Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Priscila Siqueira
Entrevistada por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 05/01/2005
Realização: Museu da Pessoa
Código do depoimento: SOS_HV018
Transcrito por Luciano Fernandes Urban
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Priscila, boa tarde. Para iniciar, eu queria que você dissesse seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Priscila Dulce Dalledone Siqueira. Eu nasci em Ponta Grossa, no estado do Paraná, em 08 de julho de 1939, o ano em que começou a Segunda Guerra Mundial (risos).
P/1 – Seus pais eram de Ponta Grossa?
R – Minha mãe era de Ponta Grossa, meu pai era de Curitiba, descendentes de italianos. Meu nome é Priscila Dulce Dalledone.
P/1 – E o que seu pai fazia?
R – Meu pai era empresário, tinha uma fábrica num local chamado Tamandaré, perto de Curitiba. Com um ano de idade eu fui para Curitiba, então eu me criei em Curitiba.
P/1 –Ponta Grossa então foi só o nascimento?
R – Foi o nascimento e passar as férias na casa dos avós.
P/1 – E como que era a Curitiba da sua infância?
R – A ideia que eu tenho é de uma cidade muito querida, muito pequena, onde todo mundo se conhecia, com uma grande influência alemã, italiana, polonesa e que a gente brincava na rua.
P/1 – Você é filha única?
R – Eu sou a décima (risos).
P/1 – Décima?
R – Décima... De bons italianos, eu sou a décima.
P/1 – Como era o convívio de tantos irmãos?
R – O meu irmão mais velho é 21 anos mais velho que eu, então eu já era muito mais ligada aos meus sobrinhos do que exatamente aos meus irmãos. Dos dez filhos que a minha mãe teve, ela conseguiu criar seis. Então meus irmãos eram muito mais velhos do que eu. Eu era muito ligada aos meus sobrinhos, eu fui tia com cinco anos de idade.
P/1 – E você morava onde em Curitiba?
R – Bem [no] centro, numa rua chamada André de Barros, uma casa grande de vinte e poucos cômodos, com um jardim...
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Depoimento de Priscila Siqueira
Entrevistada por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 05/01/2005
Realização: Museu da Pessoa
Código do depoimento: SOS_HV018
Transcrito por Luciano Fernandes Urban
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Priscila, boa tarde. Para iniciar, eu queria que você dissesse seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Priscila Dulce Dalledone Siqueira. Eu nasci em Ponta Grossa, no estado do Paraná, em 08 de julho de 1939, o ano em que começou a Segunda Guerra Mundial (risos).
P/1 – Seus pais eram de Ponta Grossa?
R – Minha mãe era de Ponta Grossa, meu pai era de Curitiba, descendentes de italianos. Meu nome é Priscila Dulce Dalledone.
P/1 – E o que seu pai fazia?
R – Meu pai era empresário, tinha uma fábrica num local chamado Tamandaré, perto de Curitiba. Com um ano de idade eu fui para Curitiba, então eu me criei em Curitiba.
P/1 –Ponta Grossa então foi só o nascimento?
R – Foi o nascimento e passar as férias na casa dos avós.
P/1 – E como que era a Curitiba da sua infância?
R – A ideia que eu tenho é de uma cidade muito querida, muito pequena, onde todo mundo se conhecia, com uma grande influência alemã, italiana, polonesa e que a gente brincava na rua.
P/1 – Você é filha única?
R – Eu sou a décima (risos).
P/1 – Décima?
R – Décima... De bons italianos, eu sou a décima.
P/1 – Como era o convívio de tantos irmãos?
R – O meu irmão mais velho é 21 anos mais velho que eu, então eu já era muito mais ligada aos meus sobrinhos do que exatamente aos meus irmãos. Dos dez filhos que a minha mãe teve, ela conseguiu criar seis. Então meus irmãos eram muito mais velhos do que eu. Eu era muito ligada aos meus sobrinhos, eu fui tia com cinco anos de idade.
P/1 – E você morava onde em Curitiba?
R – Bem [no] centro, numa rua chamada André de Barros, uma casa grande de vinte e poucos cômodos, com um jardim imenso, um quintal grande onde a família toda se reunia. Típica família italiana do interior do sul do Brasil, no começo do século passado, na primeira metade do século passado.
P/1 – E você estudou...
R – Eu estudei em Curitiba, num colégio alemão. E depois eu terminei a universidade na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro, que na época era a capital do país.
P/1 – E nesse colégio alemão... Por que escolheram um colégio alemão pra você estudar?
R – Porque minhas grandes amigas estudavam lá (risos) e eu fui estudar com elas, fui eu que pedi.
P/1 – Era muito rígido?
R – Não, não era muito rígido, era um colégio muito gostoso, eu gostava muito delas.
P/1 – E o que você costuma fazer em Curitiba pra se divertir com essas suas amigas, nessa sua infância, começo de adolescência?
R – Era infância mesmo. A gente com treze anos brincava de boneca, é uma diferença muito grande. E corria, jogava peteca, brincava de pique na árvore.
P/1 – Curitiba ainda tinha esse lado...
R – Tinha. Eu me lembro que a gente tinha um grupo grande de meninos e meninas e que a gente jogava futebol. Eu fiquei muito brava quando eu percebi que eles jogavam maneirado com as mulheres e resolvi que eles deviam jogar igual. Até que eu fui para o gol, levei uma bolada e nunca mais... Na realidade era assim, eu acho que a infância devia ser muito tranquila, muito gostosa.
P/1 – E Curitiba é uma cidade exemplo hoje?
R – É, ela...
P/1 – Naquela época ela já tinha essa...?
R – Não, não. Naquela época era uma cidade pequena. Talvez, quando eu saí de lá ela tinha quinhentos mil habitantes. É uma cidade pequena e comum. Foi depois do Jaime Lerner, que era uma pessoa nascida na cidade, morava na rua que a gente chamava Rua dos Judeus, porque ele é descendente de judeus, era nosso vizinho. Eu os conheço, a família dele, desde que eu era pequena, ele transformou Curitiba, foi início do que Curitiba é hoje. Curitiba é hoje uma cidade extremamente bem planejada, com certeza é a capital do interior do país mais bonita.
P/1 – Quando você estava no colégio, nesse período de adolescência, juventude, você já tinha consciência do que você queria para a sua vida profissional?
R – Foi muito interessante. Eu tinha quatorze anos quando eu li um livro chamado Pitigrilli fala de Pitigrilli, que é um jornalista italiano que trabalhava para o Mussolini - faz ideia. Mas eu só vim saber disso depois. Ele contava a história dele, como ele era jornalista, eu me lembro também que eu sempre gostei muito de ler. Outro dia eu cheguei para a minha mãe e falei: “Eu vou ser jornalista”. E na minha família todas as mulheres eram professoras. Você saia do ginásio e ia fazer escola Normal. Porque aquela coisa, já preparar a mulher pra ser mãe, pra cuidar de criança, eventualmente você pode trabalhar também. Eu falei: “Não vou, eu não quero ser professora, eu quero fazer Científico porque eu vou ser jornalista”. Com quatorze anos, a história da vida daquele cara me motivou a fazer a mesma coisa. Eu percebi que era muito curiosa, que eu gostava de saber das coisas, o porquê das coisas. Eu decidi e realmente acertei, por que eu sou jornalista até hoje.
P/1 – E aí você, quando se decidiu por fazer uma faculdade de jornalismo, você disse que fez no Rio de Janeiro?
R – Eu comecei no Paraná e depois fui para o Rio, terminei no terceiro e quarto ano no Rio de Janeiro.
P/1 – Por que essa mudança?
