chile? Em 73?
P/1 – Setenta e dois ou quatro?
R – No dia da Revolução Chilena, eu escrevi um texto assim, falando do Allende e não sei o que e eu lembro de uma professora que eu tinha que falou: “Olha, cuidado,” (risos) falou para não escrever essas coisas, entendeu? Pô, eu tinha, caramba…
P/1 – Treze anos!
R – Eu tinha 12 anos de idade, entendeu? E escrevi lá o negócio que eu vi que tinha caído o Pinochet, tinha caído o Allende, o Pinochet tinha assumido e tal. Então, eu escrevi o negócio lá na aula de redação, e eu me lembro desse fato, mas não era isso que eu ia falar que é engraçado. O engraçado é que na oitava série eu tinha uma professora de português que sorteava os alunos para lerem e ela sempre sorteava o meu número, então, a piada na classe era essa: “O número do Fred vem ai,” (risos) não tenham a menor dúvida. Era número 17, até hoje eu não me esqueço. Então assim, ela sempre sorteava no número 17 para eu ler os poemas que eu tinha feito e tal. E ela incentivava muito.
P/1 – Você já escrevia?
R – Escrevia. Tem até uns, que a gente fez um jornalzinho na época, na escola e tal, e eu tenho os números de exemplar do jornal até hoje, tem os poemas lá, péssimos!
P/1 – Você tem alguma que você lembra?
R – Tem, mas não lembro do texto em si, mas lembro da historinha que é engraçada, tem uma história também engraçada, mas não é essa, mas deixa eu acabar essa história. Aí, ela me incentivava para caramba, só que aí no ano seguinte, essa mulher trabalhava no DOPS, além de ser professora e ela que denunciou o Ricardo, esse amigo meu que eu já falei, que foi levado para o DOPS. Então, fiquei com ódio mortal dessa mulher, só que isso aconteceu em 76, em 90 eu lancei o meu primeiro livro, aí quando eu lancei o meu primeiro livro, um monte de gente lá no lançamento e tal, aí de repente chega uma mulher que na hora eu não reconheci e falou assim: “Então, eu sou a Ana,” que era essa professora, “Eu vim aqui porque eu vi no jornal que você ia lançar o livro,” aí eu escrevi uma dedicatória toda emocionada: “Para Ana que sempre me incentivou,” não sei o que e dei para ela, quando ela estava saindo que eu me lembrei, falei: “Filha da mãe, deixa eu pegar de volta esse negócio,” (risos) que aí depois que eu me lembrei que ela tinha feito aquilo com o Ricardo, entendeu? Mas aí, já era tarde, já tinha ido embora. Mas o do poema tem um episódio engraçado também, teve um poema que eu escrevi que está até nesse jornalzinho, que era um poema que falava assim, foi na oitava série também, tinha 14, aí, o poema falava assim: “Eu tive mulheres brancas, mulheres negras, mulheres orientais,” não sei o que, tinha milhões de mulheres, o poema era assim, era uma porcaria. Só que o mais engraçado é que anos depois, um amigo meu, que também, depois foi fazer Letras e inclusive, é Doutor em Literatura Clássica hoje, dá aula na universidade, anos depois, eu encontro o Beto, chega e fala: “Fred, sabe, você falava aqueles poemas, você falou aquele poema na oitava série eu ficava pensando: ‘pô, o cara já teve tantas mulheres e eu nunca tive nenhuma,’” (risos) aí eu falei para o Beto: “Beto, eu também nunca tive nenhuma,” aí que ele descobriu que na verdade era uma ficção, achei engraçado. Mas eu escrevia coisas assim, e tal. E tinha a coisa do jornal, dirigia o jornalzinho da escola, então a gente fazia uns números lá, brincadeira e gostava de fazer essas coisas, aí tinha um espaço para isso, que era legal.
P/1 – Nesse jornal?
R – É. E era uma escola que tinha poucas pessoas, mas tinha o Carlos Fernando, que estudava comigo, que é meu amigo até hoje, o Zeca, que é professor da Psicologia e é um cara muito legal. O Beto mesmo, que é um cara que era meio, e tinha umas figuras assim, tinha o Maluf. O Maluf não tem nenhum parentesco com o político, graças a Deus, só que o Maluf era da turma do Barão, uma turma que existia em Perdizes, que batia em todo mundo, era uma turma de jovens que ficavam no edifício, lá no Barão, e que ele passava o recreio dando cabeçada na porta, para treinar cabeçada, o cara era completamente louco, só que ele era super meu amigo, super meu amigo e bacana assim, eu gostava dele, ele gostava de mim, a gente fazia grupo juntos, eu fazia todo o trabalho, mas ele me protegia de qualquer coisa. Então, eu conseguia passar ali na rua Homem de Mello tranquilo, porque não tinha problema com a turma do Barão, porque eu era amigo do Maluf, entendeu? Até que aconteceu uma coisa engraçada, tinha aula de Religião na escola, e aí, tinha uma professora chatíssima lá e eu sempre, a única matéria que eu não ia bem era Religião, porque eu já era ateu militante, só que eu não falava nada, ficava quieto, só que não fazia nada e tal e um dia chegou uma moça e a moça era bonita, linda, para dar aula de Religião, que já era uma coisa interessante, (risos) contrassenso, (risos) mas enfim, e a moça começou o curso dela perguntando: “Quem aqui não fez Primeira Comunhão?” todo mundo tinha feito, só eu e o Maluf não tínhamos feito. E eu e o Maluf éramos umas figuras estranhas assim, aí ficou por isso. Aí, eu falei: ”Maluf, vem cá, cara,” isso estava no começo da oitava série, “Cara, nós vamos falar com essa mulher, ela é novinha, ela vai ficar, vamos falar para ela que a gente quer fazer a Primeira Comunhão, porque ela convenceu a gente. Bicho, a gente vai tirar dez até o final do ano, não vai se preocupar mais com essa porcaria de Religião, vamos embora,” aí fomos lá, ele comigo: “Professora nossa, foi lindo o que a senhora falou e tal,” que a menina começou a chorar, você acredita? Eu não sei quantos anos a menina tinha, porque na época não dá para você avaliar, devia ter uns 20 e poucos. A menina ficou emocionada: “Então, eu vou ter que levar você para falar com o padre,” eu falei: “Ih, ferrou,” (risos) aí eu falei: ‘não era bem isso que eu queria, o padre não deve ser tão idiota quanto ela,’ mas tudo bem, aí fomos lá falar com o padre Décio, que era o padre da paróquia da PUC, São Domingos. Beleza, fomos lá, conversamos com o padre Décio, o padre Décio falou: “Vocês têm que ler, vocês já são grandinhos, então, vocês vão ler o Evangelho e vem aqui, fala comigo, aí a gente faz a Primeira Comunhão, não precisa ficar fazendo curso,” ele era super bacana o padre Décio, aí eu falei: “Tá bom,” imagina, não li, nem nada, ficou por isso mesmo, mas tiramos dez até o final do ano. O que é mais engraçado é que eu não li o Evangelho naquele momento, só que, sei lá, 30 anos depois, eu estava num hotel da minha tia em Tamandaré, Pernambuco e tinha lá aquela Bíblia de Gideão, que tem em hotel, eu comecei a ler, curioso com uns negócios que eu queria fazer um livro sobre o Evangelho, e li tudo, anotei tudo e tal, estava lá em Tamandaré. Aí, sai, fui comprar a Revista Veja, quando eu comprei a Revista Veja, eu vi uma notícia que o Dom Décio, que era Arcebispo de São Paulo, que era esse padre Décio da minha infância, tinha morrido. Só que ele morreu dois dias depois que eu acabei de ler. Então, eu prometi, eu cumpri para ele, (risos) gostava dele, ele era legal, mas não gostava da religião.
P/1 – E escutava-se música na sua casa? O que é que você escutava nessa época?
R – Sim. Tem uma fase que eu escutava muito através da minha tia e do meu tio, eu lembro que quando a gente estava em Brasília, que o meu tio foi assistir um show de um cara, chegou assim: “Pô, fui assistir o show de um cara,” eu tinha quatro anos, ele tinha 14. Então, ele chegou assim: “Fui assistir o show de um cara incrível, o cara canta e não tem perna,” eu até me lembro de pensar assim: o que é que tem uma coisa com a outra? Quem era esse cara? Roberto Carlos, que ele tinha acabado de descobrir, em 65, lá em Brasília e tal, estava começando a aparecer, mesmo. E a grande propaganda era que ele não tinha perna, hoje em dia ele proíbe a biografia dele, porque ele diz que ele não tem perna, (risos) mas enfim. Então, tinha isso da influência deles, então, assim, eu tinha todos os discos dos Beatles, que a minha tia comprava e deixou comigo, os originais assim, “Revolver”, “Sargent Peppers” tudo mais, então eu ouvia nessa época e Mamas & Papas, eu lembro também, de ouvir bastante. Enfim, e aí, depois, quando eu comecei a ouvir mesmo, tipo, depois de uns dez, 11 anos, aí tinha muita coisa que era obrigatória, assim da década de 70, Pink Floyd, Elton John. É interessante que na época, existia um fenômeno que não existe mais no Brasil, que era uma divisão de classes em termo de música, tinha música de empregada doméstica, que as pessoas falavam, Roberto Carlos, chegou uma época a ser isso, e tinha assim, música de FM e de AM, hoje em dia acabou, hoje em dia é tudo a mesma porcaria, (risos) mas na época, tinha uma certa, então tinha aquela coisa de ouvir algumas rádios FM que tocava, tem alguns resquícios até hoje, como Antena Um que só toca música estrangeira, eles por princípio não tocam brasileira, mas hoje é até estranho, mas na época, assim, eu gostava mais de música americana, ou Elton John, que não é americano, é inglês, o repertório era mais esse aí, a música pop do rock.
P/1 – E como é que foi a sua saída do São Domingos e a ida para o Equipe?
R – Na verdade, eu pesquisei um pouquinho na época, tinha alguns colegas meus do São Domingos, que eu já tinha…
P/1 – No São Domingos não tinha colegial na época?
