Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Randau de Azevedo Marques
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 19/01/2005
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: SOS_HV033
Transcrito por Thaís Cechini
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Boa tarde Randau. Obrigada por você ter vindo dar o seu depoimento. Gostaria que você começasse falando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Randau de Azevedo Marques, nasci 29 de agosto de 1949, em Igaçaba. Como o próprio nome indica, um antigo aldeamento indígena que virou cemitério. Igaçaba é a urna funerária indígena dos remanescentes guaranis do nosso país.
P/1 - E qual é a região que fica Igaçaba?
R - Nordeste do estado de São Paulo, quase divisa com Minas, na beira do Rio Grande.
P/1 - E os seus pais eram da região?
R – Sim, eram da região. Toda aquela área ali onde tem Capitinga, Restinga, Ibiraci, Cássia, Itirapuã, Pedregulho. Essa é a região.
P/1 - E os seus pais faziam o que, Randau?
R - O meu pai era contador bancário e minha mãe era filha de fazendeiro, sabia muito bem organizar a vida em uma fazenda por questões hereditária. E era isso daí.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho duas irmãs.
P/1 - E você morou nessa região quantos anos?
R - Meu bisavô foi apanhado no laço. O nome dele era Juvêncio, que é uma alcunha na época dada a índios novos; era algo como cristão novo na época. Ele era índio e foi apanhado no laço; casou-se com uma das filhas de quem o capturou e acabou virando fazendeiro. Então minha vida, desde cedo, ter nascido na beira do Rio Grande, como não poderia deixar de ser, foi meio voltada para essa questão de natureza, de meio ambiente e a fazenda: andar a cavalo em pelo, correr, subir, tinha montanha, Pico do Cabecinha e andar sobretudo com esse meu avô que falava pouco, porém tinha uma vivência para com a natureza, para com as criaturas, muito forte, muito grande....
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Depoimento de Randau de Azevedo Marques
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 19/01/2005
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: SOS_HV033
Transcrito por Thaís Cechini
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Boa tarde Randau. Obrigada por você ter vindo dar o seu depoimento. Gostaria que você começasse falando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Randau de Azevedo Marques, nasci 29 de agosto de 1949, em Igaçaba. Como o próprio nome indica, um antigo aldeamento indígena que virou cemitério. Igaçaba é a urna funerária indígena dos remanescentes guaranis do nosso país.
P/1 - E qual é a região que fica Igaçaba?
R - Nordeste do estado de São Paulo, quase divisa com Minas, na beira do Rio Grande.
P/1 - E os seus pais eram da região?
R – Sim, eram da região. Toda aquela área ali onde tem Capitinga, Restinga, Ibiraci, Cássia, Itirapuã, Pedregulho. Essa é a região.
P/1 - E os seus pais faziam o que, Randau?
R - O meu pai era contador bancário e minha mãe era filha de fazendeiro, sabia muito bem organizar a vida em uma fazenda por questões hereditária. E era isso daí.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho duas irmãs.
P/1 - E você morou nessa região quantos anos?
R - Meu bisavô foi apanhado no laço. O nome dele era Juvêncio, que é uma alcunha na época dada a índios novos; era algo como cristão novo na época. Ele era índio e foi apanhado no laço; casou-se com uma das filhas de quem o capturou e acabou virando fazendeiro. Então minha vida, desde cedo, ter nascido na beira do Rio Grande, como não poderia deixar de ser, foi meio voltada para essa questão de natureza, de meio ambiente e a fazenda: andar a cavalo em pelo, correr, subir, tinha montanha, Pico do Cabecinha e andar sobretudo com esse meu avô que falava pouco, porém tinha uma vivência para com a natureza, para com as criaturas, muito forte, muito grande. Então me ensinou a domar cavalo bravo, a cuidar de cachorro, ele adestrava lobo guará. Os lobos guarás faziam, às vezes, de cachorro para ajudá-lo na lida com a goiaba. Então aquele cachorro do mato, vinagre também, ele tinha um dom de adestrar esses bichos selvagens e coisas desse tipo. E aí ele me ensinou uma outra vertente da natureza, que a natureza não era apenas o espinho, o matagal, o carrascal, a cobra nos esperando a cada atalho no caminho; não era risco de você cair do alto da serra, de você despencar, morrer afogado, ser comido por piranha, não. A natureza era outra coisa. E as estações do ano ficaram para sempre impregnadas comigo porque, de certa forma, ele implantou, ele foi o acionador de um relógio biológico; e eu sempre vivi, a partir daí, muito sintonizado com aves migratórias. Eu sou até hoje, aqui perdido na Paulicéia, um cara que não perco o horizonte de vista, o pôr-do-sol e os barulhos dos bichos, ou seja, eu consigo ouvir o grasnido dos paturis que ainda voam em arribação aqui em São Paulo. E é uma delícia, eles passam aqui, vêm da Patagônia, sobem... As aves migratórias são indicadores de que algo está mudando. E essa leitura das coisas ambientais, digamos assim, como você pressentir um tornado. O nome hoje é tornado, antigamente era redemoinho, é um pé de vento na verdade. Como você pressentir isso daí, você escutar o silêncio que faz abruptamente nesses momentos cíclicos da natureza, isso é algo que fica para sempre. E você andar no meio de uma mata - ali é domínio de Mata Atlântica - aprendendo a conhecer árvore por árvore devido à sua especificidade para o ser humano. Ou seja, que tipo de resina, que tipo de casca, que tipo de raiz é boa, seja para comer, seja para remédio, seja para o que for. Esse aprendizado então, é um aprendizado básico, eu tive até os doze anos, praticamente ininterrupto e foi muito forte essa minha ligação com ele. Eu digo até os doze, porque depois disso eu o via mais espaçadamente, mas até os dezesseis anos o aprendizado continuou. E com a minha avó eu já aprendi as outras coisas básicas da lida com gado, as plantações, como constitui um pomar, como desviar uma fonte de captação d'água. Então essas coisas foram mexendo comigo muito forte. E com o avô paterno a relação foi o oposto. O avô paterno era um intelectual, era dono de cartório de registro de imóveis, de nascimentos, e era uma pessoa que lia em latim versos de Camões, de Homero. Lia para mim Camões - Lusíadas era a leitura preferencial dele - além de Homero e outros clássicos que ele tinha em sua biblioteca. Então foram os dois tipos de leitura que eu tive. Uma, a leitura dos livros - ele tinha uma biblioteca imponente, em que eu mergulhava - e o outro tinha uma outra biblioteca, que era o mato, que era a mata, que era o ambiente natural. Os meus pais tinham uma sensibilidade toda comigo, porque eu era considerado meio salvo por milagre, porque várias vezes eu escapei de morrer por frações de segundo, aquelas coisas assim. Então eu era considerado um enfant terrible, porém meio miraculoso no sentido que eu escapava do pior e coisas desse tipo. A minha mãe é fora de série também, ela continua em atividade, é uma pessoa de uma fibra muito grande, assim como o meu pai. O meu pai puxou o meu avô, gosta de ler, de filosofar, de comentar a situação mundial, exatamente como o pai dele nos criou. Me lembro de discutir na mais tenra infância as guerras mundiais que estavam acontecendo, dentro de um alcance mais globalizado. Tinha aqueles rádios antigos de galena - os jornais lá demoravam muito para chegar, eles chegavam com três semanas, quatro semanas de atraso, então o único veículo de comunicação era o rádio - e ele escutava rádios internacionais e, de certa forma, foi o meu pé na globalização de que tanto se fala hoje. Então é isso.
P/1 - Então, você teve uma infância, uma pré-adolescência extremamente rica de informações, de ambiente. E as suas irmãs? Vocês compartilhavam dessa mesma forma?
R - Sim. Menos, porque para sair com o avô índio, elas eram pequenas e não pegavam, eu sou o mais velho. Mas as minhas irmãs são fora de série. A Jussara e a Denise são partes de mim mesmo. Dizem que você nunca dá valor aos seus membros enquanto não os perde. Eu pelo contrário, faço questão de manter a minha família, os meus filhos, as minhas irmãs, os meus pais, como se fossem meu coração, meu fígado, meu braço, minha cabeça. Essa questão de estar ligado é muito importante. Essa ligação eu diria que é umbilical, não tem outra expressão.
P/1 - E depois dessa coisa tão rica, você foi para a escola. Era próximo de onde vocês moravam? Como foi isso?