R – Porque eu trabalhava e fui convidada para trabalhar numa coisa que chamava “Ação Católica”, e que era da Juventude Universitária Católica e eu fazia parte dessa Juventude Universitária Católica, que depois da revolução a Igreja fechou essa linha da Igreja. E quando eu estava indo pro terceiro ano a equipe nacional me chamou para trabalhar no Rio de Janeiro. E eu fui trabalhar aqui e foi a grande sorte da minha vida, fui trabalhar com Dom Hélder Câmara. Então a minha cabeça de Curitiba, uma cidade pequena, bastante limitada. Porque claro, naquela época, em sessenta, eu abri meu mundo quando fui pro Rio, porque o Rio era a capital - ou tinha sido - mas ainda era muito efervescente a questão cultural do Rio de Janeiro. Foi onde eu tive uma possibilidade muito grande e percebi um Brasil diferente do que aquele bem de direita que a gente tinha na infância.
P/1 – E você foi sozinha para o Rio de Janeiro?
R – Fui, fui sozinha para o Rio de Janeiro.
P/1 – E a família liberou?
R – Liberou. Liberou porque talvez fosse de Igreja. Achava que eu estava segura - não sabiam de nada. Para mim foi realmente uma experiência muito bonita, muito grande. Porque sendo da equipe nacional, eu tive a oportunidade de viajar o Brasil todo. Aí você vê a diferença do Brasil, você vê que não é só classe média. Porque até hoje eu percebo isso, muitas vezes você faz algum programa de televisão com uma classe da sociedade, faz de conta que o Brasil é aquilo. Aquilo lá é uma minoria muito afortunada, num país onde tem uma distribuição de riqueza das mais perversas do mundo. Somos a décima potência econômica. Somos, mas e daí? A herança do último governo: 52 milhões de pessoas que vivem com um dólar ou menos de um dólar por dia e 70% dessas pessoas são mulheres com seus filhos de menos de quatorze anos. Quem está dizendo isso? O IBGE, não é uma jornalista que diz. Dado do IBGE, ligado diretamente à Presidência da República. Quer dizer, essa visão da classe média branca, católica, cristã. O mundo não é só aquilo. o Brasil é mais complexo do que a gente pode pensar. Faço ideia quantos não passaram, hoje talvez essa consciência já infiltrou em vários mais na sociedade do que na minha época.
P/2 – Quando você saiu de Curitiba e foi pro Rio trabalhar com Dom Hélder Câmara, como que foi essa mudança? Porque só depois daí você começou a viajar o Brasil todo. Como foi essa chegada no Rio, esse encontro com ele?
R – Nós éramos uma equipe grande que foi muito bem acolhida, afetivamente, porque os caras tomavam conta das pessoas que eles chamavam. Eu tinha vinte anos quando fui pra lá. Até hoje eu me pergunto como é que os meus pais deixaram, mas deixaram e eu fui. Depois meus pais queriam que eu voltasse, mas eu não voltei. E a gente tinha casa que morava e estudava, estudava na universidade que chamava Universidade do Brasil. Universidade do Brasil naquela época, hoje seria Universidade Federal do Rio de Janeiro, sei lá, ou seria Universidade de Brasília não sei, mas era uma universidade das melhores do Brasil e que me deu chance de ver. Imagine, pra mim, naquela época, quando fui pra lá me lembro também eu votaria no Jânio Quadros, porque o Lott era comunista. O mundo era preto e branco. Preto e branco, não tinha cinza no meio. Homem e mulher, preto e branco, dia e noite. De repente você percebe que a realidade que você está inserida é muito mais complexa. E eu me lembro que quando eu voltei pra casa de férias, eu assustei a minha família. Eu assustava porque eu dizia coisa, falava coisa, eu questionava algumas coisas que nunca ninguém tinha questionado, quem dirá a mais moça da família, uma mulher. Mas foi um enriquecimento pra mim, pra tudo, pra minha vida toda. Eu tenho certeza que se eu tivesse ficado lá eu creio que seria uma senhorinha. Eu já tenho seis netos, muito bem acomodada, mas provavelmente seria ou daquelas religiosas chatas de galocha ou precisando de psiquiatra duas vezes por semana (risos). A mulher eu acredito que é um ser muito domado e difícil domar quando você tem dentro de você uma potencialidade que não deixa domar, fica louca mesmo.
P/1 – E aí você permaneceu no Rio mesmo após ter concluído a faculdade?
R – Cara, eu era a geração sessenta. Eu terminei minha universidade e fui para uma experiência de comunidade no interior de São Paulo, uma cidade chamada Lucélia. Nós éramos vários caras que tínhamos formado em vários lugares do Brasil. A gente morava numa comunidade, cada um na sua casa, mas tudo que você ganhava você punha em comum, dividia em comum e íamos mudar o mundo.
P/1 – Era um movimento hippie?
R – Não era um movimento hippie; era anterior ao movimento hippie. Isso foi em 1962, 1963. Pra você ter uma ideia, nós começamos a trabalhar com sindicalismo rural, eu comecei a trabalhar como a maioria das meninas. Lucélia era na época o grande centro de prostituição da Alta Paulista, incentivado pela prefeitura porque dava ISS, muito bar, muita coisa. E a maioria das meninas que estavam na zona de prostituição eram ex-empregadas domésticas que saiam da catação do café, iam ser domésticas e de domésticas iam ser prostitutas. Então nós começamos a fazer um sindicato das empregadas domésticas, pra poder prepará-las profissionalmente. Evidentemente que a nossa equipe foi expulsa da cidade (risos).
P/1 – Não durou muito tempo...
R – Nós fomos expulsos da cidade. Meu marido que é dentista tinha um grupo todo da área médica, psicólogos. A Santa Casa foi fechada pra eles, e a gente teve daí duas propostas de trabalho: uma que era pra ir pra o Araguaia, onde estava o padre Jentel, que era amigo nosso e já estava lá antes de Casaldáliga. Ele nos chamou pra ir pra lá. E cada vez que o padre Jentel tinha malária, ele ia tratar com a gente, ou então em São Sebastião que era uma cidade do litoral paulista, perdida no mapa, que ninguém sabia onde ficava, mas que tinha um hospital construído com a comunidade e precisava um grupo para tocar aquele hospital. A época era o governo do Carvalho Pinto e o Celso Lamparelli, que era um arquiteto que trabalhava no grupo de ação Carvalho Pinto, nos chamou: “Vocês querem ir pra lá”? A gente fez uma votação. Como a gente sempre foi muito democrático, aí teve o lobby das mulheres que disseram assim: “Lá pelo menos nós temos um hospital pra ter filho”. E com o voto das mulheres ganhou São Sebastião. E eu com 22 anos, grávida da minha primeira filha, fomos pra São Sebastião, sem saber onde que era o lugar em que eu ia morar. Foi assim que eu cheguei lá. Eu, meu marido, o resto da turma.
P/2 – Isso era em que ano?
R – 62.
P/2 – Pelo que você está contando, as pessoas com quem você convivia, a comunidade que você permaneceu depois de ter ido pra São Sebastião... Foi assim na boca do Golpe. E como que vocês eram vistos? Vocês não foram perseguidos?
