Projeto SOS Mata Atlântica 18 anos
Depoimento de Dener José Giovanini
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 9 de março de 2005
Realização Museu da Pessoa
Código de depoimento: SOS_HV050
Transcrito por Ingrid Robyn
P/1- Boa tarde Dener, obrigada por você ter vindo.
R – Boa tarde. Desculpe, o seu nome é?
P/1 – Beth.
R – Beth e?
P/2 – Rodrigo.
P/1 – Dener, pra gente começar, você poderia falar seu nome completo, data e local de nascimento?
R – Dener José Giovanini, nasci na cidade do Rio de Janeiro, em 17 de novembro de 1967.
P/1 – E você morava em que região do Rio, nessa época?
R – Eu morava, eu posso ser considerado bem carioca da gema, eu nasci em Engenho de Dentro, bairro de Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro, morei no Rio até os três anos de idade, depois eu fui pro interior do estado, e praticamente passei minha infância e minha juventude na cidade de Três Rios, que fica cerca de duas horas do Rio, mas sempre permanecendo com um contato muito forte com o Rio; eu fiz faculdade no Rio de Janeiro, então praticamente minha vida foi uma viagem entre Três Rios e Rio de Janeiro, entre um rio e três.
P/1 – (risos) E a sua família é grande, ou era uma família pequena?
R – Não, minha família é uma família média, não é muito grande, mas é uma família bastante unida, enfim. Eu, particularmente, não tenho irmãos, vivo, sempre vivi com a minha mãe, mas sempre fui muito próximo de tios, primos; é uma família grande.
P/1 – E quando vocês foram pra Três Rios, como que foi essa mudança – apesar de você ser super pequeno, três anos?
R – Eu particularmente não me lembro muito bem como é que foi essa mudança, porque eu tinha três, quatro anos de idade; eu não me lembro como é que foi esse processo de mudança. Mas bem a verdade, pra mim, nunca houve uma mudança muito radical, exatamente porque eu sempre vivi nas duas cidades; eu morava em uma, cheguei a...
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Depoimento de Dener José Giovanini
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 9 de março de 2005
Realização Museu da Pessoa
Código de depoimento: SOS_HV050
Transcrito por Ingrid Robyn
P/1- Boa tarde Dener, obrigada por você ter vindo.
R – Boa tarde. Desculpe, o seu nome é?
P/1 – Beth.
R – Beth e?
P/2 – Rodrigo.
P/1 – Dener, pra gente começar, você poderia falar seu nome completo, data e local de nascimento?
R – Dener José Giovanini, nasci na cidade do Rio de Janeiro, em 17 de novembro de 1967.
P/1 – E você morava em que região do Rio, nessa época?
R – Eu morava, eu posso ser considerado bem carioca da gema, eu nasci em Engenho de Dentro, bairro de Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro, morei no Rio até os três anos de idade, depois eu fui pro interior do estado, e praticamente passei minha infância e minha juventude na cidade de Três Rios, que fica cerca de duas horas do Rio, mas sempre permanecendo com um contato muito forte com o Rio; eu fiz faculdade no Rio de Janeiro, então praticamente minha vida foi uma viagem entre Três Rios e Rio de Janeiro, entre um rio e três.
P/1 – (risos) E a sua família é grande, ou era uma família pequena?
R – Não, minha família é uma família média, não é muito grande, mas é uma família bastante unida, enfim. Eu, particularmente, não tenho irmãos, vivo, sempre vivi com a minha mãe, mas sempre fui muito próximo de tios, primos; é uma família grande.
P/1 – E quando vocês foram pra Três Rios, como que foi essa mudança – apesar de você ser super pequeno, três anos?
R – Eu particularmente não me lembro muito bem como é que foi essa mudança, porque eu tinha três, quatro anos de idade; eu não me lembro como é que foi esse processo de mudança. Mas bem a verdade, pra mim, nunca houve uma mudança muito radical, exatamente porque eu sempre vivi nas duas cidades; eu morava em uma, cheguei a trabalhar na outra, morava em uma, estudava na outra, então as duas sempre se confundiram. E eu sempre tive essa oportunidade de estar vivendo a coisa da cidade grande, a agitação, a vida de cidade grande, e ao mesmo tempo estar morando na roça, morando no interior e convivendo com uma outra cultura, um outro estilo de vida no interior. Então nunca foi um choque pra mim.
P/1 – Antes da universidade você fez todos os seus estudos em Três Rios?
R – É, foi todo em Três Rios.
P/1 – E, esse período de escola, como foi? Você lembra de alguma coisa que te marcou?
R – Eu acho que foi normal, eu não tenho nada a destacar, não me lembro de nada muito singular, muito diferente das outras crianças. Eu sempre fui um aluno médio, sempre estudei minha vida inteira, em escola pública – do primeiro grau do primário até a universidade, sempre foi escola pública –, com aquelas dificuldades que normalmente se tem de estudar em escola pública, mas não tenho nada, não me lembro de nada que seja realmente espetacular para que deva, que mereça ser relatado. ( risos )
P/1 – (risos) E quando você terminou o colégio, você já sabia o que você queria fazer na universidade?
R – Não, não sabia. Aliás, eu não sabia, até o final da faculdade eu não sabia exatamente porque que eu tinha optado por fazer Letras. Não sei, eu gostava, mas antes de entrar pra faculdade, bem antes de pensar em faculdade, eu já tinha me envolvido com o movimento ambiental. Então uma coisa que seria natural seria eu fazer algum curso na área das Ciências Ambientais, fazendo sei lá, Biologia, Engenharia Florestal, ou algo similar. Acabou não acontecendo, acabou eu indo fazer Letras. E eu me envolvi com a questão ambiental muito cedo; eu entrei pra a faculdade, eu tinha, acho, dezoito anos, e eu me envolvi com o meio ambiente, com movimento ambiental, eu tinha quinze. Quer dizer, três anos antes da faculdade, eu estava ainda no segundo grau, eu já estava ligado à essas questões de meio ambiente, de defesa ambiental. Mas acabei indo fazer Letras. Depois, bem mais tarde, quando eu já tinha feito essa faculdade de Letras, eu comecei a fazer uma outra faculdade, que foi Biologia, numa outra cidade do interior do Rio, que era Vassouras – eu continuei morando em Três Rios, mas comecei a estudar em Vassouras –, fiz até o terceiro período de Biologia, mas não deu pra continuar, porque nesse período eu já estava nesse momento de criação da RENCTAS, que é a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, que é a organização ambiental em que eu estou até hoje. Então não sei te dizer porque é que eu fui fazer Letras. A Biologia sim, que era uma coisa bacana, não deu pra continuar porque não tinha tempo, não tinha condições de fazer.
P/1 – Então deixa eu só voltar um pouquinho: você falou que começou a se envolver com a questão ambiental aos quinze, não é?
R – Correto.
P/1 – Como é que foi isso, assim? Era um movimento que tinha na cidade?
R – Não. Na realidade eu tinha recebido um convite de um conhecido, um casal conhecido meu; eles tinham me falando que tinha uma reunião, um grupo que tinha no Rio de Janeiro, e que eles estavam formando um movimento ambientalista, queriam fazer uma ONG ambiental. E eu não sabia exatamente o quê que era, não tinha a menor noção, nunca tinha tido nenhum tipo de contato com esse assunto. Mas até por falta do que fazer, não tinha outra opção, resolvi ir nessa reunião. Isso foi, se eu não me engano, em 1986, 1985, acho, não tenho muita certeza. Fui, achei superinteressante as discussões, depois voltei de novo, era um grupo de oito, dez pessoas e comecei a participar desse grupo, que estava discutindo criar um movimento ambiental no Rio de Janeiro – ainda não tinha um movimento ambiental muito forte, e quando eu vi eu estava lá, com quinze anos, metido naquilo. E aquele grupo acabou fundando o Partido Verde no Brasil, e eu tenho lá a minha assinatura na ata de fundação do Partido Verde no Brasil; então foi uma coisa muito interessante. E a partir dali, daquele momento, nunca mais eu fiz outra coisa na minha vida que não estivesse focada na questão ambiental, nunca mais trabalhei com outro tema a não ser meio ambiente.
P/1 – E assim, é engraçado, porque aos quinze anos a molecada vai fazer outras coisas, não estão tão ligadas com questão ambiental. E mesmo a formação do Partido Verde, que veio de uma questão política também.