R - Eu tive problema de escola, brigas e coisas desse tipo. Então a represália foi eu estudar em escola rural. Nessa época eu tinha que ir com uma professora de escola rural, já que eu briguei com meio mundo no Grupo Escolar da cidadezinha onde eu morava. Eu tinha que acordar, como na fazenda, às quatro e meia para apanhar o cavalo, arriar a charrete e, ao nascer do dia, ia pegar a professora e íamos em direção à roça. Aproveitando, claro, para apanhar as frutas silvestres que brotavam pelos caminhos naquela época, que o olhar identificava. Isso foi importante pra mim, foi uma punição, um exercício de disciplina, de você se controlar e não aceitar provocações e coisas desse tipo. Mas era muito interessante, porque eu tinha, de um lado, uma experiência citadina, e de outro lado, o prolongamento da minha inserção com a natureza. E foi importante. A Galdina, que foi essa professora, foi uma inspiração protetora, ela realmente me ajudou a ter disciplina.
P/1 - E você ficou quanto tempo estudando na escola rural?
R - Acho que dois anos ou algo assim, logo voltei. E aí realmente a coisa foi tomando outro pulso, conclui sem problema nenhum. E isso tudo no meio de mudanças, mudanças de cidades, mudanças de interior. O meu pai mudava de cidades frequentemente, enfrentando novos desafios. Até que em Franca eu entrei no secundário e já com toda aquela bagagem de leituras e tudo o mais, comecei com um grupo a fazer poesia. Era um grupo de poetas. Tinha uma rádio - Rádio Clube Hertz - e nós tínhamos um programa de cultura, que era uma palavra usada na época para designar plantações de arroz, de feijão, as culturas. E um jornal veio por consequência, uma vez que começamos além do programa de rádio, que obviamente não era apenas poesia, era além dos poemas; o poema Processo, a inspiração de Drummond, foi fora de série, mas de Ezra Pound também foi muito grande, muito significativa. E além da poesia, dos textos literários, a gente tinha música. A música, na época, era uma cacofonia; então a gente misturava, mesclava um pouco de música clássica com blues e jazz. O que era meio insólito para aquela época. Isso daí a gente está falando de transição dos anos cinquenta para os anos sessenta e coisas desse tipo. E nesse ritmo de poesia, de pequenos contos, de programa de rádio e coisa desse tipo, eu trabalhar no jornal foi uma mera consequência. E trabalhar no jornal com um outro olho, ou seja, devido a essa questão de você estar sempre preocupado com o que a outra pessoa tem e o que você pode fazer para melhorar a vida dela, sem depender de farmácia ou de hospital, recorrendo às resinas, aos chás, as raízes que por ventura existissem onde você estivesse. E eu prestei atenção no problema dos gráficos com o que eles chamavam de antimônio e que, na verdade, era o chumbo. E por outro lado também dos sapateiros. Franca era uma cidade - é uma cidade - voltada para a indústria calçadista, e naquela época o sapateiro ainda era artesanal. Você não tinha ainda um outro problema ocupacional, que vieram a ser as resinas industriais, as colas, porque naquela época usavam-se pregos, tachinhas e coisas desse tipo. E o sapateiro conservava a tachinha na boca e isso provoca problemas sérios. Vários sapateiros com problemas de câncer na boca, na laringe. E isso casando com o problema também enfrentado pelos gráficos, respirando o cheiro do chumbo, dos lingotes com que eram confeccionados o jornal - eles apanhavam doenças de toda a sorte. Isso me despertou muito a atenção, até que eu peguei um ônibus e fui até a faculdade de medicina mais próxima, que era em Ribeirão Preto, conversar com um químico e onde eu descobri então o significado dessas intoxicações por metais pesados e por solventes. E no programa de rádio comecei a falar sobre isso daí, em uma cidade onde a principal indústria era essa - e isso não pegou muito bem. Por outro lado, as nossas páginas no suplemento literário e coisas desse tipo eram muito mal vistas, porque questionavam tudo, numa linha que vinha com Ginsberg- Ginsberg teve um papel muito forte na minha criação literária, assim como outros escritores também. Na época em que eu comecei a fazer sem sabê-lo, era uma linha de contra-jornalismo, que já dava os primeiros passos aquilo que viria me marcar mais tarde, que foi a cobertura de ciência e tecnologia. De certa forma, quando eu procurei a faculdade de medicina, estava marcando o meu rumo, o meu sul. Porque vamos dizer, norte, já que o norte anda nos esfoliando um tanto quanto. E foi esse período de maturação, eu adolescente, que marcou. Só que nós tínhamos preocupações políticas, é claro. A UDN, os partidos de então não inspiravam o mínimo respeito e coisas desse tipo. Mas não havia nenhum engajamento político-partidário em qualquer ordem. Apenas olhava com bons olhos os ventos socializantes, porque era uma alternativa aquela forma de governo Pós-Getulista, que a gente ainda tinha. Nós tínhamos remanescentes da ditadura Vargas no país e isso tudo foi muito complicado porque o DOPS e o DOI-COD interpretaram todas essas manifestações, todos esses escritos e ditos, como atividade contra o Regime Militar de 1964. Eu fui preso aos dezessete anos recém completados como terrorista, como comunista e coisas desse tipo. Passei pela Rua Tutóia, pelo DOI-COP, Operação Bandeirantes, e fui jogado no DOPS, no Largo General Osório. E foi muito massacrante você perder colegas. Tinha uma menina, a Áurea Moretti, que era uma poetisa de primeira linha, me lembrava muito aqueles personagens de mitologia, tinha um idealismo transbordante. Essa menina foi assassinada, eu vi ela sendo assassinada no Pau-de-Arara e eu no outro lado, no outro Pau-de-Arara. Vi um outro colega, o melhor da minha geração, um cara com uma dimensão muito forte, um autodidata, que largou do cabo da inchada e se preparou muito bem, Magno Dadonas, descendente de lituanos, semi-analfabeto também e que se transformou em uma das pessoas que melhor discutiram o mundo, os filósofos e tudo o mais. Esse rapaz também sofreu comigo no Trono do Dragão, que é como a gente chamava a sessão de eletrochoque. Nessa sessão de eletrochoque eu adquiri as minhas sequelas para o resto da vida, como epilepsia e outros problemas neurológicos graves, de tanto choque que levei. E o Magno entrou em uma depressão profunda, que o levou ao suicídio. Assim como o outro menino, o Fabinho, que também era um poeta esplêndido, os versos dele são duradouros até hoje, ou seja, passados quarenta anos você pode ler eles com prazer, como se eles conservassem o frescor da hora que passa, e também é outro que não suportou. Então tive vários colegas, vários irmãos que morreram, que se suicidaram, que foram assassinados, que foram violados, que foram violentados. E foi isso o que aconteceu comigo. Eu tive toda uma geração de amigos, de colegas, todos com uma idade ainda tenra. Eu era um dos mais novos, mas o mais velho não tinha uma diferença superior a doze anos, a quinze anos da minha idade; e todos eles arrebentados, sem que tivéssemos jamais feito qualquer coisa daquilo que nos acusava. Ou seja, formação de acampamento de guerrilha e coisas desse tipo. Ao sair da cadeia, eu tinha duas alternativas: uma eu voltava para o interior para curar as minhas feridas e a outra eu procurava continuar a luta. E eu procurei continuar a luta junto com um colega, Antônio de Pádua, o Padinho, que era um cineasta e foi um dos primeiros cineastas jovens do interior paulista no Brasil dos anos sessenta, setenta. Fez uma pequena obra-prima chamada “A Procissão de Foice e Gente”, que é um filme que se mantém até hoje em curta-metragem e em vigor esplêndido, e que também apanhou demais. Ele fez o filme antes da cadeia e era algo realmente em uma linha de Orson Welles para ninguém botar defeito; pegava todos os atributos da Nouvelle Vague francesa e jogava. Eu era um mero personagem dos filmes dele. Esse Padinho também estava comigo, nós saímos e fizemos um pacto de não nos entregarmos. Aí é que começou realmente a minha luta contra o regime.
P/1 - Eu posso só te interromper um pouquinho para a gente voltar? Quando vocês estavam em Franca, que você começa a ir para a rádio, que você começa escrevendo um jornal e se relacionar com outras pessoas que faziam esse tipo de coisa, vocês tinha essa dimensão dessa questão política? Estavam ligados a alguma organização ou era a denúncia de cada um mesmo?