R – Fomos, porque nós todos éramos oriundos de Ação Católica. E Ação Católica foi à fundadora da AP e meu marido foi um dos fundadores da AP. A gente tinha aquela visão de melhorar a sociedade, de mudar a sociedade. Nossa visão era essa. E quando nós fomos para São Sebastião foi uma experiência única de saúde, porque você tinha um atendimento médico, o laboratório de análises clínicas e o hospital. Então o cara ia para o ambulatório, passava pelos exames e se precisasse ele já ia diretamente para ser internado. Essa foi uma experiência que muitos caras que formaram o curso de Higiene e pós-graduação da USP passaram por lá, como por exemplo, Otávio Mercadante. Caras que hoje são muito importantíssimos na medicina do país passaram por lá pra ver a experiência que a gente tinha, e eu ao lado disso. Eu que nunca fui da área, então nós trabalhávamos, por exemplo, montando peças de teatro. O Naum Alves de Souza veio conosco de Lucélia e ele morou dois anos no litoral conosco, depois ele veio para São Paulo. E a gente fazia peças de teatro, como por exemplo, Jeca Tatu, para através da peça de teatro ensinar o caiçara que ele devia usar uma fossa, que ele devia usar sapato. A gente fazia pedidos de sandália Havaiana - na época não era sandália Havaiana, era aquela Alpercata - cuidar da saúde, usar água, ferver a água através de teatro. Agora isso, quando a Revolução veio, e São Sebastião foi logo considerado área de segurança nacional, foi considerada extremamente subversivo. A gente sofreu muito nesse sentido, porque era inquirido, era perguntado: “Porque você está cuidando de pobre?” O grande crime: “Porque você faz medicina de graça pra pobre”? A gente foi trabalhando até quando deu e em 1968 o grupo começou a dispersar. Do grupo primeiro que foi pra lá, só o João e eu que ficamos - João Augusto é o nome do meu marido - fomos nós que ficamos lá. Mas eu não sei se dá para vocês entenderem, mas a década de sessenta teve uma geração que tinha aquela... Tinha acontecido Cuba, a gente tinha uma esperança para a América Latina. A gente não era nem de partido político. A gente achava realmente que nós poderíamos mudar o mundo. Eu vou ser franca com você: com outra forma, de outro jeito, eu acredito até hoje. Acho que o mundo, não vai ser milagre, nem magia que vai mudar, vai ser cada um de nós - a SOS Mata Atlântica, o Movimento Ambientalista, o Movimento pelos Direitos Humanos, você mesmo com você, o resgate da tua... Porque você só vai amar ao outro se você amar você. Sabendo que você é um ser humano que tem direitos e deveres, e que você vê no outro um cara igual a você. Não tem diferença entre eu, que estou aqui, e o mendigo que está aqui na rua. Porque se eu estivesse nas condições daquele mendigo, eu estava lá. Assim como não tem diferença entre eu e uma prostituta, porque ela está na rua por não teve condições de saúde, família, cultura, grana que eu tenho.
P/1 – E como era a relação da comunidade local em São Sebastião com esse grupo de médicos?
R – Muito boa, porque a gente tinha um trabalho social muito grande, muito grande. Pra você ter uma ideia, por exemplo, o meu marido tinha um consultório dentário muito simples, porque a gente era tudo durango, e ele montou esse consultório no hospital pra atender todo mundo. Eu te pergunto: hoje quem faz isso? Muito difícil. A gente tinha todo um trabalho de dar uma medicina de boa qualidade pra comunidade, porque todo mundo tem direito a uma educação. Mas no nosso caso, a gente trabalhava com a medicina, com a questão médica, um bom atendimento médico. E veja bem, isso na década de sessenta, em São Sebastião. São Sebastião era o maior hospital da região, a gente recebia gente da Ilha, de Caraguá, de Ubatuba e até de Paraty.
P/2 – Todo o litoral?
R – Do litoral. Porque era uma medicina gratuita e de boa qualidade. A equipe era uma equipe muito boa.
P/2 – E nessa época o Exército nem cogitou de fechar o hospital?
R – Não, porque no fundo no fundo estava precisando também. O hospital em si, se você fechasse... Jesus. Mas por exemplo, meu marido foi provedor da época, porque era uma Santa Casa de Misericórdia. As primeiras pessoas que se responsabilizaram frente ao governo naquela Santa Casa foram as irmãs Des Oiseaux, através da Marie Christine e tinha a ALA, que era a Ação Litoral Anchieta, em Ubatuba. Esse grupo que foi intermediário, porque os rapazes não eram funcionários do Estado, eram funcionários dessa entidade intermediária que no começo foram as irmãs Des Oiseaux. Depois se montou uma Congregação, uma não sei lá o que, uma associação em São Sebastião que até hoje é mantenedora da Santa Casa. Então era gente da comunidade. O meu marido foi provedor dessa associação e o delegado de polícia foi perguntar pra ele porque ele ia todo dia no hospital, o que ele ia fazer no hospital. Eu dava aula de inglês, porque eu falo inglês, então dava aula de inglês na casa de um amigo a noite. Várias pessoas estavam querendo estudar inglês, então nós formamos um grupo de estudo de inglês e eu dava duas vezes, três vezes por semana, das nove às onze e meia da noite, para estudar um pouco de inglês. Um dia nós estávamos estudando the book is on the table, aí na sala entra uns nove caras assim, bah! Aí a gente olhou assim, “Ué, veio estudar também? Por favor, sentem-se”. Aí ficou aquele constrangimento, a dona da casa serviu um cafezinho, tudo bem. Entraram porque denunciavam a gente por tudo. Agora o nosso trabalho era um trabalho de visão social, de justiça social.
P/2 – Mas na época... Até hoje ainda é. Mas vocês ficaram até quando fazendo esse trabalho?
R – A equipe, aos poucos, foi ficando difícil de se trabalhar lá, então foi dispersando. E também a história do Brasil foi mudando, as coisas foram ampliando. Eu me lembro que em 1974 eu comecei a trabalhar como correspondente na Folha e daí os caras mesmo da Folha disseram pra mim: “Cuidado com o censor...” - ele trabalhava na Agência Folha. Então você mandava a matéria diretamente para o censor. “Cuidado com o que você está fazendo” E aí foi uma coisa interessantíssima. Em 1979 eu entro no Estadão e tinha um grupo, que eu era a ala velha do meio ambiente, a ala precursora, por exemplo, Randau Marques é um nome maravilhoso, porque começou com o Jornal da Tarde. E o que a gente começou a ver? Convivendo naquela região do litoral norte eu pude observar – o bom de ser velha é isso, você não precisa estudar, você observou – todo fenômeno que ocorreu naquele litoral. Logo após o golpe de 64, o primeiro discurso que Castelo Branco faz é que ele abriu o Brasil para as multinacionais que estavam com medo de investir, na época, na Europa, porque tinham aquelas guerrilhas urbanas. Então ele abre o Brasil, o que você percebe, que as multinacionais com a testa de ferro de Carlos Lacerda, que Carlos Lacerda era o governador da então Guanabara, e 90% dos títulos de terra de Ubatuba e Rio de Janeiro estavam no nome de Carlos Lacerda. Porque há uma diferença entre título e posse; juridicamente a posse é mais forte, mesmo porque título pode ser forjado, como muitos foram forjados. Mas com aquele litoral abandonado ninguém deu bola. Na hora que abre a Rio-Santos - nós estamos pagando a dívida externa até hoje: a Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói e a Rio-Santos, que não ficou pronta até hoje - mas quando abre a Rio-Santos, aquela região tem uma grande valorização e aí então começam a aparecer os títulos daquela região e a expulsão dos caiçaras. E pra gente poder denunciar essa expulsão dos caiçaras, o que a gente começou a fazer, trabalhar com o Mico-leão-dourado. O Mico-leão-dourado que mora na Mata Atlântica, e na Mata Atlântica por coincidência também tem caiçara. Aí você dava uma volta assim e chegava no caiçara pra poder passar na censura, pra poder ser aceito. Mas o que aconteceu? Aconteceu também outro fenômeno com a gente, pelo menos o meu testemunho que eu dou. Na medida em que eu comecei a me aprofundar com a questão ambiental, que até então muita gente achava que era frescura, eu fui percebendo que a questão ambiental também era fundamental; que ser humano e natureza, natureza e ser humano, nós somos tudo uma coisa só, nós temos que nos interagir. Então se ao mesmo tempo eu consegui trabalhar com o caiçara através do ambiental, o ambiental me cativou, me converteu. Aí eu comecei a trabalhar muito nessa questão, mesmo porque o ambiental é a sobrevivência não só do caiçara, mas da minha, da tua, de todo mundo. Então foi um processo muito rico e muito bonito. Eu tenho um livro que eu publiquei em 1984, que chama Genocídio dos Caiçaras, é uma série de reportagens que eu fiz mostrando que a ocupação do litoral norte paulista e do sul fluminense foi uma ocupação -palavra forte genocídio - que matou caiçara, que expulsou caiçara, tirou caiçara de frente da praia porque são culturas diferenciadas. O caiçara é a cultura da palavra, ele não sabia nem escrever. E chega um cara com outros parâmetros, com outras formas de agir, e ele é engolido. Dou um exemplo, em Toque-Toque Pequeno tinha um caiçara que eu conhecia muito, conhecia muito aquela turma toda, ele estava reclamando porque ele tinha vendido a frente da praia para um turista e o turista não tinha deixado o caminho pra ele passar com o barco. Eu falei: “Mas meu senhor, o senhor...” “Ele disse que deixava um corredor pra passar com o barco”. “Mas e daí? O senhor não pegou por escrito isso”? Ele falou pra mim: “Dona, a palavra do homem é o fio de barba dele.” Só que não é o fio de barba do cara da cidade e nem do turista. Isso a gente viu em muitos e muitos lugares. São conceitos e culturas diferentes, uma mais forte que a outra, acabando com a vida da outra.