R – É verdade. E eu lembro das discussões, esse grupo, eles não tinham nem ideia de que seria o Partido Verde, ainda não tinha nome. Tanto que o Partido Verde, quando concorreu na primeira eleição, que foi, se não me engano, a eleição de 1986, 1987, pra governador do estado do Rio, que foi o Fernando Gabeira, o candidato, o Partido Verde não existia formalmente como partido; tanto é que o Gabeira, apesar de ser identificado como candidato do Partido Verde, o Partido Verde ainda não era um partido, era um movimento, tanto que ele foi candidato pelo Partido dos Trabalhadores, pelo PT. Não existia Partido Verde; existia um nome, uma figura, uma imagem de que seria um partido. E depois é que se formou, que conseguiu se formalizar, se legalizar, se estruturar aquele movimento como partido, mas não tinha. Tanto é que houve uma coligação, uma união de forças e o Gabeira foi então candidato a governador do Estado do Rio. E eu lá, participando daquele movimento todo; nem sabia exatamente em quê que ia dar aquilo, mas para mim foi, eu posso me considerar uma pessoa de muita sorte de ter tido essa oportunidade, de ter surgido essa chance na minha vida, de estar participando de um momento até histórico, é muito bacana. E foi, a campanha do Gabeira, acho que ele foi um marco muito importante para o movimento ambiental no Brasil. Foi a primeira vez que se conseguiu mobilizar a opinião pública para uma causa ambiental em nível nacional; quer dizer, apesar do Gabeira ser candidato a governador do Rio, a campanha do Gabeira teve uma repercussão internacional e com a bandeira ambiental. Eu me lembro de uma coisa que, momentos extremamente bacanas da campanha, que foi o abraço à lagoa, onde as pessoas, a ideia era se conseguir levar um número tal de pessoas pra darem as mãos e contornarem toda a orla da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, e o medo era que não ia se conseguir gente, consegui um número suficiente pra fechar a lagoa, e acabou que no final se conseguiu dar seis, sete voltas em volta da lagoa. Isso foi um momento bastante marcante. E lembre-se de que nós estamos falando de 1986, 1987; quer dizer, muitos anos antes de se revisar a ECO 92. A Eco 92 foi um marco na história do movimento ambiental no Brasil, a partir de 1992 tudo ficou mais claro em termos ambientais, as pessoas ficaram mais motivadas; houve um salto muito grande. A campanha do Gabeira foi sete anos, seis anos antes de acontecer a Eco 92, então foi uma coisa muito bacana. Me lembro de um outro fato, de um show do Caetano Veloso, na Praça da Apoteose, no Sambódromo, no Rio, quando ele, no meio do show, parou de cantar uma música –, ele disse que pela primeira vez ele ia poder votar num candidato verde, num candidato comprometido com as causas ambientais, então que ele queria, publicamente – tinha cem mil pessoas naquele show na Praça da Apoteose –, ele queria dizer publicamente que estava apoiando um candidato comprometido com a defesa do meio ambiente. E houve uma reação da plateia, foram uns dez minutos de histeria, de aplausos, gritaria, as pessoas... Foi muito comovente, muito interessante. Quer dizer, ali você percebeu que havia um espaço bastante favorável para o movimento ambientalista crescer no Brasil. E eu estava lá; sem estar sabendo exatamente fazendo o quê, por quê, mas eu estava lá.
P/1 – Muitas pessoas, pelo que a gente vai lendo, que formaram o Partido Verde, que fizeram parte dele logo no início, eram pessoas que, muita gente veio do exílio, e vieram com uma outra visão, tanto política, como na questão ambiental. Você acha que isso colaborou muito pra criação? Essas pessoas precisavam de um lugar pra desenvolverem, pra trabalhar alguma coisa que elas trouxeram de fora?
R – Eu acho que aquele grupo, né, que eu falei, que eu mencionei há um tempo atrás, que estava ali, com o objetivo de criar o Partido Verde, ele era um grupo bastante heterogêneo, e isso permitiu um fluxo de pensamento, de ideias, que foi muito bacana. Eu lembro que nesse grupo você tinha o Gabeira; você tinha a Lucélia Santos – uma atriz, que também, não me lembro se ela tinha ou não algum histórico de movimento social, mas ela se identificava muito com a questão ambiental, então, ela participou muito ativamente; não sei se ela já tinha essa experiência antes –; tinha o Carlos Minc, o Alfredo Sirkis, Liszt Vieira, pessoas que tinham uma experiência bastante rica em movimento social, em movimento cultural, quer dizer, que sempre foi o forte do PV. Mas eu não sei se elas tinham... bom, pelo menos as que estavam no Brasil, realmente se tinham uma visão, digamos, mais clara do que queriam em termos de movimento ambiental. Eu me lembro de muitas discussões nessa época, das pessoas dizerem que “não, era melhor continuar como movimento”, tinha um grupo que achava que não deveria jamais ser partido político, e o outro grupo achava: “Não, tem que ser partido pra poder assumir representatividade no Congresso, na Câmara de vereadores, ter candidatos, pessoas comprometidas lá, defendendo a causa do meio ambiente”. Outras: “não, acho que isso talvez fosse contaminar aquele movimento, que não deveria ser um partido político”. E, com certeza, essas pessoas que vieram de fora, as pessoas que viveram do exílio, elas trouxeram uma visão, uma discussão, que aqui no Brasil se tinha já, mas eu acredito que era muito restrita aos meios acadêmicos, aos especialistas e aos professores, a enfim, aos pesquisadores, a um grupo muito restrito; ainda não tinha ganhado as ruas, a história do meio ambiente. Aí, quando você tem um governador de Estado cujo símbolo da campanha é uma borboleta, isso chocou muita gente, muita gente via isso como até uma afronta, uma irresponsabilidade, sei lá: “O cara será que enlouqueceu?”; e aquela borboleta do Gabeira – que a borboleta era o número treze, que era o Partido dos Trabalhadores, era sempre aquela estrela, aquela coisa chapada, a estrela, vermelha: “Ai, eu não uso treze”, e Gabeira botou uma borboleta, coloridíssima, linda e foram vendidos acho que milhares de botons com aquela borboleta –, aquilo contaminou todo mundo. Foi uma maneira diferente de começar a fazer a política, de se ter uma maneira mais leve, uma maneira mais atrativa para as pessoas. E foi muito bacana isso tudo.
P/1 – Eu não conheço a cidade, Três Rios, como que é lá – era, nessa época –, que propiciou que tivesse um movimento desse na cidade?
R – Não, na realidade esse movimento foi no Rio.
P/1 – No Rio, mas tinha algumas pessoas na cidade?
R – É, tinha duas pessoas só. Aliás, Três Rios, ela é uma cidade muito pequena. Três Rios hoje deve ter, sei lá, oitenta mil, noventa mil habitantes, na época devia ter uns setenta, sessenta mil habitantes. Uma cidade comum, uma cidade que ganhou do presidente Juscelino Kubitschek, ganhou o apelido do Kubitschek, de “Esquina do Brasil”, porque Três Rios era – ainda é, se não me engano – o maior entroncamento rodo-ferroviário do Brasil, então, todas as principais artérias rodoviárias do Brasil passam ou se cruzam em Três Rios; BR040, BR116, são várias. Três Rios é uma cidade meio que de passagem, mas uma cidade tipicamente interiorana. E nessa época do Partido Verde, eu fundei um diretório do PV na cidade, fazíamos mil coisas: chamávamos atenção para os problemas ambientais do município, e com aquele frescor, aquela garra da juventude, você fazia manifestações, aliás, você queria viver fazendo manifestação vinte e quatro horas por dia, tinha que se manifestar, sempre; a ordem do dia é: “Vamos nos manifestar, contra alguma coisa, mas vamos criar um movimento”. Aí teve até um caso muito interessante, tinha um lixão na cidade, muito próximo ao centro da cidade, e não era aterro sanitário, nem nada, era onde se jogava o lixo, simplesmente, na beira do rio Paraíba do Sul, e viviam muitas pessoas ali, vivendo daquilo; então jogava-se lixo hospitalar com lixo doméstico, muito misturado, enfim, era um quadro bastante sério. E eu lembro que a gente conseguiu fazer um movimento na cidade, chamamos a imprensa pra denunciar aquilo, que aquilo estava contaminando os lençóis freáticos, que tinham muitas pessoas que estavam doentes porque viviam daquilo, e tinham criação de porcos, ali, que depois esses porcos se alimentavam de lixo hospitalar, e depois eram vendidos nas feiras públicas da cidade, sem nenhum tipo de controle sanitário, sem nenhum tipo de higiene. Bom, aí um caso interessante foi que, eu lembro que eu dei entrada numa ação popular, mobilizei, fiz a ação popular contra a prefeitura do município, obrigando a que a prefeitura retirasse aquilo, obrigando a que a prefeitura tomasse uma providência, e responsabilizando o prefeito na época por aquilo, etc. e tal. Foi dada entrada e a coisa não rolou. Dez anos depois, passaram-se dez anos, eu recebo uma intimação, uma convocação – eu não lembro como é que chama isso, agora –, uma notificação para comparecer ao fórum da cidade para responder a um processo sobre esse problema de lixo, porque eu era o responsável, porque dez anos depois eu era o responsável pela secretaria de meio ambiente do município. Então eu era o responsável por essa história do lixão. Eu era o autor, dez anos antes eu era o autor, dez anos depois eu era o réu do processo; como secretário de meio ambiente, eu teria que responder por aquele processo. Aí eu tive que explicar que já não existia mais o lixão, que aquilo já tinha acabado; enfim, não haveria mais necessidade de se continuar com o processo. Então é muito engraçado, quer dizer, isso daí demonstra, sei lá, a coisa da lentidão da justiça. Mas foi uma coincidência, no mesmo processo eu figurar como réu e autor da ação popular.