R - Então, é como eu lhe disse, não tinha. Nós tínhamos uma inserção com o que estava acontecendo no mundo e com remanescente da Ditadura Vargas que aí estava e que foi substituído pela Ditadura Militar. Mas não éramos filiados a nenhuma facção, a nenhum partido. Isso eu já deixei claro na primeira hora. A nossa filiação era uma filiação a literatura, a boa música, ao bom cinema, era isso aí. E, no entanto, fomos fichados, eu fui considerado como pertencente ao Partido Comunista. Ora o Partido Comunista, ora a ABN - Aliança Libertadora Nacional - e coisas desse tipo. Mas não tínhamos. O que tinha era realmente essa ligação muito forte com os movimentos contestatórios internacionais, não eram sequer nacionais. E aquela coisa, ou seja, o fato de eu ter levantado em programa de rádio e escritos problemas ocupacionais, doenças ocupacionais, eu creio que pesou na minha iniciação como inimigo do sistema capitalista. E isso é o que pesou, o que eu dizia na minha escola. Ou seja, ao sair arrebentado da cadeia, do calabouço do Largo General Osório, decidimos continuar. E aí sim é que ia começar a luta e para mim foi. Eu procurei emprego na primeira hora, no Notícias Populares. Notícias Populares foi assim, por uma questão geográfica, já que o Largo General Osório era próximo a Barão de Limeira, onde ficava o NP, e foi o primeiro impulso. Eu fui para lá junto com o Padinho e fizemos um teste lá com o Jamelê. Por acaso o Jamelê era um excelente manchetista e eu vi provas disso daí. Ele é o criador de manchetes que ficaram históricas no jornalismo: “Cachorro que fez mal a moça” - era um cachorro-quente que a moça tinha comido; “Violada no Auditório” - realmente, quebrou a viola. Era, realmente, fora de série o Jamelê. Só que eu vi que não era bem por ali e fui para a Major Quedinho em seguida. No dia seguinte fui procurar lá no Grupo Estado e tínhamos o JT - Jornal da Tarde - começando e foi onde eu peguei. E sempre com essa preocupação de não deixar a luta, ou seja, continuar, fazer do jornalismo uma trincheira para acabar com todo aquele quadro de torturas, de violência, de invasões, estupros, que marcaram a minha vida e a vida da minha geração. E foi o que eu procurei fazer. Na época, o que eu tinha, a redação que eu encontrei foi a do Jornal Estado de São Paulo sendo obrigado a publicar poesias de Camões no lugar das matérias censuradas. E no Jornal da Tarde publicavam receitas de bolo, receitas culinárias no lugar das matérias censuradas. E eu fui ver que tipo de matéria era censurado, por que era censurada. Eu fui verificar o lado do censor. O que levava o Censor a arrancar uma matéria da página. E descobri que ele era sensível a palavras mágicas, como por exemplo, EMFA - Estado Maior das Forças Armadas - que era o Supremo Tribunal da Revolução de 1964. O EMFA era presidido pelo Humberto Castelo Branco, pelos grandes ideólogos da Revolução de 64. E procurei então como achar por ali e aquela coisa toda, sem esquecer toda aquela minha bagagem de sempre. Nessa época você tinha problemas ambientais já emergentes, só que ninguém dava a mínima bola. Aqui em São Paulo você tinha a Secretaria da Agricultura, um arremedo de órgão controlador de pinus e eucalipto, que era sucedâneo do IBDF, e o IBDF é que existia no âmbito nacional. E eu procurei esse lado, porque eu bati o olho e verifiquei que havia um almirante que estava no EMFA. Esse almirante era um dos principais co-responsáveis pela Revolução de 1964 e era um apaixonado pelo mar, pelas incursões da Antártida, pela Plataforma Costeira, pela nossa dominialidade efetiva sobre a Plataforma Costeira e sobre, enfim, a riqueza litorânea brasileira. Era o Almirante José Luís Belart. Aí, nas horas de folga, eu fui procurá-lo. Na primeira vez eu fui de trem; peguei o trem para o Rio de Janeiro e o trem fez parte da minha vida. Eu esqueci de dizer, porque o meu pai também foi ferroviário antes de se tornar contador, então minha mais tenra infância tem cheiro de locomotiva, barulho e aquelas coisas todas: "Bá, bá...”, vapor. E Fui de trem para o Rio de Janeiro e fui a pé até a Rua da Bica, onde eu encontrei o Almirante Belart. E o Almirante me recebeu muito bem; eu disse a ele que havia sido preso por uma questão de honestidade. Eu falei: "Olha, eu queria conversar com o senhor, mas eu quero esclarecer primeiro que eu sou jornalista. O jornal não sabe que eu estou aqui e tem um agravante - eu fui preso em São Paulo como comunista". E ele me perguntou: "Mas você não tem cara de comunista". Porque a primeira conversa que eu tive com ele foi breve, porém a respeito do que me levava até ele, e que era realmente a preocupação com a Plataforma Costeira, com a dominialidade nossa e com a Corrente das Malvinas. Ou seja, como é que a gente poderia fazer para salvar, guardar melhor nesse nosso patrimônio, já que essa corrente que provém lá no âmago da Antártida trás consigo uma revitalização das nossas águas costeiras. É ela que trás o plâncton, o fitoplâncton, as baleias, a jubarte e toda uma cadeia alimentar que enriquece o nosso mar e que aflora em Cabo Frio - daí o nome Frio. Ou seja, o afloramento da Corrente das Malvinas que vem em profundidade, ao aflorar ali, muda totalmente a temperatura. E o Almirante viu que eu estava bem entusiasmado com isso. Daí quando ele começou a engatar eu fui franco com ele, expliquei: “Olha, primeiro eu quero dizer para o senhor que eu estou assim, assim e assim". E ele falou: "Mas você não tem esse perfil. Uma pessoa que se preocupa com os assuntos com os quais o senhor se preocupa, não pode ser inimigo da pátria".
P/1 - Você tinha quantos anos?
R - E aí, realmente, estabeleceu-se uma ligação muito forte. Ele durou pouco, infelizmente, o velho Belart. Mas o Belart foi uma espécie de patriarca, e um dos discípulos dele é o Almirante Ibsen Gusmão Câmara, que está aqui conosco nessa reunião da SOS Mata Atlântica. Não apenas o Ibsen, ele deixou seguidores em várias linhas. E olha, é uma pessoa a quem eu dedicaria, e muito, todo esse processo de redemocratização do país. Porque para mim a palavrinha mágica EMFA funcionou muito bem. Ao voltar com a entrevista do Almirante José Luís Belart eu fiz o teste. Falei com o Ruy Mesquita o que eu havia feito e ele falou: "Se você acha que pode com eles, enfrente". E para surpresa dele e minha, a palavrinha mágica venceu. A matéria não foi censurada. Pelo contrário, ela tinha tudo para ser censurada, porque fazia críticas ao Establishment da época, a conservação litorânea, ao grau de vulnerabilidade que nós passávamos. Nós tínhamos tido a tragédia de Caraguatatuba pouco tempo antes. Ou seja, hoje já se perdeu na bruma do tempo que desceu a Serra do Mar, principalmente Caraguatatuba, soterrando tudo e matando milhares de pessoas. Essa foi a conversa que eu tive com ele; e ele extremamente sensível a esse tipo de coisa. Era uma crítica ao Governo, porém ela passou, porque tinha ingredientes mágicos. E aí realmente eu descobri o caminho das pedras, como se diz, e comecei a fazer aquilo que hoje eles chamam de jornalismo ambiental, mas que na época não era isso daí, que eu nunca quis jornalismo ambiental. Eu sempre fiz um jornalismo científico e adotei como principal fonte, como segundo domicílio meu aqui em São Paulo, um sobradinho da Rua Cardeal Arcoverde, onde ficava uma ONG. Um sobradinho de dois quartos onde ficava uma ONG chamada SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. E encampei aquela ONG, e vem daí a história atual. Ou seja, toda a mobilização da sociedade científica, das universidades, dos estudantes brasileiros, em torno da questão ambiental, do ponto de vista mais interdisciplinar possível. Foi graças à essa interdisciplinaridade que eu consegui não ser preso novamente quando fiz a denúncia de que aquela estância hidroclimática não era uma estância hidroclimática; nós estamos falando de Cubatão. Cubatão era uma estância hidroclimática inscrita no FUNESP, o Fundo Estadual de Estâncias no Estado de São Paulo, e eu apresentei ele em uma série de reportagens como sendo o Vale da Morte, com as provas documentais do que estava acontecendo em Cubatão. Essa matéria o New York Times e vários outros jornais republicaram na íntegra; ela causou um impacto internacional. Ela foi não um jornalismo ambiental, foi um jornalismo científico. A nossa vertente, a vertente do movimento ambientalista primeiro, eu diria assim, foi realmente se escudar na boa ciência para não termos que prestar contas aos censores, no meu caso, ou aos tribunais de inquisição ainda montados naquela época. O Regime Militar, eu descobri, ele via no cientista uma espécie de pajé que poderia propiciar dádivas como a bomba atômica. Então a SBPC foi lançada a condição de aglutinadora de todo o movimento de resistência contra a ditadura e de defesa da cidadania. Enfim, contra a tortura e a idiotice galopante que até hoje nos assola. A SBPC foi muito importante para todo o movimento. No âmbito dela, uma das primeiras providências que eu fiz foi junto com a Fabíola, que era assessora do INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - e Wilson Bueno, ao fundarmos a Associação Brasileira de Jornalismo Científico, inscrita no CNPq, no Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia.