P/1 – Então esse contato com a questão ambiental, no seu caso, se deu em meados da década de setenta?
R – Mais no final de setenta, principalmente em oitenta. Em 1976 eu fui uma das primeiras jornalistas, ainda na Agência Estado, na Agência Folha, que cobriu a questão de Trindade, em Paraty. Uma famosa questão - foi à primeira briga grande com uma multinacional – e que teve o apoio jurídico do Sobral Pinto do Carvalho, do escritório do Sobral Pinto. Foi nessa época que começam a surgir os movimentos ambientalistas, a Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, porque através do movimento ambientalista você tinha como salvar e lutar pelo cara que estava no litoral. Veja bem, aquele litoral entre o Rio, o litoral brasileiro nessa região, tem cinco patrimônios ambientais na Constituição de 1988; nós só não temos o Pantanal e a Amazônia – o resto está lá: Serra do Mar, Zona Costeira e Mata Atlântica. E é um patrimônio ambiental do povo brasileiro, não é de quem mora lá, é de quem está aqui em São Paulo que está em qualquer lugar, Mato Grosso. Então é um patrimônio ambiental da humanidade, eu já digo; não é nem fronteira de Brasil - é da humanidade, que tem que ser preservado. Então a nossa briga foi uma briga com o coração muito aberto, entrando com tudo. Eu achei muito importante o papel que a Agência Estado teve nessa época, porque ela segurou as pontas com a gente. Não exagerando muito, ela segurou muito as pontas da gente. Eu creio que a gente fez realmente. Por exemplo, eu digo tranquilamente, sem falsa modéstia, se não fosse o nosso trabalho, hoje não teria ainda os guarani naquela região. E você tem índios guarani em São Sebastião, no litoral sul de São Paulo, você tem em Ubatuba, você tem em Angra dos Reis. Foi essa briga de defesa das comunidades nativas, defesa do meio ambiente, que isso aconteceu. Eu dou um outro exemplo muito importante no contexto de ditadura: por exemplo, brigar contra os derramamentos de óleo da Petrobras. Um Capitão dos Portos em São Sebastião disse assim pra mim: “Quem se queima na cozinha é a cozinheira; quem derrama óleo no mar é a Petrobras”. Como quem diz: “Você está reclamando do quê”? E com o apoio da Agência Estado a gente foi denunciando, denunciando, denunciando. E veja bem, meu marido era dentista da Petrobras – ele foi muito punido por minha causa, sei disso, mas fazer o quê? Mas a gente conseguiu, inclusive através do Fábio Feldmann, que era Deputado Federal na época, trazer uma audiência pública da Câmara dos Deputados para a Câmara Municipal de São Sebastião, onde a presidência da Petrobras foi obrigada a comparecer – porque ela foi convocada pela Câmara Federal – e onde a gente percebeu quem derramava petróleo no canal de São Sebastião e que poluía todo aquele litoral; ia até Ubatuba - teve um derramamento que chegou a ir até o Rio de Janeiro – mas o defeito não estava no Terminal São Sebastião, estavam nos navios fretados pela FRONAPE, que eram horríveis. E que então, a partir dessa denúncia, diminuíram bastante os derramamentos. Acho que esse é o papel que as ONGs tem que ter. Claro, com o apoio da imprensa, óbvio. E eu acho que a gente conseguiu. Nós conseguimos em São Sebastião e no litoral muitos e muitos. Por exemplo, não sei se você lembra, mas teve a tentativa de abrir uma fábrica de armamentos em Ubatuba, e a gente conseguiu com “Pela vida e pela Paz, por defesa de Ubatuba”, não saiu, não aconteceu. A Rodovia do Sol, que na época do Quércia ia cortar o litoral, isso estava tudo pronto. Ia cortar a única área do litoral norte que ainda é preservada, ia cortar a Serra do Mar, a gente bloqueou. Os tanques-cavernas em São Sebastião, que eram primeiramente para petróleo, depois mudou para gás, e que agora novamente eles estão querendo trazer. Foi a comunidade, a sociedade civil que disse: “Não, não queremos.” Porque tem audiência pública. “Não queremos, não aceitamos”. E a prefeitura foi obrigada a dizer que também não queria. Então eu acredito nisso, nessas pequenas coisas que você pode trabalhar. E aí a SOS teve um papel importantíssimo. Na Rodovia do Sol, por exemplo, ela deu um apoio muito grande com um técnico chamado Eduardo Brondizio, que nos ajudou muito dando apoio pra isso. Foi um dos caras que foi contra a Rodovia. Unindo força, a gente tem que unir forças. Eu acho que esse foi um movimento muito grande, muito bonito nessa época. E que precisava ressurgir com mais força agora.
P/1 – E nesse início do movimento ambientalista, antes da SOS, quais eram as principais ONGs, os principais nomes do movimento nesse início?