P/1 – Muita coincidência (risos).
R – Começou comigo e terminou comigo.
P/1 – E Dener, ainda nesse período, dessa fase dos quinze aos dezoito, você resolveu fazer Letras, você entrou? E você foi fazer no Rio?
R – Na Universidade Federal do Rio.
P/1 – E você morava no Rio ou...?
R – Foi um momento muito rico pra mim em termos de experiência de vida, de estar afastado daquela estrutura familiar, que você normalmente tem, e eu fiz loucuras na faculdade. Eu fui morar num alojamento de estudantes, era onde eu queria morar. E era um quarto pequeno, um banheiro, uma cozinhazinha muito pequena; um alojamento universitário. E eu cheguei a ter doze pessoas morando comigo, dentro desse quarto; mal cabia um. Então era uma festa, sempre. Mas em termos de vivência para mim foi um período muito bacana. E acabei sempre me envolvendo em movimento estudantil, em diretório acadêmico. Eu praticamente, eu fiz da universidade, o período em que eu estive lá, um grande laboratório de vida; eu não fiz só um curso, sabe, universitário, foi um laboratório de vida pra tudo. E sempre, já aí, absolutamente contaminado pela questão ambiental, desde sempre.
P/1 – Você continuou isso na universidade?
R – Continuei na universidade, fazendo o jornalzinho da universidade, participava já do PV. Depois eu saí do PV acho que em 1991, 1990, eu já não era mais, enfim, já não achava que era aquilo que eu queria, eu não gostava muito daquela coisa partidária, ou não gostava ou eu não entendia ou não tinha experiência para entender, então saí. E foi, fui fazendo outras coisas, me envolvendo com outras ONGs que trabalhavam com meio ambiente.
P/1 – Quando você saiu do PV, que ano que foi isso?
R – Acho que 1991, 1990, por aí, mais ou menos isso. Foi de 1985 a 1990, cinco anos no PV.
P/1 – Aí depois você foi para outra ONG em seguida?
R –Não, fiquei um tempo sem fazer nada na área. Quer dizer, sem fazer nada não; eu sempre fazia coisas na área ambiental, mas não especificamente para alguém, para alguma ONG ou para algum movimento. Eu me lembro, por exemplo, que na Eco 92, foi uma coisa engraçada, eu não estava participando de nada, e a rádio – tinha uma rádio, na cidade, no interior do Rio, lá em Três Rios, chamava “Rádio Três Rios” –, e eu, numa conversa com o pessoal da rádio, e eles: “Ah, apresenta algumas coisas, faz aí uns quadros de meio ambiente, ‘Minutos da Sabedoria’, ‘Você sabia que?’”. Eu falei: “Não, eu vou ter uma ideia melhor”. Foi na época da Eco 92, e eu falei: “Não, eu vou ser correspondente da rádio na Eco 92”. “Coisa maluca, imagina...” Mas enfim, não sei como eu mandei meu credenciamento, eles credenciaram a rádio, e eu fui cobrir a cúpula de chefes de estados como correspondente da Rádio Três Rios, famosa, com alcance... Sempre que eu falava com as pessoas para dar entrevista, eram quase que entrevistas exclusivas, porque perto da mídia que tinha ali, e o alcance da rádio, que era micro. E eu entrevistei chefes de estado, fiz uma entrevista com o Fidel Castro, pra Rádio Três Rios, ao vivo, direto para a Rádio Três Rios. E eu lá, com meus dezoito anos, me sentindo com a bola toda, entendeu? Conversando com esse povo todo e foi muito bacana. Quer dizer, eu não estava pra movimento nenhum, eu estava pra rádio, mas fui fazer jornalismo ambiental. E foi uma experiência muito bacana, fazer transmissões ao vivo. E foi um alvoroço, assim, eu me lembro que as pessoas ficavam esperando os boletins, entendeu? E acho que no fundo todo mundo ali da cidade se sentia muito importante, porque poxa, imagina, Fidel Castro fazendo entrevista pra rádio da cidade. E eu com a cara de pau, falava: “Nós vamos fazer uma entrevista pra rádio ZYJ4... é ZYJ485.” Nem falava o nome do quê que era para... (risos) “Claro, pra ZYJ465, 485, claro.” Tem essas coisas.
P/1 – E Dener, como que você vê a Eco 92, que importância que ela teve? Para você que esteve lá.
R – Olha, foi tão bacana aquilo, foi um momento mágico. Apesar de todos os problemas, de todos os contratempos, enfim, para mim, foi um processo de mudança histórica, que ainda não foi reconhecido na sua totalidade; eu acho que ainda vão passar alguns anos para a gente entender o quê que foi a Eco 92. Eu me lembro que além da cúpula, porque você tinha a cúpula da terra, que estava acontecendo no Rio-Centro, e tinha o fórum, que estava acontecendo no Aterro do Flamengo, que tinha ONGs; acho que foram três mil ONGs do mundo inteiro, eram quase cento e noventa chefes de estado reunidos no Rio-Centro, discutindo meio ambiente, discutindo alternativas. Então aquilo foi um momento muito bacana, e com certeza foi a partir da Eco 92 que se fortaleceu muito o movimento ambientalista no mundo inteiro, que as causas ambientais ganharam espaço na mídia. Eu não me lembro, por exemplo, do Jornal Nacional, da Rede Globo, em momento algum da sua história – pode ser que tenha e eu não saiba, eu realmente não me lembro –, mas o Jornal Nacional, você tirar o Jornal Nacional de dentro do estúdio da Rede Globo pra ser transmitido, gerado, a partir lá do Aterro do Flamengo, ou lá do Rio-Centro, isso é uma coisa, isso é um poder de mobilização fantástico; quer dizer, não era uma matéria no jornal, o jornal passou a ser feito lá, saíram do estúdio, os apresentadores da Globo, e foram para o Rio-Centro. Isso demonstra muito claro o poder de mobilização que teve a Eco 92. E é evidente que depois que você consegue fazer um jornal, como é o JN, que tem alcance, tem uma importância, se deslocar até a matéria, quer dizer, é a primeira vez que eu vejo um estúdio ir até a pauta, não é a pauta que chega no estúdio, o estúdio foi para onde estava acontecendo a pauta. É claro que nunca mais a história do movimento ambiental é a mesma. A importância que aquilo teve, que ganhou, favoreceu muito a ampliação do movimento ambiental, não só aqui no Brasil, onde foi realizada a conferência, mas no mundo inteiro. Bem ou mal você tinha ali... E engraçado, não é? Na época era o Bush-pai, era o Bush-pai, eu me lembro do Bush-pai falando; foi um banho de água fria, porque ele, logo que chegou, ele anunciou que não ia assinar o tratado da biodiversidade, e era uma expectativa de que os Estados Unidos pudessem assinar, que porque se assinasse. E eu estou me lembrando agora que é engraçado, não é? Passaram-se mais de não sei quantos anos e a gente continua com o Bush aí, de novo, o filho. Mas foi muito bacana. Eu acho que ainda vai demorar um pouco para a gente entender o que foi esse processo. No Brasil, eu ouso dizer que o movimento ambientalista existe antes e depois da Eco 92, principalmente, ou basicamente, em termos de opinião pública: até antes da Eco 92, o meio ambiente era aquela coisa restrita a acadêmicos, pesquisadores, cientistas; depois de 1992, a coisa realmente ganhou espaço na mídia, ganhou repercussão nas ruas, as pessoas começaram a fazer coisas interessantes. E na época, eu me lembro que foi uma coisa muito bacana, uma coisa que ajudou muito foi o próprio Collor, na época ele era o presidente, 1992, no Brasil. Na época ele era o presidente da república, e o Collor, ele também se envolveu com isso, eu lembro que ele usava aquelas camisetas ecológicas, ambientais, corria com aquilo. Eu vou falar uma coisa aqui que eu não sei se eu deveria falar, mas eu vou falar, pra ficar registrado isso, pra posteridade. Outro dia eu estava pensando muito sobre essa questão do governo do Collor. Eu acho que pra área ambiental - você tirando todas as outras coisas negativas do governo do Fernando Collor -, pra área ambiental eu acho que foi um momento muito importante; casou esse ano de 1992, 1990 a 1992, que culminou com a Eco 92, que veio pro Brasil porque o presidente Collor na época fez uma ingerência internacional, uma pressão internacional muito forte pra trazer a Eco – todos os países queriam sediar a Eco 92; qual país que não quer ter todos os chefes de estado dentro do seu país discutindo um tema tão importante? Mas o Collor, independente de todas as questões negativas, ele foi, talvez, um dos melhores presidentes que se teve pra área ambiental, e o Brasil teve uma sorte muito grande de ter tido o Collor como presidente na época da realização da Eco 92; para o movimento ambientalista ele foi um marco extremamente importante, um dia vai ser reconhecido. Não podemos esquecer que o Fernando Collor jogou uma pá de cal no projeto nuclear da Marinha de construir um submarino lá naquela Serra do Cachimbo, ele fez esse esforço pra trazer a Eco 92, ele criou o Ministério do Meio Ambiente – porque não existia Ministério do Meio Ambiente, ele foi criado pelo Fernando Collor de Mello, ele deu um status ministerial à causa ambiental. Então isso tudo favoreceu muito esse marco. O Collor, nesse aspecto, ele tem uma presença também extremamente importante nesse processo de, digamos, desse marco histórico do movimento ambiental no Brasil, e normalmente as pessoas não falam isso. Mas eu acho que é importante falar.