P/1 - Que ano foi isso?
R - Olha, no cretáceo inferior.
P/1 - Só para a gente se localizar um pouco.
R - É como eu lhe disse, você me pegou de imprevisto; eu não tive como pegar essas datas. Eu não gosto de falar sem ter absoluta certeza dos números e tudo o mais.
P/1 - Assim, você tinha mais ou menos que idade?
R – No cretáceo inferior. Essa junção então da comunidade acadêmica foi o caminho com o objetivo de você demonstrar aquilo que o país estava sofrendo, por aquilo que ele estava passando, foi realmente o caminho das pedras. Eu entrei na questão ambiental realmente porque era uma maneira de driblar a censura, era disso que se tratava. E driblando a censura você aumentava a informação da sociedade, você criava mobilizações muito fortes e isso aconteceu várias vezes. Nos 24 anos que eu trabalhei no Grupo Estado, eu não fiz um jornalismo lato sensu; eu fiz um jornalismo de grandes causas públicas. Eram só grandes causas, realmente. Então as primeiras matérias sobre desmatamento na Amazônia, as primeiras matérias sobre o genocídio de índios com os Yanomamis sendo arrebentados, eram matérias que sobravam para eu ir. E eu tinha todo o espaço do mundo, mesmo porque esse espaço iria virar ou receita de bolo ou poema de Camões se não tivesse essas matérias, então escrevia muito. Para vocês terem ideia, as séries de reportagem minhas tinham três páginas diárias durante uma semana, dez dias. Eram séries imensas, com toda essa visão interdisciplinar; eu procurando me cercar de todo o rigor científico para não haver contestação. E jamais colocar em perigo a minha ONG querida, que era a SBPC, sempre fortalecê-la, sempre e mais. E foi quando eu conheci todos os vultos que participaram dessa luta como o professor Oscar Sala, o José Goldemberg, o meu querido amigo, hoje Secretário do Meio Ambiente, com quem eu trabalho, a Carolina Bori, que morreu há poucas semanas atrás, que era uma mulher de uma fragilidade, de uma meiguice alternada com uma fortaleza que eu vi poucas vezes em qualquer ser humano. Ela era a alma da SBPC e era quem autorizava aquilo que nós fazíamos. Ou seja, eu era um dos fundadores da Comissão de Problemas Ambientais da SBPC. Durante muito tempo a SBPC não se circunscrevia a reunião anual, porque tem uma reunião anual até hoje de uma semana de duração. Não, era o tempo todo. Essa Comissão de Problemas Ambientais se transformou em um fórum de debates dos problemas nacionais. Com a denúncia indo até o Congresso Nacional, até a Assembléia Legislativa, e nós íamos até esses Fóruns. O José Pereira de Queiroz, o Raul Ximenes Galvão, o Roque Monteleone, que hoje é consultor na ONU para guerras químicas, bacteriológicas e otras cositas más. Enfim, uma galeria de pesquisadores, professores muito grande. E foi nesse contexto todo, nessa batalha que na esteira da denúncia de Cubatão eu fui procurado por um piemontes chamado Piero Luoni. Ele veio na esteira das reportagens, das matérias sobre meio-ambiente, perguntando-se o que fazer, o que podíamos fazer de prático, de concreto, para evitar que os “Cubatões” continuassem aflorando, que as devastações continuassem arrebentando com o país, e que a poluição do ar continuasse provocando surtos de anencefalia, como ficou comprovado lá em Cubatão. Crianças sem cabeça nascendo em função da exposição de suas mães aos contaminantes ao redor, no meio-ambiente. E aí surgiu a OIKOS que foi a ONG decisiva para o restabelecimento desse estado de direito e de respeito aos interesses difusos da sociedade que hoje prevalecem entre nós. E foi aí que eu recebi um jovem adolescente trazido pela mãe e pelo pai, a Sara Feldman, que era uma das intelectuais, eu nem chamaria de advogada, porque ela transcendia à mera advocacia, era uma das intelectuais mais resolutas, mais firmes e decididas junto com o Jorge, que são os pais do Fábio Feldmann, o adolescente era o Fábio. E juntos então, Piero, Fábio e todo um grupo de pesquisadores embasando a SBPC, como o Crodowaldo Pavan, que foi um dos grandes interlocutores da Sociedade Civil Brasileira perante o Regime Militar como presidente da SBPC e como um homem das ciências biológicas. Foi quando a gente fundou a OIKOS, que foi uma entidade voltada, realmente, para o estado de direito. Em plena Ditadura ela entrou com uma Ação Civil Pública contra o Pólo Industrial de Cubatão, obrigando os industriais, os empresários, a deixar de envenenar a população, meio ambiente e tudo o mais. Essa ação civil pública foi inédita no hemisfério sul. Nunca tivemos uma iniciativa como esta e foi realmente decisiva, porque criou jurisprudência, restabeleceu realmente a verdade dos fatos. Contra as evidências científicas nunca houve qualquer possibilidade de blefe e eu sempre procurei trabalhar com evidências científicas, a OIKOS então foi o início de um movimento ambientalista que até então era restrito a um movimento naturalista, ainda com raízes do século XIX, que era representado entre nós pela FBCN - Fundação Brasileira para Conservação da Natureza - da qual fazia parte o Belart e o nosso querido Ibsen.
R - Bom, onde estávamos mesmo?
P/1 - Você estava falando da OIKOS, da criação da OIKOS.