R – Tinha. Aí acabava, não tinha, era muito fraco, às vezes, parava de ter. Eu lembro que no ano que eu ia fazer, ia ter colegial, eu decidi que eu ia para o Equipe, mas o Zeca, por exemplo, meu amigo, foi para o Bandeirantes, mas eu não queria ir para o Bandeirantes nem morto, que eu achava um horror aquilo, acho até hoje um horror aquilo. Então, eu vi e tal, era a escola que tinha a ver com a minha vida, me lembro que era um grande sonho ir para o Equipe, porque o São Domingos eu senti que não tinha muita gente interessada nas mesmas coisas que eu: em artes, cinema, literatura etc. Tinha o Carlos Fernando, que foi para o Equipe comigo, que também foi para o Equipe, tinham uns caras um pouquinho mais velhos, que estavam no ano anterior, que já tinham ido para o Equipe, o Arnaldo Antunes, por exemplo, que é meu amigo até hoje também, estudou lá e foi para o Equipe. Então, tinha uma referência de gente legal, que eu gostava e que tinha ido para o Equipe. E era, na verdade, era o centro mesmo de uma certa resistência intelectual de São Paulo, quiçá no Brasil inteiro, aquela escola específica, que era sensacional mesmo, que você tinha um ensino de arte bacana, você tinha no intervalo, você tinha show de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gonzaguinha, todo mundo lá se apresentando, era uma efervescência cultural muito grande a escola e um centro de oposição à Ditadura, era realmente um local que dava para você ir e você vivia com gente que era contra, professores e você vivia num outro mundo, era um país a parte ali, o Colégio Equipe na década de 70.
P/1 – Como é que foi a sua adolescência? O que é que você fazia? Quais eram os seus programas?
R – Eu gostava muito de ir ao cinema, sempre fui absolutamente fanático pelo cinema, lembrando que eu vivi uma adolescência num período em que não existia vídeo, e isso acho que era uma coisa que é sempre interessante pensar, eu tenho uma teoria de que na verdade a vida de 1950 até 1995 não mudou muito. Agora de 95 em diante mudou, o mundo é outro, o ser humano é outro, (risos) as preservações são outras, mas então, o que eu estou falando é que, por exemplo, eu me lembro de querer assistir um filme chamado “Cantando na Chuva” você falar para qualquer pessoa: “Assista Cantando na Chuva,” alguém que me ouvir agora pode falar: “Vou lá,” e hoje você vai assistir “Cantando na Chuva,” lógico. Você vai pegar na locadora, se bem que ninguém nem usa nem mais locadora, vai pegar na internet, e tem “Cantando na Chuva” no You Tube, inteiro se você quiser, fora que você dá download no Torent, 20 versões de “Cantando na Chuva,” dublado em várias línguas. Na época não tinha nem locadora, você dependia de você, do filme estar passando, ou na televisão, ou no cinema, parece uma coisa idiota o que eu estou falando, mas é fundamental, eu acho assim, eu fiquei um ano para assistir “Cantando na Chuva,” queria assistir e não conseguia, não tinha como, fui assistir nos Estados Unidos em 74 quando eu fui para lá e passou lá, fui lá nas férias e passou no cinema, fui correndo assistir e era isso, você ia correndo assistir, você ia assistir as coisas, louco da vida. Então, tinha uma coisa de uma certa avidez muito grande pelo cinema, tipo, saia da escola, ia para o Cine Bijou assistir filme, porque era um dos poucos cinemas que você podia entrar em filme que era 18 anos, porque também tinha esse problema, (risos) que tinha censura no Brasil e tal. Então, censura etária meio rigorosa em vários cinemas, às vezes eu ia disfarçado, botava uns ternos, chapéu, devia ser completamente ridículo, para tentar entrar no filme de 18 anos e tal. E era uma aventura, uma questão de você conseguir, eu acho curioso que hoje em dia tem tanta possibilidade, e acho que as pessoas, eu vejo que a moçada aí, a maior parte dela não assistiu metade do que eu assisti na época, entendeu? Porque eu ia atrás, assistir filme lá no Museu Lasar Segall, todo lugar que tinha alguma coisa passando interessante eu ia atrás. E eu gostava de dança também, eu dançava, eu tinha aula com uma professora de expressão corporal e tal. Então, eram coisas que eu gostava muito de fazer.
P/1 – Você gostava de dança? Você fazia dança?
R – Fazia. Desde a sexta série em diante, eu comecei a ter aula com a Eugênia, que era a professora de expressão corporal e tal, que foi aluna da Maria Duschenes, aí eu comecei a estudar um pouco de Laban, de dança e acabei indo estudar com a dona Maria. Então, durante um bom tempo, eu estudei com a dona Maria Duschenes, que foi a introdutora no Brasil do método Laban e eu diria até que da expressão corporal mesmo. E é uma pessoa também que foi muito importante para mim, aprendi demais com ela, estudei Labanotation, coisa que na década de 70 ninguém sabia muito no Brasil. Eu ia lá, tinha aula com ela, depois ela me levava lá para cima na casa dela, e me ensinava umas coisas e tal, ela gostava muito de mim e vice-versa.
P/1 – E no Equipe, quer dizer, você fez uma turma nova de amigos?
R – Fiz, agora é engraçado, porque tinha uma coisa curiosa, a expectativa que eu tinha não se deu, na verdade. Fiz, algumas pessoas conheci, gostei, conheço até hoje e tal, mas tem uma coisa que na verdade, eu era do contra, era sempre do contra. Então, comecei a ver que as pessoas chegavam lá e em seis meses mudavam, ficavam tudo frick, começavam a fumar maconha, falava: “Meu, que gente,” quer dizer, eu ficava meio bravo com esse imediatismo, então, eu virei o chato lá, (risos) que não gostava de nada, por exemplo, negócio de maconha era generalizado assim, mas eu não fumava, porque eu achava idiota e achava todo mundo idiota que fumava. Era meio que para ser do contra mesmo, acho que se ninguém fumasse, eu fumaria, (risos) entendeu? Então assim, eu era muito do contra. Eu lembro que a minha mãe uma vez foi lá na escola falar com a Lia, que era a minha orientadora, depois eu trabalhei muitos anos com ela, e a minha mãe chegou lá e falou: “Tô preocupada com o Fred que ele está desanimado e tal,” a Lia falou: “Não, entendo, claro que ele está desanimado, a única palavra que ele sabe é não,” (risos) que era bem do contra mesmo e tal. Então, era um pouco assim, era uma relação assim, eu gostava, mas por outro lado, eu achava que era todo mundo porra louca e não tinha muita base, muito conteúdo e tal.
P/1 – Nesse momento como é que era o ambiente na sua casa? O ambiente familiar?
R – Tranquilo assim, não sei responder isso, que não sei como qualificar o ambiente. (risos)
P/1 – Assim, preocupação com você com os estudos? Uma carreira que você fosse seguir? A relação do seu pai com você, sua mãe?
R – Sempre teve de conversar muito com eles. Eu tinha essa coisa de que eu queria fazer Física e ponto final.
P/1 – Você já queria?
R – É.
P/1 – Desde aquela época, desde menino?
R – Desde aquela época, embora tivesse ido fazer uma escola que era basicamente voltada para Humanas. Aí em 77 a gente foi de novo para os Estados Unidos, eu passei um ano nos Estados Unidos quando eu tinha 16 anos.
P/1 – Por que é que vocês foram?
R – Porque duas coisas: meu pai ganhou uma bolsa, podia ficar um ano lá e a minha mãe foi fazer o doutoramento dela na Boston University, então, a gente foi para Cambridge, Massachusetts, ao lado de Boston e a gente morou um ano lá, e aí foi interessante…
P/1 – Você, seu pai, sua mãe e sua irmã?
R – Eu, meu pai, minha mãe e minha irmã. Eu, por exemplo, estudei muita Física, Química lá, me aprofundei lá na High School, é interessante o High School americano, que se você quisesse você ia para frente, se você não quisesse você não fazia nada, típico americano mesmo assim, se você tem empenho. Então, eu tive um curso de Física maravilhoso lá assim, que era curso de Harvard e tal, na escola pública, de Química, então, eu estudei muito Ciências, Matemática e tal, que era o que eu focava nisso. Ao mesmo tempo eu ia lá para os museus em Cambridge e tudo mais. Estudava numa escola, era muito estranho, a segunda pior escola em toda região metropolitana de Boston, tinha briga de gangue no meio da escola, uma coisa meio complicado, mas tinha portas assim, cada porta tinha uma etnia, a escola tinha várias portas, então tinha a porta dos brancos, a porta dos negros, a porta dos mexicanos, a porta dos gregos, tinha muito grego lá, a porta dos portugueses, em Cambridge tem muito português, tem uma rua onde só se fala português, praticamente. E aí no começo eu ia para porta dos portugueses, um inferno, não entendia nada do que eles falavam, (risos) falavam português, (com sotaque) então, não entendia nada do sotaque, eles falando entre si. Aí, parei de ir, ia para a porta dos brancos, mas os brancos não aceitavam. Eu não tinha porta, porque eu era brasileiro, o único brasileiro da escola, tinham várias etnias, mas eu era o quê? O que é que eu era? Interessante. Eu lembro que tinha um jogo de futebol entre portugueses e hispânicos e eu comecei a jogar com os portugueses, no time dos portugueses, aí eu enchi o saco dos portugueses e fui lá para os espanhóis, para os hispânicos e falava: “Pô, mas eu também sou latino-americano” (risos) “Tenho que jogar com vocês e não com eles” e mudei de time, os portugueses ficaram me odiando, mas mudei de time, porque eu queria jogar com os latino-americanos, que eu gostava mais. Mas era uma situação interessante, foi curioso, porque eu acabava não tendo, não me ligando muito a nenhuma facção, mas eu circulava mais ou menos por todos, falava lá com os hispânicos, mas eu não era de nada, foi uma situação curiosa. E na escola, tinham coisas muito interessantes, por exemplo, eu fiz um curso de mímica com um professor que depois foi o diretor da American Mimicry Theatre, que é a maior escola de mímica dos Estados Unidos e ele dava aula lá na escola, porque ele queria fazer esse trabalho e tal. Ele era um cara genial e eu sei até hoje fazer aquelas coisas de mímica que eu aprendi lá, foi um momento interessante lá, nesse sentido.
P/1 – Você estava, quando você foi, você estava no segundo colegial, aqui?
R – Estava no segundo colegial.
P/1 – Aí quando você voltou, você voltou para o terceiro?
R – Voltei para o terceiro, tipo, quero entrar na faculdade. Então, entrei para o terceiro lá no Equipe tinha cursinho na época, eu pensei em fazer cursinho junto, acabei não conseguindo levar adiante, porque era muito pesado, mas enfim, estudei para caramba e fazia os simulados, tirava sempre segundo, terceiro lugar, aí entrei na Física da USP.
P/1 – E você continuava escrevendo?