P/1 – É, a gente sempre lembra do que tem de mais negativo mesmo...
R – É, veja bem, eu não estou entrando em mérito do governo, estou dizendo que ações ambientais, com certeza eu acho que foram as mais significativas na república moderna foram do Fernando Collor.
P/1 – Dener, a gente estava entrando agora na década de 1990, só voltando ainda um pouquinho na de 1980, que foi a década em que você estava no Partido Verde. O quê que se discutia no Partido Verde nesse período? Qual era a prioridade, o foco?
R – Na realidade, se discutia muito a questão das legislações. Eu lembro que era uma preocupação, até porque tinha essa inclinação, essa inclinação do PV realmente ser partido, de buscar um espaço no meio partidário. Discutia muito constituição, as leis ambientais, se o Brasil estava ou não preparado pra poder entrar na era que estava se esperando, de realmente ter uma preocupação ambiental. E eu lembro que se temia muito o discurso do atraso, as pessoas que eram contra o meio ambiente, ou que não gostavam, sempre acusavam que o meio ambiente seria um entrave – ainda hoje – ao desenvolvimento; mas na época, como era uma coisa nova, isso era muito forte, existia essa preocupação. Mas o movimento na época do PV, ele era muito rico de temas, assim; na realidade, a mola mestra era o meio ambiente, mas na realidade era um movimento mais libertário, que abraçava a causa dos homossexuais, abraçava a causa dos negros, dos favelados. Eu me lembro que tinha um movimento forte, que na época, se não me engano, eram pessoas que vinham da federação das favelas, associação dos moradores, e tinha um grupo de favelas, que era um pessoal muito bacana, que fazia coisas muito legais. Então o Partido Verde, na época, ele era meio que um catalisador dos desejos de liberdade, dos desejos libertários da sociedade; quer dizer, não era só uma bandeira ecológica, ou só uma coisa muito específica. Não, tinha os negros, o movimento negro, o movimento feminista, muitas pessoas do movimento feminista e isso foi muito bacana, né, porque acabou ampliando a visão de todo mundo. Se discutia muito isso dentro do PV. Talvez quem não saiba, pra gente que acompanhou é legal, mas quem não sabe acha que de repente era um grupo que estava ali discutindo só árvore, passarinho, e o rio que está poluído. Não; as conversas, os papos, na época, as preocupações, eram mais nesse sentido de questões universais e questões libertárias, que pudessem permitir a defesa de todos os direitos fundamentais do ser humano. E cobrindo tudo isso o manto da ecologia, da preservação, do respeito à vida – quando se dizia respeito à vida, se dizia respeito a todas as formas de vida, e em todas as formas de se pensar a vida; então era isso. O movimento era muito bacana, muito legal.
P/2 – E as ONGs, as instituições ligadas ao meio ambiente nesse período. Quais eram, como era a atuação delas e a presença delas não só na mídia, mas também entre as pessoas, entre o povo em geral?
R – Pro público em geral era uma coisa muito restrita. E pelo que eu me lembro, na época, o movimento ambientalista, ele era também muito segmentado. Existiam algumas ONGs muito tradicionais, diria que foram normalmente criadas, geridas por pesquisadores, por professores, e que se focavam em temas muito específicos, tipo: você tinha um grupo que cuidava do morro tal, da divisa do rio tal, que era uma coisa muito focada, não tinham esses grandes temas, normalmente não apareciam no movimento. Mas você já tinha algumas organizações bastante fortes, bastante coerentes com a defesa da do meio ambiental. Porém, na população em geral, ainda era um tema muito ausente, ou muito desconhecido. Isso eu tô falando antes da Eco 92, né, antes do Jornal Nacional sair e fazer a cobertura lá no Rio-Centro. Era uma coisa muito distante das pessoas, as pessoas não se preocupavam muito. Eu não me lembro, na época, se tinha algum candidato antes do PV comprometido com a causa, que tivesse uma bandeira da causa ambiental, não me lembro.
P/2 – E quais eram as mais conhecidas nesse período, que você se lembre?
R – Uma que tinha uma atuação muito forte, de que depois eu pouco ouvi falar, era a FBCN, a Fundação Brasileira de Conservação da Natureza, que era uma coisa bem focada, também. Eu não me lembro se já tinha Greenpeace, na época, se não tinha aqui no Brasil. Na época tinha a SOS Mata Atlântica. Eram poucas, eram organizações, mas eram organizações muito fortes, muito bem focadas e com um caminho muito claro que eles queriam seguir. Era uma coisa engraçada, você tinha assim, fortes organizações, poucas, e você tinha muitas organizações muito pequenas, às vezes tinha uma organização que cuidava só de um bairro de tal cidade, entendeu? Eram poucas organizações. De lá pra cá, a coisa, acho que veio havendo, inclusive, uma depuração, porque o movimento ambientalista, ele teve que se profissionalizar, ele teve que realmente ter estratégias, ter uma estrutura organizacional séria, estrutura organizacional bastante forte, para poder realmente conseguir os avanços que eles queriam e isso acabou dando que uma depurada, as pessoas foram se aglutinando em outras organizações, aquilo que estava muito pulverizado foi se encontrando em diversas organizações.
P/2 – E qual foi a influência efetiva da Eco 92 nesse universo das ONGs ambientais? O que realmente mudou a partir dali?
R – Eu acho que a grande mudança foi o respaldo que as organizações ambientais tiveram da sociedade, foi o momento, digamos, do renascimento da cidadania. Em seguida à Eco 92, a gente teve os caras-pintadas, coisas que você via acontecer muito pouco na história. Então, isso, eu acho que favoreceu bastante as organizações ambientais no sentido de que o Governo passou a enxergá-las realmente como organizações representativas da sociedade, como organizações que tinham o respeito e o respaldo da sociedade, que elas realmente representavam a sociedade civil. Então começou-se a dar muito mais atenção, e começou-se a ouvir o que essas organizações tinham a dizer. E isso foi uma coisa muito importante. Eu diria que era um momento de transição do eco-chato, porque teve aquela coisa muito do eco-chato: “Ih, o cara vem falar de meio ambiente, passarinho, árvore...”, sabe, tinha, as pessoas que não eram do movimento, que não tinham convivência, tinham essa ideia meio que errada, equivocada, de que as pessoas do movimento ambientalista eram aqueles radicais, os caras chatos, muitas vezes confundidos com hippies, também. Então eu acho que serviu pra isso, pra mostrar que não, que não é nada disso, que, se um tema que reúne cento e noventa chefes de estado, que param o mundo durante dez dias pra se discutir aquele tema, que aquilo ali devia ser sério. As pessoas começaram a encarar a coisa com mais respeito, com a seriedade que a coisa merecia. Então isso ajudou muito, essa credibilidade, esse reforço institucional pras ONGs. E começou-se a crescer, a ter organizações fortes atuando nessa área. Deixa eu só pedir uma água?
P/1 – Ah, lógico.
P/2 – Você estava terminando de falar da época, da influência da Eco 92 na constituição dessas ONGs todas que se fortaleceram, criaram-se e fortaleceram-se a partir de então. Nesse período, então, você estava lá como correspondente da rádio de Três Rios. E depois disso? Quê que aconteceu? Para onde você foi?