R – Tinha no litoral sul de São Paulo – não consigo lembrar o nome dele – que foi quando as zonas nucleares lá do litoral sul... Mas tinha a Oikos, que o Fábio Feldmann fazia parte, já tinha no Rio de Janeiro também. Mas a SOS apareceu com uma força muito grande de aglutinação, porque ali você tinha representantes científicos - estudiosos, professores universitários, doutores, tinha militantes e tinha jornalistas. Então você juntava as forças para fazer a denúncia, para fazer discussão, para poder mostrar o que estava acontecendo. A SOS, principalmente o começo da SOS, foi muito dessa linha de briga de foice mesmo, contra todos os projetos. Porque até então, desenvolvimento – me lembro que eu era menina e diziam isso – era chaminé. Chaminé com poluição significava desenvolvimento. Claro, igual a emprego. Até muitas vezes o operário, na Rodovia do Sol, ficava contra a gente. Teve cara que disse assim pra mim: “A senhora é mais a favor do caranguejo do que de mim”? Eu digo: “Não, cara. Não sou a favor do caranguejo contra você. É que sem caranguejo não vai ter você nem eu”. Quer dizer, a briga é muito mais ampla. Tem que ter emprego? Tem que ter emprego. Claro que tem que ter emprego. Mas por exemplo, no litoral norte de São Paulo, o macrozoneamento já mostrou: São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba, eles só têm condição para aguentar, no máximo, quatro milhões e quinhentos mil, digamos cinco milhões de pessoas. Nesse final de ano agora, quantas milhões de pessoas já foram pra lá? No mínimo uns três milhões e meio. O Kenitiro Suguio, que é um professor da USP, diz o seguinte: “O litoral de São Paulo é bacia de sedimentação, tem mais ou menos de seis a sete mil anos de idade”. E acho lindo que ele falou assim: “É como se fosse um bebê vagindo no berçário da vida”. Você sabe o que é uma Terra que tem sete mil anos? Jesus Cristo nasceu há dois mil anos atrás. É nada. É por isso que em Santos está cheio de edifício caindo pra lá, caindo pra cá. Porque ele fala que pra ser concreto, você tinha que por uma fundação de um edifício destes em cinquenta metros. Como é inviável economicamente, você põe a fundação do edifício em cima da cobertura do bolo. E daí cai um pra cá, cai outro pra lá. Tem a Igreja do Embaré, que é um barato, porque ela está assim, no meio, e tem um de cada lado. Porque não tem sedimentação, é terra nova demais. Então o que a gente quer, é a defesa daquele litoral, que é um dos mais bonitos do Brasil, já digo. Então em vez de você ter segunda residência, que só dá problema pra prefeitura, porque você tem que cuidar do lixo, tem que cuidar da saúde pública, tem que cuidar do caseiro que vai pra lá. Claro, você tem a ISS, uma ocupação feita em cima de hotéis, pousadas, campings, que é aberto pra todo mundo, mas temporariamente. Conforme tua opção e tua condição econômica – você vai pra cinco estrelas ou pra um camping – todo mundo pode usar, mas temporariamente. Não a segunda residência. Ubatuba até um tempo atrás era um barato, tinha quatro casas por unidade familiar. Você dizia: “Puxa, nem a Suécia tem isso!” No entanto, Ubatuba está cheia de favela, tem unidade habitacional fechada. Então as cidades têm que ter uma capacidade durante o ano, que fica ociosa, e quando chega à temporada ela é insuficiente. São problemas que você cria pelo tipo de desenvolvimento que você propicia. Isso era nossa briga constante – tem que mudar o rumo desse desenvolvimento. Não queremos nenhuma revolução socialista, não. A gente quer só que o desenvolvimento feito lá seja em níveis mais racionais.
P/2 – Priscila, você cobrindo essa parte – sendo você uma das primeiras jornalistas que estava cobrindo essa parte de ambiental – a primeira ONG que você entrou, começou a participar, foi a SOS ou você tinha passado por outras?
R – Eu sou uma das fundadoras também do Movimento de Preservação de São Sebastião – MOPRES - e também da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro que eu também já fui presidente. Mas são entidades mais locais. O MOPRES brigou muito com a Petrobras com a questão do derramamento de óleo, com as denúncias do que estava acontecendo lá, a defesa de mangues, de manguezais. A Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro nasce em Trindade, mas também defendeu muitas questões das ilhas dessa região. Mas a SOS teve uma abrangência maior, porque a Mata Atlântica ultrapassa o estado de São Paulo, então ela tem uma abrangência até hoje muito maior.
P/2 – E você pega a SOS desde o início?
R – Eu sou uma das fundadoras da SOS Mata Atlântica.
P/2 – E como que foi essa fundação, essas pessoas que se reuniram?
R – Era aquilo que eu te falei, era um movimento que propiciava isso, a gente percebia que uma das coisas que até hoje mobiliza jovem é o meio ambiente. Eu não estive num partido. É o ambiente, a questão da vida, a questão da qualidade de vida não só pra você como para os outros. Foi aí que vários conceitos foram surgindo, como por exemplo, o desenvolvimento sustentável. Isso foi fruto de uma maturidade do movimento ambientalista. Porque começa assim: “Temos que preservar. Então o homem tem que sair.” “Ué... e o homem vai morar onde?” Porque o homem em si é predador. Na hora que você vive e você mora, você é predador. Você come, você mora, você tem uma série de necessidades. Então a visão foi ampliando, por exemplo, lá no litoral no Parque Estadual da Serra do Mar, os caiçaras que estão lá continuam morando lá. Não porque o caiçara como o índio está na mata, mas ele ajuda a preservar. As índios guarani lá em São Sebastião, muito interessante, porque eles perceberam que o palmito, o açaí, o palmito deles lá, eles tem um outro nome que eu não estou lembrada agora, estava acabando. Então eles procuraram a prefeitura dizendo que queriam ajuda pra plantar o pupunha. O pupunha é um tipo de palmito que vem da América Central que ele dá em várias camadas, você pode cortar que ele não acaba. Então é uma alternativa econômica e ambiental, porque você corta e não acaba. O outro palmito você corta, acabou com a planta em si. Eu fiquei toda encantada: “Nossa, que coisa mais linda! Ah, questão ambiental, que bom”. Aí um índio muito prático me falou assim: “Sim, porque corta o palmito, não tem a sementinha do açaí, não tem sementinha do açaí, não tem passarinho, não tem passarinho, não tem caça, não tem caça, passamos fome.” Quer dizer, ele falou o ciclo ecológico completo, prático, entende, sem nenhuma... De gente que é intelectual que tem mania de elaborar! É um ciclo assim: “se eu não cuidar daqui não vai ter lá pra mim. Até porque eu gosto de mim, tenho que cuidar daqui”. Então, hoje eles estão produzindo pupunha que é um palmito que você pode cortar e ele brota, dá ramificação da própria planta.
P/1 – E a reunião de fundação foi na Ilha do Cardoso, né?
R – É.
P/1 – Como que foi esse dia? Você lembra? Quem estava?
R – A velha guarda de sempre, aquela turma toda que até hoje está. Alguns já saíram do Conselho Administrativo, mas é o pessoal que está lá até hoje brigando. É muito interessante, é uma coisa que emociona a gente. Porque é como eu digo pra você, a gente tem que manter uma esperança. O Fórum Social de Porto Alegre, fala que um novo mundo é possível. Vocês já foram nesse Fórum? É uma coisa que emociona muito a gente, porque você vê que é possível você reunir num espaço cem mil pessoas, como foi o do ano retrasado, e você não vê um papel no chão. As pessoas dizem: “Com licença”, “Muito obrigada.” Tem uma fila, o cara fica na fila e se vê uma pessoa mancando dá a sua vez para ela. E tem lá asiático, africano, latino americano, norte americano, branco, preto, loiro, japonês, qualquer jeito. E você entra no clima que realmente você pode construir um mundo melhor. Pode, é querer. E eu acho que essas alternativas do SOS Mata Atlântica, de pequenos grupos como é o MOPRES, ou mesmo a Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, são exemplos de que você pode fazer uma coisa melhor, que você não olha só pro teu umbigo. Porque o que a sociedade atual faz? Te isola na televisão e no computador. O grande problema teu, é teu só. Você se defende da Aids fazendo sexo solitário, vendo uma garota na tela de computação. O computador não é isso? O mundo ficou assim: cada um na sua. E não tem isso aqui. O nosso futuro comum, que é de 92, do Brundtland, mostra que o mundo é uma ‘Arca de Noé’, cara. Vai todo mundo ou não vai ninguém. E a Terra está mostrando que ela está cansadinha, que ela está doente. Todo esse exemplo de maremoto que teve aí mostra que está tendo uma acomodação. Será que aquelas experiências de bombas atômicas no fundo do mar não têm nenhuma repercussão no que aconteceu lá? Eu não sei, mas será que não? Então essa é a questão que nós temos. O mundo é muito pequeno. A Terra é um satélite de uma estrela de quinta grandeza, numa galáxia que tem estrela de vigésima primeira grandeza. E essa galáxia é uma porcaria, é uma galáxia periférica de outras milhares de galáxias. Mas tudo bem, a Terra é a única que nós temos (riso). Pode ser, claro, eu acredito que tenha vida em muitos outros lugares, mas nós só temos essa aí. É Oikos, ecologia, nossa casa, é o nosso lar, é aqui onde a gente vive e a gente tem que tomar conta bem. E você não toma conta bem da casa se você não toma conta bem do outro. Uma vez um biólogo ainda me disse isso: “Você acha...?” Porque eu estava tão desanimada e nossa que insensibilidade com a natureza, porque muitos donos de hotéis da região aqui têm. Ele me disse assim: “Mas se é uma insensibilidade com a criança que está passando fome na Praça da Sé, não cuida da criança não vai cuidar da árvore”. Não é verdade? Então realmente a gente tem que equilibrar essa coisa que o Marx falava no século XIX, que tudo é mercadoria; no capitalismo tudo é mercadoria. Hoje eu trabalho numa ONG, Serviço à Mulher Marginalizada, que enfrenta tráfico de seres humanos, aí a mercadoria, o ser humano. É no limite da mercadoria. Você pode escolher assim: uma Skol, uma Brahma, uma Schincariol. Ou você pode escolher uma adolescente negra, japonesa, loirinha. “Qual que você quer”? Compra no supermercado, às vezes até pela internet. Então como você faz a pessoa ser coisa. Então enquanto isso for assim, não tem jeito. A Isabelle Mistral dizia que ninguém seria feliz na Suécia se morresse uma criança de fome numa rua da América Latina. Eu concordo com ela, não tem como.