R – Continuava escrevendo e nessa época, quando eu tinha 17 anos, comecei a escrever algumas coisas mais interessantes. Eu tinha um professor de redação no colegial, que eu acho que é o maior professor de redação desse país, que é o Gilson Rampazzo e eu brigava com ele o tempo todo, não gostava do que ele falava e tal. E a partir de meados da década de 70, eu gostava de Drummond, lia muito Drummond, lia Octavio Paz, eu gostava de Octavio Paz. Tem até uma história, quando eu estava lá em 77, nos Estados Unidos, eu vi o Octavio Paz numa livraria, ele morava lá em Cambridge, morava metade do tempo em Cambridge e metade do tempo na Cidade do México e eu entrei na livraria, ele estava lá, eu fiquei perseguindo o Octavio Paz, eu queria falar com ele e não conseguia, não sabia o que dizer. Eu não sabia que língua falar e também achava idiota você chegar e falar: “Eu gosto dos seus poemas,” ele ia falar: “Todo mundo gosta,” idiotice, porque eu tenho certeza que se eu falasse ele ia adorar, ainda mais que, isso ai em 77, ele só ganhou Prêmio Nobel em 90. Então assim, eu gostava muito de ler e tal, mas aí a partir de meados da década de 70 eu comecei a gostar muito, me apaixonei pela poesia concreta, pelas obras do Haroldo, do Augusto, do Décio e comecei a ler muito poesia concreta, as coisas que eles. E aí eu brigava muito com o Gilson, porque eu falava que gostava de poesia concreta, o Gilson não gostava e ficava aquela coisa, mas eu sempre achei isso importante, que o professor tenha a sua opinião, discuta e não gosto de professor que fala que gosta de tudo, sabe assim, tem que ter a sua opinião, tem que falar, tem que discutir. E aí você, o aluno, vai criando o seu próprio repertório, seu próprio caminho. Com o Gilson foi muito assim e eu comecei a fazer alguns poemas lá, mas eu sempre brigava um pouco com ele, eu fazia um poema que eu gostava, ele dizia que não prestava, eu fazia um que ele gostava e falava que era uma idiotice, mas você vai ver, vai me dar dez e dava, (risos) então, era uma briga eterna. Aí um dia em 78 eu estava indo para lá, não tinha feito o poema, peguei duas matérias de jornais e misturei as matérias de jornal e fiz esse poema que está publicado no livro até hoje. Então, é um poema que eu fiz na época chama “Petrônio e o Overlapping”, overlapping é uma coisa que o Cláudio Coutinho falava na época de tática de futebol, e Petrônio não é o escritor latino, é Petrônio Portela que era o Ministro na época, então eu misturei as duas notícias e tal e fiz um poema e o Gilson gostou, foi o primeiro momento que a gente gostou de alguma coisa. (risos)
P/1 – Você pode falar um trecho desse poema?
R – Na verdade, eu peguei duas notícias, uma é sobre a Copa do Mundo de 78 e outra era sobre o Petrônio Portela, que estava trabalhando na abertura, então, eu me lembro que começa assim: “Sileira vai mal, empatou com autoridade,” tem assim, que falava da Seleção Brasileira que estava indo mal, que estava empatando todos os jogos na Copa do mundo, empatou, acho que, os dois primeiros jogos, eu me lembro que no final, terminava assim: “Uma mostra de apaxatória que este até é futebol,” terminava assim o poema, é um ready-made, e é uma brincadeira que depois, eu descobri que os americanos faziam e chamavam de found poetry, faziam mais ou menos na mesma época em que eu estava fazendo aqui, que é achar os poemas, pegar notícias de jornal, misturar, recortar e fazer o poema. Eu fiz esse e fiz um outro também, que não tem, que não é com esse método, é um outro poema mesmo, que eu chamei de “Certa Biblioteca Pessoal” e que falava de muitos escritores, era uma coisa meio assim, com 17 anos, então ficava brincando com os nomes dos escritores, cheio de referências e tal e esse eu fiz e mandei para o Boris Schnaiderman, e o Boris gostou muito do poema e publicou o poema numa revista chamada “Através”, que ele e o Décio Pignatari faziam. Então, foi o primeiro poema assim, que eu tinha 17 anos, foi nessa época, nesse ano aí que eu escrevi esse poema. E era um período muito rico, um período de muito aprendizado, muita descoberta e tal, acabou não sendo o primeiro poema meu que eu publiquei, porque demorou, a revista demorou para sair, foi o primeiro a ser aceito, antes eu publiquei um outro numa revista chamada Pulímica que era feita pela PUC lá e tal, eu publiquei um poema nessa revista também, aí tinha 17, 18 anos.
P/1 – E foi nessa época que você começou, um pouco antes, com a poesia concreta?
R – É. Assim, eu me lembro bem que…
P/1 – Mas o seu pai já gostava? Você disse lá trás…
R – É, meu pai tinha contato com eles, era muito amigo deles, era muito, muito amigo mesmo do Haroldo, que morava na mesma rua que a gente, morava lá na Monte Alegre também, então, tinha um contato mais próximo, eu tinha um contato mais próximo com o Haroldo. Super admirava assim, o Décio, sempre admirei, com o Décio eu nunca tive um contato muito forte, só assim, um ano, dois anos antes dele morrer que eu tive um pouco mais, mas sempre foi mais distante. Agora, com o Augusto depois também foi muito forte, com o Augusto, mas com o Haroldo, inicialmente era mais forte, até por causa desse contato com o meu pai e tal. Eles sempre fizeram muitas coisas semelhantes, o Haroldo já estado em Yale e o meu pai foi para Yale, o Haroldo tinha tido uma bolsa, meu pai teve uma bolsa logo depois, estava sempre meio juntos aí na parada. (risos) Agora é engraçado, porque assim, o contato maior que eu tinha com poeta, era com um poeta que era amigo do meu pai desde Recife e eu sempre gostei muito chamado Sebastião Uchoa Leite, principalmente, porque com o meu pai eu escrevia o poema, dava para o meu pai e o meu pai achava todos ótimos: “Ah, que bonito e tal,” aí depois de um certo tempo, eu comecei a perceber que não valia a pena mostrar para ele, porque ele podia ser muito bom crítico, mas não meu crítico, (risos) não era nada crítico com o que eu fazia. Sebastião, não, Sebastião, eu mostrava ele achava uma porcaria, falava na cara, não tinha problema nenhum de traumatizar um garoto de 15 anos, ele falava o que ele pensava e eu passava sempre os poemas para o Sebastião, discutia com ele e tal. Morava no Rio, mas eu ia lá para o Rio, conversava com ele e tal, então tinha uma relação, com o Sebastião foi uma relação muito próxima, nesse sentido. Com o Haroldo, quando eu tinha 18 anos, eu levei uns poemas para o Haroldo, aí ele falou que era a coisa mais legal que ele tinha lido nos últimos tempos, não sei que, eu fiquei tão entusiasmado que eu passei dois anos sem escrever nada, (risos) bloqueou total, eu não conseguia mais fazer nada. Mas ele era muito assim, Haroldo era muito generoso e muito entusiasmado, ele deve ter falado para mim e para vários outros a mesma coisa, hoje em dia eu tenho consciência disso, mas na época eu não sabia. Então, ele pegou: “coisa fantástica, você é demais” eu fiquei todo achando que eu era como é que chama? A azeitona da empada. Mas aí, bloqueou eu não conseguia mais escrever, porque eu fiquei tão... (risos) não conseguia mais escrever nada, porque eu ficava achando que tinha que ser genial o que eu escrevesse, mas esse contato foi importante mesmo, assim, com eles, claro, para começar a escrever e tudo mais.
P/1 – Essa entrada na USP?
R – Aí é complicado, porque eu entrei na Física, eu acho que como eu já falei, com o estereótipo de que o físico é o gênio, logo, eu era gênio e entrei na Física e daí comecei lá não entender nada, achava uma coisa insuportável, era matemática pura, tinha um professor que entrava na sala de aula, escrevia com a mão direita e apagava com a mão esquerda, sério! Entendeu? Você tinha que copiar. Eu lembro uma vez que o professor, professor de Cálculo estava dando aula lá e eu falei: “Professor…” não, não, uma menina falou assim: “Professor, dá para explicar o que o senhor fez?” ele virou para menina e falou assim: “Mágico explica mágica?” aí eu fiquei puto, eu falei: “Professor, desculpa, mas o senhor não é mágico, o senhor é professor e se for fazer uma metáfora, o senhor seria professor de mágica e professor de mágica ensina, sim” (risos) aí ele me mandou para fora da sala, então era assim, era difícil assim. Eu encontrei alguns professores que eu gostava na Física, que tem um que é meu amigo até hoje, que é o Professor Menezes, foi meu professor lá no primeiro ano, e hoje em dia, nós somos colegas do Conselho Curador do Prêmio Jabuti, eu gosto muito do Menezes. Mas não conseguia, não conseguia achar, não era a minha na verdade, era muita matemática, muita coisa, eu já estava muito fascinado com a Literatura. Aí, eu fiz até o terceiro ano, larguei e fiz vestibular para Letras, aí entrei na Letras. Mas mesmo assim eu acho que eu aprendi muito na Física, eu gostei muito de ter estado lá, acho que foi importante para mim, principalmente, de novo com essa coisa do espírito científico.
P/1 – E essa vivência na USP? No ambiente universitário naquela época?
R – Assim, eu já vivia nesse ambiente, porque os meus pais ambos eram professores da USP, então, eu já conhecia muitos professores de lá, da USP e tal. Eu não conhecia o pessoal da Física, era uma área que eu não conhecia. Depois quando eu fui para Letras, por exemplo, eu conhecia todos os professores, já conhecia todo mundo. Quando eu fui para Letras, era até meio covardia, porque eu já tinha um pouco, era um pouco mais velho do que as pessoas que entraram comigo e também, já conhecia todo mundo e tal. Então, esse contato eu já tinha, para mim não foi nada muito significativo estar na universidade.
P/1 – Você tinha namorada nessa época?
R – Eu tinha no colegial, eu tive uma namorada.
P/1 – Qual foi a sua primeira namorada? Ou primeira paixão?
R – A primeira paixão foi uma moça chamada Bárbara Eden, ela fazia o papel da Jeannie, na série Jeannie é um Gênio, (risos) essa foi a primeira. Talvez tenha sido a única, não, estou brincando, mas não, difícil falar a primeira paixão, paixão…
P/1 – Mas e primeira namorada?