R – Depois desse início de movimento ambientalista, eu voltei pra Três Rios, fiquei morando um tempo, fazendo alguns trabalhos, sempre indo, participando de algumas causas ambientais. Houve um período em que eu me afastei um pouquinho da causa ambiental, quando eu acabei ajudando a fundar um grupo, que foi uma ONG local chamada Grita, que era Grupo Trio-Riense de Trabalho com AIDS; na época, a gente começou a trabalhar a questão da AIDS no município, a discutir, tentar mobilizar a sociedade. Foi um período em que eu ajudei a fundar esse grupo e fiquei acho que um, dois anos em que o meu trabalho, a minha visão social, foi muito focada nessa questão da AIDS. Foi uma coisa engraçada: a gente começou com AIDS, trabalhando com AIDS, e a coisa acabou indo pra saúde pública. E aí não tem jeito, falar de saúde pública, você vai falar de meio ambiente, porque você vai falar de saneamento básico, de poluição, do lixão. Aí não tem jeito, eu acabei voltando a falar de questões ambientais. Mas foi só esse período. Logo em seguida, fundei uma ONG no município, ambiental, chamada “Sociedade Mata Viva”, eu acho que meio que inspirada na SOS Mata Atlântica, já na época, que era uma referência pra gente, o trabalho da SOS Mata Atlântica. E era engraçado porque eu me lembro que a SOS Mata Atlântica, pra gente, ela tinha uma estrutura, ela tinha uma coisa muito grande, ela parecia, ao mesmo tempo em que era grande, era distante, sabe, assim: “Poxa, a SOS Mata Atlântica”. E eu estou falando disso numa visão de um cara que estava lá no interior do Rio de Janeiro, que no começo da sua vida ambiental, do seu envolvimento com as causas ambientais. Mas assim, eu me lembro que a primeira impressão que a SOS Mata Atlântica passava pra gente era a questão de seriedade, de ser uma coisa bem feita, era um trabalho bem feito. Então a SOS foi uma inspiradora, digamos assim, da Sociedade Mata Viva, que era a organização que eu fundei lá em Três Rios. E a gente começou a trabalhar com questões, com um foco muito no município, e depois a coisa foi se ampliando, se ampliando, e no final a gente estava trabalhando com questões ambientais do Centro-Sul do estado do Rio de Janeiro; a gente trabalhava de Três Rios a Rezende, Barra do Piraí, Barra Mansa, Vassouras, toda aquela região do Centro-Sul, já chegando na fronteira com São Paulo, ali na área de Rezende, onde a gente fez alguns projetos localizados ali naquela região. A gente fez, eu me lembro, o ENA-Sul, que foi o primeiro encontro do Sul fluminense, o primeiro encontro ambiental do Sul fluminense; depois a gente fez o primeiro, o segundo, o terceiro. E foi uma coisa muito bacana, porque também não havia uma tradição de se fazer, de se aglutinar esses atores todos que estavam trabalhando na área de meio ambiente; então era todo mundo meio que isolado, cada um no seu município, na sua área, e esse projeto, o ENA-Sul, ele foi bacana porque ele reunia todas as ONGs, os movimentos não só ambientais, mas as associações de moradores municipais, nessa discussão de uma agenda ecológica, uma agenda ambiental, para aquela região do estado do Rio. E esse trabalho foi feito durante alguns anos, se eu não me engano três, quatro anos, até que essa ONG, ela gerou um projeto chamado RENCTAS, que é a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, que começou quando eu fui convidado para ser secretário de meio ambiente do município de Três Rios. Exatamente porque Três Rios era o maior entroncamento rodo-ferroviário. Como passavam muitas estradas federais no município, a polícia rodoviária apreendia muitos animais nas estradas, nos ônibus, nos caminhões. E, um belo dia, chegaram na minha sala, lá na prefeitura, com um monte de macacos – tinha quarenta macacos – e tinham prendido num ônibus. E foi um desespero, porque ninguém sabia o que fazer com aqueles animais, o que fazer com isso, para onde que leva. A gente ouviu falar em tráfico de animais, era uma coisa tão, até surrealista, tão distante da gente. E como eu vi que não tinha onde se buscar informações, dados sobre isso, o que você fazer, aí eu tive a ideia de criar a RENCTAS, a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais. Mas a RENCTAS, a princípio, ela foi planejada, ou a intenção era de se ter uma coisa trabalhando no estado do Rio. Mas a demanda era tão grande, que a gente, quando viu, eu já estava em contato com o Brasil inteiro, recebendo informações do Brasil inteiro, pessoas do Brasil inteiro querendo, buscando informações na RENCTAS, e a RENCTAS foi a criatura que comeu o criador, porque a RENCTAS era um projeto da Mata Viva e acabou que a Mata Viva se transformou na RENCTAS. A RENCTAS ganhou depois uma personalidade jurídica própria, se tornou uma ONG, foi fundada em 1999, e está até hoje, nesses longos cinco anos de existência, estamos trabalhando no sentido de combater o comércio ilegal da vida silvestre no Brasil. E foi um trabalho muito bacana que começou lá em 1999, em 2000 a gente, eu achei melhor a gente sair de lá, porque havia uma... Eu acho que se eu tivesse continuado lá, eu já tinha morrido. As ameaças eram constantes, a pressão era fortíssima. Não eram só ameaças: teve uma vez que eu, saindo de uma palestra num hotel, de um encontro que teve num hotel no Rio, eu tive uma arma botada na minha cara por traficantes de animais parados no carro, me chamando; puxaram uma pistola, botaram na minha cara: “Olha, parça, é a primeira e última vez que a gente está avisando.” E aí começou perseguição na minha casa, eu morava num sítio, enfim, a barra pesou muito, ficou muito pesada, e eu falei: “Bom, se eu quiser continuar o trabalho, aqui eu não posso ficar”. O Rio de Janeiro é considerado a capital brasileira do tráfico de animais. O estado do Rio tem cerca de cem feiras que comercializam animais silvestres ilegalmente. E eu achei então que tinha que sair. “Vou ter que sair, não dá pra ficar aqui numa boa.” E foi quando a gente decidiu ir pra Brasília; eu achei que Brasília seria um destino adequado, se a gente queria criar uma rede nacional, nada melhor que estar no centro do país pra fazer essa rede. E eu me lembro que era uma tensão enorme, e a RENCTAS, em 1999, a RENCTAS foi lançada em outubro, em novembro a gente já estava trabalhando numa série especial pro Jornal Nacional, da Rede Globo, que foi uma coisa bacanérrima: uma semana inteira, nove minutos, oito minutos por dia dentro do Jornal Nacional mostrando o tráfico de animais silvestres. Eu viajei o Brasil inteiro, a gente fez entrevistas, pegava os flagrantes, usava micro-câmera. E quando saiu a matéria, que foi no início de 2000, em janeiro de 2000, eu falei: “Não, não posso mais ficar, tenho que ir imediatamente pro Rio de Janeiro”. Porque a gente fez grandes denúncias, denúncias extremamente importantes. E isso tudo me aconteceu porque o que me fez continuar, eu acho que foi ingenuidade até, porque você veja bem, eu acho que ninguém em sã consciência, se você fala o seguinte: “olha, existe uma atividade ilegal, o tráfico de animais, que movimenta no Brasil, dois bilhões de dólares por ano e você vai fazer um trabalho para atrapalhar a vida de quem ganha dois bilhões de dólares por ano”, acho que ninguém, em sã consciência, faria. No Brasil, se mata por uma cerveja; você se propor a atrapalhar negócios de dois bilhões de dólares, é você estar se expondo muito. Mas isso, na época, não estava muito claro pra mim, ou eu não queria que estivesse muito claro, também, não sei, e seguimos em frente. Mas a barra no início foi muito pesada, o tempo todo ansioso, com medo de sair na rua, de estar num bar, sabe, aquela coisa. E aconteceram coisas muito estranhas, sabe, muito esquisitas. Foi um período muito forte, mas determinados. E foi aí que eu comecei uma organização que me deu o suporte de que eu precisava ter para tocar essa ideia – porque eu saí da prefeitura, enfim, e fui me dedicar à criação da RENCTAS: foi a ASHOKA Empreendedores Sociais que entrou exatamente na minha vida nesse momento, que me deu suporte para que eu pudesse realmente tocar; eu tive uma bolsa da ASHOKA e me dediquei à criação da RENCTAS. E tem sido um trabalho super gratificante, com grandes conquistas, com grandes vitórias. A RENCTAS é uma organização que eu nunca tive um planejamento, e tudo o que acontece com a RENCTAS hoje – eu sempre digo isso: “Você imaginava que algum dia essas coisas todas, até de reconhecimento, de alcance, de coisas bacanas, de sucesso, você acha que isso ia acontecer?”. Eu falo assim: “Acho”. Só que eu acho, eu achava que isso pudesse acontecer. Quer dizer, o que todo mundo espera quando você começa a fazer alguma coisa é que seja uma coisa bacana, que dê certo. Só que eu achava que isso ia dar certo daqui a vinte anos, não com cinco, com quatro. Eu criei a RENCTAS em 1999, em novembro de 2003, eu recebi o maior prêmio ambiental do mundo, que foi entregue pelo secretário geral das nações unidas, o Kofi Annan, numa cerimônia de gala em Nova York; o único brasileiro que tinha ganhado esse prêmio antes foi o Chico Mendes, em 1980, e logo depois que o Chico Mendes ganhou o prêmio, ele foi assassinado – eu espero não ser uma tradição do prêmio da ONU. E isso acontece em quatro anos, então você fica até ansioso, apreensivo, a responsabilidade aumenta muito. E foi assim que eu fui pro Rio, do Rio eu saí pra Brasília, mas em função dessa pressão, dessa carga pessoal que você tem quando você resolve realmente combater. Quando você combate, quando você trabalha na área de meio ambiente, por exemplo, vai defender uma floresta, você pode desagradar interesses, mas não é uma coisa tão, a não ser no Pará, Amazonas, que realmente, também é meio que terra sem lei, qualquer coisa que você faça em defesa da vida lá, o risco de você perder a sua também é proporcional, é enorme. Mas a questão do tráfico, é uma atividade ilícita, e depois, quando teve a primeira CPI, há dois anos atrás, foi 2003, teve a primeira CPI do Brasil, a gente trabalhou muito pra que essa CPI acontecesse, pra investigar o tráfico de animais, ali foi investigado – agora está tendo a segunda, já, CPI, porque a primeira não foi suficiente pra levantar tudo o que se precisava levantar –, é que se teve a certeza de que tráfico de animais, tráfico de drogas, tráfico de armas, é uma coisa muito próxima, os atores, às vezes, são até os mesmos, as quadrilhas que utilizam tráfico de animais fazem o tráfico de drogas, são as mesmas rotas, os mesmos esquemas. E o tráfico de animais silvestres é a terceira maior atividade ilegal do mundo; a primeira é o tráfico de armas, a segunda é o tráfico de drogas, e a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo é o tráfico de animais silvestres. Então é isso que eu me propus a combater, estou cada vez mais firme e determinado nesse propósito, agora já não tenho mais muito, quer dizer, tenho ainda, você sempre fica meio preocupado, atento às coisas que estão acontecendo ao seu redor, mas já não tenho mais aquela aflição que eu tinha no início. Até porque a RENCTAS, como ela cresceu muito rápido, ela teve uma visibilidade muito grande, as pessoas sabem que a RENCTAS hoje não é só eu, não adianta fazer nada comigo porque não vai impedir o trabalho, o trabalho vai continuar, e a repercussão vai ser uma repercussão muito forte contra as pessoas que atuam nessa área. Então, você se sente até meio que protegido pela exposição de mídia que você tem, isso te dá uma certa proteção.