R - Então eu estava lembrando que a OIKOS foi a primeira ONG criada desse tipo, mas não era a única que existia. Você tinha, naquela época, a APPN - Associação Paulista de Proteção à Natureza - que foi criada mais ou menos na mesma época, no rastro dessas matérias todas que vinham vindo. Demorou até certo tempo para o surgimento da OIKOS. E ela foi antecedida por uma briga, por uma outra ONG que foi de vida curta, porque ela cumpriu a sua função rapidamente. E aí é que eu responderia a sua pergunta sobre a recepção do público às matérias. O Governo Militar queria construir o aeroporto metropolitano, hoje, situado em Cumbica, em Guarulhos, aqui na reserva de Caucaia do Alto, hoje reserva de Caucaia do Alto. A reserva, além de ser um pedaço de Mata Atlântica intocada a poucos quilômetros da Praça da Sé, também é uma floresta protetora de manancial, já que o manancial de Caucaia do Alto é um dos poucos que abastecem São Paulo deste lado de cá. É pequeno comparável a Cantareira, no entanto é um manancial que tem capacidade para abastecer milhares de pessoas. E a notícia de que iria haver um aeroporto metropolitano nessa região motivou o surgimento de uma série de contestações. Já com a Comissão de Problemas Ambientais da SBPC, a gente decidiu que a briga podia ser encampada, nesse caso, por mais forças. Fiz matérias sobre o interior da reserva, a descrição da mata, dos atributos naturais que ali tinha, mostrando a riqueza que iria ser arrebentada. Isso gerou uma série de manifestações, cartas, manifestações indignadas até do MAF - do Movimento de Arregimentação Feminina - que era um dos oráculos da Ditadura. O MAF foi criado pelas mulheres em São Paulo, como um dos sustentáculos do Regime Militar. E elas entraram na briga, decididas e coisa desse tipo, contra aquela agressão ao patrimônio público, manancial que fatalmente iria fazer falta como já está confirmado hoje. Foi criada então a Comissão de Defesa ao Patrimônio da Comunidade, a CDPC. Essas “ONGs de ocasião”, elas foram muitas e em cada caso a gente sempre teve uma ONG, em cada grande empresa poluidora como a Aliperti, por exemplo, você tinha ONGs lá da região que eram criadas nessa esteira. Porque era a única maneira de você dar voz à Sociedade Civil, a tão propalada Sociedade Civil. As ONGs falam pela sociedade civil, principalmente em uma época como aquela de censura à imprensa, de ditadura, de restrição, em que os Centros Acadêmicos, a Assembléias estavam amordaçadas. Não que a gente tenha perdido alguma coisa, porque quando tirou a mordaça, a gente verificou que o despreparo era total. Os nossos políticos realmente eram lamentáveis e continuam sendo. Na verdade, de certa forma representam o que acontece com o grosso da coletividade, principalmente nos dias que correm esse sistema educacional baseado na aprovação progressiva e continuada, eles tendem a piorar. Bom, mas a OIKOS foi criada como uma organização pioneira na medida em que ela entrava com uma ação sim, contra interesses prevalecentes, no caso contra o principal complexo industrial do hemisfério sul que era Cubatão. O complexo petroquímico de Cubatão foi uma das jóias da Ditadura Vargas, e de todo o processo de industrialização brasileira. E quando a OIKOS desafia o poder, o principal capital dominante do país, isso tem uma repercussão muito grande. E foi fruto de uma coragem das pessoas também muito pesada para a época. Aí lembramos, ou seja, os advogados que nós tínhamos, que eram os advogados Feldman, a Sara e o Jorge foram muito importantes. Assim como a Raquel - a Raquel Feldmann também foi de uma... E deu, como toda ação, toda uma mão-de-obra muito grande de recursos, de provas, de testemunhas. Não eram apenas as reportagens que eram apresentadas e sim o desdobramento dessas reportagens. Ou seja, os laudos técnicos, as provas, as evidências científicas nas quais eu me estribava para fazer a denúncia do pólo. Então, nesse aspecto de ONG especializada, não havia nada que se assemelhasse. Nós tínhamos a FBCN, a Fundação Brasileira para Conservação da Natureza que era mais antiga, do final dos anos quarenta, mas ela era mais inspirada no Arbor Day, no Dia da Árvore americano, era mais uma visão naturalista, tipo século XIX. Um pouco de Rousseau, desse romantismo, eu diria, gauchista, do século XIX, no começo dos anos vinte, sobretudo na América do Norte. Ela era inspirada nesses movimentos que nos Estados Unidos começaram a surgir com a questão do Parque Nacional de Yellowstone, em 1822. Bom, a FBCN era dessa tradição de áreas naturais; ela fazia apegação em largo espectro, porém era uma visão voltada para a floresta sem o seu principal habitante, que não é o mono carvoeiro, no caso da Mata Atlântica. Embora ele seja o maior da fauna como um todo, pode-se dizer que não é o maior na fauna em geral, porque essa inclui o ser humano. Então uma ecologia voltada para o ser humano. Essa foi a grande inovação da OIKOS contra todas as ONGs existentes, que eram poucas, pouquíssimas. Além da FBCN, a gente tinha mais três ou quatro do país. E junto com a OIKOS foi criada uma série de outras ONGs também com a mesma combatividade como a ADFG. A ADFG - Ação Democrática Feminina Gaúcha - com Giselda Castro, a Magda Renner, foi o berço do engenheiro agrônomo José Lutzenberger, um excelente engenheiro agrônomo. Um homem aplicado, de uma cultura enciclopédica sobre defensivos agrícolas, como eram chamados os agrotóxicos, naquela época, e sobre o cultivo da messe da terra e que teve uma influência muito forte na medida em que ele tinha uma vertente alemã, se comunicava fluentemente em alemão e trazia todo um recorte europeu dessa luta ambiental. Fugindo desse modismo americano de enfocar apenas a natureza pela natureza, sem o ser humano incluído. A inclusão do ser humano como peça fundamental da natureza, ela se dá nessa época com a emergência da sociedade civil como principal beneficiária de toda luta. Por exemplo, pela preservação dos mananciais de São Paulo, que deu origem a LPM, a Lei de Proteção de Mananciais, e toda uma região que está sendo detonada hoje em dia. Isso sim deu origem a toda uma série de leis voltadas para a proteção da segurança ambiental das pessoas. Para evitar catástrofes como a queda de Caraguatatuba e tantas outras que já nos assolaram aqui por ocupação indevida do território ou por descontrole dos meios de produção. Essa foi a principal briga, porque os meios de produção eram totalmente avessos a qualquer ideia de controle ambiental. Eles não tinham ideia de que a comissão era sinônima de desperdício, como a gente, desde o início, fazia e reformulava. E essa vertente européia não foi muito importante para isso. A ecologia urbana, que hoje ainda não é praticada, emerge dos primeiros atos da OIKOS, voltados para a vida em cidade. A cidade não é sinônimo de cárcere, de sentença de condenados. Não, ela pode ser um lugar aprazível de se viver, ela pode ser um conglomerado cosmopolita como é o caso de São Paulo, extremamente fascinante desde que você saiba manter o meio ambiente sadio. Ou seja, sem um ar prenhe de contaminantes altamente agressivos ao sistema imunológico humano, sem a água contaminada disseminando pestes de toda a sorte, com rios dignos desse nome. Todo o movimento pela despoluição do Tietê e do Pinheiros, ele vem com essa vertente lançada então. O tipo de mobilização que se dava era muito forte para a época, porque chegamos a encher o Largo São Francisco várias vezes, as passeatas na [Avenida] Paulista eram acompanhadas por milhares de pessoas. Havia enfim, uma pressão muito grande da sociedade civil. Sempre usando o carro chefe da mídia como o grande deflagrador dos processos da sociedade civil, da cidadania. Ou seja, o jornal publicava as matérias e aos poucos a gente foi entrando no aprimoramento do arsenal de leis, envolvendo sobretudo o Ministério Público. O Ministério Público teve, tem e terá, com certeza o papel decisivo nesse resgate da cidadania plena a que temos direito. E o direito de vivermos em cidades saudáveis. A cidade saudável é um ecossistema tão fascinante quanto os mais selvagens biomas. Ela é um lugar esplêndido e ela tem as suas características próprias que devem ser respeitadas, barulho, ar puro, água isenta de contaminantes, paisagens, direito ao verde, direito à paisagem não corroída por monstrengos arquitetônicos. Enfim, tudo aquilo que promova a inserção do homem na sociedade, na sociedade emancipada, digna desse nome. E a OIKOS foi a ONG por excelência desse processo todo. Quando da assunção, da responsabilidade pelo Pólo Industrial, da tarefa de despoluir Cubatão, a OIKOS deu por finda a sua missão. A batalha já estava ganha. Quando o outro lado reconheceu que o que nós sempre advogávamos era o fim do desperdício, da incompetência empresarial e industrial, a batalha estava ganha. Era disso que se tratava. Mas até então houve uma briga muito séria e outra coisa, a luta não terminou não. Há setores recalcitrantes dos empresários que julgam mais fácil poluir e arrebentar com a saúde da