R – Paixão teve várias, eu lembro que quando eu estava no São Domingos, tinha uma menina que eu era apaixonado e causou um problema na escola. A escola se mobilizou por causa disso, porque era assim, na oitava série, eu era o melhor aluno da escola, um dos, na época, eu já era o melhor, porque o Zeca tinha saído e a menina era a peste da escola, a peste da escola, ela era mais velha, eu tinha 14 ela tinha 16. Ela era linda, maravilhosa e era uma idiota, não fazia nada, não estudava, enrolava todo mundo e aí ela me encontrou, eu a ela e aí a gente começou a fazer tudo junto. E a escola inteira me avisando: “Você é besta, está te usando” “Tá bom, pode usar, que eu estou gostando” (risos) e era assim, eu falava: “Não, não tem problema, eu sei, eu faço todas as lições,” eu fazia tudo para ela e tal, eu gostava de ficar com ela, então era apaixonado por ela assim, mas ela usava assim, então tinha aquela coisa. E a escola inteira me avisando, os amigos, o diretor me chamou na sala, falou: “Fred, veja bem, não é bem assim” “Eu sei, eu já sei” eu tinha consciência de que ela era. Aí, até o momento que resolveram na sala, separar os alunos e era por causa da gente, a gente não podia ficar sentado junto e era assim: “Vamos separar,” fizemos um outro arranjo, eu sentava aqui e ela aqui, uma coisa meio patética assim. Aí eu tive uma outra namorada, mas a primeira namorada que eu tive mesmo, eu estava no colegial, quando eu voltei dos Estados unidos e comecei a namorar com a menina e namorei três anos, assim, foi um namoro longo e tal, importante naquele período.
P/1 – Até você fazer faculdade?
R – Até eu entrar na Física e ela fazia, ela também fazia comigo, dança. Ela começou a dar aula lá com a Eugênia, começou a trabalhar com Educação e tal, até montou uma escola. Foi uma relação muito importante para mim, eu tenho contato hoje via Facebook, (risos) como sempre.
P/1 – E depois, quando você se formou, você já estava trabalhando? Como que você começou a trabalhar?
R – É engraçado, porque assim, eu estava na Física e comecei a trabalhar no São Domingos, comecei a dar aula de Matemática lá, eu dava aula de reforço para os alunos no São Domingos, eu dava muita aula particular de Física e Matemática. Então, eu dava aula já, e aula particular era ótimo, ganhava muito dinheiro, para mim na época era muita coisa. Então, tinha alunos que eu dava aula de tudo: Física, Química, Matemática, e eu sabia dessas coisas tudinho, então eu dava. E no São Domingos eu comecei a dar, quando o seu Jaime, aquele que ficou me alertando da menina, descobriu que eu tinha entrado na Física, ele entrou em contato, que a minha irmã estudava lá ainda e enfim, eu morava do lado da escola, aí ele me chamou para conversar lá e me propôs de trabalhar lá. Eu comecei a dar, durante dois anos, eu dei aula de matemática, mas não era aula regular, era aula de reforço de matemática e tal. Eu lembro de um episódio interessante que a gente dava aula na PUC, na sala de aula da PUC, isso foi, isso já era em 80, e aí, estava dando aula lá e uma menina virou para mim e perguntou: “Fred, aqui na PUC só tem comunista?” eu falei: “Não, não é bem assim, como assim? Não,” ela falou: “Não tem?” “Você tem um monte de gente, não tem essa história, por que você está falando isso?” “Porque meu pai falou que veio aqui e prendeu um monte de comunista aqui,” falei: “Putz, ainda bem que eu não falei nada”. (risos) Tem gente que fala que em 80 já não tinha mais Ditadura no Brasil, está errado, tinha sim, eu me lembro bem do meu medo quando a menina falou isso: “Meu pai prendeu um monte de comunista aqui,” que o pai dela era policial e de fato, tinha estado na invasão da PUC em 77, mas enfim, eu comecei a dar aula lá. Agora, quando eu entrei na Letras, estava no primeiro ano de Letras e um dia, eu estava lá na USP e dei uma carona para meu ex-professor do Equipe, professor de Português, o Agnaldo, e nessas o Agnaldo falou: “Vou sair, vou dar umas aulas na PUC e vou ter que largar as aulas lá no Equipe, você não quer dar aula lá?” falei: “Pô, dar aula lá, como assim?” “Não, vai lá, você vai me substituir durante dois meses” e aí eu comecei a dar aula de Literatura e era engraçado, porque tinha aluno que tinha a minha idade, e era a escola que eu tinha estudado e tal e comecei a dar aula lá e fiquei oito anos lá, dando aula lá no Colégio Equipe, foi aí que eu comecei a trabalhar de fato com Literatura e dando aula e tudo mais. Porque o Agnaldo, depois adoeceu não voltou naquele ano, eu fiquei o resto do ano, e depois ele foi dar aula na Unesp e aí eu fiquei lá no lugar dele. E fiquei lá oito anos e depois, aí depois fui para outras escolas.
P/1 – Por que é que você saiu do Equipe?
R – Na verdade, assim, eu dava aula no Equipe, quando me ligaram do Logos, me convidando para ir lá, a diretora da escola, a Célia me ligou, me convidado para conhecer, a Lia, que era minha orientadora no Equipe trabalhava lá no Logos e o Logos pagava o dobro que o Equipe pagava. Então, eu fui lá, gostei e comecei a dar aula. Tinha um fator para mim, importante, que era que no Equipe eu me sentia em casa, então, tinha os aspectos positivos e os aspectos negativos de me sentir em casa. Negativo era: você ia discutir salário com o Maurício, que era o meu ídolo, com o Jocemar, idem, com o Raimundo, então, era um problema você ter uma relação profissional com gente que era, enfim, fundamental na sua formação, e que é até hoje, o Maurício já morreu, mas são pessoas assim, que, pelo amor de Deus, são ídolos meus. Então, aí quando eu fui para o Logos, não conhecia ninguém lá, me chamaram porque conheciam o meu trabalho de professor, não era porque eu era filhote da escola. E aí para mim foi interessante, eu fiquei, durante um tempo, nas duas. Durante um bom tempo nas duas e depois eu saí do Equipe e fiquei só no Logos, porque aí me ofereceram muito mais aula, eu ganhava muito mais, na época, eu casei. Casei com uma aluna minha do Equipe, inclusive, e aí eu falei: “Vou ficar no Logos, que eu ganho mais”, eu me sentia mais valorizado na verdade, eu me sentia tratado como um professor e tal, não como: “Ah, o Fred.”
P/1 – E você casou com essa aluna do Equipe, quando você era professor dele ou já tinha…?
R – Não, ela já tinha sido, mas a gente começou a namorar, ela estava no terceiro colegial. E que é uma coisa que hoje em dia é quase impossível, hoje em dia, ia causar um escândalo, mas que na época, rolava, (risos) tinha, tinha, não só esse caso, tem vários outros que eu conheço. Na verdade, eu conheci a Simone, quando ela entrou na escola, quando ela tinha 14 anos e é até engraçado, porque eu corrigia as provas de redação dessas pessoas que entravam na escola. E eu pegava as redações e corrigia, fazia a prova e depois corrigia a prova, eu tinha o quê? Vinte e dois. E aí, eu peguei essa prova dessa moça e falei: “Gente, o que é que é isso?” chamei a Alcione que é orientadora até hoje lá do Equipe: “Alcione, vem cá. Essa menina tem 14 anos? Não é possível!” “Ah é, ela é uma gracinha,” a Alcione acha todo mundo gracinha, “Falei com ela, ela é super legal” “Mas não é possível que ela tenha escrito isso, eu não acredito, eu quero conversar com essa moça” (risos) aí ela veio, eu conheci lá, que era a melhor coisa que eu já tinha lido na minha vida, assim, de redação. Realmente, era incrível, e foi a melhor aluna da escola, sem dúvida, que eu tive, ou que muita gente teve lá. Aí a gente começou a namorar no final do terceiro ano dela, quando ela já estava no primeiro ano da faculdade de Letras, a gente se casou. Ela tinha 18, eu tinha 26.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram casados?
R – A gente ficou casado cinco anos, eu acho, cinco anos. Ela fez a faculdade e tal, mas aí depois, a gente foi um período para Alemanha, foi muito ruim, porque eu odiei a Alemanha, ela fez alemão, eu odiei a Alemanha, e ela queria morar lá, então aí começou um conflito muito grande e aí, ela ficou lá 18 anos. Hoje em dia, ela trabalha comigo, inclusive.
P/1 – Na Casa das Rosas?
R – Na Casa das Rosas. É super minha amiga e tal, ela é coordenadora do Centro de Referência Haroldo de Campos, mas a gente separou há 25 anos, mas assim, mas é uma pessoa que é muito inteligente, muito competente assim, sempre a admiro muito, desde quando ela tinha 14 anos.
P/1 – E aí, você foi para o Logos, saiu do Equipe e você continuou escrevendo, como é que você foi construindo essa carreira?
R – Eu continuei escrevendo, coisa e tal, tinha uma coisa assim, eu queria muito publicar um livro, todo mundo que escreve quer publicar um livro. E eu senti, eu me lembro de uma vez que eu levei para uma editora, o cara falou assim: “É muito bom o seu livro, mas você é inédito,” falei: “Então, aí ferrou, como é que eu vou deixar de ser inédito?” não tinha jeito. Na época, era muito difícil publicar, no final dos anos 80. Hoje em dia, super fácil publicar, tem uma diferença, naquela época era difícil publicar, mas você publicava também, você aparecia, hoje você publica fácil, mas não aparece. Então, eu não queria ficar publicando tipo mesa de bar e distribuindo como acontecia lá no Bexiga, quando você ia, iam os caras vender livro de poesia, eu não queria fazer isso, queria publicar por uma editora e tal. E na verdade, não tinha muitas editoras e pouco tempo antes de eu publicar o meu primeiro livro, abriu uma editora, que é a Editora Iluminuras, publicando algumas coisas de poesia contemporânea e tal, eu fui lá, conheci o dono que é o Samuel Leon e falei com ele e tal e acabei publicando em 90 o livro. Foi difícil, porque em 90 teve Plano Collor, sumiu o dinheiro de todo mundo nesse país, foi complicado, mas aí, acabou publicando no final de 90, o “Rarefato”, que é o meu primeiro livro. Eu já tinha o livro pronto em 84, mas o que eu publiquei em 90 é diferente, mudei muita coisa e tal. Então, acho que deu para fazer, eu tinha publicado muito poema em revista, publicado em um monte de lugar, aqui, nos Estados Unidos, no México, já tinha publicado poemas, mas o primeiro livro foi em 90, o “Rarefato.” E aí assim, primeiro livro, mas saiu resenha na Folha, no Estadão, no Jornal da Tarde, no Jornal do Brasil, no Diário de Pernambuco, no Estado de Minas, uma coisa que hoje em dia não sai, não sai mesmo, não importa quem você seja, a não ser que seja, sei lá, Harry Potter, aí os caras todos falam do livro, mas é interessante isso, a mudança que houve, da facilidade que tem hoje para publicar é muito grande, mas a dificuldade para você mostrar o seu trabalho é enorme. E na época saiu em um monte de lugar, foi muito bem recebido o livro, inclusive, foi escolhido como um dos melhores livros do ano pelo Estadão, pelo Estado de Minas, então, teve uma recepção bem legal em 90.