P/1 – E Priscila, então a SOS foi fundada em 1986 e você já desde esse começo. Como que era a Fundação nesses primeiros anos, como era a atuação dela?
R – De muita briga, como eu falei pra você. O movimento ambientalista passou de muita denúncia - no começo era muita denúncia mesmo, a gente estava saindo de um período de regime de exceção, de muita denúncia - e começou a perceber que precisava estudar, que precisava aprofundar, precisava inclusive dar algumas alternativas. Foi daí que muita gente saiu pra estudar, fazer doutorado em Antropologia, em Ecologia - o curso de Ecologia na USP começa. Então pra formar, não só ficar na denúncia, mas ficar também em propostas. Hoje você tem que fazer proposta. Você não pode ser contra o desenvolvimento, só que esse desenvolvimento tem que ser sustentável, ou sustentado, como dizem outros. Quer dizer, um desenvolvimento que ele se auto sustente, que ele não seja só pra agora, pra esse instante que nós estamos vivendo. Eu creio que essa é a grande diferença do início pra agora, não só da SOS, mas dos movimentos ambientalistas. A gente era muito mais fogo, botava fogo mesmo na coisa. E depois foi percebendo que precisava também se aprofundar, ter uma compreensão maior do problema, ser mais profissional e mostrar o que precisa ser feito. Eu acho que hoje, por exemplo, o Greenpeace tem um perfil de denúncia, ele continua com isso, isso precisa ter. Mas a maioria dos movimentos percebeu o seguinte: a gente precisa também ajudar a construir coisas a esse desenvolvimento que a gente pretende. Eu creio que essa é a grande diferenciação entre o início não só da SOS, mas daquela época e de agora. Hoje você tem cursos de pós-graduação em meio ambiente que atingem várias áreas. Direito Ambiental. Muitos caras de Arquitetura, Engenharia, Medicina vai fazer uma especialização, mesmo que seja lato sensu, em meio ambiente. É uma consciência que foi, digamos, agregada à consciência total da sociedade. Isso foi um ganho dessa geração, porque eu digo pra você, até a década de setenta não tinha essa consciência. E muita gente dizia assim: “Meio ambiente é coisa de madame e viado”. Homossexual e madame que mexem com isso. Aí foi crescendo e hoje quem é o cara candidato a síndico que possa fazer um discurso que queira ganhar que não fale de meio ambiente? Pode ser que ele só fale, mas que ele tem que falar, ele tem que falar. Em última análise, esse movimento interagiu na sociedade e a sociedade agregou a uma maneira de pensar. Meus netos nunca jogam um papelzinho no chão. E foi um gozo, porque eu tenho um amigo nosso que é solteirão e chato, militar aposentado, deu uma bala pro meu neto de dois anos e chupou a bala e jogou no chão, ele virou assim: “O fulano, você é porco, é?” Ele ficou com aquela cara: “Isso é coisa de se falar?” O meu neto disse pra ele: “Mas você está jogando papel no chão, só porco faz isso”. Aí eu digo: “Não, porco não faz isso, não.” (riso) Então, é uma consciência que a nova geração está tendo. Foi um passo à frente. Eu gostaria muito que essa questão de gênero - porque gênero é diferente de sexo; o sexo é uma determinante biológica. Se quando o seu pai fez amor com a sua mãe, foi um espermatozóide y que penetrou no óvulo, nasceu um homem; se foi um espermatozóide x, nasceu uma mulher. Isso é uma determinante, nós somos assim e acabou. Agora, gênero é como a sociedade trabalha o ser varão e o ser feminino. Então homem não chora, mulher tem que ser trimiliquenta, senão não é feminina. Ou homens têm alguns direitos, mulheres não têm; uma dupla moral. Quer dizer, essa questão que a gente tem, “o pecado entrou no mundo pela mulher”. Tem a Eva pecadora e tem a Maria santa. Isso é perverso porque reforça padrões culturais. Por que a sociedade é tão insensível à violência contra a mulher e a criança? É insensível. Olha os ditos populares: “Briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. “Mulher de malandro: ele não sabe por que está batendo, ela sabe porque está apanhando”. Não é verdade? Não é isso? Dito popular, o rito. Não sou contra o rito, tive filha que casou assim. Mas a mulher entrar de branco numa igreja com o pai, chega em frente do altar, ele passa ela pro marido e que depois vai ser abençoado por um juiz, por um pastor ou por um padre, um outro homem. Quer dizer, a mulher é posse de alguém, que passa pra posse do outro e essa posse; essa transferência de posse é certificada por um terceiro homem. Ela nunca “é”; ela é filha de fulano, a esposa de sicrano e se possível ela vai ter um filho homem e vai ser a mãe de não sei quem. Ela não é, antologicamente, a mulher não é. Não sendo violência contra o que não é, não aparece. 90% das pessoas traficadas são mulheres e meninas, pessoas do sexo feminino. Eu gostaria imensamente - acho que isso é mais complexo que a questão ambiental - que daqui alguns anos isso também fosse incorporado à consciência da sociedade mundial. Porque só assim nós vamos poder fazer alguma coisa melhor. Chega?
P/1 – Não.
R – Dá uma aguinha pra mim.
P/2 – Priscila, só voltando um pouquinho, nessa época da formação da SOS, nesses primeiros anos, como ela era vista publicamente?
R – Eu creio que a SOS sempre teve uma boa aceitação, porque também coincide com esse início de consciência da sociedade. Claro que ela vai ter, em qualquer época, qualquer tema que você levante, vai ter oposição. Mas eu diria que ela foi muito bem aceita; eu creio que sim. Pelo menos era uma força a mais pra aqueles que tinham interesse na luta e também era um momento que a sociedade estava despertando. Porque você falava muito da Amazônia, “... porque Amazônia...” Mas de repente, 1972, por exemplo, no primeiro encontro foi a grande discussão da Amazônia, lá em Estocolmo, aquele primeiro encontro de Estocolmo de meio ambiente foi da cúpula, que até a época era ditadura militar. O Brasil foi extremamente criticado pela atuação dentro da Amazônia, mas não se tinha muita consciência porque a Mata Atlântica está no fundo do meu quintal. Eu morei em São Sebastião, atrás do meu quintal tem Mata Atlântica. Essa consciência que você está vivendo com ela. Aqui em São Paulo o que tem de mata é Mata Atlântica. Então essa consciência foi interessante, foi uma contribuição muito grande que a SOS deu, sem dúvida.