população do que adotar providências técnicas mínimas, capazes de purificar os seus efluentes, as suas emissões atmosféricas, reduzir o seu nível de ruído e de outras intromissões eletromagnéticas e de toda monta na saúde pública. É disso que se trata. E a OIKOS foi a primeira ONG especializada nisso aí. E o jovem adolescente, ele vem para o quê? Ele veio porque nós tínhamos na SBPC um porta-voz que era corretor de imóveis aqui na região de Caucaia do Alto. Pode um contra-senso desses? Era uma contradição viva. E precisávamos de um porta-voz. Eu não podia, como jornalista, com as matérias que impulsionavam a luta, não podia assumir a condição de porta-voz. Eu tinha que manter a minha isenção profissional e aquela coisa toda. Participar como cidadão são outros quinhentos, mas eu tinha que preservar a minha identidade de jornalista. Não tínhamos. O Fábio foi então guindado a essa condição de porta-voz do movimento ambientalista. E era um desafio realmente que ele enfrentou com galhardia, apesar daqueles primeiros momentos de folhas tremendo na mão. E a torcida nossa, dos pais, para que desse tudo certo e ele fosse bem sucedido, o que realmente aconteceu. O Fábio Feldman personificou e se dedicou a essa luta com a máxima dedicação. E a APPN, as ONGs que existiam então, elas foram de certa forma se somando. Quando da SBPC, já havia ocorrido o ajuntamento de todas essas forças e a batalha contra o Pólo de Cubatão, contra a siderúrgica Aliperti, contra uma dúzia de indústrias sujas que tínhamos aqui, de estilo Spina, FAE, que tornavam bairros inteiros insalubres; tudo isso criou mais de uma centena de ONGs. Sem contar as grandes causas aqui pelo interior contra hidrelétricas, não apenas interioranas como também nacionais, ou seja, a luta contra a destruição de Sete Quedas, foi um dos momentos mais fortes desse movimento. Então nós tínhamos o Augusto Ruschi, que era um naturalista fora de série, poeta, que reunia a sensibilidade do artista com a erudição técnica e científica. O Augusto Ruschi, no Espírito Santo, com o seu amor pela natureza, com aquele estereótipo dos beija-flores, o Lutzenberger no sul com aquela militância decisiva, corajosa de arrostar os poderosos do capital. Tínhamos o Fábio aqui, junto com o movimento de senhoras, de donas-de-casa, de mães preocupadas com a questão, de ramos dissidentes do Movimento de Arregimentação Feminina, enfim, representativos de todo o tecido social. Por isso é que essa briga foi capilar. E a partir daí, a Prefeitura de São Paulo e as demais prefeituras tiveram que implementar Secretarias de Verde, Departamentos de Proteção ao Meio Ambiente, a paisagem, aos Parques Naturais, aos espaços verdes da cidade, às áreas de proteção de mananciais aos sítios remanescentes. Com a outra trincheira que a gente tinha aberta que era a Assembléia Legislativa e o Congresso Nacional, era o desdobramento. A gente acreditava muito no seguinte, não tínhamos uma legislação adequada. E realmente a legislação de proteção ao meio ambiente era ainda aquela do século XIX, quando da criação do Ministério da Agricultura e do que viria a ser o IBDF, o antigo serviço florestal. Não tínhamos uma legislação sobre agrotóxicos, não tínhamos uma legislação sobre padrões de controle para água, ar, solo, não tínhamos nada. Então a briga era, nesse primeiro momento, por termos leis desse tipo. Eu posso lhes dizer que nem vi o mais velho dos meus filhos crescer. Ele tem 31, 32 anos e eu acompanhei pouco a primeira infância dele porque eu estava realmente dia e noite, com o apoio da minha mulher e de todos os meus familiares, engajado nisso daí. O jornal era apenas uma parte do trabalho. A outra parte era você redigir projetos, minutas, projetos de lei, defesas, contestações e coisas desse tipo. E era dessa forma, ou seja, que eu continuava aquela luta que eu falei no início. Já que a FIESP foi a principal financiadora da OBAN, da Operação Bandeirantes, ao sanear a FIESP, o que a gente estava fazendo era limpar um pouco os rumos da sociedade civil brasileira. Infelizmente a vitória não foi completa. Até hoje perduram bastiões de ignorância, de tréguas, de prepotência, de atraso tecnólogo na FIESP. Mas tem uma boa notícia. Temos uma ONG lá criada pela própria presidência da FIESP, uma ONG não, um conselho, um colegiado, um colegiado superior de meio ambiente que reúne vozes da mais alta avalia, hoje em dia. Ou seja, representativas de vários setores científicos e sociais. Bom, mas a FIESP está permeada de bastiões de ignorância em que pesa a existência desse conselho superior, certamente cheio de boas intenções e de quem esperamos medidas profiláticas necessárias. A FIESP era representativa do principal capital latino-americano. O seu poderio era descomunal e continua ser. Quando confrontada com a existência de padrões internacionais para ar, água e solo, o industrial da FIESP a primeira coisa que tentou foi subornar o jornalista. Houve tentativas de suborno, de se corromper. No entanto, mal sabiam que estavam lidando com um comando de resistência não armada à ditadura. Era disso que se tratava na verdade. Porque essa luta pelo meio ambiente, eu repito, ela foi decisiva para redemocratização do país. As primeiras vezes ouvidas em praça pública e em plenário pós-revolução de 1964 e pós-carnificina do anos sessenta, de 68, 69 e setenta, das torturas, foi o movimento ambientalista. O primeiro a ir a praça pública reivindicar cidadania foi o movimento ambientalista através desses nomes dispersos e todos eles catalisados pela ONG mãe que era a SBPC.
P/1- Logo depois da OIKOS, de toda essa fase que o Fábio chama de heróica, acho que é uma fase muito heróica. Como é que você chega à SOS? Ana, você tem alguma coisa antes disso?
P/2 - Não, era exatamente essa.
P/1 - É? Então está bom.
R - A OIKOS era destinada a enquadrar o Pólo Industrial de Cubatão e a sua missão era extra e ela cumpriu a missão. Agora a gente precisava de uma ONG não processante, digamos assim, que fosse voltada para uma operacionalização maior da questão ambiental. Com a criação de técnicos de militância qualificada, enfim, para fazer aquilo que uma King ONG faria em qualquer outra parte do mundo. Ela é originária da época da ditadura, ou seja, quando você olha a logomarca dela, é um atentado contra a lei de segurança nacional, mas é tolerável por essa. Ou seja, quando eu desenhei uma bandeira com o verde faltando e com a ideia forte do “estão tirando o verde de nossa terra”. Quem está tirando, cara pálida? Isso era realmente muito forte até para a época em que a SOS surgiu. Ainda havia toda uma cultura autoritária no país, mas a ideia força da Fundação SOS era de lutar pelo bioma que é um bioma que, por sua vez, compreende quase que a totalidade do território brasileiro, daí a ideia do mapa do Brasil, do mapa do país engloba a ação dela, uma ação continental. O bioma não se circunscreve a esse domínio e sim aos domínios associados. Vem daí então a ideia de uma entidade especializada. E a SOS Mata Atlântica surgiu dessa forma. Primeiro o movimento em cima das agressões que estavam ocorrendo e coisas desse tipo, e em seguida uma justaposição do que tínhamos de melhor na época em termos de comunidade acadêmica, técnica e ambientalista. Foi isso a SOS. Essa era a ideia de uma fundação que levasse profissionalmente essa questão do meio ambiente para frente. Eu acho que essa fase da SOS foi bem mais tranquila nesses dezoito anos de existência. O país já se encaminhou para uma normalidade, e essa normalidade, por sua vez, política, ela agora chega em um momento que é esse que nós estamos vivendo em que é preciso dar um novo salto. Eu estou fora da SOS Mata Atlântica, aliás, estou aqui no seminário representando o professor Goldemberg, ele me pediu para representá-lo aqui e foi por isso que eu vim. Porque estou ausente de SOS, já que essa linha da SOS em relação ao meio ambiente me lembra aquelas King ONGs americanas que não enxergavam o homem na paisagem. Eu sempre enxergo o homem na paisagem, não há como não enxergá-lo, você tem que enxergá-lo. Não que você tenha que submeter o restante para usufruto e satisfação dele, mas é que ele é o mais predador de todos e ao mesmo tempo o mais vulnerável, o mais vitimado pela destruição do meio ambiente. Eu acho que a questão da ecologia humana, ela está muito mal amparada entre nós, apesar do salto que foi a despoluição de Cubatão e por tabela outras iniciativas semelhantes brotaram, nos demais distritos industriais nacionais, eu acho que essa questão morreu na fonte, ou seja, aqui em São Paulo nós temos a CETESB. A CETESB nasceu dessa brigas. Na época que eu comecei, a expressão meio ambiente não era comum. Você tinha saneamento básico, então você tinha o Fundo Estadual de Saneamento Básico, o FESB, e tinha um órgão no ABC onde eu fui pegar essa questão da qualidade urbana para Cubatão. Uma das minhas provas foi a CICPAA - Comissão Intermunicipal para o Controle da Poluição do Ar e das Águas - no ABC. A CICPAA era sediada em Santo André e ela tinha no seu quadro