P/1 – E aí, depois que você publicou, veio algum outro projeto de continuar, além de dar aula, trabalhar com a Literatura?
R – Na verdade, não tinha essa possibilidade, não sentia essa possibilidade naquela época, todos os meus ídolos, nenhum trabalhava com Literatura, entendeu? Nenhum vivia de Literatura, todo mundo trabalhava de uma outra coisa, principalmente, sendo poeta. Na época, eu diria, a gente só falava de dois escritores que viviam de Literatura, que eram Jorge Amado e Érico Veríssimo, e ainda assim, com desdém, porque o Jorge Amado e o Érico Veríssimo eram considerados assim, são grandes escritores, não estou falando que não são, mas na época tinha um certo: Jorge Amado escreve para inglês ver e tal, então tinham umas coisas meio... Na época, nem havia, nem passava pela minha cabeça, a possibilidade de viver com Literatura, então, dava aula mesmo, fazia pós-graduação e tal.
P/1 – Você estava fazendo pós-graduação em quê?
R – Em Literatura Brasileira. Só que aí eu também enchi o saco da pós-graduação, larguei e fiquei dando aula no Logos…
P/1 – Mas tinha algum tema especifico que você queria desenvolver?
R – Teve vários, (risos) eu entrei…
P/1 – Quais?
R – Eu entrei com o projeto de fazer uma análise comparativa de Dom Casmurro e da teoria do romance de Henry James, que eu achava e ainda acho até hoje que a melhor realização da teoria do Romance do Henry James é o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Infelizmente, um não conheceu o outro, mas era isso, mas não segui. Aí, descobri, por um acaso, as fontes na literatura popular pernambucana do Morte e Vida Severina, poemas inteirinhos que o João Cabral copiou para fazer Morte e Vida Severina e isso ninguém conhece. Então, descobri aquilo e falei: “Ah, vou fazer a minha tese sobre isso,” desisti. Aí resolvi fazer sobre o Sebastião Uchoa Leite, sobre a obra dele, aí fiz a qualificação, passei na qualificação, mas aí larguei. E larguei, quando comecei a dar aula no cursinho, eu comecei a dar aula no Anglo, aí comecei a ganhar muito dinheiro, ficava absorvido pelas aulas, cheguei a dar 60 aulas por semana, aí larguei a coisa da pós-graduação.
P/1 – Você ficou quanto tempo no Anglo?
R – No Anglo, eu fiquei 15 anos. Na verdade, eu fiquei oito no Equipe, 15 no Logos e 15 no Anglo, fiquei um bom período no Anglo e no Logos. No Logos, eu cheguei a ser orientador, fazer parte de equipe de direção da escola e tudo, e fiquei um tempo nos dois, dar aula no Logos e no Anglo. Mas antes, eu fiquei um tempo que eu dava aula no Equipe e no Logos.
P/1 – O que é que mudou? Assim, porque dar aula em cursinho é um jeito diferente, você desenvolveu algum método? Como é que era?
R – Não, eu nunca me senti muito de lá, fiquei um tempão lá, dava 60 aulas por semana, mas achava que era esquisito, assim, nunca gostei muito, na verdade. Mas assim, quando eu fui para lá, eu achava que eu era o rei da cocada preta, falei: “Pô, eu dou aula há dez anos, os alunos me amam, não vai ter problema nenhum,” primeira aula que eu fui dar, meu coração ficou aqui, assim, você vê aquela classe com cem alunos, hoje em dia para mim é uma baba, classe de cem eu já acho que é pouco, mas na época quando começou eu achei muito estranho aquilo, e era muito agressivo, comecei a dar aula, falei: “Vou falar um poema aqui do Fernando Pessoa,” um moleque gritou lá no fundo: “Coisa de viado,” eu já fiquei meio chateado, fui falar com o meu chefe, aí o meu chefe falou: “Para com essas coisas de viado,” (risos) então tem alguma coisa aí que, mas aí eu fui aprendendo.
P/1 – Você dava aula do quê? De Literatura Brasileira? Portuguesa?
R – No Anglo? Eu dava aula de Literatura, que não é brasileira ou portuguesa, é Literatura. Dava aula de Literatura, depois, eu fiquei…
P/1 – Nossa, na minha época tinha Literatura Brasileira e Portuguesa.
R – Sim, tem, tem, mas um professor…
P/1 – Pode dar, tanto faz?
R – É. Tem em Humanas.
P/1 – Em Humanas.
R – Em Exatas não tem, então, em Exatas você dá os dois, tanto a Portuguesa quanto a Brasileira tudo junto. E eu dava também, eu criei lá, junto com o Platão um curso de texto, de interpretação de texto, então, depois de um certo tempo, eu parei de dar Literatura e passei a dar texto, depois uma época eu passei a escrever o curso de redação e a dar texto e redação. Aí, depois eu larguei os dois, voltei a dar aula de Literatura, então, eu dava, dei aula de Literatura, Texto e Redação, fiz o material de Literatura, de Texto e de Redação também. Foi uma experiência muito rica, mas assim, me incomodavam algumas coisas, por exemplo, como a imagem que você tem que construir, principalmente, no cursinho tem uma coisa que o professor sabe tudo. Então, essa coisa que eu acho que é fundamental você chegar e perguntar para o professor e perguntar: “Você sabe tal coisa?” “Não, não sei, vou pesquisar,” lá, você não pode fazer, você tem que saber tudo e acho isso muito ruim, porque é falso, mentiroso, então, isso eu nunca gostei. E é uma coisa meio assim, de imagem mesmo, público, então, os caras criam uns jargões, uns refrãos, umas coisas e falam e vira mais pastoreio de ovelha do que de ensino mesmo. Então, eu tinha consciência disso, achava muito ruim o método de avaliação dos professores, que é feito através dos alunos, que é chamado de Ibope, então, critiquei isso, conseguia formular lá dentro isso um tempo, durante um tempo, eu acho que eu vivi bem lá, fiz um trabalho forte lá.
P/1 – Quinze anos!
R – É. Depois eu pensei: “Eu quero sair” e eu fiz um projeto que eu queria sair, 2002, 2003, eu falei: “Em cinco anos, eu quero estar fora daqui,” e era meio inimaginável, quem está lá dentro é difícil sair, porque você acha que você ganha melhor do que o professor da USP, entendeu? Então, é complicado, mas eu fiz esse projeto que eu ia sair. Aí, eu comecei a dar aula no Centro Cultural São Paulo, dar oficina da Casa do Saber, vários lugares dar oficinas separadas, até que a secretária de Cultura me convidou para dirigir a Casa das Rosas.
P/1 – Em que ano?
R – Dois mil e quatro. Aí, eu fiquei, assumi lá a Casa das Rosas e fiquei no Anglo, só que aí em 2005 eu larguei o Anglo e estou lá até hoje, na Casa das Rosas.
P/1 – Quando você chegou em 2004, quem foi a secretária que te convidou?
R – Cláudia Costin.
P/1 – Como é que estava a Casa das Rosas naquele momento?
R – Totalmente abandonada, era assim, tinha sido um centro de artes plásticas de 91 a 2003. Em 2003, a Cláudia tirou os artistas plásticos de lá, teve um movimento, pararam a avenida Paulista, revolta…
P/1 – Por que é que ela resolveu mudar?
R – Porque convenceram-na de que a Secretaria tinha dois equipamentos praticamente iguais, que era a Casa das Rosas e o Paço das Artes, dedicados às artes contemporâneas e tal. Tinha problema de que na Casa das Rosas, de fato, aqueles trabalhos de artes plásticas acabavam estragando um pouco a casa e tal, e parece que houve alguma indisposição com o Amilar, que era o diretor da Casa, que é um cara muito legal. Mas enfim, houve alguns problemas e ela tirou. E a Cláudia quando ela assumiu, ela tinha falado que ela queria transformar São Paulo num estado de leitores, então, sempre ficou essa ideia de transformar algum equipamento da Secretaria num equipamento de leitura e tal. E aí, ela fez esse projeto, me chamou quando…
P/1 – Vocês já se conheciam?
R – Não, não, não conhecia não.
P/1 – E por que é que ela te chamou?
R – Na verdade, assim, é engraçado, porque a Casa das Rosas recebeu a coleção do Haroldo de Campos, e eu era muito amigo do Haroldo assim, conhecia o José Luiz Goldfarb, que trabalhava com ela, então, tinha alguns contatos, assim. Teve um amigo dela que recomendou e tal, assim, quando eu vi que a Casa das Rosas se transformou num espaço de poesia, eu falei: “Poxa, com a coleção do Haroldo, isso é para mim,” e eu já estava com a antena ligada que eu queria sair do Anglo. E falei para algumas pessoas, então, fui jogando isso e chegou até ela e ela me chamou para conversar, só que quando ela me chamou para conversar eu já levei um projeto, mostrei para ela e tal, eu já conheci lá o povo, e sai de lá combinado que eu ia para lá, aí comecei e aí faz dez anos. Mas era assim, a casa tinha sido abandonada, não tinha um móvel, não tinha um telefone, não tinha nada, a casa totalmente vazia e dos 30 cômodos, só dava para entrar em dez, o resto não dava para entrar, era entulho em toda casa, tudo jogado, não tinha porta, uma coisa complicada. A gente foi fazendo aos poucos, sem equipe, porque não tinha ninguém trabalhando, eu recebia, mas com muita dificuldade, mas não tinha ninguém para receber, não tinha nenhum contratado, foram voluntários que foram me ajudar lá, que foram meus alunos, aí tem esse grande patrimônio que você acaba construindo na sua vida toda, que é o fato de eu ter dado aula tanto tempo para tanta gente, que aí qualquer lugar que eu vou hoje, eu encontro aluno, e hoje em dia já tem aluno em várias posições altíssimas aí no mundo, o que é legal. (risos) Então, é um patrimônio que você constrói, na verdade. E aí, nesse momento, eles foram muito bacanas, vários que foram ajudar, ajudar a manter a casa, limpar a casa, dar aula e tudo mais, e a gente foi fazendo acontecer.
P/1 – E como é que você criou uma ação cultural, uma política de ação para Casa? Como é que foi se desenvolvendo isso lá?