P/1 – E falando um pouquinho do tráfico de animais, que é uma coisa que as pessoas conhecem muito pouco, não é tão falado. Eu lembro disso do jornal da Globo, que você falou, mas assim, não é algo que tá na mídia constantemente. As drogas, as armas, são coisas estáticas, então, a gente imagina que elas passem mais rápido. Agora, e os animais? Como é que sai tanto animal? Eu imagino que o tráfico maior seja pra fora do país...
R – Não, na realidade o tráfico maior é interno mesmo.
P/1 – É interno?
R – É interno. E no combate ao tráfico de animais silvestres você tem uma dificuldade extremamente adicional: o tráfico de animais, exatamente por ser ainda, hoje nem tanto, mas antes, praticamente nem se ouvia falar nisso, tráfico de animais silvestres, não era comentado, mas hoje as pessoas já têm uma noção, já têm uma ideia, mas você lida contra uma cultura, pra começar. Porque faz parte da cultura brasileira ter animais silvestres como se fossem animais domésticos; as pessoas têm os pássaros, têm os papagaios, enfim, têm os miquinhos, os macaquinhos, as pessoas têm isso, isso faz parte da cultura da sociedade. E o que a gente se propôs foi a contar a história que está, que geralmente está por trás daquela atitude da pessoa comprar um animal silvestre e levar para sua casa um animal silvestre adquirido de maneira ilegal. Você sabe que, de cada dez animais capturados, só um consegue ser efetivamente comercializado, nove na captura morrem ou durante o transporte. O transporte é a pior coisa possível que se possa imaginar em termos de crueldade, porque os animais ficam dias sem água, dias sem alimento; e pro traficante, o animal silvestre é uma mercadoria que está disponível na natureza, então, se morrer, para ele tanto faz. Por exemplo, quando você faz operações, faz as batidas, blitz, com a polícia, blitz em feira livre, é muito comum você encontrar, por exemplo, as araras, o traficante geralmente quebra esse ossinho do peito da arara pra ficar espetando os órgãos internos, então a arara não se move, nem pisca, porque se ela piscar, ela vai sentir uma dor enorme. Aí a pessoa pega, passa a mão: “Olha, como ela é mansinha”. Não, ela não é mansinha, é uma animal selvagem, mas que está sob a mira de um osso espetando os órgãos internos, então ele faz isso pra poder vender. É muito comum você encontrar os macaquinhos, os miquinhos, eles injetam cachaça, álcool na veia, eles ficam bêbados, aí parecem que são mansinhos. E a gente está falando de um número enorme; no Brasil, chegam a ser retirados da natureza, todos os anos, trinta e oito milhões de animais por ano, pra abastecer o comércio ilegal. E você tem vários tipos de tráfico, na realidade: os animais que são retirados ilegalmente pra abastecer essa parte de animais domésticos, de pet shop, que são as pessoas que têm os animais em casa, que compram esses animais; você tem os animais que são retirados pra indústria, pra pesquisa ilegal na indústria química e farmacêutica pra fabricação de medicamentos, princípios ativos, etc. e tal; você tem os animais que são retirados pra indústria do artesanato – se utiliza pena, dente, couro, asas –; você tem os animais que são retirados pra indústria da medicina popular, quando se utiliza substâncias, banha de jiboia é bom pra artrite, tem um comércio enorme; e você tem os animais que são retirados para os colecionadores particulares no Brasil e no exterior. Essa talvez seja a modalidade de tráfico pior que existe, porque é exatamente os traficantes, eles querem exatamente as espécies mais raras, os colecionadores querem as espécies mais ameaçadas de extinção, então cria-se assim um círculo vicioso que é o seguinte: quanto mais ameaçado, maior é o valor que esse animal alcança no mercado internacional, no mercado ilegal, e quanto maior o valor que ele alcança, mais procurado ele é, e mais ameaçado ele fica. Então um animal que entra nesse círculo, ele está praticamente fadado a desaparecer. E nós já tivemos muitas espécies de animais da nossa fauna que já desapareceram, já acabaram, e uma enormidade de outras espécies que estão em vias de desaparecimento por causa desse comércio ilegal. E é uma atividade que tem na sua base uma exploração social, porque as pessoas que vivem da captura desses animais que estão lá na ponta, os ribeirinhos, os caboclos, as matreiras, são pessoas que ganham às vezes. A gente sabe, por exemplo, que no sul do país – a China é uma das maiores importadoras de borboletas do Brasil –, as crianças deixam de ir à escola pra pegar sacos de borboletas, e a cada cem unidades, ela ganha cinco centavos. Então, pessoas também são exploradas na sua miséria. E você tem espécies, como a arara-azul-de-lear, que é uma espécie que vive na Bahia, ela custa sessenta mil dólares no mercado internacional, um único exemplar; um único ovo dessa espécie custa dez mil dólares. É um mercado realmente muito forte, muito poderoso e você tem, além da perda da biodiversidade, além da perda das nossas espécies silvestres, você tem uma série de problemas em decorrência do tráfico de animais silvestres. Um desses problemas, por exemplo, a gente voltando lá na saúde pública, são os animais que são retirados diretamente da natureza e que você traz para o convívio humano; são animais que podem ter, que têm, muitos têm, doenças ainda desconhecidas da medicina, e você traz pro convívio da sua família, expõe a sua família a um risco absolutamente desnecessário e um risco enorme, porque além das doenças que normalmente esses animais transmitem para o ser humano, que são já doenças conhecidas – raiva, febre amarela, leishmaniose, enfim, eu poderia dizer quarenta doenças –, você tem as desconhecidas, como é o caso, por exemplo, do vírus ebola, que surgiu na África por causa dos macacos, que tem um índice de mortalidade. Aqui em São Paulo, na região de Cotia, já apareceu um vírus de um roedor silvestre, e esse vírus, ele é muito mais letal que o vírus Ebola. Então tem casos dos hantavírus, têm pipocado aqui no Brasil. Então isso tudo está relacionado com essa destruição, com essa agressão à natureza, ao meio ambiente, que o ser humano está fazendo. A ideia da RENCTAS é, de certa maneira, contar essas histórias, informar, além de treinar, capacitar agentes ambientais pra estarem atuando contra essa atividade ilegal. Mas, talvez, o nosso grande desafio é mostrar à sociedade pra mudar essa cultura, mostrar o quê que acontece realmente. Porque muita gente tem o seu passarinho, tem o seu papagaio, e não sabe do risco que é para ela, e do dano que ela causa ao meio ambiente.
P/2 – E a RENCTAS, ela atua nacionalmente?
R – Nacionalmente.
P/2 – Mas quais são os ...
R - Agora internacionalmente.
P/2 – Internacionalmente?
R – Agora a gente está criando, tem um projeto que tá sendo implantado chamado “Rede Sul”, que é Rede Sul-Americana de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, a gente já tem, já realizou dois workshops. Aliás, nós fizemos em Brasília, em 2001, a primeira conferência sul-americana sobre tráfico de animais, em que nós trouxemos representantes da sociedade, ONGs, representantes de governos, imprensa, pra Brasília, todos os países sul-americanos participaram, foram quase duzentos participantes, e daí se decidiu criar a rede sul-americana. Porque eu entendo que o traficante, ele atua além-fronteira, então eu acho que a cooperação também tem que ser além-fronteira, não adianta cada país ficar isoladamente tentando resolver o seu problema, porque o traficante, ele transita, então a informação e a colaboração também tem que transitar pra poder realmente ter um combate efetivo. Nós já fizemos um evento em Brasília, nós reunimos todos os diretores da Interpol da América do Sul, trouxemos o secretário geral da Interpol de Lyon, na França, pra poder estabelecer alguns mecanismos de cooperação internacional, e já fizemos dois eventos, um na Argentina e um na Bolívia, pra se criar unidades locais da RENCTAS, com parceiros locais, pra se estender essa malha, essa rede de combate ao comércio ilegal da biodiversidade em todos os países do continente; a gente já esteve presente na Argentina e Bolívia, e a ideia é fazer agora nos outros países. Então já com uma atuação internacional, também.