técnicos que avançavam um pouquinho, estava além do Saneamento Básico lato sensu. Eram técnicos que haviam estudado nos Estados Unidos e que traziam já incutida em si toda a tecnologia que deu origem a ABA, a Agência Ambiental Americana. Da junção então do FESB com a CICPAA, e com a SUSAN, Superintendência de Saneamento, que fazia às vezes de CICPAA aqui no Município da Capital. Da junção disso daí nasceu a CETESB. O que é CETESB? Agência de Controle da Poluição. Você tem hoje padrões internacionais para tudo, desde a confecção de uma ruela até os indicadores básicos sobre saúde humana, já que estas não sofrem oscilações devido às distâncias geográficas. O ser humano é o mesmo, esteja ele aqui, esteja ele no Japão, na China ou onde quer que seja. E a água, o ar, os elementos básicos que nos dão suporte no planeta tem que manter aquele padrão sob pena do incremento de morbidade de doenças, de mortalidades, de mortes e de toda a sorte de fatores. Aqui, devido a essa briga toda, a CETESB surgiu como resposta do governo, Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, como reposta do governo àquelas críticas que nós estávamos formulando. E aí ficou por aí mesmo. No âmbito Federal, não temos uma CETESB. Infelizmente prevaleceu essa visão “naturista”, dessa natureza das ONGs americanas a que eu já me referi, que enxergam a paisagem, enxergar o ser humano nela. E que pese os esforços de pessoas abnegadas. Eu, a pouco, esqueci de citar uma figura que está entre nós aqui, é muito querida, eu gosto muito dele, que é o Paulo Nogueira Neto. Paulo Nogueira Neto é realmente uma abnegação, é outro que respira e vive no meio-ambiente, eu não digo 24 horas por dia, mas 84 ou 85 anos, como ele tem, são integralmente dedicados à conservação do meio ambiente. É um excelente advogado, um empresário de mão cheia e ele dedicou-se à questão ambiental. E ele é uma pessoa de uma paciência que atravessam as décadas, eu posso dizer de cátedra. Realmente e vi todo o esforço do Professor Paulo Nogueira Neto desde o início dessa luta toda. A briga dele pela instalação do Conselho Nacional do Meio Ambiente, da Secretaria Especial do Meio ambiente, mas sempre um trabalho, nunca, jamais privilegiado por qualquer esforço mais específico por parte do governo. A SEMA sempre foi uma prima pobre da CETESB. Nunca teve qualquer expressão, nunca teve qualquer aporte, qualquer investimento na qualificação dos seus funcionários e sobretudo em uma legislação, na aplicação de uma legislação nacional. O IBAMA é o antigo IBDF com algumas melhoras, é claro. Mas ele não passa de uma estrutura ainda herdada do século XIX, de fomento à produção em massa de pinos de eucalipto, à custa da devastação da floresta original e primitiva do país. O IBAMA tem esse viés apenas e exclusivamente naturalista ao invés de naturista. Mas aquilo que a SEMA deveria ter sido, ou seja, um órgão de controle da poluição, não existe na esfera federal. Não existe órgão de controle da poluição em âmbito federal digno desse nome. Só temos a CETESB aqui. Mas temos padrões. A legislação era isso o que eu vinha dizendo logo no começo, pela qual nós mudamos aqui, ela implementou aqui padrões de primeiro mundo. Os padrões internacionais para a qualidade e rigidez do meio-ambiente vigente entre nós, são padrões observáveis tanto na Europa quanto na América do Norte e no Oriente. Mas isso devido ao esforço de São Paulo. No âmbito federal não temos essa estrutura de controle da poluição. E a meu ver, esse é o principal problema ambiental que nós atravessamos hoje. Com esse contingente demográfico explosivo que nós temos concentrados em cidades, com a exposição à toda a sorte de poluentes. E o único órgão capacitado, já que a FEMA do Rio de Janeiro não se pode dizer que tenha dado um grande salto, já que a COPAM e Minas também não podem saltar. Já que a Fundação Capixaba também deixa a desejar e Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul também deixam a desejar, não são estruturas de controle dignos desse nome efetivamente. E uma Agência Ambiental por completo, inspiradas no molde da agência ambiental americana ou da agência ambiental canadense, ou da agência ambiental européia ou da alemã, deve ser um órgão que cuide da segurança das pessoas, da segurança reprodutiva, da segurança imunológica, da segurança lato sensu na nossa vida nesse planeta. Não apenas preservando os biomas mais sagrados que nós temos, mas também aquilo que nós temos mais sagrado que é a chama de vida. Seja na população vulnerável de crianças e idosos portadores de disfunções cardiorrespiratórias, seja um cidadão comum. É disso que se trata a questão ambiental. Nós não podemos dissociar isso daí de Mata Atlântica. São Paulo é, por expressão, um Estado de Mata Atlântica. Nós vivemos no domínio da Mata Atlântica, daí a Fundação SOS Mata Atlântica ter uma responsabilidade de enxergar sim, o homem na paisagem na Mata Atlântica. E lutar, agora essa deve ser a briga, para que tenhamos uma CETESB, uma agência de controle ambiental nacional digna desse nome. E que seja reforçada essa estrutura nos estados onde ela existe seja como um começo, como um esboço, como um projeto. Ou seja, como aqui em São Paulo, em que nós tínhamos uma agência modelo que com o passar do tempo também, hoje, deixa a desejar, que é o caso da CETESB. Esses padrões, para vocês terem ideia da importância deles, eles são responsáveis pelo preço da nossa pauta de exportação. É algo que escapa à maior parte das pessoas. Mas a nossa pauta brasileira de exportação, não é depreciável nos mercados internacionais por falta de controle ambiental devido à existência dessa legislação com esses padrões internacionais entre nós, e a existência pelo menos da CETESB e das outras demais pelo menos no nome. Caso contrário, nas relações internacionais já teríamos sido vitimados por retaliações alfandegárias que são multas aplicadas pelos países importadores, quando o país que exporta, no caso o Brasil, é pego em flagrante com alguma irregularidade dessa área de saneamento ambiental. Isso é comum. Por que é que o Japão, por exemplo, se esmerou e a China agora também está correndo atrás e montando estruturas de controle da poluição. Para manter os seus preços de suas pautas de exportações aviltados e vilipendiados do comércio internacional. Essa, para mim, é uma briga que a SOS tem que encarar aqui, daqui para frente. E eu não tenho dúvida. E é essa briga para que haja maior respeito pela questão ambiental, que eu acho que a gente deve batalhar hoje. A questão foi muito bem sucedida, e coisa desse tipo, porém ela caiu em descrédito. Houve uma descredibilização da luta ambiental, a meu ver. Um pouco devido ao fato das ONGs brasileiras terem se tornado OSCIPs, ou seja, OSCIP é uma figura legal que lhe permite receber dinheiro, ser financiada no seu trabalho. Olha, eu acho que nós ainda não estávamos maduros para essa “oscipização” das ONGs. ONG, ela deve ser ainda, representativa de movimentos de cidadania. Não vivemos em uma economia florescente do neoliberalismo ainda. Ainda estamos aqui às voltas com o velho capitalismo de sempre. A OSCIP é uma instituição neo-liberal por excelência. Ela pressupõe um mercado florescente que tem o máximo de interesse em salvaguardar os interesses públicos e difusos da população. E não é isso o que se verifica. Hoje, o poder do capital continua sujando e emporcalhando quando pode. E o poder da especulação imobiliária em cima de áreas remanescentes da Mata Atlântica é avassalador. Como arrebentar com esse estado de força? Contra essa ditadura desses interesses? Através da demonstração de que, assim como os industriais só lucraram com o controle da poluição no passado, quando da ação de Cubatão, hoje eles só terão a ganhar com a extensão desse controle ambiental para todos os distritos industriais e todos os rincões desse país. Porque na Organização Mundial do Comércio, sucessora do antigo GATT, do antigo Acordo Geral de Tarifas Alfandegárias, é cada vez mais presente à questão do meio ambiente. E eles não terão dúvidas em desqualificar a nossa pauta de exportação por questões ambientais. Acho que a briga de SOS deve ser essa daí. O que o povo ganha com isso daí? Se você tem estruturas de controle da poluição dignas desse nome, você vai ter um meio ambiente, mais qualitativo, com mais qualidade. Esses órgãos vão ter que promover fontes mais seguras de emissão para as indústrias remanescentes e encontrar saídas alternativas. E aí estamos às voltas com os créditos de carbono e aquela coisa toda, mas estamos esquecendo do básico que é evitar que as pessoas tenham filhos com problemas por exposição excessiva a monóxido de carbono, a dióxido de enxofre, a material particulado e a outros poluentes básicos que estão em circulação o tempo todo entre nós. Sem contar o absurdo dos absurdos que é o combustível batizado. O combustível batizado entre nós, é batizado com solventes orgânicos, esses solventes orgânicos provocam verdadeiros destroços, eles arrebentam com o nosso sistema