R – Na verdade, a gente fazia o que a gente podia, então o que eu sabia fazer era curso, dar aula. Então, a gente começou a dar curso lá, à medida que dava curso, fazia recital, sarau, eu também fazia uns recitais com um grupo no Itaú Cultural, então, fui usando a minha experiência para fazer com que as pessoas viessem, a partir do momento que as pessoas começaram a vir, a gente começava a fazer a programação, pensando no quê? No que seria mais interessante para quem gosta de literatura e poesia e pensando em fazer uma coisa aberta, chamando todas as frentes literárias, que são muitas nessa cidade. Então, aí foi construindo isso, mas foi um trabalho que não foi assim, não é um trabalho que é feito, pegar um museu com uma museóloga, ou museólogo que faz um projeto, não, a gente foi fazendo, (risos) depois é que parou para pensar e depois a gente conseguiu constituir lá, com a Associação de Amigos da Casa das Rosas, uma organização social, que aí passou. Mas foram anos de batalha, de dificuldades, assim, foram não, é sempre difícil, na área da cultura do Brasil, nunca é fácil. Hoje em dia, é bem mais fácil, porque existe a Instituição das Organizações Sociais, então, você tem mais recursos, mais possibilidades, mais flexibilidade para fazer a gestão desses recursos.
P/1 – Frederico, a gente começou, então, a falar da Casa das Rosas, você falou dessas dificuldades, então, tem uma parte administrativa que você foi construindo, não tinha esse desenho ainda, essa facilidade de ter uma OS por trás. Como é que você conseguiu, como é que era o cotidiano assim, mesmo, assim, de constituir essa equipe que foi chegando, você conseguir desde abrir a Casa assim para o público, poder fechar, poder ter segurança, essa coisa mais ordinária, do curso ordinário dos dias?
R – Olha, na verdade assim, tinha segurança e…
P/1 – Porque você não tinha tido, você teve em algum momento, alguma experiência em administração?
R – Não. Só um pouco, indireta, quando eu era coordenador do Logos, de certa maneira sim, mas não do jeito que foi lá. O que eu acho que é assim, a única maneira de ter feito aquilo era com experiência passada, tem algumas coisas do passado que foram muito importantes, por exemplo, a relação com o Haroldo, a minha relação com o Haroldo e conhecer o poetariado na verdade. Em 2002, eu tinha feito uma antologia com 46 poetas contemporâneos brasileiros, então, isso já foi uma coisa importante de gente que poderia ir lá fazer coisas na Casa das Rosas etc. Conhecer o Haroldo foi muito importante, até porque o meu conhecimento do Haroldo não parou lá na adolescência, então, por exemplo, eu falei que eu publiquei o meu primeiro livro depois de muita batalha em 90 e achando que depois que publicasse o primeiro livro, já não era mais inédito, então as portas estariam todas abertas, beleza. Só que no entusiasmo do primeiro livro ter sido tão bem recebido, eu fiz logo em seguida um outro, então, em 91, eu já tinha um outro livro, só que eu fui levar para a mesma editora que tinha publicado…
P/1 – A Iluminuras.
R – A Iluminuras e não tinha jeito de publicar, que eles não tinham grana e não tinha em lugar nenhum e eu percebi, então, que não tinha adiantado nada ter publicado o livro e ter tido toda aquela recepção legal que teve, que ainda assim, não ia conseguir publicar o meu livro. Então, estava super mal, deprimido com isso, quando eu organizei o livro e levei para o Haroldo, e levei para o Haroldo, o Haroldo falou: “Eu quero publicar na Coleção Signos,” Coleção Signos o Haroldo tinha fundado no final dos anos 60, começo dos anos 70 e era uma coleção que tinha publicado ele mesmo Haroldo, Mallarmé, Joyce, era uma coleção, que na verdade, até então só tinha 14 números, e gente desse nível, Boris Schnaiderman, ele, Augusto, Rimbaud, Joyce, Mallarmé, e aí ele falou que queria publicar o meu livro na coleção dele. Eu fiquei, eu realmente, eu lembro desse dia que ele me ligou para falar que ele queria publicar o meu livro e eu chorei no telefone. Só que aí, não tinha dinheiro também e aí a escola em que eu trabalhava, o Logos, eu falei com as donas da escola, falei com a Célia, com a Cecília, com as donas da escola, a escola tinha várias donas, tinha oito donas, e eu falei com eles que o Haroldo tinha me pedido e tal, mas não tinha dinheiro, eles falaram: “A escola paga,” falei: “Nossa, que incrível.” Até hoje, eu sou super grato a eles todos, porque aí a escola pagou o papel, pagou impressão, pagou o livro todo, saiu publicado na Coleção Signos com o patrocínio da escola, está escrito lá no livro, o livro chama “Nada feito nada”, e ganhou o Jabuti, então foi perfeito.
P/1 – Em que ano que foi isso?
R – Eu publiquei em 93 o livro e ele ganhou o Jabuti em 94. Mas assim, foi uma coisa incrível que o Haroldo fez para mim. E na dedicatória do livro, é até engraçado, para o Haroldo, eu escrevi assim: “Para Haroldo e Carmen,” que é a mulher dele, que eu gosto demais também, “não tenho nem como agradecer, só dedicando a minha vida inteira,” escrevi isso, eu sei que eu escrevi isso por quê? Porque depois esse livro estava lá na coleção do Haroldo que está na Casa das Rosas, e um dia eu fui lá e peguei o livro para ver e quando eu peguei para ver, eu não acreditei que eu tinha escrito aquilo e estava lá, dedicando minha vida. Não foi fácil não, o começo da Casa das Rosas foi muito difícil, eu ia lá todo dia, ficava lá o dia inteiro, ficava de manhã, de tarde, de noite, de madrugada, minha vida se transformou naquilo, entendeu?
P/1 – Naquele momento, como que era o cenário da poesia aqui em São Paulo? No Brasil? Que status que ela tinha?
R – Eu acho que é assim, o problema de São Paulo é que São Paulo tinha muito pouco ambiente de discussão de poesia, acontecia, tinham grandes poetas que escreviam, mas cada um no seu gabinete, fechado e tinha pouca experiência de falar poemas. Tinha existido isso na década de 60, alguns movimentos, como tinha uma coisa que eles fizeram que era o recital do Viaduto do Chá, que eles fizeram na década de 60, que foi proibido pela polícia. Tinha o Catequese Poética, que o Lindolf Bell e o Rubem Jardim fizeram, que era muito interessante, isso em 64, mas foram coisas que foram bastante reprimidas pela Ditadura e tal. Então, a poesia paulistana, principalmente, ao contrário do Rio de Janeiro tinha muita dificuldade de sair para a rua, era uma coisa mais interna, na casa. No Rio, tinha mais experiência de recital, São Paulo era mais difícil, a gente começou a fazer, eu e uma professora chamada Clenir Belezi, a gente começou a fazer recital com dois alunos nossos tocando, músicos, o Marcelo Ferreti e o Tobias Luz, a gente começou a fazer isso em 2002, a gente começou a fazer recitais em livrarias e aí foi, a gente fez no Centro Cultural São Paulo e a gente passou a fazer no Itaú Cultural. E no Itaú Cultural, a gente fazia para sala de 300 pessoas sempre lotadas lá, então, a gente fazia os nossos recitais todo mês. Começou a ter essa, isso aí antecedeu um pouquinho também, a Casa das Rosas, que é o que eu estou falando, todo trabalho que foi feito lá, foi muito em função de eu ter feito essas coisas antes. E nesse momento, estava começando a haver alguma efervescência em São Paulo com isso, a gente fazia os nossos recitais no Itaú Cultural, no Centro Cultural São Paulo, as pessoas começaram a se reunir na periferia e fazer saraus na periferia, a coisa estava começando em 2004 a pipocar. E aí, a Casa das Rosas vem com muita força, nesse sentido, de ser um local que aglutinava as pessoas, que as pessoas vinham, faziam recitais, mostravam a sua obra, mas era sem recurso nenhum, eu não tinha verba para o ano. Então, só contava com o quê? Com uma pequena verba que eu conseguia para pagar os professores que davam aula, normalmente eram meus amigos que davam aula por um preço bem ridículo, não estavam lá para ganhar dinheiro, mas recebiam alguma coisa, eu me lembro que era menos do que a gente recebia por aula no Anglo. Então assim, essas pessoas começaram a ir lá, dar aula, eu tinha vários amigos que eram professores, a Clenir deu um curso, o Cláudio Daniel, o Glauco Mattoso foi lá dar um curso para mim, que é super meu amigo, a Alice Ruiz, então, quer dizer, e eram coisas muito boas, muito boas e que consegui, eu tinha um amigo na época que falava: “Você precisa mudar essa sistemática de trabalho, você está trabalhando com os amigos e dependendo dos amigos, você não tem dinheiro para pagar ninguém, vai acabar seus amigos,” (risos) ele tinha razão, quer dizer, chega uma hora em que você não pode mais, hoje em dia a gente contrata a pessoa, a gente paga direitinho para pessoa dar aula lá, para fazer uma apresentação lá. No começo não tinha nada, não tinha verba, não tinha nada e não tinha equipe. Eu fazia o cronograma por dia, fazia um cronograma, apresentava lá na Secretaria.
P/1 – E tinha algum outro lugar em São Paulo ou no Brasil que era um centro de Literatura e Poesia?
R – Não.
P/1 – Então, você tinha isso na ideia, vou transformar isso num centro de referência?
R – Sim, porque não tinha e não tem, assim, desse jeito tem o Espaço da Palavra lá em Santo André, que é bem legal, bem interessante, faz um trabalho muito bacana, mas não tem a dimensão que a Casa das Rosas tem, especificamente literatura, não. Eu já tinha dado aula, que mais ou menos no mesmo ano, não sei se 2003 ou 2004, eles fundaram a Casa do Saber, eu já tinha dado aula na Casa do Saber de Literatura, então tinha assim, esses parâmetros, de cursos livres que poderiam interessar as pessoas, mas não existia, realmente e realmente até hoje não existe, existem alguns centros que tem várias coisas, mas de literatura especifica, só a Casa das Rosas. E não é só no Brasil, não, tem gente que vem dos Estados Unidos e da Inglaterra e fica absolutamente perplexo de ter isso aqui no Brasil, de ter um casarão daquele dedicado à literatura e à poesia. E como eu falei no começo, jamais ia imaginar, lá atrás na década de 70, 80, viver de literatura, viver de trabalho com poesia, literatura, como eu vivo e como todo mundo, as 20 pessoas que trabalham lá vivem, desse trabalho com literatura e com poesia e tal, sustenta suas famílias com esse trabalho que a gente faz lá.
P/1 – Vamos voltar, aí você chega na Casa em 2004, qual foi o primeiro evento, assim, que você abriu para o público? Você lembra?
R – Olha, assim, o primeiro…
P/1 – Que ficou um símbolo, assim.