P/2 – E no Brasil, quais são os principais focos? Onde que esse tráfico acontece com maior intensidade, que vocês percebem que são as regiões mais delicadas nesse sentido?
R – O tráfico de animais silvestres, ele acontece no Brasil inteiro. Normalmente os animais saem das regiões de grande biodiversidade, geralmente Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por causa do Pantanal, e vão pro eixo Rio-São Paulo, e daqui são distribuídos ou pra fora do Brasil, ou ficam pro mercado interno. Mas a compra e venda ilegal, ela acontece no Brasil todo, no Brasil todo. A região Norte tem um problema e a solução, e a Sul não tem; não, tem em todas as regiões. É aquela história da cultura, porque enquanto houver o comprador, enquanto houver pessoas que vão demandando esses animais, “ai, não, eu quero ter um papagaio, eu quero ter um miquinho”, vai ter sempre alguém que vai lá, vai capturar e vai comercializar.
P/2 – E a RENCTAS, ela já atuou ou atua em algum projeto com a SOS Mata Atlântica?
R – Já, a RENCTAS tem uma relação de muito respeito, muita admiração pelo trabalho da SOS Mata Atlântica, já há algum tempo. Nós já tivemos a oportunidade de participar de alguns eventos, algumas ações que a SOS Mata Atlântica tinha promovido. Eu, particularmente, já tinha participado antes de existir RENCTAS, lá atrás, quando eu disse que eu tinha me espelhado na SOS. Mas nós criamos um projeto, nós tivemos a oportunidade, agora, de formatar um projeto que é muito interessante, que é unir os dois lados da moeda, que a SOS Mata Atlântica, que tem o foco dela na preservação da Mata Atlântica, das árvores, e a RENCTAS, que tem um foco na preservação dos animais. Então é a SOS cuidando da casa, e a RENCTAS cuidando dos habitantes; nós juntamos, formamos a União pela Fauna da Mata Atlântica, que visa estabelecer uma série de projetos, uma série de programas, voltados para a pesquisa, para a conservação de espécies da fauna da Mata Atlântica, que hoje são alvo dos traficantes de animais silvestres. Então esse programa, esse projeto, ele prevê um levantamento, um estudo sobre uma identificação dos principais pontos de tráfico na região da Mata Atlântica, e esse trabalho que a SOS vai fazer com a RENCTAS, além de identificar as principais rotas, os principais pontos, nós pretendemos fazer um levantamento sócio-ambiental, sócio-cultural, da situação das comunidades que vivem hoje nas áreas de Mata Atlântica e que estão envolvidas com esse comércio ilegal – o quê que leva essas pessoas a estarem sacando esse patrimônio natural, retirando da floresta esses animais para terem uma fonte de renda –; então a ideia é identificar esses pontos críticos e estar fazendo propostas de renda alternativa, de atividades que possam gerar uma renda alternativa pra essas comunidades. Além disso, nós temos um trabalho de levantamento, se possível, a gente quer fazer um histórico e uma lista dos animais da Mata Atlântica que são ameaçados hoje por causa do comércio ilegal, e vamos fazer também uma ação no sentido de termos um monitoramento permanente da fauna da Mata Atlântica, do comércio ilegal. E essa parte do programa, ela vai estar muito focada com treinamento, com capacitação, com a criação de bancos de dados, com a criação de mapeamento de área onde você tem problemas a serem resolvidos. E a nossa ideia é que esse trabalho que está sendo desenvolvido pela SOS em parceria com a RENCTAS, é de que todas informações, esses dados, todas essas ações resultem na criação de políticas públicas, na adoção de políticas públicas por parte do governo federal, dos governos estaduais, e até dos governos municipais, dos municípios onde tem Mata Atlântica, para que realmente a gente tenha um efetivo controle e um efetivo combate à essa atividade ilegal.
P/2 – E como que se deu esse contato com a SOS Mata Atlântica? Quando foi, quem foram os atores desse contato?
R – Eu tive a felicidade de ter um contato com o presidente da Fundação SOS Mata Atlântica, que é o Roberto Klabin, esse contrato veio por intermédio de um conselheiro da RENCTAS, do nosso membro de conselheiros consultivos que conhece o Roberto Klabin, e nós tivemos a oportunidade de ter um encontro, de conversar. Ele me questionou muito sobre o funcionamento da RENCTAS, ele já conhecia o trabalho da RENCTAS através da imprensa, através da mídia, mas ele nunca tinha tido a oportunidade de conversar com alguém da RENCTAS. Então surgiu essa chance, e nós conversamos muito, ele questionou muito sobre o trabalho, como é que a gente estava desenvolvendo o nosso trabalho, como é que podia haver – foi uma proposta dele – uma colaboração da SOS Mata Atlântica para o aperfeiçoamento, para a expansão das ações que a RENCTAS vinha desenvolvendo. E foi muito bacana, porque a gente descobriu que nós tínhamos muito mais pontos em comum do que a gente podia imaginar. Então a coisa foi amadurecendo, hoje, o Roberto Klabin é conselheiro da RENCTAS, ele faz parte do nosso conselho consultivo, é uma pessoa a quem a gente tem uma enorme gratidão; eu acho, eu posso dizer hoje, que a própria existência da RENCTAS, a própria perpetuação do trabalho da RENCTAS, hoje, nós devemos muito ao apoio que nós recebemos do Roberto Klabin, dessa parceria que se estabeleceu, e da generosidade que ele sempre teve; ele está sempre disponível, ele tá sempre ajudando, apoiando. Ele entrou num momento, posso dizer, foi num momento muito preciso, muito certo na RENCTAS, e com toda a expertise, com toda a experiência da SOS; a gente está falando de uma organização de dezoito anos de atuação, pra uma organização que tem cinco. Então, o que a SOS já passou, o que a SOS já viveu, é fundamental pra poupar a RENCTAS de uma série de desafios que já foram testados, já foram superados, e principalmente no sentido de orientar o planejamento da RENCTAS; nisso a gente tem tido uma colaboração enorme da SOS Mata Atlântica, do Roberto Klabin. O Klabin e a SOS são padrinhos da RENCTAS hoje, foi uma coisa que ocorreu naturalmente. O Roberto Klabin, além de ser o conselheiro da RENCTAS, é o nosso padrinho, a SOS Mata Atlântica, além de ser uma parceira no projeto, tem sido uma organização madrinha do trabalho que a RENCTAS tem feito, tem desenvolvido. Então, através desse primeiro contato com o Roberto Klabin, nós começamos a discutir, tivemos diversos encontros, eu fui convidado pra ir na sede, eu não conhecia ainda a sede da SOS em São Paulo, e fui, passamos diversas horas conversando, discutindo, e a ideia dessa União pela Fauna da Mata Atlântica foi quase que uma consequência natural dessa identificação que houve entre o trabalho que a RENCTAS faz e o trabalho que a SOS faz e dessa possibilidade de a gente atuar em conjunto na defesa da nossa biodiversidade; aí sim se falando em flora, e se falando de fauna, a SOS cuida da casa, e a RENCTAS cuidando dos habitantes da casa.
P/2 – E sobre a atuação da SOS, o quê que você tem a dizer? Você que acompanha – você disse que conheceu a atuação da SOS lá do comecinho, e que ela influenciou em muitos momentos da sua atuação na questão ambiental, o quê que você pode falar sobre isso, fazendo um balanço da atuação da SOS Mata Atlântica?
R – Eu vejo a SOS Mata Atlântica como uma referência de um trabalho sério, de um trabalho responsável, de um trabalho benfeito. E acima de tudo, me surpreende muito o nível de profissionalismo que a SOS implantou na sua trajetória, na sua existência, e que permitiu que a SOS seja uma organização como ela é hoje, absolutamente respeitada dentro do cenário ambiental no Brasil. E isso, eu acho que é muito fruto desse profissionalismo. É muito bacana quando você começa a entender o funcionamento da SOS e você realmente vê que existe planejamento, que as coisas não são feitas aleatoriamente, ou que se conta com a sorte; não, existe uma organização muito forte e isso acaba se traduzindo não só na permanência da SOS como uma grande organização ambiental, como uma organização respeitada, mas isso pode – e tem acontecido, como aconteceu no caso da RENCTAS – servir como um modelo mesmo de aprendizado. Eu acho que a SOS está conseguindo criar uma nova configuração, criar um novo modelo de atuação ambiental no Brasil; porque é uma organização genuinamente brasileira, que não trouxe nenhum manual pra poder funcionar, de fora, foi criado aqui, sua metodologia foi criada, testada e está sendo utilizada aqui no Brasil. E pra mim, se você pedisse pra resumir realmente qual é a minha visão ou o meu sentimento com relação ao trabalho da SOS, eu diria que é o mesmo que tive quando eu disse que eu tive a inspiração, lá atrás: a SOS, pra mim, continua sendo um trabalho inspirador, continua sendo um trabalho que eu quero copiar, eu quero levar essa experiência da SOS pra dentro da RENCTAS e quero que a RENCTAS chegue aos seus dezoito anos como a SOS está chegando, eu acho que é um motivo de muito orgulho pra todo mundo, não só o pessoal da SOS, mas pra todo brasileiro, saber que a gente aqui tem uma organização como essa.