P/1 – E na década de oitenta, final de setenta: na sua opinião, quais eram os principais problemas ambientais? Quais eram os maiores desafios que o movimento ambiental tinha?
R – Da minha experiência é como eu falei pra você, a Petrobras derramava óleo tranquilamente, vários derramamentos inclusive comprometeram os costões por mais de dez anos. Em 1977 teve um grande derramamento que chegou até a divisa do Rio de Janeiro, catástrofes ambientais mesmo eu diria. A questão das estradas que eram feitas sem nenhum critério. A Constituinte do meio ambiente foi muito importante nesse sentido, a Constituição de 88. Mas teve uma constituinte de dois anos trabalhando em cima. Eu pelo “Estado” acompanhei essa comunidade de deputados que foram discutindo as questões ambientais do Brasil, porque eram feitas mais ou menos sem critério, ia se fazendo. Hoje, a partir de então, foi tentando pontuar aquilo que a gente chamou: tem que ter desenvolvimento? Tem, mas tem que ter critério pra esse desenvolvimento. Então a gente conseguiu decretar o Parque Estadual da Serra do Mar em São Paulo, foram passos que foram sendo conseguidos. A fundação do Consema, depois a Secretaria do Meio Ambiente, são passos que a gente, quando está vivendo, nem percebe muito, mas quando você faz com retrospecto você vê que realmente são importantes, são muito importantes. Hoje você não pode fazer aleatoriamente um grande projeto sem passar por uma discussão, sem ser analisado - conforme o caso ser analisado inclusive em Brasília. Se fosse assim, por exemplo, aquela ligação de rios que tão se pensando entre a Amazônia e o Centro-Oeste já estava pronta. É na marra mesmo, apesar de passar por nove comunidades indígenas, apesar de não sei o que, apesar, apesar, apesar... Então hoje não. Não estou dizendo que ainda está perfeito. Você sabe que infelizmente muitas vezes tem corrupção nas coisas, mas são elementos de discussão e parâmetros de ação que ajudam, norteiam as políticas públicas ambientais. Isso foi vitória de um grupo, claro. Porque a SOS se insere – não só ela, mas sem dúvida teve um papel importante e tem ainda.
P/1 – O nível de conscientização da população em geral aumentou muito desde a criação da SOS pra cá. Em sua opinião, hoje, mesmo a população estando mais conscientizada da questão, existem pontos que deveriam ser trabalhados mais pontualmente?
R – Eu creio que o grande problema ambiental que nós temos hoje em dia é a questão do esgoto sanitário, do esgoto doméstico. Esse é fundamental. Porque nós temos grandes concentrações humanas sem tratamento. Vou dar um exemplo: se você pode arrumar o Tietê, bacana arrumar o Tietê, fazer jardim no Tietê, mas se o Tietê continuar poluído, não vai dar. Você tem as praias, de repente as praias são o cartão postal só, porque está lá a bandeirola da Cetesb dizendo que está tudo poluído. Eu creio que o grande problema ambiental hoje, que se coloca nas sociedades urbanas, é a questão de infra-estrutura sanitária. E você veja como é injusta, porque na tua casa, na minha casa, que é classe média, nós temos água tratada pra apertar a descarga pra mandar embora um xixizinho. E têm milhares, milhões de crianças na periferia das nossas casas com água tratada que tomam água poluída, não é? Então são coisas que a gente não toma consciência disso. É um despropósito uma água que é tratada pra ser usada no esgoto - se todo mundo tivesse, perfeito - ao lado de comunidades, no mesmo local onde você mora, que morre com doenças de desinteria. Acho que isso é um grande problema de infra-estrutura, porque nós estamos hoje no Brasil, o Brasil é uma grande sociedade urbana. Só veja a grande São Paulo. Quer dizer, são os problemas relacionados à infra-estrutura sanitária, água, a poluição do ar, com aquela medida de você fazer rodízio de carros, tinha um dado que nos foi apresentado que trezentas crianças/mês, principalmente nos meses de inverno, diminuíram os problemas respiratórios das crianças que moram na periferia, que moram ao lado das estradas. Então eu acho que são problemas inerentes que a gente chama, e o Darcy Ribeiro chamava de “processo civilizatório”. É aquilo - se você não cuida da criança, vai cuidar da árvore? É, eu estava dizendo agora, conversando com ela que muitas vezes no computador eu me perguntava: “Tenho que me decidir se vou pro meio ambiente ou se vou pra gênero”, quando eu percebi num insight que é tudo a mesma coisa, é um processo civilizatório ocidental ou oriental, sei lá. Hoje não digo nem oriental nem ocidental, eu digo globalizado que está baseado no lucro e que está fazendo que o universo, a Terra. Cada vez mais a concentração de renda se dá em cima de alguns grupos, de algumas nações e algumas pessoas. Eu estive em uma discussão agora em novembro, eu voltei em dezembro da Alemanha. Os operários alemães trabalhavam 38,5 horas por semana; agora vão trabalhar 41 horas, perderam o décimo terceiro e perderam as férias - o que a gente está sentindo que está vindo pra cá. E o empresário diz assim: “Se você não gosta disso, meu amigo, eu vou pra Polônia. Na Polônia tenho mão-de-obra extremamente qualificada e que ganha a metade de vocês.” Então você está sentindo isso em todos os lugares do mundo. É uma situação de uma concentração em pequenos grupos, são poucas as empresas, as grandes empresas, cada vez mais elas se concentram nas mãos de alguns poucos caras. A imprensa no Brasil são oito famílias. Cada vez mais é uma concentração que vai desde a informação, até ao lucro, a divisão desse lucro. Isso é um problema seríssimo ambiental. Existe pior problema ambiental do que a guerra? Não existe. A gente tem consciência que a guerra é um problema ambiental? Não existe problema ambiental pior do que uma guerra, e nós temos hoje a guerra do Iraque, que foi feita pra defender uns e outros interesses petrolíferos. Quer dizer, o mundo, a Terra - não é só a Mata Atlântica, ou a Amazônia, ou a água - é tudo, não é? É tudo. Eu acho que a gente teria que fazer uma grande reflexão sobre esse dito processo civilizatório. Uma vez, em Brasília, eu lembro quando eu estava no Estadão, um cara no Congresso Nacional falou assim: “Se a gente só tem dois pés por que nós queremos vinte pares de sapato”? Eu olhei pro lado e falei: “Puxa vida, onde é que eu estou? Na reunião de São Francisco de Assis?” Quer dizer, até o carinha todo engomadinho, bonitinho, o yuppie, toma consciência que a questão ambiental é muito séria. Porque se cada vez que você tem um par de sapatos ou uma roupa que você não precisa, você não tem consciência que você está gastando cara, ou será que não? Como é que conseguiu fazer a sola de sapato? E, no entanto, o desenvolvimento está baseado no ter, no compre. Esse ‘compre’ e esse ‘tenha’, tem um reflexo igual à devastação. Como é que você vai resolver? Não sei, a gente tem que ter uma coisa mais solidária, uma globalização mais solidária, ela está aí, não tem como negar, mas que fosse mais solidária. Mas você veja que ninguém estava tomando consciência que está acontecendo na África. Hoje em dia, é considerado o maior genocídio da história da humanidade. Vinte milhões de pessoas com Aids na África e qual é a revista ou jornal que fala isso com certa continuidade? Eu acho que é esse processo que começa com você, que dá uma enorme insatisfação porque é ter, ter, ter, querer, “se eu não tiver a calça Zoomp eu não sou feliz. Se eu não tiver um carro tal eu não sou feliz. Se eu não tiver isso eu não pego nenhuma gatinha”, não é mesmo? Se isso não mudar a insatisfação minha, é projetada pra insatisfação social que é projetada por uma... E a Terra, está provado, é um ser vivo que tem uma x capacidade de absorver isso tudo. Marte já teve água, está provado e hoje Marte está lá, aquela coisa mais feia do mundo. Quem garante que a nós também não vamos ficar que nem Marte nessa vida? Caminhar do jeito que está. Não que eu seja, como me chamaram já, uma ecologista dessas que... Não, eu falo porque eu tenho cinco filhos, seis netos, adoro a vida, sou da teoria do Roberto Freire, aquele psicanalista que diz que “sem tesão, não há solução”. Eu tenho tesão pela vida, tenho tesão pelo amor, por tudo que é bom na vida e eu acho que todo mundo tem que ter isso. Mas isso só vai se concretizar na hora que a gente perceber que uma nova relação humana entre as sociedades e entre as nações tem que acontecer mais solidária, mais partilhada, talvez seja essa a contribuição que o feminino tenha que dar. Ser mais solidário e não tão competitivo.