R – Então, foi sempre uma questão de parceria, eu lembro que logo no começo uns poetas me pediram para fazer umas reuniões lá, a gente abriu para eles fazerem, então, foram algumas pessoas, gatos pingados. Mas aí teve um evento que eu fiz em parceria com um rapaz lá da Praça Benedito Calixto, que faz alguma coisa na Praça que chama, Edson Lima, me lembro que era aniversário da Elis Regina, acho que é 17 de março e ele propôs de fazer uma festa lá no aniversário da Elis Regina e não sei o quê, falei: “Legal, vamos fazer,” mas não esperava que fosse tanta gente, e de repente tinha mil pessoas lá dentro, (risos) entendeu? Só que a gente não tinha esquema nenhum, tinha um segurança e ninguém para cuidar, não tinha produção, não tinha nada, foi meio desesperador. Então, assim, por exemplo, os primeiros cursos que a gente fez, eu abri três cursos, isso em janeiro de 2005.
P/1 – Quais eram os cursos?
R – Então, um era o curso sobre Fernando Pessoa, que era a Clenir que dava, Clenir Belezi, ela dava esse curso do Fernando Pessoa, Clenir foi minha colega no Anglo, durante esse tempo todo que eu dei aula lá, ela saiu de lá um ano antes de mim, entrou no mesmo ano e saiu um ano antes de mim. E eu chamei a Clenir para dar esse curso sobre o Fernando Pessoa, que é uma grande professora, maravilhosa. O Cláudio Daniel deu uma oficina de Haikai e eu dei, eu era o professor predileto meu, porque eu não cobrava de mim mesmo, (risos) engraçado, porque às vezes as pessoas veem assim que eu estou dando aula na Casa das Rosas: “Você está dando?” já me acusaram: “Você dá aula para aparecer,” dou aula porque eu sou de graça, sou barato, quando eu dou aula na Casa das Rosas, eu não recebo, nem eu e nem ninguém que trabalha lá. Só que eu tenho uma equipe tão legal que se não tiver dinheiro nenhum, e tiver equipe hoje, eu posso montar uma grade de cursos bem legal com a minha equipe que está lá, que pode dar aula. Bom, mas enfim, eram esses três cursos, e a gente abriu inscrição, só que a gente teve o triplo de inscrições do que a gente tinha de vagas, então a gente teve que abrir mais duas classes de aula, foi um sucesso incrível, primeira vez. Só que assim, não tinha estrutura nenhuma, então começaram os cursos, eu lembro que o primeiro curso que começou foi o meu, aí eu botei o povo na sala, não tinha porta na sala, depois eu achei onde estava a porta, mas não tinha porta. Eu estava dando aula lá e em janeiro, um calor incrível e o pessoal: “Onde tem água?” não pensei nisso, (risos) não me ocorreu. E não é que, hoje em dia tem um café lá, não tinha nada, e não tinha um bebedouro, e a gente tinha um negócio de água, aí eu peguei, só que na hora que eu fui pegar cai, derrubei o negócio, derrubei a água, foi um escândalo! E tinham umas pessoas lá que tinham sido minhas alunas no Centro Cultural São Paulo e aí, umas pessoas falaram: “Pô, você está atrapalhado, a gente pode vir te ajudar?” “Por favor,” são essas pessoas que começaram a trabalhar lá, a me ajudar e a gente montou lá uma água, então a água ficou a minha obsessão, saia para comprar uns garrafões de água. Então assim, no dia seguinte choveu e uma menina escorregou na escada de mármore, quase morre ali, que eu fiquei apavorado, e aí, eu saí de madrugada, fui lá na Telha Norte comprar, que fica aberto de madrugada, comprar aqueles negocinhos de colocar na escada, ou seja, foi tudo assim, entendeu? Não tinha nenhum planejamento e eu fui aprendendo na prática de fazer, as aulas eram super divertidas, então, o pessoal adorava, adorou os cursos da Clenir, do Cláudio e o meu.
P/1 – O da Clenir era do Fernando Pessoa, o seu?
R – Era uma oficina de criação poética.
P/1 – E o do Cláudio?
R – Do Cláudio era oficina de Haikai. Esses foram os primeiros, aí depois comecei a fazer algumas séries, se chamavam as pessoas.
P/1 – E tinha público? Ou foi crescendo esse público?
R – Então, isso que estou falando, nas inscrições teve três vezes mais o número de vagas, no número de inscrições do que a gente tinha de vagas. Então, a gente tinha 30 vagas, a gente teve 90, cem inscrições para cada curso, impressionante o interesse. Eu fiquei muito surpreso e isso é o que sem mantém até hoje, todos os cursos lá acabam ficando lotados.
P/1 – E como é que vocês escolhem, assim tipo, quando em excesso, vocês começaram a estabelecer algum critério?
R – Excesso de inscrição?
P/1 – É.
R – A gente faz lista de espera, mas é fundamentalmente por ordem de chegada, não tem outro jeito.
P/1 – Aí isso foi em 2004, que você falou que vocês fizeram esse…
R – Dois mil e cinco.
P/1 – Dois mil e cinco, com essa parceria do dia do aniversário da Elis Regina?
R – Isso. E aí, a gente começou a fazer alguns eventos, começava a bolar algumas coisas, chamei um professor da USP, o Antônio Pietroforte e eu chamei e falei: “Vamos fazer alguma coisa?” “Vamos,” aí fizemos uma série chamada “Rompendo o Silêncio”, que na verdade, eram alunos dele que estudavam o poeta, iam lá, falavam sobre o poeta e entrevistavam o poeta ao vivo. Então, as pessoas vinham, e aí, fizemos uma série com 16 poetas muito importantes dentro de São Paulo…
P/1 – Quem? Tem alguns nomes?
R – Não vou saber falar todos, mas Ademir Assunção, Alice Ruiz, Glauco Mattoso, Joca Reiner Terron, Cláudio Daniel, um monte de gente. E aí, por exemplo, naquele ano eu inventei uma série que se chamava: ‘Como e porque sou leitor’ e eu chamava as pessoas para falarem o porquê que era leitor, e isso aí é um plágio, uma referência a um texto do José de Alencar que é titulado “Como e porque sou romancista.” Então, pessoa chegava lá e falava da sua experiência de leitor, então, chamei gente muito importante, o Professor Jacob Guinsburg falou, Boris Schnaiderman, José Mindlin, meu pai foi, estava vivo ainda, Manuel da Costa Pinto, foi uma série muito bacana e chamava muito as pessoas e a gente começou a fazer evento de Haroldo. Um evento que a gente fazia desde 2003, desde que o Haroldo tinha morrido, no Tuca, a gente levou para lá, chamado “Hora H”, então, fazia as apresentações e no começo era essa base mesmo, não tinha grana, era entusiasmo mesmo das pessoas para fazer.
P/1 – Deixa eu entender uma coisa, quando que o acervo dele vai para lá e passa a se chamar…?
R – Em 2003 ele morre, a Casa das Rosas fica vazia, no dia nove de dezembro de 2004, se inaugura o Espaço Haroldo de Campos Poesia e Literatura na Casa das Rosas.
P/1 – Já se inaugura, assim?
R – Com o acervo lá dentro, só que o acervo lá dentro numas caixas no porão.
P/1 – Mas essa ideia foi sua? De quem foi a ideia de inaugurar com esse nome e com o acervo?
R – Foi da Cláudia Costin. E o acervo lá numas caixas no porão, durante um tempo ficou nas caixas no porão, a gente não tinha nem dinheiro para contratar bibliotecária, hoje em dia está tudo catalogado, tudo à disposição das pessoas na internet, mas demorou um tempo para coisa começar a andar, porque não tinha recurso nenhum.
P/1 – Vocês têm, além do físico, está digitalizado?
R – Não os livros, mas a gente tem o catálogo. Até porque os livros, na verdade, não é uma biblioteca, não é como uma biblioteca do Midlin, por exemplo, que é importante digitalizar, porque são livros raros, não, são livros comuns que o Haroldo tinha, tem todo tipo de livro, tem alguns que são raros, mas a maior parte é livro que ele usava, que ele estragava, que ele riscava. E o fato dele riscar é muito importante, porque é material para um estudo futuro das pessoas, ou até hoje já teve gente que fez tese lá, com o material do Haroldo.
P/1 – E como é que foi a Casa das Rosas teve assim, um apoio da imprensa? Como é que foi saindo na mídia?
R – Então, logo que foi inaugurada teve apoio de imprensa, teve crítica. Eu lembro que eu fiquei muito espantado, na verdade assim, tudo bem, tinha uma certa razão, o acervo estava fechado ainda, não tinha sido catalogado e foi inaugurado, só que a Cláudia na hora que ela foi inaugurar ela agradeceu a equipe dela que tinha passado a noite inteira lá preparando a festa. Aí, uma jornalista da Folha escreveu citando que ela tinha dito isso e falando que tinha sido uma festa improvisada, não sei o que, e que tinha sido feita às pressas e tal. E eu lembro que a menina foi falar com a Cláudia e a Cláudia falou para ela: “Você nunca fez festa em casa? Não importa com quanta antecedência você faça, você tem sempre alguma coisa para arrumar no dia anterior, concorda?” e ela tinha toda razão. É claro, então teve crítica quando inaugurou. Primeiro ano a gente sobreviveu por conta de dois patrocínios, o patrocínio do Grupo Comolatti, que é um grupo automotivo, cujo presidente, ele tinha sido amigo, cujo fundador, na verdade, ele tinha sido amigo do Ernesto de Castro, que morava na Casa das Rosas e aí, ele doou uma grana bem legal para gente passar o ano inteiro lá, o Sérgio Comolatti, que é o filho do Comendador…
P/1 – Evaristo Comendador?
R – Evaristo, isso, que foi o que era amigo, e tinha um quadro do Oscar Pereira da Silva, retratando o Ramos de Azevedo, que ele doou para Casa das Rosas e tal. Eles foram muito generosos com o projeto. E a gente teve também o patrocínio da Sony, durante o primeiro ano de existência da casa. Eu estou falando que é generoso, mas assim, sabe? Era 15 mil reais por mês da Sony, que não é nada, se pensar bem e era, acho que 200 mil do Grupo Comolatti, então significa, isso era tudo o que a gente tinha para gastar durante o ano inteiro, que é nada para uma casa como aquela. Então, no final do ano, a Sony pediu para fazer uma exposição de Walkman, tinha patrocinado a casa o ano inteiro, eu falei: “De walkman só não dá, tem que botar letra de música, poesia,” aí a gente fez o Walkman com as músicas de cada ano, que o Walkman começou em 79, e o Walkman não é um nome genérico, é uma marca da Sony, por metonímia virou genérico. Então, a gente fez essa exposição, pronto, o jornal descendo a lenha, dizendo que a Casa das Rosas estava se vendendo ao patrocínio internacional, ao monstro capitalista internacional, que é a Sony e tal, sendo que tudo o que tinha acontecido lá naquele ano, tinha sido graças a Sony, e tinha essa coisa de letra de música e tal, só que o cara fez a matéria, não foi lá ver, ele não sabia, ele fez a matéria pelo release da Sony e no release da Sony, eles não falavam. Enfim, foi um erro também da Sony, mas que mostra o quê? Quer dizer, a gente estava fazendo o maior esforço e tinha uma certa resistência, na imprensa tinha uma certa resistência. Agora, saía, por exemplo, curso que a gente dava saía no Metrô News aí lotava, enquanto a Folha de São Paulo estava atacando, você tinha em outros órgãos publicavam e tal e as pessoas iam. Eu cheguei a uma conclusão muito clara, para mim hoje é o seguinte, para você trazer gente, não importa Folha, Estadão, a grande imprensa não importa, importa é o boca-a-boca, hoje em dia as mídias sociais, internet e tal isso importa para trazer gente. Sair na grande imprensa interessa só para dar notoriedade e credibilidade, enfim é uma questão de influência institucional, mas não faz muita diferença se vai ter gente ou não vai ter. Claro que não é sair no Jornal Nacional, mas que aí, claro que vai fazer diferença, mas nessa imprensa as pessoas veem, falam: “Poxa, que bacana. Eu estou vendo que você está fazendo um trabalho bacana na Casa das Rosas, porque sai muito no jornal,” mas essas pessoas não vão, não influencia muito isso. Agora, teve um trabalho de assessoria de imprensa da Secretaria de Cultura, a gente trabalhava diretamente lidada à Secretaria de Cultura, mas eles não tinham dinheiro para contratar ninguém.