P/2 – E ao longo desses dezoito anos, a SOS, ela desenvolveu muitos projetos, muitos programas, muitas campanhas. Teve alguma que tenha te chamado a atenção por algum motivo especial, ou que tenha te marcado?
R – Teve duas que eu achei que foram muito bacanas, que foi a do Tietê, e teve um trabalho que a SOS fez, que eu achei muito legal, que era da poluição do ar, que ela fez umas bandeiras que você botava na janela pra absorver a poluição do ar, isso foi muito legal. Uma outra ação da SOS, que é maravilhosa, foi o Atlas da Mata Atlântica, quando ela mostrou o histórico da devastação, com a identificação das áreas críticas de desmatamento da Mata Atlântica, também são projetos muito bacanas. E projeto internos, institucionais, de desenvolvimento, fortalecimento institucional da SOS, eu acho que são fantásticos. Eu acho que a SOS inovou em muitas áreas – você ter os cartões de filiação, você poder ter um cartão de crédito com a bandeira, do cartão, mas ter a sua afinidade com uma organização ambiental, isso eu lembro que era muito bacana. Na época da faculdade, eu lembro que eram uma ou duas bandeiras de cartão que tinham alguma coisa de afinidade. E depois, muito tempo depois, veio a SOS com o cartão dela, eu sei porque logo no início eu quis ter, mas acho que eu não tinha renda pra isso, então eu não podia ter o cartão, quando eu estava naquela época meio rebelde de faculdade. Essas coisas que são inovadoras na gestão empresarial de uma ONG, coisas que são bacanas, de você ter essa capacidade que a SOS tem de ter uma quantidade de membros enorme, de filiados, de ter quase cem mil pessoas filiadas, que é uma estrutura gigantesca, que você tem que ter pra fazer com que isso funcione. Isso eu acho que é muito inspirador, e que com certeza serve de modelo pra toda ONG que quer crescer, que precisa se expandir, e que precisa superar as dificuldades. A RENCTAS está numa fase em que nós estamos superando dificuldades, até porque, como eu disse, a repercussão do trabalho que a RENCTAS teve foi muito grande; a gente não teve tempo de se desenvolver funcionalmente e administrativamente pra absorver toda essa demanda. Então, quanto mais etapas a gente puder ir queimando, ir passando, pra poder estar realmente, chegar num nível de organização que seja o ideal, pra gente é melhor, e essa parceria com a SOS tem se dado também nesse sentido, quer dizer, não é só uma parceria no sentido de se desenvolver um projeto; também é uma parceria pra troca de experiências institucionais.
P/2 – E quais são as perspectivas para as regiões da Mata Atlântica, na sua opinião? Quê que você acha que vai acontecer com ela daqui pra frente, se está melhorando, se ela tá se recuperando?
R – Eu sou uma pessoa naturalmente otimista. É claro que o que aconteceu com a história da Mata Atlântica no Brasil foi uma tragédia em termos de biodiversidade, particularmente de fauna silvestre. Eu tenho certeza de que nós perdemos muitas espécies que sequer nós chegamos a conhecer; muitas espécies com certeza desapareceram em função dessa coisa enlouquecida desse desmatamento, dessa exploração desenfreada. Mas eu sou bastante otimista. Eu vejo que nós temos a possibilidade de reverter o quadro. Quer dizer que são dois momentos: primeiro você reverter o quadro de desmatamento, e segundo, que seria o de você recuperar aquilo que você perdeu. Eu vejo que o ser humano, ele tem uma capacidade de transformação enorme. A gente tem exemplos como a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, maior floresta urbana do mundo, que é uma floresta que foi colocada abaixo, e virou fazendas de café, de cana, e depois ela foi novamente recuperada, reflorestada, e isso é uma prova de que existe a possibilidade de você recuperar. Agora, é preciso que nós tenhamos uma política pública realmente séria, concreta, para se preservar o que resta da Mata Atlântica no Brasil, que chega a ser ridículo o número que a gente tem, seis, sete, oito por cento de Mata Atlântica, de uma riqueza que ao longo de quinhentos anos de exploração foi jogada fora, foi destruída. E a destruição da Mata Atlântica, ela é bem como o tráfico de animais, ela começou com a descoberta do Brasil, quando as primeiras naus portuguesas começaram a levar os animais, levar a madeira da Mata Atlântica para a Europa. Mas eu tenho muita esperança, as minhas expectativas são as melhores possíveis, eu acredito no que eu faço, acredito no meu trabalho, acredito que eu não o faria se eu achasse que não fosse ter resultado, e da mesma forma acredito no trabalho que a SOS faz; as pessoas que estão hoje na SOS Mata Atlântica, estão lá enfrentando todas as dificuldades para estar levando a sério, levando à frente esse trabalho sério que eles fazem. Então é um momento de esperança; é claro que tem jeito, é claro que tem solução, e a gente está aqui pra provar que a gente vai vencer, que a gente vai mudar essa realidade.
P/1 – Dener, nós estamos chegando ao final. Tem alguma coisa que a gente não te perguntou, que você queria falar?
R – Eu acho que não.
P/1 – Que você acha que é importante...
R – Com certeza, mas eu vou lembrar isso amanhã, depois... (risos) “Ai, podia...” Agora não, agora eu estou satisfeito. Mas depois de amanhã com certeza eu te ligo, te falo: “Olha, não falei isso”.
P/1 – Dener, você queria, assim, deixar um recado pra SOS, pra esses dezoito anos?
R – Quero. Eu quero dizer pra SOS Mata Atlântica, pra todo mundo que ajudou a construir a SOS Mata Atlântica, que de alguma forma se dedicou à construção dessa organização que hoje é um orgulho pra todo mundo, que fizeram um excelente investimento, que essa dedicação que tiveram para com a SOS Mata Atlântica vai render muitos lucros ambientais, muitos bônus ambientais, principalmente para as futuras gerações. Eu tenho muito orgulho de ser parceiro da SOS Mata Atlântica, me considero uma pessoa privilegiada por ter essa oportunidade de estar tão próximo de uma organização como a Fundação SOS Mata Atlântica, e dizer que podem contar com a RENCTAS, que a gente também quer participar desse investimento ambiental, que com certeza é um dos melhores investimentos que um ser humano pode fazer na vida, e o Brasil com certeza é um dos maiores bancos do mundo para se fazer, um dos melhores bancos do mundo pra se fazer esse investimento, acreditar e investir no meio ambiente.
P/1 – E como que você imagina a SOS daqui a uns dez anos?
R – Olha, eu não sei como que eu consigo imaginar a SOS daqui a dez anos...
P/1 – Ou o que você espera dela...
R – Eu vejo que a SOS tem uma responsabilidade enorme, é a depositária da nossa esperança de recuperação e estanque dessas barbaridades que estão fazendo com a Mata Atlântica no Brasil, e eu vejo que a SOS ainda tem muito espaço pra crescer. Eu acho que a SOS vai ainda estar inspirando muitas outras organizações daqui a dez anos, daqui a vinte anos, e é uma história que eu acho que não tem volta; a SOS Mata Atlântica é uma organização que já se solidificou enquanto organização, que já tem um nome, já tem uma marca, e que isso vai ser perpetuado e que nós vamos ainda poder participar das comemorações dos cinquenta anos, dos cem anos da SOS Mata Atlântica com muita festa, e com uma biodiversidade muito mais saudável, mais equilibrada, mais protegida.
P/1 – E o que representa na sua vida todo esse trabalho que você está fazendo, ligado à fauna, flora?
R – O que representa? Eu não sei, eu, na realidade, eu nunca parei pra pensar no significado do que eu estou fazendo pra mim; nunca parei, de verdade, nunca refleti sobre isso. E nem devo, porque é muito difícil você desenvolver um trabalho quando você pensa no que esse trabalho pode lhe render em termos de resultado, de reconhecimento. Até porque, qualquer coisa que você faça, e você pense muito em quem vai receber, você corre um risco de se decepcionar, um risco de se sentir frustrado, e um risco enorme de se sentir muito ansioso, na expectativa de que as coisas aconteçam mais rápido, que as mudanças sejam mais rápidas. Então, eu nunca me preocupei com isso; eu vou fazendo, vou fazendo, vou fazendo, e acreditando, achando que eu estou fazendo o certo, e esperando que algum dia realmente toda essa energia que a gente investe, essa força de vontade, essa garra, realmente traga um resultado bacana, um resultado positivo. Eu sempre digo uma coisa: que o trabalho que a gente faz, é como se você tivesse construindo uma igreja que você nunca vai rezar nela, ela nunca vai estar pronta. É preciso construir, mas você nunca vai entrar pra rezar.
P/1 – Nós te agradecemos pelo seu depoimento.
R – Muito obrigado, eu que agradeço, um beijo pro Museu da Pessoa, um beijo pra Karen.
P/1 – (risos) Daremos.
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