P/1 – E Priscila, ao longo desses dezoito anos da SOS, ela desenvolveu diversas campanhas. Destas, qual mais te marcou, de todas as desenvolvidas?
R – O que pra mim, por conta do meu entorno de vida, na própria Mata Atlântica, acho que a defesa da Mata Atlântica em si, pra mim, é o que marca. Essa consciência que você tem no fundo do teu quintal, um patrimônio ambiental brasileiro que é rico, mais rico em biodiversidade do que a própria Amazônia, que só perde pra Madagascar, que você tem um metro quadrado de Mata Atlântica, não sei quantas qualidades de vida. Acho que essa consciência das nossas ilhas, da nossa Serra do Mar coberta de Mata Atlântica, esse trabalho feito com as crianças. Por exemplo, onde eu morava sistematicamente se punha fogo na mata - a ‘coivara’, que é uma prática que vinha dos índios. Esse trabalho com a criançada fez com que hoje não se ponha. Todas essas campanhas que a SOS teve, pra mim, o que me toca do fundo do coração, é o que ela fez em si pela mata. Porque na medida em que ela trabalhou pela mata, ela trabalhou com os índios que aí moram, os índios guaranis que moram na Mata Atlântica. Eles são atrás daquela terra sem mal, eles são os remanescentes dos índios do Rio Grande do Sul, da Argentina, do Uruguai, que eram aqueles índios de quando as missões foram dissipadas, acabadas, arrebentadas; os que sobreviveram vão subindo pela mata e pela serra, em busca de uma terra sem mal, perto do mar, na montanha coberta de mata. Então essa é a história, a mitologia dos guaranis. Uma terra sem mal, perto do mar, na montanha coberta de mata, está lá. E nós temos que preservar essa terra que divide esse mal, que os índios há quantos milhares de anos já sabem.
P/1 – Quais são as perspectivas pra Mata Atlântica?
R – Eu quero que sejam as melhores possíveis... (riso) Mas eu digo pra você: ela não está sozinha num contexto universal, nenhum de nós está sozinho. Eu creio, como eu disse pra você, já tem uma consciência maior. A gente conseguiu bloquear uma rodovia que tinha patrocínio do Estado de São Paulo. Eu acho que é uma perspectiva positiva, mas com muita luta. Ninguém pode sentar e dizer: “Já ganhamos, já ganhamos”.
P/2 – Você acha que de quando começou, hoje a SOS mudou muito o foco de atuação dela?
R – A SOS, de certa forma, tem que sobreviver economicamente também. Esse é o desafio das ONGs. Ela tem que ter um corpo técnico. Mas ela diversificou, eu diria, suas atividades, mas sempre com esse foco na preservação de um ecossistema que é muito importante pra nós, que é patrimônio nosso. Então eu creio que ela se adaptou aos tempos novos. Não dava pra você ficar a vida inteira dizendo: “O povo unido jamais será vencido”. Já passou; agora você tem que unir mesmo. Você tem realmente que tentar dar soluções, colaborar, discutir, ajudar a formulação das ditas políticas públicas, porque ninguém vive de ar, nem de slogan; a gente vive de coisas concretas. O slogan ajuda, a campanha em si ajuda, mas você precisa ter propostas políticas permanentes que dão mais segurança. Aquilo que a gente falou, não se faz mais uma estrada porque um cara lá achou que aquela estrada vai ser legal. Pra ele fazer aquela estrada, abrir aquela mata e derrubar aquela árvore ele vai ter que por muita gente, vai ter que discutir. Então eu acho que são parâmetros que ajudam na defesa desse patrimônio.
P/1 – E fazendo um balanço desses dezoito anos da SOS, você acha que existem alguns pontos que necessitam de reformulação?
R – É difícil você falar, porque quem está lá na luta, e eu não estou na luta direto, sabe como o piano é difícil de carregar. Sempre vai ter pontos de reformulação. Acho que a gente sempre tem que estar reformulando, revendo, tentando descobrir o que é que tem que fazer. Eu acho que a questão das nascentes da Serra do Mar é importante de ser preservada, porque essas nascentes são as nascentes que vão dar água pro município de São Paulo. A luta está aí, tem que ampliar muito. Mas pra mim, em minha opinião, nesse século XXI, um grande desafio ambiental é o meio ambiente urbano, que a gente não é só Mico-leão-dourado, nem borboleta, nem sapo. Somos gente, nós somos animais, racionais, mas animais. Então o meio ambiente urbano é o grande desafio. Desafio da infra-estrutura sanitária, da água, da poluição do ar, da chuva ácida. São dados que estão aí e que estão ligados a SOS, claro que estão ligados. A chuva ácida cai em cima da mata. A água poluída é o rio que corta a mata. É esse entorno muito mais amplo, mais holístico, mais completo.
P/2 – Priscila, nós estamos terminando. Eu queria que você me falasse o que esses dezoito anos da fundação da SOS representam pra você na sua vida. O que contribuiu? O que você passou nesses dezoito anos quando você olha e fala da fundação SOS. O que isso representa?
R – Eu acho que durante o tempo todo que eu falei, mais ou menos eu coloquei isso. Eu acho que pra mim, a questão não só da SOS, mas a questão ambiental, ecológica, que pragmaticamente eu pensava que era uma forma de trabalhar, de repente a questão ambiental me cativou, eu percebi que é vida. E a SOS Mata Atlântica é uma entidade que luta pela vida. Pra mim é aquilo que eu digo: você teve na SOS uma possibilidade de luta, teve uma arma, teve uma capacitação pra poder brigar por aquilo que você acredita. E que de repente, nesses dezoito anos, você percebe que a questão é holística. É uma questão técnica, é uma questão científica, uma questão política, é uma questão ambiental em si. Ela é uma questão que é multifacetada e que não é de um cara só, de uma pessoa só, é de todos nós. A Mata Atlântica é um patrimônio nosso que não é só do povo brasileiro, é ambiental. Sabe-se lá quantos remédios tão aí que nós não conhecemos, quantas doenças podem ser curadas com um metro quadrado de Mata Atlântica que a gente vai destruir sem saber. É essa visão ampla que me emociona... Eu vou ser franca com você, muitas vezes eu estou chegando em casa, minha rua é uma rua sem saída e dá no parque, eu me emociono. Cada vez que eu saio e olho o mar eu me emociono. Eu acho um privilégio morar em São Sebastião, porque você vê a pujança de vida, como nosso planeta é bonito. E apesar de tudo, como diz a música: “A vida é bonita, é bonita e é bonita...” (risos). E a gente tem que lutar por ela. É isso.
P/2 – Você queria falar alguma coisa que nós não perguntamos?
R – Não, eu acho que já falei demais.
P/2 – Então Priscila, nós gostaríamos de te agradecer pelo seu depoimento.
R – Que bom.
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