imunológico, gerando proles com propensão a câncer e outras doenças neurodegenerativas. Isso é um absurdo, você permitir que essa gasolina continue sendo batizada com solvente orgânico e todo mundo quieto. Você não tem mídia correndo atrás desse fenômeno, você não tem ONG correndo atrás desse processo, você não tem nada. Isso é que eu chamo de defender a Mata Atlântica com o homem nela inserido. Nada adianta a gente ter um cinturão verde envolvendo a grande São Paulo, se a condição de vida ali dentro é insalubre. Aí é que reside realmente a grande batalha que eu vejo. Daqui para frente, assim também como fim dessa teoria da cotas. Ou seja, eu como índio, teria direito a ter a posse de uma floresta pública remanescente. Eu poderia reivindicar isso daí. Todos os índios têm direito às áreas florestais onde ocorriam os seus domínios, mas não tem o direito de destroçá-las de vendê-las para os madeireiros, para os mineradores, como vem ocorrendo. Não tem o direito de abandoná-la também para especulação imobiliária que ocorre quando eles abandonam a terra em busca de suas peregrinações. Eu acho que como um descendente de índio eu posso dizer: a FUNAI precisa ser reestruturada urgentemente. E essa questão das cotas, seja para índio, seja para sem terra, seja para negro, ela tem que ser democratizada. Não é porque eu tenho a pele vermelha que eu sou índio, que eu sou branco, que eu sou negro que tenho direito a mais do que o grosso da coletividade. Não há nenhuma raça ungida por Deus que tem esse beneplácito de uma face do planeta da história da humanidade que possa se locupletar de bens públicos e se desfazer deles da forma como vêm se desfazendo. Essas reservas indígenas da Amazônia estão todas comidas. Seja comidas por madeireiros, seja por mineradores transnacionais e tudo mais. Como é que fica isso daí? Assim como também é inadmissível que o MST ocupe Unidades de Conservação, áreas remanescente de biomas raros como vêm fazendo, entraram no Superagui. Aqui no interior, na Região de Rio Claro, invadiram uma mata remanescente. Com que direito? Por que o MST não se engrossa aos sem ar, sem água e sem qualidade de vida adequada que somos nós, a grande maioria da população? Eu acho que é uma ditadura das minorias. E toda ditadura das minorias devem ser combatidas. Sejam essa minorias militares, sejam índios, sejam negros, ou seja o que for. Democracia é isso daí. Eles têm direito a indenizações, eles têm direito a uma qualidade de vida? Tem. Mas não mau barateando um patrimônio público, que é esse meio ambiente que eles ocuparam. Não vendendo para latifundiário ou fazendo vista grossa para ocupação desmedida de suas terras por madeireiros, mineradoras e outras formas de especulação criminosas. Essa é a grande briga que eu vejo daqui para frente. E também o resgate dessa ecologia por completo, por inteiro entre nós. Cubatão hoje não é mais o Vale da Morte? Não. É o Vale da Vida? Não. Talvez seja um purgatório. Mas até chegar realmente naquela condição primeira, primitiva que eles enfeitavam que era a distância hidro-climática, o nosso industrial vai ter que aprender que a luta pelo meio ambiente é o seu principal olhar, é o principal olhar nos seus lucros, é o principal avalista de pautas de exportação melhor remuneradas. Ele precisa aprender isso daí, ao invés de ficar perseguindo as ONGs, como perseguiu no passado, ou se mantendo indiferente à todo esse processo doloroso pelo qual nós vimos passando, desde que ocorreu o surgimento dessas OSCIPs. Nós não temos estrutura de mercado ainda, de primeiro mundo, de capital neo-liberalizado. Nós ainda somos uma economia capitalista de fase um tanto quanto remota. Até chegarmos a esse plus, vai demorar. É necessário então que as ONGs sejam ONGs, que as coisas sejam feitas às claras, para que não se perca a confiança na população. Credibilidade é confiança. É você saber que tem um representante que vai fazer por você o que você faria pelos seus filhos, pelos seus pais, pelos seus entes queridos. Essa é a briga do movimento ambientalista. Se paira sobre ela qualquer nódoa, qualquer mácula de proveito próprio, proveito ilícito ou lícito, perde-se a credibilidade. Você perde o aval do grosso da coletividade. Essa é a escolha que tem que ser feita pelo movimento de resgate à cidadania que nós temos. Bom, eu como disse, eu tenho a memória pior do que a do meu computador, mas o que eu me lembro de mais expressivo, desses anos todos é basicamente isso daí. Devo ter cometido vários erros de citação de pessoas, ou seja, eu deixei de citar pelo menos umas duzentas pessoas, com certeza. Mas elas pertencem a um panteão, que nunca vai ser esquecido. E nós teremos a oportunidade de escrever e de lembrar delas em outro momento.
P/1 - Randau, posso te fazer uma última pergunta? Você abraçou uma causa nesses anos todos. No seu depoimento você foi falando a respeito, mas eu queria que você desse uma sintetizada. Assim, qual a importância nessa causa ambiental na sua vida?
R - A vida inteira foi dedicada a essa questão. Não tenho outra lembrança senão a de muito trabalho, muita briga, muita luta. Perpassando tudo, ou seja, você brigar, por exemplo, contra as empresas de ônibus como eu briguei. As empresas de ônibus de São Paulo formavam um cartel, que mantinha os ônibus sujos, imundos e com uma emissão de dióxido de enxofre desesperadora. A cidade vivia quase que imersa em uma névoa negra, tantos eram os canos de escapamento desses ônibus sujos que aqui circulavam. E em busca desse negócio, de uma solução para eles, uma das minhas primeiras matérias aí na década de setenta foi sobre o órgão que deveria controlar as emissões de poluentes e não controlava, na época era o Detran. E o Detran, eu fui repórter de trânsito. Eu, para entender o que é que vem a ser ecologia urbana, eu tive que amassar asfalto, como se diz na gíria, em paralelepípedo. Naquela época era mais paralelepípedo do que asfalto. O Detran era dirigido por delegados de polícia que não tinham sensibilidade para essas questões básicas. As empresas de ônibus eram verdadeiras donas do pedaço. Elas dominavam a Câmara Municipal, dominavam secretarias, dominavam tudo. Então a briga pela municipalização da Engenharia de Tráfego em São Paulo foi uma briga também muito renhida. E eu fui ameaçado de morte, houve casos de perseguição à minha pessoa, ameaçaram os meus próximos, ameaçaram inclusive a minha família, tamanhos eram os interesses envolvidos nessa questão. No entanto, essa foi uma cruzada. Talvez a primeira cruzada, foi pela municipalização pela engenharia de tráfego entre nós. Essa é uma lembrança que eu tenho que dar, porque a questão ambiental era nas horas vagas, não se esqueçam. Essa obstinação minha pelo meio ambiente era uma questão pessoal e não uma pauta de jornal. O que eu vendi como pauta de jornal era essa questão. São Paulo era uma das cidades onde o trânsito mais matava no planeta, onde os pontos negros ceifavam vidas humanas. Não havia semáforo sincronizado, não havia planos de circulação, não havia nada. Haviam curiosos, como o Coronel Fontenelle, que em determinada época da Paulicéia foi contratado do Rio de Janeiro para vir aqui normalizar o trânsito. Um coronel do exército para mexer com trânsito. Esse era o ponto crítico. Morria-se muita gente realmente. Então a briga para tirar a engenharia de tráfego das mãos do Detran, a briga para tirar o controle dos empresários de ônibus das mãos do Detran. E trânsito teria isso daí para engenheiros de tráfego, transferir isso daí para o pessoal técnico, qualificado, para acabar com os morticínios pela cidade e, sobretudo, exigir dos empresários de ônibus bombas de purificação dos seus canos de escapamentos, essa foi uma das primeiras brigas bem vitoriosas que eu tive. Foi graças a isso daí que foi constituído o DSV - Departamento de Operação do Sistema Viário. Foi criado, depois dessa batalha, para controlar essas áreas estratégicas. Olha, a cidade respirou melhor, viveu melhor. Hoje se morre muito menos. Eu diria que antes você tinha algo de setenta a noventa% a mais de mortes do que você tem hoje. Era realmente muito pesado. Isso apenas em acidentes de trânsito. Não computado se aí, as mortes por enfisema pulmonar e outras doenças obstrutivas do aparelho respiratório. Não computando aí as lesões a gestantes. Ou seja, esses tipos de poluentes atravessam a placenta e eles vão realmente aos fetos. Isso tudo a cidade se viu livre. A qualidade de vida que se respira hoje em São Paulo é bem melhor. E isso por tabela passou para o restante das empresas brasileiras. A Legislação de Controle da Poluição por diesel é das mais perfeitas. Ela é uma cópia da legislação internacional. Então isso é um exemplo do que eu chamo de ecologia humana, de ecologia urbana. E nós não podemos desconhecer a existência dessa ecologia humana. Sobretudo porque a Mata Atlântica, na verdade, é o bioma mais densamente povoado no país. É isso aí.
P/1 - Então nós te agradecemos Randau, por você ter vindo.
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