P/1 – E eles também não deram, nesse primeiro momento, dinheiro para ação cultural?
R – Não, nada.
P/1 – Quando que vocês começaram a receber recursos?
R – Então, por exemplo, eu paguei os professores que deram as primeiras aulas lá, mas pagava assim, eu ia lá, pegava o dinheiro na Secretaria cash, botava no bolso, morrendo de medo, pegava o metrô, ia para Paulista e entregava para os professores, entendeu? Daí, eles faziam um recibozinho e tal, via para Secretaria. Um negócio muito esquisito assim, muito assim, doido. Recurso assim, arrumava, às vezes, um ano a gente foi fazer o “Hora H’, o Museu da Língua já tinha sido inaugurado e era o Sartini que era o diretor desde o começo lá, muito meu amigo, a gente falou com o Sartini, o Museu da Língua fez um evento e patrocinou o “Hora H”. Então, tinha assim, gente ia mendigando, dá um dinheirinho aí, então, não tinha recurso, não tinha nada, não tinha provisão orçamentária nenhuma em lugar nenhum para Casa das Rosas. Essa é uma coisa que as pessoas não sabem, as pessoas acham: “O cara foi ser diretor da Casa das Rosas, então ele vai chegar lá de motorista no casarão da Paulista,” tem umas pessoas, um monte de pessoas servindo, não tinha ninguém, nada. Uma ajuda fundamental foi do seu Orlando, Seu Orlando até gravou um testemunho para vocês aí lá na Casa das Rosas, quando o Museu foi fazer as gravações lá. Seu Orlando tinha 68 anos e era aposentado e foi zelador de edifício a vida inteira e eu pedi para ele me ajudar e ele ia todo dia lá, eu pagava o almoço para ele e ele vinha me ajudar, eu pagava almoço para as pessoas que iam, e eu pagava do meu bolso, (risos) entendeu? Aí, quando eu parei de trabalhar no Anglo, eu tive que parar de pagar o almoço para as pessoas. Mas era assim, era uma aventura mesmo, é difícil entender porquê que a gente fez aquilo.
P/1 – E quando é que ele começa a receber, ter uma dotação orçamentária?
R – Então, a gente passou em abril de 2005, a gente passou a ser administrado por uma organização social chamada Abaçaí, só que a Abaçaí não tinha dotação orçamentária dentro do orçamento deles. Eu marquei 16 reuniões com o diretor executivo da Abaçaí, para conversar sobre isso e ele desmarcou todas. Então, era uma coisa muito complicada, porque eles não tinham, eles não tinham verba, mas a Abaçaí, pelo menos, contratou essa equipe de seis que eu tinha, foram contratados, CLT, bonitinho e tal pela Abaçaí. Então, já foi um, nossa, foi um alívio incrível, foi da água para o vinho. Eu não, eu nem era contratado pela Abaçaí.
P/1 – Você recebia por onde?
R – Eu fazia nota da minha empresa para Abaçaí, mas eu não era contratado celetista. Depois, então a gente ficou dois anos com a Abaçaí, mas sem verba, super complicado. Aí depois, o João Sayad assumiu e quando o João Sayad assumiu foi uma coisa muito interessante, foi uma sorte, na verdade, porque o João Sayad não era da área da cultura, então, pouca gente da área de cultura conhecia o João e eu falei para você que eu morei em New Haven, nos Estados Unidos, em Yale, tinha dez anos de idade, meu pai fazia pós-doutoramento e tinha um rapaz lá fazendo doutoramento em Economia chamado João Sayad e eu conhecia o João desde que eu tinha dez anos de idade. E ele era muito amigo do meu pai, gostava muito do meu pai e tal. Foi ótimo, ele assumiu, aí eu fui lá, ele falou: “O que é que você quer?” “Eu quero mudar de OS,” aí ele passou para APA, que era uma OS muito mais rica e tal, com muito mais recurso, com dotação orçamentária, aí melhorou muito a vida da gente. Mas aí, não satisfeito com isso, devia ter ficado satisfeito com isso, mas não, a gente resolveu criar uma OS dentro da Casa das Rosas, chamada Poiesis, que passou a administrar a Casa das Rosas, a partir de 2008. E hoje em dia, administra Fábrica de Cultura, Oficinas Culturais e Casa Guilherme de Almeida, então cresceu muito, é uma instituição enorme. Mas é um esforço permanente diário.
P/1 – Então, você está por trás também da organização da Poiesis, da constituição?
R – É, a gente criou a OS, a gente criou a Poiesis.
P/1 – Quem faz parte da Poiesis?
R – A Poiesis é uma…
P/1 – Na época, quem estava por trás, assim, criou essa organização? Você?
R – Assim, eu sim, mas como é criada é engraçada, na verdade. Tinha na Casa das Rosas, tinha uma estrutura atrás da casa metálica enorme na frente da edícula, que era horrorosa e que atrapalhava tudo ali, gigantesca, trambolho. E eu fui investigar o que é que era, que não tinha dado nenhum, não tinha dado, não sabia nada da casa, ninguém informou nada. Estava esse troço lá, que diabo é isso? Aí, fui investigar, descobri que era uma estrutura que fizeram para um restaurante que queriam instalar lá, mas que foi embargado pela prefeitura, foi embargado pelo condomínio, ou seja, tinha que tirar aquele troço de lá. Aí, eu tirei o troço de lá, consegui um cara em troca do material, fazer o serviço de tirar de lá, saiu. Só que no dia que saiu, eu pensei assim: “Vai dar confusão,” dito e feito, chega um cara lá falando assim: “Olha, queria falar com você,” um cara com sotaque assim, um cara chamado Jesus, eu achei interessante, porque Jesus sempre é uma esperança de salvação, e aí, ele falou que ele era, não sei qual era o cargo, diretor administrativo, eu acho, da Associação de Amigos da Casa das Rosas e que aquele material era da Associação de Amigos da Casa das Rosas, mas eu falei: “Eu nem sabia que existia,” eu já estava lá há uns dois anos, três, nem sabia que existia. Aí, ele foi brigar para saber o que tinha acontecido, eu expliquei o que eu tinha feito, fiquei conversando com ele um tempão, não sei o quê e no final das contas, ele me perguntou o que é que eu queria, eu falei: “Eu quero a Associação. Eu quero essa Associação,” porque eu falei: “Bom, uma associação dessa, se existe, está regularizada desde 95, pode virar uma Organização Social,” era uma coisa que eu não tinha. E na época, a lei previa, e prevê até hoje para Museu que tem acervo, que tenha três anos de constituição e lá já tinha muito mais. Aí, ele passou a organização para gente, eles não tinham mais interesse, aí passou para gente, a gente assumiu, se inscreveu um monte de gente que trabalhava lá. São 64 membros da associação, o seu Orlando é um dos que é membro, a maior parte, gente que trabalhava lá na Casa das Rosas, naquela época, em 2007, 2006, 2007, que é a assembleia da instituição. E aí, a gente constituiu um conselho e tal e eu passei a ser diretor executivo da empresa. Então, a gente montou a empresa.
P/1 – Da Poiesis?
R – Do zero, em julho de 2008, não tinha um funcionário.
P/1 – Você que escolheu o nome?
R – Eu que escolhi o nome, que, aliás, tem muita gente que odeia: “Não dá para entender direito,” mas eu gosto. Enfim, eu fiz grego e botei o nome de poesia em grego na organização. A gente que fez, não vou falar eu, eu escolhi o nome, mas eu tive ajuda de várias pessoas que fizeram juntos e tal. Aí, a gente conseguiu firmar um contrato de gestão com o governo do estado para administrar a Casa das Rosas e o Museu da Língua, que era três vezes maior que o Museu e depois, as Oficinas Culturais, que é dez vezes maior que o Museu da Língua, (risos) e aí, foi. Hoje em dia, tem 700 funcionários, que era uma coisa que não tinha nada em 2008, foi crescendo, crescendo.
P/1 – Mas você continua como diretor da Poiesis?
R – Não. Em 2011 eu saí da direção executiva, passei a ser diretor técnico, e aí, depois eu saí da direção técnica, fiquei só na Casa das Rosas e o conselho contratou um cara que é muito experiente, foi ministro chefe da Casa Civil durante muitos anos, que é o Clóvis Carvalho para ser o diretor da Poiesis, que tem sido ótimo assim, porque ele é um cara muito experiente, especialista em gestão, então a gestão geral da OS ele faz, só que ele faz, hoje mesmo, por exemplo, a gente tem reunião toda semana com os diretores dos equipamentos, então, a gente fica lá conversando com ele.
P/1 – E o recurso vem da Secretaria?
R – Da Secretaria.
P/1 – A Secretaria repassa para Poiesis?
R – A Secretaria repassa para Poiesis.
P/1 – Essa situação está desde 2008?
R – Desde 2008. A gente teve um primeiro contrato gestão que foi de 2008 a 2012 e foi renovado, vai até 2016. Então, até 2016 tem um contrato de gestão firmado com a Secretaria de Cultura com relação a esses equipamentos aí. Agora, com relação à Casa das Rosas, mudou assim, completamente. Hoje em dia, a gente tem 20 funcionários, todos contratados CLT, bonitinho. Ainda ninguém ganha muita coisa, mas está razoavelmente decente, então dá para trabalhar com bastante tranquilidade hoje, uma equipe bacana, coisa que antes era na base do esforço.
FINAL DA ENTREVISTA
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